Plant Project #14

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Para quem pensa, decide e vive o agribusiness

COWTECH

A pecuária ganha peso na era digital PODER A FPA E O MAPA DA INFLUÊNCIA AGRO EM BRASÍLIA

ISRAEL O POVO DO DESERTO ENSINA O MUNDO A PLANTAR CIÊNCIA COMO A AGRICULTURA AJUDOU A DEFINIR A LINGUAGEM HUMANA

POSITIVO

O QUE UM CIENTISTA BRASILEIRO DESCOBRIU EM UM SAFÁRI ENTRE BOIS E ELEFANTES NA SAVANA AFRICANA

FORA DA ESTRADA? A TRANSFORMAÇÃO DOS SUVS, OS VEÍCULOS PARA CIDADE E CAMPO

ARTE venda proibida distribuição dirigida www.plantproject.com.br

O pau-brasil dá notas à pureza do som do violino


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PLANT PROJECT Nยบ14

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E d ito ri a l

O maior rebanho comercial bovino do mundo está no Brasil. São mais de

A ERA COWTECH

200 milhões de animais produzindo alimentos e receita para uma imensa cadeia produtiva, que começa nos milhões de pecuaristas de diversos portes e termina em algumas das maiores empresas de proteína animal do

Para quem pensa, decide e vive o agribusiness

planeta. Quem olha de longe enxerga uma força que assusta concorrentes COWTECH

A pecuária ganha peso na era digital PODER A FPA E O MAPA DA INFLUÊNCIA AGRO EM BRASÍLIA

ISRAEL O POVO DO DESERTO ENSINA O MUNDO A PLANTAR CIÊNCIA COMO A AGRICULTURA AJUDOU A DEFINIR O JEITO COMO FALAMOS

internacionais. Quem se detém aos detalhes descobre um segmento com enorme potencial ainda inexplorado, com baixa adesão às novas tecnologias, carente de padronização em diferentes etapas do manejo, do produto

POSITIVO

O QUE UM CIENTISTA BRASILEIRO DESCOBRIU EM UM SAFÁRI ENTRE BOIS E ELEFANTES NA SAVANA AFRICANA

FORA DA ESTRADA?

entregue às indústrias e mesmo dos processos de transformação dentro

A TRANSFORMAÇÃO DOS SUVS, OS VEÍCULOS PARA CIDADE E CAMPO

ARTE venda proibida distribuição dirigida www.plantproject.com.br

O pau-brasil dá notas à pureza do som do violino

Imagem da capa: Camila Sá

delas. A ótima notícia é que há investimentos pesados destinados a elevar a pecuária brasileira a um nível mais alto. Esta edição da PLANT apresenta parte desse esforço, que busca nas tecnologias digitais as ferramentas de transformação do modelo tradicional para o que já é chamado de Pecuária 4.0 – uma analogia com a Indústria 4.0, em que inovações como inteligência artificial e internet das coisas permitiram níveis de automação de processos e de customização da produção antes inimagináveis. A agricultura também caminha nessa direção graças ao surgimento de um movimento AgTech das empresas de tecnologia voltadas para a reinvenção dos modelos de cultivo. Um passo atrás nessa jornada, mas com ambição semelhante, startups e grandes empresas do setor estão invadindo pastos e currais com sensores, câmeras e outras traquitanas digitais que oferecem uma visão de futuro ainda mais excepcional para a produção de proteína animal – com maior eficiência e sustentabilidade, e menor impacto ambiental. Também por analogia, pode-se dizer que estamos na porteira da era CowTech. E você está convidado a entrar. Luiz Fernando Sá Diretor Editorial

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PLANT PROJECT Nยบ14

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Í ndi ce

plantproject.com.br

G pág. 7 Ag pág. 17 Fo pág. 61 Fr pág. 67 W pág. 75 Ar pág. 97 S pág. 105 M pág. 126 G LO B AL

D i r etor E ditoria l Luiz Fernando Sá luiz.sa@plantproject.com.br D i r etor Comerc ia l Renato Leite Marketing e Publicidade Multiplataforma renato.leite @plantproject.com.br D i r etor Luiz Felipe Nastari A rt e Andrea Vianna Projeto Gráfico e Direção de Arte E d i tor Romualdo Venâncio romualdo.venancio@plantproject.com.br R e p órt er André Sollitto andre.sollitto@startagro.agr.br Col ab o ra dores: Texto: Amauri Segalla, Costábile Nicoletta, Daniela Kresch, Flávia Tonin, Iva Velloso, Sérgio Quintanilha, Tiago Dupim, Tom Schiller Fotografia: Rogério Albuquerque, Sérgio Amaral Produção: Daniele Faria, Rafael Lescher Design: Bruno Tulini, Pedro Matallo Revisão: Rosi Melo Com un i cação Eliane Dalpizol Coordenadora de Comunicação eliane.dalpizol@datagro.com Ev e n to s Simone Cernauski

AGRIBUSINESS

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A d m i n i st ração e Fina nç as Cláudia Nastari Sérgio Nunes

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EDITORA UNIVERSO AGRO LTDA. Calçada das Magnólias, 56 - Centro Comercial Alphaville – Barueri – SP CEP 06453-032 - Telefone: +55 11 4133 3944


Criação de suínos na China: País aposta em tecnologias como reconhecimento facial e inteligência artificial para aumentar sanidade e produção

G GLOBAL

O lado cosmopolita do agro

foto: divulgação PLANT PROJECT Nº14

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G

GLOBAL

foto: Unsplas - Pascal Debrunner

O lado cosmopolita do agro

CHINA

CARA DE UM, FOCINHO DE OUTRO Reconhecimento facial, monitoramento de voz e rastreamento por GPS de porcos e frangos evitam a disseminação de doenças e levam a produção de animais para uma nova era tecnológica A piada ficou famosa na série de TV Portlandia, de grande sucesso nos Estados Unidos e também exibida no Brasil. Depois de olhar o cardápio de um restaurante de comida natural, dois clientes perguntam ao garçom se a carne do estabelecimento é orgânica. Para tranquilizá- los, o funcionário mostra o álbum de família do animal, repleto de fotos e com descrições detalhadas de sua vida saudável no campo. Por mais insólita que a cena possa parecer, ela está prestes a se tornar realidade. Na China, pesquisadores estão adotando tecnologia de reconhecimento facial, rastreamento por GPS e inteligência artificial para identificar e contar a história pregressa de porcos e 8

frangos antes de eles serem levados à mesa para o consumo humano. Nenhum país tem avançado tanto nessas áreas quanto a China. Há 170 milhões de câmeras instaladas nas ruas e a meta é chegar a 600 milhões até 2020. No início do ano, um suspeito de crimes financeiros foi descoberto em plena Pequim por um equipamento capaz de identificar pessoas no meio da multidão. A mesma tecnologia está por trás do mapeamento facial e da varredura de voz dos porcos. Ela começou a ser aplicada para evitar a disseminação da febre suína, doença mortal sem vacina ou cura conhecidas que se espalha por meio do contato entre animais – felizmente, não


Câmeras fazem reconhecimento facial de suínos em fazenda chinesa: mais de 1 milhão de criadores já usam sistema

afeta os humanos. Em 2018, mais de 1 milhão de porcos foram abatidos em solo chinês, uma fração de uma população superior a 400 milhões de animais, mas com potencial para gerar grandes perdas financeiras. O reconhecimento facial dos porcos funciona da mesma forma que o dos humanos: scanners e softwares captam as cerdas, o focinho, os olhos e os ouvidos dos animais. As imagens são arquivadas e cada animal ganha uma espécie de identidade única, diferente de qualquer outro indivíduo. Quando o porco está doente, suas feições mudam. Os olhos caem, a face fica flácida. É aí que entra em cena a inteligência artificial dos scanners. Ela consegue reconhecer um animal específico e avisa o produtor que algo está errado com ele. Antes que o porco contaminado transmita sua doença para os vizinhos, ele é abatido. “Se os porcos não estão felizes, as câmeras de reconhecimento facial percebem isso”, disse Jackson He, diretor executivo da Yingzi Technology, ao jornal americano The New York Times. A Yingzi é uma empresa especializada em

monitoramento com sede na cidade de Guangzhou, no sul do país. Pioneira nesse tipo de tecnologia, ela oferece seus serviços para mais 1 milhão de fazendeiros chineses, e o número não para de crescer. “Como entre os humanos, não há um porco que seja igual ao outro”, garantiu Jackson He. O negócio é tão promissor que até grandes varejistas estão investindo na área. É o caso do Alibaba, maior empresa de comércio eletrônico da China e segunda maior do mundo, atrás da Amazon. Além do reconhecimento de voz, a Alibaba desenvolveu um software que identifica animais com tosse, o que pode ser um sinal de febre suína. A JD.com, outra gigante chinesa do e-commerce, monitora a atividade dos porcos em tempo real. Se eles se movimentam pouco ou fazem algo que foge da rotina, veterinários são acionados para verificar o estado de saúde do animal. As empresas que detêm a tecnologia dizem que podem ajudar os agricultores a isolar indivíduos portadores de doenças, reduzir o custo da alimentação, aumentar a fertilidade das porcas e

diminuir os índices de mortes não naturais. O sistema da JD. com, por exemplo, usa robôs para alimentar os suínos na quantidade correta, de acordo com o estágio de crescimento dos animais. A agricultura inteligente também chegou à produção de frangos. A ZhongAn Online, uma companhia de seguros da China, já equipou mais de 100 mil aves com rastreadores e a ideia é levar a tecnologia para 2,5 mil fazendas do país. Os dispositivos dotados de sensores são colocados na pata do frango e indicam tudo o que ele fez na vida – os lugares que frequentou, o que comeu e até a quantidade de exercício que praticou antes de ir para a panela. Detectada pelo GPS, a falta de atividades do animal pode ser um indicativo de doenças. Nesses casos, assim como acontece com os porcos rastreados, o veterinário é avisado do problema, evitandose assim a disseminação de moléstias. Não vai demorar muito para o cliente do restaurante perguntar ao garçom sobre o singelo frango do cardápio e receber como resposta algo como “ele foi um animal feliz e saudável”. PLANT PROJECT Nº14

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G ÍNDIA

PAPAGAIOS VICIADOS EM ÓPIO

Todos os dias, milhares de papagaios atacam plantações no estado de Madhya Pradesh, na região central da Índia, com um único objetivo: saciar seu vício em ópio. As aves são fissuradas em papoula, plantas usadas na produção industrial do ópio. Este, por sua vez, dá origem à heroína. Segundo especialistas, a substância

presente nas papoulas é suficiente para produzir nos pássaros uma leve sensação de euforia, algo parecido com o que os humanos sentem ao tomar várias xícaras de café. Para afastar os papagaios, os agricultores lançam fogos de artifício e tocam sons ensurdecedores em megafones, mas nada tem sido capaz de deter o apetite voraz dos animais. Como dependentes químicos, eles fazem qualquer coisa para saborear as papoulas – o vício, afinal, os dominou. O problema é sério e tem provocado severos danos financeiros. Na Índia, as plantações de ópio são licenciadas e atendem às demandas da indústria farmacêutica.

CHINA

O FIM DAS PEQUENAS FAZENDAS Um estudo do governo chinês concluiu que existem no país cerca de 50 milhões de pequenas fazendas. Muitas delas estão nas mãos das mesmas famílias há várias gerações e cultivam os mesmos produtos há centenas de anos. O modelo funcionou durante séculos e ajudou a alimentar o país mais populoso do planeta. Agora não mais. A nova era tecnológica disparou a produtividade no campo e deixou para trás os fazendeiros 10

apegados a velhos sistemas de cultivo. Além disso, seus filhos e herdeiros trocaram a vida rural pelas cidades, o que diminuiu a mão de obra disponível. O que parecia um fim trágico – o desaparecimento de propriedades seculares – resultou em uma saída honrosa para todos. Grandes fazendas

comerciais da China passaram a investir na compra dessas pequenas áreas produtivas, salvando os proprietários da falência e modernizando o sistema agrícola do país. Nos últimos anos, o controle de 5 milhões de pequenas fazendas foi transferido para grupos industriais.


G NORUEGA

O BANCO DO BIFE Cientistas da Universidade de Oslo, na Noruega, assumiram uma missão hercúlea: organizar o primeiro banco de células animais do mundo. A ideia não poderia ser mais ambiciosa. De um lado, os pesquisadores pretendem mapear e salvar espécies ameaçadas de extinção. De outro, desenvolver o cultivo de carne em laboratório – o que vem sendo feito com sucesso. Funciona assim: os cientistas

isolam células de bovinos que têm a capacidade de se regenerar. A seguir, essas células são colocadas em grandes tanques biorreatores e recebem oxigênio e nutrientes como açúcar e minerais. Depois de

algumas semanas, elas se transformam em tecidos musculares. Por enquanto, a carne de laboratório depende da regulamentação das autoridades para que seja destinada ao consumo humano.

E S TA D O S U N I D O S

O vale das tulipas, do uísque e da cerveja O festival de tulipas do Vale Skagit, em Seattle, nos Estados Unidos, é um espetáculo de cores que atrai milhares de turistas todos os anos, mas os fazendeiros locais agora querem ser reconhecidos por outro motivo: como produtores de alguns dos melhores uísques e cervejas do mundo. Para isso, se associaram a pesquisadores da Universidade de Washington com o objetivo de desenvolver um novo processo de maltagem dos grãos utilizados na destilação e fabricação das bebidas. “Para nós, apenas copiar o uísque escocês não é autêntico ou honesto”, disse Matt Hofmann,

diretor da Westland Distillery, a um site especializado. “Queremos ter a nossa própria assinatura.” A ideia é, no futuro próximo, criar marcas tão fortes quanto aquelas consagradas pelos escoceses. PLANT PROJECT Nº14

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G E S TA D O S U N I D O S

Nova York é uma grande horta

As projeções da Nova York verde, segundo a Terreform: ideia é transformar a metrópole em uma grande horta urbana 12

A ONG americana Terreform pesquisa desde 2005 soluções capazes de tornar as grandes cidades mais verdes e amigáveis. Entre as propostas formuladas pela empresa estão um parque elevado em Helsinque, capital da Finlândia, e corredores ecológicos em Gaza, na Palestina, um dos lugares mais conflagrados do mundo. Poucas vezes um projeto apresentado pela Terreform foi tão radical – no bom sentido – quanto o criado recentemente para a cidade de Nova York. A ideia é fazer da metrópole


americana uma grande horta a céu aberto. Pelo projeto, a cidade seria dividida em vários centros produtores de alimentos. Os abundantes telhados não utilizados dos prédios seriam convertidos em grandes plantações, edifícios inteiros de 30 andares deveriam ser transformados em fazendas verticais e árvores frutíferas seriam fincadas por toda Nova York, suprindo – gratuitamente – a população com alimentos saudáveis. Até os muros de concreto deveriam receber variedades de hortaliças comestíveis, que estariam ao

alcance das mãos dos milhões de pedestres que circulam pela cidade. Em meio a tudo isso, painéis solares produziriam energia suficiente para iluminar avenidas, residências e espaços comerciais, ao mesmo tempo que forneceriam sombra para os transeuntes. Em suma: embora pareça drástico, o plano da Terreform prioriza o ser humano, o meio ambiente e a qualidade de vida. Confira a seguir as imagens que revelam como ficaria Nova York se a proposta fosse aprovada.

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G GANA

HERSHEY COMBATE O AQUECIMENTO GLOBAL

As fazendas que produzem os melhores cacaus do mundo têm uma característica comum: elas ficam próximas à linha do Equador, que oferece as condições climáticas ideais para o cultivo do fruto. Se os limites geográficos definem a qualidade, eles também representam um obstáculo. Quando algo não vai bem, toda a cadeia produtiva sofre. Com o aquecimento global, as áreas apropriadas para o plantio de cacau podem encolher 30% nas próximas duas décadas – e não há lugar no globo para substituí-las. Preocupada com esse cenário, a americana Hershey, uma das mais tradicionais fabricantes de chocolate do mundo, decidiu agir. A empresa irá destinar meio bilhão de dólares para evitar que mudanças climáticas destruam seus suprimentos. O projeto começará em Gana, na África. A ideia é bancar pesquisas que levem ao aumento da produtividade nas fazendas, o que evitaria novos desmatamentos, e proteger o Parque Nacional de Kakum, uma floresta essencial para preservar o equilíbrio climático do país.

I N G L AT E R R A

AS MINHOCAS SUMIRAM Minhocas exercem um papel vital na saúde do solo. Algumas delas são ainda mais indispensáveis. É o caso das epigeicas, que vivem próximas às superfícies e se alimentam de grandes quantidades de resíduos orgânicos – fator que faz com que seus excrementos tenham alto poder fertilizante. Viver na superfície pode ser também um problema: as epigeicas estão expostas à ação do homem e, por essa razão, têm sofrido com o uso excessivo de produtos químicos pelos agricultores. Na Inglaterra, uma pesquisa recente mostrou que essas minhocas correm sério risco de desaparecer. Em alguns campos, o sumiço das epigeicas diminuiu a fertilidade do 14

solo e afetou a produtividade das culturas. Para os cientistas, a redução da população de minhocas explica até a queda do número de sabiás, que dependem delas para alimentar seus filhotes. Diante da gravidade da situação, os agricultores ingleses se comprometeram a mudar suas práticas para preservar as epigeicas.



G I TÁ L I A

PLANTAÇÕES PATROCINADAS A startup italiana Biofarm inventou uma maneira criativa de bancar seus produtos orgânicos: cada árvore ou planta cultivada pela empresa tem um patrocinador privado. O interessado paga uma quantia mensal para ter o direito de monitorar remotamente, por meio do celular ou computador, o progresso de sua plantação, que pode ser um campo de oliveiras, uma fazenda de laranjas ou qualquer outra

cultura. No momento da colheita, o patrocinador escolhe entre ficar com o produto (uma rede de supermercados, por exemplo, pode ter o interesse de mostrar aos clientes a procedência de seus legumes)

ou deixar que a Biofarm vá ao mercado vendê-lo, e depois embolsar uma parte dos lucros. O negócio começou na Itália e foi tão bem-sucedido que já está presente em diversos países europeus.

SINGAPURA

Um parque tecnológico para o agro

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País com maior número de milionários per capita do mundo (uma em cada seis famílias tem pelo menos US$ 1 milhão) e com o melhor sistema de ensino (segundo o ranking Pisa), Singapura quer se tornar agora um dos centros globais de inovação no agronegócio. Há algumas semanas, o governo local anunciou a construção do que chamou de primeiro Parque de Inovação Agroalimentar do planeta. Ele ficará em Sungei Kadut, uma região industrial que pouco se desenvolveu nos últimos anos. O projeto quer atrair startups e grandes companhias ligadas principalmente ao setor alimentar – de fabricantes de rações para animais a empresas iniciantes que pesquisam o aumento da produtividade no campo. O parque será inaugurado no início de 2021.


O presidente Bolsonaro na posse da nova diretoria da FPA: Novo eixo do poder muda mapa da influência do agro em Brasília

Ag AGRIBUSINESS

foto: Shutterstock

Empresas e líderes que fazem diferença

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Ag Empresas e líderes que fazem diferença

O ENDEREÇO DO PODER AGRO EM BRASÍLIA Ao final de uma rua sem saída, uma mansão às margens do Lago Paranoá se firma como o centro das principais decisões do setor e abriga novas e antigas forças no jogo de influências da política Por Iva Velloso | Fotos Sérgio Amaral

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Sede da FPA em Brasília: o endereço mais quente para a discussão das pautas do setor PLANT PROJECT Nº14

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T Ag Política

Reunião da bancada na mansão da FPA: Frente é a mais antiga e organizada em ação no Congresso 20

P E

odas as terças, a partir do meio-dia, o entra e sai de carros na mansão 19 do conjunto 08 da QI 10 do Lago Sul, bairro nobre de Brasília, agita a vizinhança. Deputados, senadores, dirigentes de instituições do agronegócio e jornalistas se encontram na mansão para, saboreando uma deliciosa comida caseira, discutir temas que preocupam o setor e a economia do País. O tradicional almoço promovido pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) é um dos principais pontos de encontro do poder do agronegócio em Brasília. Ali se reúnem parlamentares de quase todos os partidos, ministros de Estado, dirigentes de entidades setoriais, produtores e empresários. Até presidentes da República já passaram pela mansão para participar do convescote. Esse pedacinho do Lago Sul poderia até ser batizado de “Agro Sul”, por abrigar boa parte do PIB do agronegócio na capital federal. Próximo à mansão da FPA, precisamente na casa 6, ficam localizadas as sedes da Aprosoja Brasil (Associação Brasileira dos Produtores de Soja); da Abramilho (Associação Brasileira dos Produtores de Milho); da Abrass (Associação Brasileira dos Produtores de Sementes de Soja) e do Canal Rural. São endereços tradicionalmente frequentados pelos expoentes do PIB Agropecuário, mas que ganharam movimento (e relevância) extra desde a eleição de Jair Bolsonaro para a Presidência da República. Em retribuição ao apoio maciço do setor a sua candidatura, Bolsonaro abriu frentes de atuação para os representantes do agro no parlamento e, assim, novos nomes ligados ao campo começaram a ganhar brilho no mapa dos mais influentes em Brasília. A região do “Agro Sul” definitivamente entrou para o mapa do poder, tendo como epicentro a sede da FPA. A proximidade da Frente com o setor é que garante o diferencial na atuação da entidade em Brasília. E esse diferencial se materializou por meio da criação do IPA (Instituto Pensar Agropecuária), responsável por gerir um fundo financiado por 39 instituições do agronegócio. O fundo banca despesas que vão desde o aluguel da mansão da FPA no Lago Sul, passando pelo pagamento de funcionários, dos almoços das terças – são servidas cerca de 300 refeições a cada encontro – até a contratação de consultorias, pesquisas e trabalhos que são usados para subsidiar os parlamentares da Frente nos projetos em tramitação ou para balizar a atuação legislativa. Por causa dessa organização, a FPA vem ganhando mais apoio a cada legislatura. “Já estamos com quase 300 parlamentares”, comemora


PODER o presidente da Frente, deputado Alceu Moreira, cuja posse, dia 19 de fevereiro, contou com a presença do presidente Jair Bolsonaro. Uma bela demonstração da força da bancada ruralista. “A Frente tem força por causa da sua legitimidade junto ao setor”, avalia o presidente da OCB (Organização das Cooperativas do Brasil), Márcio Freitas, um dos colaboradores do IPA. Apesar de apenas de 35% a 40% da OCB ser formada por cooperativas ligadas ao agro, a instituição vê na FPA uma ponte para garantir conquistas junto ao Legislativo e Executivo. Os estudos bancados pelo IPA são encomendados de acordo com as prioridades do setor estabelecidas a cada ano. O presidente da Aprosoja -- principal financiadora do IPA --, Bartolomeu Braz, viu a necessidade de criação do Instituto como uma solução para a melhor atuação da Frente. “A Frente age muito mais do que as pessoas pensam”, afirma Braz. Por meio do IPA, diz, os deputados e senadores

recebem informações que ajudam no debate técnico tanto no Legislativo quanto no Executivo. Com mais de 30 anos, a FPA é a frente parlamentar mais antiga, mais atuante do Legislativo e com maior poder de influência junto ao Executivo Federal. Essa força ficou ainda maior no governo Jair Bolsonaro, que retirou dos partidos e passou para as bancadas temáticas o poder de indicação de ministros. Graças a essa mudança, a FPA conseguiu alçar a então presidente da Frente, deputada Tereza Cristina (MS), ao cargo de Ministra da Agricultura. Uma vitória e tanto. Afinal, os antecessores, apesar de ligados ao setor, foram escolhidos à revelia da bancada ruralista. Kátia Abreu pela amizade com a então presidente Dilma Rousseff, e Blairo Maggi, por indicação do PP. Além da própria ministra, a FPA indicou ainda o secretário executivo da Pasta, o ex-deputado Marcos Montes, e o secretário de Agricultura Familiar e

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Ag Política

Bolsonaro na posse da FPA, o ex-ministro Neri Geller dá entrevista na entrada e a diretoria da Frente comenta reunião antes do almoço da terça; na página ao lado, as vizinhas casas da FPA e da Aprosoja

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Cooperativismo, Fernando Henrique Kohlmann Schwanke. As indicações não pararam por aí. O ex-deputado Valdir Colatto ganhou de presente a presidência do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), um órgão que até pouco tempo pertencia ao Ministério do Meio Ambiente e que agora se subordina ao Ministério da Agricultura. Além do Ministério da Agricultura, a FPA tem bastante trânsito junto à Casa Civil da Presidência, chefiada pelo exdeputado Onyx Lorenzoni. Egresso da Frente, o médico veterinário foi presidente da Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados e tem ampla influência junto à ministra Tereza Cristina, companheira de partido (ambos são filiados ao DEM). Onyx, aliás, tem participado ativamente dos assuntos do Ministério da Agricultura. Para acompanhar a transição, ele indicou o servidor aposentado da Embrapa, Francisco Basílio Freitas de Souza, que ajudou a ministra Tereza Cristina a montar sua equipe. Basílio chegou a ser indicado para assumir a poderosa vice-presidência de Agronegócios do Banco do Brasil, mas foi vetado pela Lei das Estatais porque responde a um processo na Justiça. Acabou virando assessor especial da ministra e um dos seus principais conselheiros. Ao lado de Onyx, atua como assessor especial da Casa Civil outro ex-deputado bastante conhecido da bancada ruralista: Abelardo Lupion, fundador e ex-presidente da UDR (União Democrática Ruralista). “Ele (Lupion) tem nos ajudado bastante”,

P E


afirma o deputado Neri Geller, ex-ministro da Agricultura no primeiro mandato de Dilma Rousseff. Como todo núcleo que envolve o poder há sempre dissidência, no agro não poderia ser diferente. O secretário especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Naban Garcia, é uma liderança que vem despontando com muita força em Brasília, principalmente pela sua aproximação com o presidente Bolsonaro. Mas está longe de ser unanimidade. Embora atue diretamente nas questões fundiárias, Naban tem defendido alguns assuntos que não são consenso dentro da FPA. Um deles é o não pagamento do Funrural, um acordo firmando ainda no governo Michel Temer. “Nós achamos que a maior parte (da dívida do Funrural) já foi paga. As negociações que fizeram foram razoáveis”, afirma o deputado Arnaldo Jardim, ex-secretário de Agricultura de São Paulo no governo Geraldo Alckmin, contrário à ideia de calote. O tema está sendo levantado pelo deputado Jerônimo Goergen, que chegou a ser indicado para assumir o Ministério da Agricultura por Naban. Esse assunto não é o único que divide e preocupa os ruralistas. Uma proposta de securitização também vem agitando o núcleo de poder do agro em Brasília. Os defensores

da proposta, liderada por Goergen, já preparam uma grande mobilização para o mês de maio. Os contrários temem que a securitização possa causar o aumento do spread bancário nos empréstimos do agro, que tem uma média de 1,6% de inadimplência. Por fim, uma das maiores forças políticas não partidárias do agronegócio brasileiro está representada pela CNA (Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária). A base da CNA é formada por 1.951 Sindicatos Rurais e 1.122 extensões de base. Esses sindicatos são representados por 27 federações. A CNA está sempre presente nas discussões políticas envolvendo o setor, inclusive nos momentos cruciais da política brasileira. Um exemplo dessa manifestação política foi em 2016, quando a entidade publicou uma nota defendendo o afastamento da presidente Dilma Rousseff, mesmo tendo a presidente licenciada da instituição, Kátia Abreu, ocupando o Ministério da Agricultura. Apesar da força, o sistema começa a ser questionado por alguns parlamentares da Frente por causa da longevidade dos dirigentes de algumas federações. Um exemplo disso é o do presidente da Faesp (Federação da Agricultura do Estado de São Paulo), Fábio Meireles, que está à frente da instituição há pelo menos

PODER 48 anos. “Em outros estados a média de tempo de mandato dos dirigentes é de 30 anos. Isso precisa mudar”, afirma um deputado da FPA. Essa é uma discussão que, embora não tenha um viés político-partidário, vai acabar entrando na pauta da Frente mais cedo ou mais tarde. A CNA, ao lado do Ministério da Agricultura e da FPA, forma a tríplice estrutura de poder do agronegócio na capital federal. Uma força política e econômica que se consolida a cada dia. PLANT PROJECT Nº14

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Ag Política

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QUEM É QUEM NO PLANALTO

MINISTRA TEREZA CRISTINA Considerada a mulher mais poderosa do País, foi alçada ao poder pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que presidia na época da indicação. A pasta ficou mais robusta no governo Bolsonaro com o aumento do número de secretarias de 4 para 7.

APROSOJA 4

1 MARCOS MONTES Secretário executivo do Ministério da Agricultura, também foi indicado pela FPA. Assumiu o posto com data marcada para sair. Pré-candidato a prefeito de Montes Claros (MG), possui grande influência no Ministério, não apenas pelo posto que ocupa, mas pela sua força política junto à bancada ruralista.

3 FPA E IPA

1 NABAN GARCIA Amigo pessoal do presidente Jair Bolsonaro, só não conseguiu o cargo de ministro porque sofreu resistências dentro da Frente e de parte do setor. Assumiu a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários e vem liderando muitos assuntos dentro da FPA, mesmo sem ser um integrante da bancada. É um dos nomes de maior força no Mapa.

2 ONYX LORENZONI Ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República, sempre foi ligado à FPA e tem tido grande influência no Ministério da Agricultura.

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MAPA 1 2 CASA CIVIL

OCB 6

ABIEC 8 7 CNA

5 ABRAMILHO


3 VALDIR COLATTO Indicado pela FPA para assumir a presidência do Serviço Florestal Brasileiro, o ex-deputado é outro nome que tem bastante força no meio político.

3 ALCEU MOREIRA Presidente da FPA, o deputado é hoje um dos nomes mais influentes do setor. Representa cerca de 300 parlamentares – entre senadores e deputados – e vem ganhando muito peso político.

1 FRANCISCO BASÍLIO FREITAS DE SOUZA Assessor especial da ministra, é amigo de Onyx Lorenzoni. Responsável por coordenar a transição, chegou a ser indicado para a vice-presidência de Agronegócios do BB, mas foi rejeitado por enfrentar um processo na Justiça.

3 EVAIR DE MELO Vice-presidente da FPA, apesar de não ser produtor rural, é ligado aos cafeicultores do Espírito Santo.

3 MILTON GARBUGIO Presidente da Abrapa e também um dos idealizadores do IPA.

4 BARTOLOMEU BRAZ PEREIRA Presidente da Aprosoja Brasil, foi um dos idealizadores do IPA e o maior contribuinte do Instituto. Tem muita força nos assuntos que são levados à mesa para discussão na FPA.

5 3 ALEXANDRE SCHENKEL Presidente do IPA (Instituto Pensar ABELARDO LUPION Agropecuária), presidente Assessor especial da da Ampa (Associação Casa Civil, foi fundador e Mato-grossense dos presidente da UDR (União Produtores de Algodão) Democrática Ruralista). e vice-presidente da Tem sido bastante Abrapa (Associação procurado pela FPA. Brasileira dos Produtores de Algodão), que ao lado da Aprosoja é a associação que mais contribui para o Instituto. 2

ALYSSON PAOLINELLI Presidente da Abramilho e ex-ministro da Agricultura, é sempre ouvido pelo setor e participa ativamente de várias discussões, tanto nas instituições quanto dentro do governo.

6 MÁRCIO FREITAS Presidente da OCB (Organização das Cooperativas Brasileiras), é um dos colaboradores do IPA, ao lado de outras instituições.

3 JOÃO HENRIQUE HUMMEL Diretor executivo do IPA e o homem por trás das ações do Instituto. Faz todo o trabalho de bastidor e foi um dos idealizadores da criação do Instituto.

7 JOÃO MARTINS DA SILVA JUNIOR Presidente da CNA (Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária), é uma das forças políticas de Brasília, embora não esteja diretamente ligada à FPA. É representante dos sindicatos rurais brasileiros.

8 ANTÔNIO JORGE CAMARDELLI Presidente da Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes), defende um dos setores mais fortes do agro brasileiro.

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Ag Negócios

INOVAÇÃO À JACTO A fabricante de máquinas mostra que, além de soldar aço, seus profissionais desenvolvem aplicativos capazes de solucionar complexas demandas no campo, como os embarcados em um veículo autônomo para tarefas agrícolas Por Costábile Nicoletta, de Pompeia (SP)

Protótipo do veículo pulverizador autônomo JAV II, da Jacto: empresa testa novas tecnologias para um setor em que sempre foi pioneira

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foto: Alan Santos/PR PLANT PROJECT Nยบ14

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foto: divulgação Jacto

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Grupo Jacto, fabricante de máquinas agrícolas, não se encaixa exatamente no que os manuais de administração e marketing costumam apregoar como modelo de estratégias a serem adotadas para que as empresas sejam bem-sucedidas. É de controle familiar desde que nasceu, há 71 anos, na pequenina Pompeia, cidade paulista com pouco mais de 21 mil habitantes e 500 quilômetros distante da capital. Até hoje mantém sua sede e as principais unidades industriais no município, de onde obtém a maior parte de sua receita anual de cerca de R$ 1,5 bilhão, oriunda da atuação em mais de 100 países (em alguns dos quais com fábrica própria). E grande parte de seu processo produtivo ainda é verticalizado, uma das razões enumeradas pela companhia para a especialização que lhe garantiu lançar produtos com tecnologia de ponta no Brasil e no mundo – como a colhedora de café, em 1979, pioneira no segmento, para citar um dos

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muitos itens de vanguarda desenvolvidos em seus laboratórios, inclusive para áreas à margem do agronegócio. O estilo se mantém. Hoje os executivos e técnicos da companhia analisam, de Pompeia, o desempenho com sua mais recente aposta: um veículo agrícola autônomo (VAA) para pulverizar defensivos químicos nas plantações. Alguns protótipos estão sendo testados nas lavouras de clientes do grupo. Estima-se que, em alguns poucos anos, já poderão ser comercializados. Antes mesmo de esse dia chegar, no entanto, o VAA proporcionou o desenvolvimento de subprodutos incorporados ao pulverizador de agroquímicos Uniport, nome comercial de seu carro-chefe no segmento. Embora o Uniport ainda necessite de um operador, os testes com o VAA permitiram elaborar uma tecnologia capaz de aperfeiçoar suas manobras e gravar os caminhos cobertos pela máquina e as necessidades de aplicação dos defensivos em cada trecho percorrido.


Negócios

Ag

Tosta, diretor de marketing, e modelo do Uniport, maior sucesso da companhia: produtos de classe internacional

Dependendo da cultura, essas manobras e aplicações têm de ser executadas diversas vezes nos mesmos lugares, e a repetição desse processo pode ser feita automaticamente pelo pulverizador com o simples acionamento de um botão. “Agora, com 70 anos de existência, comemorados em 2018, as raízes e os valores empresariais construídos e cultivados ao longo dos anos nos mantêm firmes e possibilitam olhar para o presente e para o futuro em busca de novas oportunidades, com o mesmo entusiasmo, a mesma paixão pelas pessoas e pela excelência que eram os princípios de nosso fundador”, afirma Fernando Gonçalves, diretor-presidente da Jacto (leia mais sobre a sua visão de futuro para a empresa na página 30). “Todos na empresa nos imbuímos da missão inscrita na placa ‘Conserta-se tudo’, colocada na porta da primeira oficina aberta na cidade pelo senhor Nishimura. Seu espírito inovador de buscar soluções nas horas mais difíceis se disseminou na companhia como um todo”, diz Wanderson Tosta, diretor de marketing da Jacto. Ambos se referem a Shunji Nishimura, fundador do grupo, que imigrou do Japão para o Brasil em 1932, tentou ganhar a vida em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas decidiu estabelecerse em Pompeia, em 1938, onde pôde exercer suas habilidades de mecânico aprendidas em sua terra natal, oferecendo seus

préstimos para fazer reparos no que aparecesse em sua loja, de máquinas e motores a caminhões. Até que, em 1948, foi desafiado por agricultores locais a fabricar uma polvilhadeira manual de defensivos agrícolas que não quebrasse tanto como as importadas. Foi o primeiro produto desenvolvido pela Jacto. Desde então, Pompeia entrou para o mapa-múndi da indústria de máquinas agrícolas e no roteiro dos executivos das grandes multinacionais que dominam o segmento. A empresa paulista convive, concorre (e muitas vezes supera, em inovação) com potências como John Deere, AGCO (dona de marcas como Massey Ferguson e Valtra) e CNH (Case e New Holland). Não raramente as concorrentes vão buscar em Pompeia a mão de obra qualificada formada na cidade, seja nas unidades da Jacto, seja nas instituições de ensino criadas em seu entorno, com o incentivo da indústria (leia mais no texto “Máquina de Educar”, na página 34). TECNOLOGIA PRÓPRIA O Brasil e o mundo ainda se ressentiam dos efeitos da Segunda Guerra Mundial, encerrada em 1945, quando Shunji Nishimura encarou o primeiro desafio. Como era muito difícil obter matéria-prima e equipamentos, sobretudo importados, o jeito foi bolar seus próprios bens de capital. Foi o que ele fez. E é assim que continua

sendo feito na empresa que ele criou. Muitos componentes dos produtos que saem hoje das fábricas da Jacto são desenvolvidos internamente. No caso de pulverizadores, isso inclui desde a fundição da carcaça da bomba até a placa eletrônica que controla a vazão dos produtos químicos. “Isso nos dá competência para pensarmos melhor nos aperfeiçoamentos de cada item que vendemos”, explica Tosta. “Dessa forma, não ficamos limitados ao que dá para fazer, e nos dedicamos ao que precisa ser feito para melhorar os produtos e atender às necessidades dos clientes”, continua o executivo. “Isso não seria possível se fôssemos uma mera montadora que se supre de componentes de vários fornecedores.” Apenas segmentos que não trarão impacto no know-how da empresa são terceirizados. Um constante processo de busca de informações sobre como aperfeiçoar seus produtos e detectar as demandas do mercado também contribui para a evolução de todo esse processo. Os cerca de 3.600 empregados do grupo são incentivados a apresentar sugestões de melhoria PLANT PROJECT Nº14

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“Os benefícios do mundo digital estão só começando na agricultura”

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O diretor-presidente da Jacto, Fernando Gonçalves, afirma que, desde o seu primeiro produto, uma polvilhadeira costal manual, a companhia se guia pela busca da excelência e pelo compromisso de jamais abandonar o agricultor à própria sorte, dando toda a assistência que ele precisar: “Agora, com 70 anos de existência, comemorados em 2018, as raízes e valores empresariais construídos e cultivados ao longo dos anos, nos mantêm firmes e possibilitam olhar para o presente e para o futuro em busca de novas oportunidades, com o mesmo entusiasmo, a mesma paixão pelas pessoas e pela excelência que eram os princípios de nosso fundador”. Segundo Gonçalves, as potencialidades do cenário digital na agricultura estão apenas começando e essa é uma demanda real que impactará em todos os negócios. “Para acompanhar esse cenário, precisamos ter agilidade, flexibilidade e

firmeza, e, ao mesmo tempo, abraçar a digitalização de nossas atividades, renovar e aumentar o portfólio de produtos e serviços”, diz ele. “Nesse contexto, há anos estamos desenvolvendo dispositivos, softwares, sensores e outros equipamentos que vão se conectar para subsidiar melhor as informações para os produtores rurais.” A incorporação de tecnologias de agricultura de precisão e mais recentemente a adoção da agricultura digital (Agricultura 4.0), com a possibilidade de conexão via internet de máquinas e serviços, equipamentos autônomos, drones e big data, estão transformando a paisagem, as rotinas, os processos e os hábitos do homem do campo. Para o executivo, existem diversas maneiras de observar os benefícios dessas tecnologias no campo. Equipamentos com sensores acoplados garantem informações imediatas que são usadas na elaboração

de mapas para predições, facilitando o planejamento de ações de curto, médio e longo prazo, em ações como ajustes na quantidade de fertilizante, na profundidade adequada de plantio e na distância entre linhas, por exemplo. Tudo isso com a intenção de aperfeiçoar os processos, evitando perdas ou gastos desnecessários. O histórico de produtividade de uma área pode ser cruzado com dados relacionados a adubação, deficiência de nutrientes do solo, estratégias de manejo, umidade e índices de precipitação, revelando cenários mais realistas e que devem ser observados na tomada de decisões. “Considerando também o big data como um composto dos negócios digitais, haverá ainda informações complementares importantes, como taxa de insolação, temperatura média e amplitude térmica, além da direção e da velocidade de ventos, tornando essa investigação ainda

dos itens fabricados e dos ambientes onde são feitos. Externamente, uma série de programas de intercâmbio com fornecedores e clientes atualiza permanentemente os departamentos da companhia encarregados de traduzir os anseios do mercado em produtos úteis aos agricultores. “Todas as nossas equipes trabalham em prol de fazer algo melhor para o cliente”, afirma Tosta. “Essa abertura que a direção da empresa nos proporciona possibilita que as pessoas exercitem valores de renovação e transformação. As melhorias são feitas no dia a dia,

sem data marcada para começar.” Em 2019, completam-se 30 anos desde a primeira venda do pulverizador Uniport e 40 anos da colhedora de café. Ao longo desse tempo, passaram por uma série de modificações e adotaram novas versões para incorporar as demandas do mercado, conta o executivo. Um aspecto interessante da história da colhedora é que o fundador da Jacto, Shunji Nishimura, entre as muitas atividades que desenvolveu quando chegou ao Brasil, trabalhou na colheita manual de café, no interior de São Paulo. A experiência da dor e de ter as

mãos sangrando ao final da jornada de trabalho foi uma das motivações para o desenvolvimento da máquina. Hoje com oito versões, o Uniport começou a ser vendido em 1989 e trouxe outro ritmo de trabalho à pulverização. Até então, máquinas desse gênero eram puxadas por um trator. O equipamento da Jacto veio com motorização própria, com mais velocidade e barras de aplicação maiores. As versões atuais contam com piloto automático, direcional nas quatro rodas e sistemas que fecham e abrem os bicos de aplicação do defensivo de forma individual. Também são dotados


foto: divulgação Jacto

Negócios

Ag

mais completa e eficaz.” Para manter a competitividade e evitar desperdícios, acredita o diretor-presidente da Jacto, é fundamental utilizar informações atualizadas e confiáveis para dar suporte à tomada de importantes decisões, incluindo investimentos em maquinário, tecnologia e treinamento da mão de obra. SUSTENTABILIDADE Com a modelagem agronômica, diz Gonçalves, é possível antecipar problemas, como a ocorrência de uma doença específica. Os dados são usados para simular diferentes hipóteses e calcular a probabilidade de infestação de diversas pragas. Dessa forma, o agricultor consegue estipular corretamente onde pulverizar, além do volume apropriado de inseticida ou fungicida a ser aplicado naquela lavoura, o que contribui para

o fim do uso exagerado de insumos, incluindo os produtos químicos e biológicos. Assim, a chance de contaminação de rios e lençóis freáticos diminui consideravelmente, protegendo os ecossistemas locais. De acordo com o executivo, com a queda do consumo de água, de fertilizantes e de defensivos, há uma sensível redução dos custos operacionais e, consequentemente, um aumento da rentabilidade do agricultor. A implantação desses controles também favorece o surgimento de novas oportunidades e a exploração de outros mercados, pois a conscientização dos consumidores sobre a importância da preservação ambiental já afeta o comportamento e a preferência por determinadas marcas e produtos. Gonçalves entende que a análise de dados propicia ainda a detecção

de gargalos e instabilidades, que devem ser eliminados por meio de projetos pontuais. Para ele, o big data na agricultura também possibilita uma reorganização dos ciclos de plantio, assegurando a total recuperação do solo para a próxima safra. Dessa maneira, é um dos pilares de uma gestão mais eficiente e sustentável, capaz de alinhar a produção de alimentos em larga escala e a conservação do meio ambiente. “Todo esse ecossistema sempre vai trazer à tona discussões sobre a posse das informações, privacidade e as respectivas regulamentações”, diz o diretor-presidente da Jacto. “Uma coisa parece certa: aquelas empresas que quiserem deixar o agricultor como ‘refém’, ou seja, fazer com que o agricultor fique amarrado a uma marca com as informações travadas, sairão perdendo. Parece que o direito de escolha é mandatório no novo ecossistema no qual estamos inseridos.”

de sistemas de telemetria que possibilitam ao produtor saber, à distância, o que a máquina está fazendo, as eventuais falhas ocorridas, rendimento do equipamento e inúmeras outras informações que podem ser captadas remotamente.

desnecessárias de aplicação. Num exemplo de sobreposição de 10%, com um ajuste dos bicos de aplicação é possível reduzir esse índice pela metade. Tomando-se como base duas safras e um custo de R$ 1.000 por hectare, deixa-se de gastar R$ 50 por hectare. “Já ajudamos clientes a diminuir esse índice para 1%”, orgulha-se Tosta. Toda essa tecnologia embarcada nas máquinas da Jacto a aproximou de empresas como IBM, Nokia, Tim, Oi, entre outras, a fim de buscar parcerias para afinar seus equipamentos com o que há de mais atual no mundo digital e de telecomunicações. Entra nesse

escopo o Centro de Inovação no Agronegócio (CIAg), que estuda e desenvolve tecnologias que sirvam para todas as empresas do grupo. “O esforço da Jacto concentrase em tornar suas máquinas cada vez mais precisas e simples de operar. A gente não consegue fazer isso sem ter presença no campo, sem entrar em contato com o produtor, sem ficar atenta a novas tecnologias também de outros setores que podem ser aplicadas no agronegócio”, diz Wanderson Tosta. Apesar de ter sido uma das precursoras no uso de GPS em suas máquinas, a Jacto estuda alternativas a seu

PARCEIROS DE PESO O sistema de telemetria do Uniport transmite 300 dados a cada 5 segundos. Com eles, o produtor agrícola tem um mapa detalhado de como foi feita a operação em determinado talhão e identifica oportunidades de ganhos de produtividade, como evitar sobreposições

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Ag Negócios

foto: divulgação Jacto

Jiro Nishimura, presidente da FSNT, e a sede da Jacto em Pompeia: inovador também na gestão e na responsabilidade social

uso, pois, no campo, chega um momento em que o equipamento perde o contato com o satélite por causa dos obstáculos decorrentes do crescimento das plantas. “Estudamos algoritmos e tecnologias para controle por visão ou laser, para que o VAA possa reconhecer o caminho onde está passando e tomar a decisão de onde vai transitar, sem precisar do GPS. Já existe essa tecnologia, mas é preciso adaptá-la ao mundo agrícola.” TERCEIRA GERAÇÃO A companhia espelha a determinação de seu fundador, Shunji Nishimura, de se autodesafiar permanentemente desde que chegou a Pompeia, no início do século passado. Sua obsessão de aprender a consertar e desenvolver máquinas acentuou a importância que sempre deu à educação, uma preocupação preservada por seus filhos e netos, seja na condução dos negócios da família, seja na atuação social na fundação que leva seu nome. Mas suas iniciativas não se 32

restringiam à intuição dos grandes empresários que crescem por si mesmos. No início da década de 1980, quando a Jacto já tinha mais de mil funcionários, Shunji Nishimura foi receber uma homenagem no Japão por sua contribuição, como japonês, ao desenvolvimento industrial brasileiro. Aproveitou para visitar algumas fábricas da Toyota. Na volta, disse a seu filho Jiro, que presidia a Jacto: “Se essa japonesada resolver vir para o Brasil, teremos de fechar nossa empresa”. Incumbido pelo pai, Jiro foi ao Japão aprender os métodos nipônicos de gerenciamento industrial, como just in time, kanban e 5S. “Em 1984, fomos a primeira empresa brasileira a utilizar esses modelos japoneses por inteiro”, recorda-se Jiro Nishimura. “Com a reorganização de tempo de suprimento e ocupação mais racional de espaço, esvaziamos 3 mil metros quadrados de estoque.” Com a economia, a empresa saldou seus débitos e adotou métodos de

controle de caixa para evitar dívida com bancos. Até hoje as instalações de suas fábricas são imaculadamente limpas. Shunji Nishimura viveu até os 99 anos. Faleceu em 2010, mesmo ano em que a companhia iniciou um processo de governança corporativa, estabelecendo, entre outras coisas, que os membros da família podem ocupar cargos executivos nas empresas do grupo até os 60 anos de idade – então, transferem-se para o conselho de administração, até a idade-limite de 72 anos. Em maio, está prevista a transição de comando para a terceira geração da família. Franklim Shunjiro Nishimura assumirá a presidência do Conselho da Holding e do Conselho Curador da Fundação Shunji Nishimura de Tecnologia (FSNT), e continuará como coordenador do Ecossistema de Inovação. Ricardo Seiji Bernardes Nishimura, por sua vez, ocupará a presidência do Conselho de Administração das empresas do Grupo Jacto. Um novo desafio, então, irá começar.


foto: divulgação Jacto

GRUPO JACTO EM NÚMEROS RECEITA LÍQUIDA Ano Valor (em R$) 2017 1.223.770.000 2018 1.468.500.000 2019 1.541.925.000

(estimativa)

Empregados: 3.676 Matriz: Pompeia (SP) Fundação: 1948 EMPRESAS QUE COMPÕEM O GRUPO JACTO • Jacto Agrícola — Desenvolve e fabrica equipamentos agrícolas para as operações de pulverização, adubação, colheita de café e agricultura de precisão para mais de 100 países. Suas fábricas se localizam no interior de São Paulo e na Argentina. Nelas, produz pulverizadores, colhedoras de café, adubadoras, itens de agricultura de precisão (com a marca Otmis), bicos de pulverização e peças de reposição. • Jacto Small Farm Solutions (JSFS) — Dedica-se a desenvolver soluções para pequenos agricultores, como pulverizadores portáteis manuais e à bateria. A JSFS tem fábricas no Brasil e na Tailândia, operação comercial nos Estados Unidos e, em 2016, inaugurou uma planta no México. • Unipac — Atua no ramo de transformação de plástico com produtos e serviços para os mercados de embalagens, automotivo, máquinas agrícolas, movimentação e armazenagem e veículos elétricos industriais. Suas unidades encontram-se na capital paulista e em outras cidades do estado, como Limeira, Paulínia e Pompeia. • JactoClean — Especializada em equipamentos para serviços de limpeza,

desenvolve produtos voltados ao uso residencial, comercial, profissional, industrial e ao agronegócio. Seu portfólio reúne lavadoras de alta pressão, lavadoras de pisos, lavadoras sanitizadoras, aspiradores de pó e líquidos, limpadoras à extração, motobombas para climatização, pulverizadores costais, acessórios e detergentes. Também fornece sistema para gerenciar e monitorar à distância a limpeza realizada por empresas prestadoras de serviço. Sua matriz fica em Pompeia (SP). • RodoJacto — Realiza a integração de soluções em transportes e logística de produtos. Atende aos mercados de cargas comuns (que utilizam meios de transporte convencionais) e especiais (que excedem pesos e medidas e necessitam de procedimentos específicos). Gradativamente, pretende atuar no mercado de serviços logísticos, oferecendo armazenagem, estocagem e expedição de mercadorias. Para cargas comuns, a atuação principal está no eixo interior–capital e capital– interior, atendendo em um raio de 500 quilômetros da matriz em Oriente (SP). Para cargas especiais, a atuação é em todo o território nacional. • Sintegra Surgical Sciencies — Iniciou suas atividades em Pompeia (SP) em maio de 2010, tendo como know-how o processamento de polímeros especiais, e vem se destacando na aplicação de materiais biocompatíveis e hemocompatíveis, no desenvolvimento de soluções para as áreas de implantes ortopédicos. Pioneira no Brasil em implantes absorvíveis, além de prover a indústria farmacêutica com componentes para linhas de infusão de injetáveis, componentes para ventilação mecânica e anestesia para unidades de terapia intensiva e cirurgia cardíaca.

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Uma boa amostra da importância que o fundador da Jacto e seus descendentes dão à educação pode ser atestada pela presença de seu nome nas instituições de ensino de Pompeia: Faculdade de Tecnologia (Fatec) Shunji Nishimura, Escola Senai Shunji Nishimura e Colégio Shunji Nishimura. As três estão instaladas no mesmo complexo onde funciona a Fundação Shunji Nishimura de Tecnologia (FSNT), instituída em 1979, e contaram com recursos da entidade para a construção de seus prédios. Acrescente-se, ainda, a Escola Profissionalizante Chieko Nishimura, que leva o nome da matriarca da família e hoje está incorporada ao Senai Shunji Nishimura. A intenção inicial de Shunji Nishimura era preparar jovens para saber lidar com o dia a dia de uma fazenda e com os equipamentos cada vez mais sofisticados usados nelas para as plantações, boa parte deles produzida pela Jacto. Em 1982, a FSNT instalou o Colégio Técnico Agrícola de Pompeia. Formou mais de 800 alunos até 2009, quando encerrou suas atividades. No ano seguinte, graças ao empenho da família, Pompeia recebeu a Fatec – instituição do governo estadual cujas unidades normalmente são instaladas apenas em municípios com mais de 200 mil habitantes. A importância da formação de quadros para o agronegócio fez com que uma exceção fosse aberta e em 2010 começou o primeiro período letivo da Fatec, 34

O fundador Shunji Nishimura e as crianças da primeira escola criada por ele: a educação sempre foi um pilar no desenvolvimento do Grupo Jacto

que, em 2019, formará sua 14ª turma. Desde 2010, segundo Alberto Issamu Honda, superintendente da FSNT, 414 alunos graduaram-se na Fatec em cursos de mecanização agrícola de precisão. No Senai, são 1.300 formados anualmente, em diversos cursos (médio, profissionalizante, técnico, de aprendizagem, de curta duração etc.). Em 2019, a Fatec também fará a primeira formatura do curso de big data no agronegócio, iniciado em 2017, para preparar profissionais capazes de lidar com a infinidade de dados captados pelos sofisticados equipamentos empregados atualmente no campo, tanto no plantio quanto na colheita, e extrair formas de gerar valor desse grande volume de informações. “Consideramos que o agronegócio oferece as maiores oportunidades para extrair valor com as ferramentas de big data”, diz Luís Hilário Tobler Garcia, coordenador desse curso na Fatec. Um dos métodos de ensino empregados nas aulas de big data é o Profound Learning, desenvolvido pelo educador canadense Thomas Rudmik. Jorge

foto: divulgação Jacto

MÁQUINA DE EDUCAR

Nishimura, outro filho de Shunji, conheceu o Profound Learning num evento internacional e o trouxe para as instituições que contam com o apoio da FSNT. Basicamente, consiste em inverter a lógica do aprendizado tradicional. Em vez de os professores exporem as aulas enquanto os alunos ficam em silêncio, incentivam-se os estudantes a desenvolver seu próprio aprendizado. O Profound Learning está sendo aplicado inclusive no Colégio Shunji Nishimura, que atende alunos do maternal ao ensino fundamental. A instituição nasceu em 1988, como parte das comemorações dos 50 anos da Jacto e o início de um projeto chamado Obrigado, Brasil, uma demonstração de gratidão do fundador da companhia ao país que o acolheu. As iniciativas em prol da educação continuaram com a segunda e a terceira geração dos Nishimura. “Meu pai fez isso por agradecimento ao Brasil”, afirma Jiro Nishimura, presidente da FSNT. “Seus filhos continuaram com a iniciativa por patriotismo. Temos de ajudar o Brasil com a educação.”


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TURBULÊNCIA COM CRESCIMENTO Paralisação da única refinaria que produz avgas no País deixa centenas de aviões da segunda maior frota de aviação agrícola do mundo no chão

foto: Divulgação

Por Tiago Dupim

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cenário é quase surreal. Imaginem um país que detém a segunda maior frota de aeronaves agrícolas do planeta sofrer com a escassez de gasolina de aviação (avgas), mesmo ocupando a nona posição entre os maiores produtores de petróleo do mundo. Foi o que o Brasil viveu em janeiro deste ano. Cerca de 200 aviões agrícolas ficaram parados em parte do País durante o primeiro mês de 2019, enquanto em torno de 300 chegaram a ter combustível para apenas dois dias de operação. Em São Paulo, onde está 80% da produção de cana-de-açúcar, pelo menos 30 aparelhos movidos a avgas

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deixaram de decolar. A situação só não foi pior porque parte da frota aeroagrícola brasileira é movida a etanol. O estado que mais sofreu foi o Rio Grande do Sul, que conta com a maior frota de aviões desse tipo do País (mais da metade de um total de 427 aeronaves) por causa do alto custo do etanol praticado por lá. Para piorar, o período coincidiu com o auge de safras importantes na região, como soja (é o terceiro maior produtor nacional) e arroz (70% da produção do País). A tensão só não aumentou ainda mais devido a um período atípico de chuva forte, que já havia deixado muitos aviões em solo.

Em outros estados, como no Mato Grosso do Sul, operadores também foram afetados pela falta de avgas. Porém, os efeitos da crise não foram tão sentidos porque quase todos os empresários contam com a maioria dos aviões a etanol ou a querosene de aviação (Jet-A1, que é usado nos aviões maiores, como os turboélices). Mauro Moura, que é piloto, empresário e produtor rural, é um dos que evitam adquirir aviões a avgas. Ele tem uma frota de 12 aeronaves (dois turboélices a querosene e dez com motor a pistão movido a álcool) e que atua basicamente no Centro-Oeste. “Não fui afetado por conta das


Aviação

mas faltou combustível. Houve prejuízos e situações como essa trazem insegurança para as empresas”, comenta Júlio Kämpf, presidente do Sindag (Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola). FUTURO EM DEBATE A informação passada pela Petrobras ao setor foi que em outubro a situação irá se normalizar. No entanto, segundo os operadores, o futuro é incerto. Estaria em curso uma discussão sobre se é viável manter uma unidade dentro da refinaria apenas para avgas (pois o consumo no Brasil não é tão grande) ou se seria melhor depender apenas da importação. “Penso que o País fica vulnerável quando se depende apenas do combustível que vem do exterior. Isso traz fragilidade para o sistema como

Aviões agrícolas em ação e no solo: em janeiro passado, mais de 200 deles não puderam sair do chão

foto: Divulgação

caraterísticas da minha frota, mas não significa que isso não preocupa o setor como um todo”, comenta. A escassez ocorreu devido a uma paralisação programada (que começou em novembro) para manutenção da Refinaria Presidente Bernardes, localizada em Cubatão (SP), única que produz avgas no País. Com o auge da safra, isso colocou a aviação agrícola brasileira à beira de um colapso. Arnaud Araújo, piloto e operador aeroagrícola baseado no interior de São Paulo, foi um dos que sofreram com a escassez de avgas. A empresa dele conta com cinco aeronaves, sendo uma (Cessna 188) movida a gasolina de aviação. Esta, em janeiro, ficou no chão. “Durante duas semanas o avião ficou parado. Isso significa que deixamos de atender de 3 mil a 4 mil hectares”, lamenta. O temor de que isso volte a acontecer fez com que ele convertesse um outro avião da frota (o brasileiro Ipanema) de gasolina para álcool. A solução encontrada pelo governo para resolver temporariamente o problema foi liberar a importação de combustível. Porém, o navio que trazia o produto teria enfrentado problemas burocráticos para entrar no País, atrasando a chegada da carga. “O combustível foi um problema pontual. O governo avisou que a refinaria estaria em manutenção programada,

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um todo. Não sabemos o quanto isso seria totalmente seguro para as empresas”, opina Kämpf. O executivo acredita que deveríamos ter uma espécie de pontos de reserva de combustível espalhados pelo País para não dependermos apenas de uma refinaria. “Assim, não sofreríamos prejuízos em caso de imprevistos, pois locais estratégicos de abastecimento supririam a demanda até se resolver certos imprevistos”, sugere. Enquanto isso, mesmo diante do momento de incertezas na economia nacional, a aviação agrícola mostrou bons resultados no ano passado. O setor registrou um crescimento de 3,74% no número de aeronaves, mais que o dobro do registrado em 2017. Isso pode significar o começo de uma retomada para índices como os de 2014, que eram de 4,25%. De 2015 a 2017, a evolução anual ficou no máximo na casa dos 2%. “Não esperava que o setor registrasse crescimento algum em 2018 por conta do momento do mercado de aviação em geral. Mas esses números mostram uma tendência de alta para o ano que vem”, analisa Kämpf. O balanço positivo é muito por conta do agribusiness. De acordo com dados do Cepea (Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada), o PIB-volume do agro, calculado 40

fotos: Divulgação

Ag Aviação

pelo critério de preços constantes, cresceu em todos os segmentos. O PIB-volume teve alta de 1,87% em 2018, com elevações de 5,17% para insumos, de 0,41% para o segmento primário, de 1,97% para a agroindústria e de 2,31% para os agrosserviços. FALTA COMBUSTÍVEL, SOBRA TECNOLOGIA Mas como a segunda maior frota de aviação agrícola do mundo enfrenta um problema tão primário? Para Kämpf, tudo passa pela deterioração da infraestrutura nacional como um todo, passando também pelas rodovias. “Cabe ao novo governo estabelecer novas estratégias para resolver esses problemas. Hoje, por exemplo, se há um incidente em alguma ponte importante na ligação interestadual, podemos ficar sem combustível”, alerta. A maior frota de aviação

Brasil tem segunda maior frota do mundo na aviação agrícola: uso do etanol como combustível garante o crescimento do setor


agrícola atualmente está nos Estados Unidos. O país conta com aproximadamente 3.600 aeronaves entre aviões (84%) e helicópteros (16%) que realizam aplicações em todos os 50 estados norte-americanos. Existem por volta de 1.560 empresas ligadas a aplicações aéreas no País. Dessas, 94% dos proprietários são também pilotos agrícolas. Há ainda 1.400 pilotos não empresários. Atualmente, no Brasil são 2.194 aeronaves. Dessas, menos de 1% são helicópteros. “Há áreas no Brasil em que a aviação agrícola ainda não chegou. Se conseguirmos incentivos para a compra de aeronaves e caso a economia nacional ajude, a tendência é de que em dez anos a nossa frota supere a norteamericana”, confia Gabriel Colle, diretor executivo do Sindag. No ranking com 22 estados, o Mato Grosso continua liderando, com 464 aeronaves registradas, seguido pelo Rio Grande do Sul, com 427 aviões, e tendo São Paulo em terceiro, com 312 aeronaves. Minas Gerais foi o estado que teve o maior crescimento (15,5%), passando de 71 aeronaves em 2016 para 82 no ano passado. Ao todo, segundo a Anac (Agência Nacional de Aviação Civil), são 252 empresas (quase 30% no Rio Grande do Sul) de aviação agrícola no País e mais 585 operadores privados (40% está no Mato Grosso). As diferenças estruturais entre Brasil e EUA passam

principalmente pelas parcerias. Por lá, as empresas utilizam muito os prestadores de serviço (terceirizados), em vez de priorizar a compra dos próprios equipamentos. Devido ao custo do combustível ser menor, o mercado estadunidense acaba optando por aviões maiores movidos a Jet-A1. Isso faz com que 81% da frota norteamericana seja composta por aviões turboélices (como Air Tractor e Thrush), enquanto no Brasil esse número não passa de 20%. Mas aos poucos esse cenário está mudando. No ano passado já tivemos a entrada de mais aeronaves turboélices na aviação agrícola brasileira e isso deve continuar nos próximos anos. Foi em 1990 que começaram a entrar no Brasil os aviões com essas características – maiores e mais potentes. De 2011 a 2018, a frota de aviões agrícolas a pistão passou de 1.570 para 1.829 aparelhos, um crescimento de 16,5%. Já a frota de turboélices, que era de 123 aviões em 2011, fechou 2018 com 365 unidades, registrando um aumento de 196,7%. “Agora esse tipo de avião está mais acessível, mas até os anos 2000 nossa agricultura não comportava tais aparelhos. Hoje temos áreas mais extensas. Evoluímos muito, principalmente nas culturas de soja, algodão e cana-de-açúcar nas regiões do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia”, explica Colle.

Em termos de tecnologia na aplicação, o Brasil não deve nada a outros países. Devido às características do País e ao clima tropical, a nação como um todo convive com inúmeros insetos, pragas e fungos. Por isso, foi preciso criar novas técnicas para um maior controle na aplicação de inseticidas. “Já temos empresas brasileiras vendendo serviços e produtos para as norte-americanas”, revela Colle. Muitas dessas companhias estadunidenses já começam a chegar ao Brasil. No último Congresso de Aviação Agrícola, realizado em Maringá (PR) no ano passado, 15% dos expositores eram dos Estados Unidos, que foram para lá em busca de novos negócios com o mercado brasileiro. A aviação agrícola agradece. PLANT PROJECT Nº14

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Ag CiĂŞncia

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VOCÊ FALA O QUE COME Um novo estudo revela que a Revolução Agrícola não só alimentou o Homo Sapiens nos últimos 12 mil anos, mas transformou para sempre a linguagem humana Por Amauri Segalla

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Revolução Agrícola é um dos acontecimentos mais espetaculares da história. Durante 2,5 milhões de anos, os humanos se alimentaram coletando plantas e caçando animais, sem se preocupar em fincar sementes na terra ou pastar rebanhos de ovelhas. Por volta de 12 mil anos atrás, em algum lugar no sudeste da Turquia e no oeste do Irã, um grupo engenhoso de pessoas aprendeu a espalhar as sementes, regá-las e arrancar do solo ervas daninhas que pudessem atrapalhar o seu crescimento. Ao mesmo tempo, descobriu que era possível domesticar animais, que poderiam viver em áreas restritas e sob permanente controle humano. Quando isso aconteceu, a era dos caçadores-

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coletores estava encerrada para dar lugar à Revolução Agrícola que mudaria para sempre a face da Terra. A agricultura permitiu a explosão populacional, na medida em que mais alimentos poderiam matar a fome de mais pessoas, estimulou o surgimento da propriedade privada, porque os fazendeiros se tornaram donos dos campos, e levou a um grande salto da capacidade intelectual humana ao despertar novas áreas de conhecimento. Agora, um novo estudo publicado pela revista americana Science adicionou mais um elemento no rol de feitos extraordinários da Revolução Agrícola. Segundo a publicação, a agricultura pode ter mudado a forma como os humanos falam. O trabalho liderado pelos

linguistas Damián Blasi e Steven Moran, da Universidade de Zurique, na Suíça, demonstrou que alterações na dieta estimuladas pelo advento da agricultura levaram a mudanças na mordida humana. Estas, por sua vez, acabaram por favorecer o surgimento de novos sons. Mais especificamente, as consoantes “f” e “v” começaram a ser pronunciadas por nossos antepassados – e, nem é preciso dizer, seu uso se consagrou ao longo dos anos. Parece pouca coisa, mas trata-se de algo realmente fantástico. A pesquisa mostra que a linguagem não é resultado apenas de acontecimentos aleatórios da história e da incorporação de características culturais, mas está conectada às


Ciência

mudanças biológicas do homem. “Espero que nosso estudo gere um debate sobre o fato de que ao menos alguns aspectos da linguagem e da fala devam ser tratados como outros comportamentos humanos complexos que se situam entre a biologia e a cultura”, disse Blasi à revista National Geographic. Segundo ele, é estranho que a linguagem não seja tradicionalmente estudada como um fenômeno biológico. “Deveria ser, porque ela é parte de nossa natureza”, reforçou o linguista. Antes da Revolução Agrícola, a mandíbula e os dentes humanos estavam posicionados de tal forma que permitiam ao Homo Sapiens triturar, provavelmente com alguma dificuldade, os produtos de sua caça. A agricultura – e a consequente domesticação de plantas e animais – reduziu esse esforço ao introduzir na dieta humana uma variedade de alimentos mais macios. De acordo com a pesquisa, os novos hábitos alimentares alteraram a anatomia da mandíbula. Entre os caçadores-coletores do período Paleolítico, os dentes superiores e inferiores dos indivíduos adultos se alinhavam para formar uma linha reta. Ou seja, os superiores descansavam diretamente sobre o conjunto inferior. Nos últimos anos, inúmeros fósseis provaram que essa configuração era resultado do desgaste dentário causado

pela mastigação de alimentos duros. Na Revolução Agrícola, especialmente no período chamado de Pós-neolítico, os dentes superiores projetaram-se para além dos dentes inferiores. Segundo os pesquisadores, a nova anatomia surgiu como resposta à incorporação de hábitos alimentares criados pela agricultura. Para simplificar: a carne dura de um antílope pôde ser substituída, digamos, por um prato de sopa, queijos e iogurtes. Os linguistas Damián Blasi e Steven Moran argumentam que esse processo levou a profundas transformações na maneira como falamos. Além de tornar a dieta mais saborosa e variada, ele introduziu sons de fala conhecidos como labiodentais – é o caso das consoantes “f” e “v”. O estudo dos dois cientistas fornece evidências de que os novos alimentos característicos da sociedade sedentária (aquela que não precisa mais caçar) levantaram o lábio inferior humano, colocando-o em contato com os dentes superiores. Para pronunciar as consoantes labiodentais, é preciso justamente uma ação combinada do lábio inferior e dos dentes superiores, algo que as pessoas começaram a fazer com a recém-conquistada fartura de alimentos macios. Foi assim, segundo o artigo publicado na Science, que o “f” e o “v” se tornaram íntimos da fala humana e usados

Ag

Os linguistas Blasi (no alto) e Moran (à esq. na foto acima) e gravuras egípcias sobre os primórdios da agricultura: uma nova abordagem para um tema recorrente

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indiscriminadamente por pessoas de todas as regiões do planeta. Para chegar a essa conclusão, os linguistas da Universidade de Zurique realizaram simulações biomecânicas usando duas mandíbulas virtuais diferentes para calcular o esforço muscular envolvido. Os resultados mostraram que as chamadas mordidas planas (aquelas usadas pelos caçadores-coletores) exigiram substancialmente mais esforço para produzir um som labiodental do que as mordidas salientes (as que surgiram com a Revolução Agrícola). Estava aí um indício irrefutável de que a agricultura ajudou a moldar a fala humana. “Nós apresentamos evidências de paleoantropologia, biomecânica da fala, etnografia e linguística histórica que mostram que os sons labiodentais como “f” e “v” foram introduzidos após o período Neolítico”, escrevem os pesquisadores no artigo para a Science. 46

Não foi a primeira vez que a ciência associou hábitos alimentares à evolução da linguagem humana. Em 1985, o linguista americano Charles Hockett publicou um famoso artigo que traz conclusões muito parecidas com as de Damián Blasi e Steven Moran. No estudo, Hockett afirma que “as línguas que promovem sons como ‘f’ e ‘v’ são frequentemente encontradas em sociedades com acesso a alimentos macios”. Ele, porém, faz apenas conjecturas, enquanto Blasi e Moran sustentam seu trabalho com simulações e análises biomecânicas. Anos depois de publicar o artigo, Hockett acabaria negando a sua própria teoria. Ele revelou que havia sido influenciado pelo antropólogo Loring Brace, da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. O problema é que Brace acabaria mudando de ideia a respeito das origens das consoantes “f” e “v”, o que levou Hockett a fazer o mesmo. Intrigados com o assunto,


Ciência

Ag

Antropólogos buscam no solo indícios que mostrem a evolução da agricultura: terreno fértil para pesquisas

Blasi e Moran resolveram investigá-lo a fundo. Foram cinco anos de pesquisas de fósseis, trocas de informações com pesquisadores de diversas partes do mundo e análise de bancos de dados de idiomas e de sua distribuição pelo planeta. Os cientistas também fizeram simulações em mandíbulas mecânicas e utilizaram um modelo computadorizado dos ossos e músculos do rosto. Todo esse esforço revelou que é preciso 29% menos energia para fazer sons labiodentais como o “f” e o “v” – e só foi possível aos humanos usar menos energia para comer quando tinham à mão alimentos mais macios. Ao comparar os registros de idiomas com dados sobre a alimentação de diferentes sociedades, a equipe de Blasi concluiu que os caçadorescoletores usavam cerca de um quarto dos sons adotados pelas comunidades agrícolas. Isso, disseram os pesquisadores, não foi mera coincidência. Segundo eles, o tempo de surgimento dos

labiodentais é mais ou menos equivalente ao cultivo de grãos e uso de laticínios pelo homem. “A diversidade dos sons que temos é fundamentalmente afetada pela biologia do nosso aparelho da fala”, disse à National Geographic o linguista Balthasar Bickel, que também participou do estudo. “Não se trata apenas de uma evolução natural.” O trabalho dos pesquisadores teve grande repercussão na comunidade científica internacional. “Este é o estudo mais convincente sobre características biológicas e linguagem”, disse Tecumseh Fitch, professor da Universidade de Viena e um dos biólogos mais importantes do mundo. “Quem poderia

imaginar que a agricultura teria implicações na diversidade da linguagem humana?”, perguntou a antropóloga Marcia Ponce de León, colega de Damián Blasi na Universidade de Zurique. O desenvolvimento da fala é um dos feitos mais notáveis da humanidade. Com o passar do tempo, a linguagem foi influenciada pelas diversas regiões do planeta, pela enorme variedade de culturas e estruturas sociais complexas. Agora, o trabalho publicado pela Science indica que a agricultura teve papel vital nesse processo. Ela não só alimentou o Homo Sapiens nos últimos 12 mil anos como mudou para a empresa a maneira como ele fala. PLANT PROJECT Nº14

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Ag Mercado

HORTIFRÚTI: AGORA A CONVERSA É OUTRA A partir de um estudo inédito, setor passa a conhecer melhor suas vantagens e desafios e vai em busca de conquistar mais mercado, dentro e fora das fronteiras brasileiras

foto: divulgação Abrafrutas

Por Romualdo Venâncio

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E

ntre os objetivos de longo prazo estabelecidos no Programa Nacional de Desenvolvimento da Fruticultura (PNDF), lançado em fevereiro do ano passado pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), está alcançar, até o ano de 2028, a marca de US$ 2 bilhões em exportações de frutas frescas e derivados. A ambiciosa meta tem como estímulo um fato que provavelmente incomoda os representantes de toda a cadeia produtiva: não alcançar e menos ainda superar o recorde cravado em 2008, quando as vendas do setor para o mercado global somaram US$ 1 bilhão, segundo dados do próprio Mapa. O inconformismo não se baseia apenas nas cifras, mas também no fato de que se tem algo que não falta à fruticultura brasileira é potencial para avançar em quantidade, qualidade e valor agregado. No ano passado, a distância daquela marca de dez anos atrás até que ficou menor. “Foram US$ 900 milhões em exportações em 2018”, afirma Luiz Roberto Barcelos, presidente da Associação Brasileira dos Produtores e Exportadores de Frutas e Derivados (Abrafrutas). O tom

do comentário feito pelo dirigente não é, necessariamente, de comemoração. “O Chile exporta US$ 4,5 bilhões. Podemos crescer muito em volume e valor”, acrescenta o executivo, que conhece bem esse terreno de oportunidades. Barcelos é proprietário da Agrícola Famosa, empresa localizada em Mossoró (RN), na divisa com o Ceará, que lidera a produção nacional de melão e a exportação de frutas. Cerca de 60% do que a Famosa produz vai para o mercado externo, principalmente Inglaterra, Holanda e Espanha. O fato de o Brasil ser o terceiro maior produtor mundial de frutas, atrás apenas de China e Índia, amplia o incômodo pela pacata 23ª posição entre os exportadores. Para abrir espaço no mercado internacional, Barcelos diz ser essencial a Análise de Risco de Pragas (ARP), a fim de eliminar as possibilidades de “exportar” algum problema aos clientes. “Também precisamos profissionalizar mais a atividade, criar a cultura exportadora e ter relacionamento com o mercado e autoridades”, sugere o produtor, que também é presidente da Comissão Nacional de Fruticultura da Confederação

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da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Isso já vinha acontecendo após a fundação da Abrafrutas, há cinco anos, exatamente com o intuito de otimizar o aproveitamento da fruticultura nacional e conquistar mais espaço tanto no mercado externo quanto no interno, entre outros motivos. “Começamos com 28 associados e hoje já são 64 empresas que respondem por 85% das exportações brasileiras de frutas”, diz Barcelos. No final de outubro de 2018, a entidade deu um importante passo para aumentar as chances de progressão do setor em diversas direções. Uma parceria formada por Abrafrutas, CNA e o programa Hortifruti Saber & Saúde lançou o inédito relatório Cenário Hortifruti Brasil. COORDENADAS MAIS PRECISAS O estudo que apresenta um panorama detalhado sobre os setores de frutas e hortaliças foi construído a partir do cruzamento e do processamento de dados já disponíveis no mercado e de informações coletadas por meio de entrevistas com profissionais da área. O relatório é um ponto de partida para ampliar e melhorar a conversa com diversos segmentos relacionados ao setor de hortifrúti, desde

foto: Romualdo Venâncio

Ag Mercado

PRODUÇÃO Cultura Número de Área colhida Volume de Produtividade produtores (hectares) produção (toneladas/ (toneladas) hectare)

Abacate 2.153 10.855 195.492 18 Abacaxi 40.663 70.259 1.704.403 24 Banana 172.314 476.806 6.916.794 15 Goiaba 6.429 17.119 414.960 24 Laranja de mesa 67.333 285.954 5.862.896 24 Limão 13.530 47.279 1.262.353 27 Mamão 5.563 30.372 1.424.650 47 Manga 11.948 64.627 1.002.189 16 Melancia 93.526 94.555 2.090.432 22 Melão 21.728 23.166 596.430 26 Maçã 2.910 33.244 1.254.614 38 Morango 6.030 5.278 120.000 23 Uva de mesa 9.474 23.023 440.437 19 Batata 44.154 129.684 3.849.601 30 Cebola 49.622 58.001 1.657.441 29 Cenoura 5.628 14.773 756.940 51 Feijão 691.635 2.041.800 1.736.000 1 Pepino 317.918 10.002 307.893 31 Pimentão 138.419 13.000 350.000 27 Tomate de mesa 110.038 45.203 3.157.048 70 Alface 670.585 86.856 575.529 7 Brócolis 15.521 4.534 64.610 14 Couve 280.939 10.618 119.847 11 Repolho 500.920 26.684 417.489 16 Consolidado Hortifruti Brasil 3.279.038

3.623.692 37.278.048

Fonte: IBGE 2016 – Produção Agrícola Mensal

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Estudo mostra produtores de mamão liderando perfil tecnológico

aqueles diretamente envolvidos com o dia a dia dos agricultores até os nem tão participativos, cuja aproximação pode ser benéfica para o setor produtivo. É o caso de autoridades que podem tomar decisões e definir políticas públicas, formadores de opinião, profissionais da saúde (como médicos e nutrólogos) e do consumidor final. Ao todo, o levantamento abordou 24 cultivos que geram cerca de 37 milhões de toneladas de alimentos por ano, sendo que entre 3% a 5% deste volume vai para exportação. Entre os fatores de destaque, a publicação mostrou o quanto a fruticultura e a olericultura (cultivo de verduras e legumes) são relevantes na geração de empregos no meio rural. De forma geral, os dois segmentos geram, em média, 25 postos de trabalho a cada 10 hectares. Conforme o estudo, são 13 milhões de pessoas empregadas na produção de frutas e verduras, sendo 5,6 milhões de forma direta, que atuam em uma área plantada de 5,1 milhões de hectares. Apenas como fator de comparação, o relatório aponta que a geração de empregos pela cadeia da soja fica abaixo de 3,8 milhões de postos diretos, em uma área superior a 34 milhões de hectares distribuídos de norte a sul do Brasil. Também chamou a atenção a confirmação do quanto a tecnologia está inserida no

setor, sobretudo no que diz respeito ao uso de defensivos agrícolas, fertilizantes e sistemas de irrigação. Ainda mais porque tal cenário independe da quantidade de terras das propriedades. “É importante levar esclarecimento à sociedade sobre esses temas, contribuir para que haja uma visão clara sobre a utilização de soluções como os defensivos”, diz Barcelos, que acrescenta: “Toda hora sai na imprensa alguma coisa negativa sobre o tema, e nosso produto vai do campo para a mesa. Aí acabamos sempre tendo uma postura reativa”. Está aí um ponto que se pretende mudar com informações mais abrangentes, precisas e muito bem apresentadas. Tal necessidade explica a parceria com o Conselho de Informações sobre Biotecnologia (CIB) para a formação do programa Hortifruti Saber & Saúde. “O contato com o CIB veio por conta do trabalho que fizeram com os transgênicos, envolvendo formadores de opinião, não só o consumidor”, comenta Barcelos. Essa relação mais estreita com a sociedade é mais do que necessária. A exemplo do que ocorreu tão logo o Projeto de Lei nº 3200/2015, batizado de PL dos Defensivos Agrícolas, ganhou os holofotes. Enquanto o setor produtivo se entusiasmava com a possibilidade de modernizar o segmento e reduzir entraves

burocráticos, parte da população criticava, em alguns casos combatia mesmo, a nova proposta legislativa. O tema ainda exige cautela, mas o presidente da Abrafrutas se mostra otimista com os próximos passos. Ele conta já terem se reunido com a ministra da Agricultura, Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias, para falar deste e de outros assuntos relevantes para o setor, e que a conversa pode ficar ainda melhor. “Vamos eliminar o viés ideológico desse debate”, avalia Barcelos. Adriana Brondani, diretora executiva do CIB e coordenadora científica do programa Hortifruti Saber & Saúde, destaca que essa argumentação técnica pode ajudar a sociedade a entender melhor os desafios diários dos agricultores. “O clima tropical é propício para o desenvolvimento de insetos, fungos, plantas invasoras e outras pragas que prejudicam a lavoura. Por isso, o uso da tecnologia é uma necessidade”, afirma Adriana. “Isso implica um estudo cuidadoso de clima, solo, culturas e da interação entre esses elementos, além da utilização de técnicas engenhosas de irrigação, máquinas modernas, ferramentas genéticas, fertilizantes para correção de aspectos naturais pouco favoráveis e defensivos agrícolas”, complementa. PLANT PROJECT Nº14

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Ag Mercado

foto: Romualdo Venâncio

Em média, setor de FLV gera 25 empregos a cada 10 hectare

PERFIL TECNOLÓGICO Cultura Perfil tecnológico Mão de obra empregada Alto Médio Baixo

Abacate Abacaxi Banana Goiaba Laranja de mesa Limão Mamão Manga Melancia Melão Maçã Morango Uva de mesa Batata Cebola Cenoura Feijão Pepino Pimentão Tomate de mesa Alface Brócolis Couve Repolho

30% 30% 40% 1.086 20% 80% 74.475 15% 26% 58% 476.806 11% 37% 52% 2.572 18% 19% 63% 31.773 5% 81% 14% 31.519 80% 12% 8% 60.744 26% 62% 12% 96.941 10% 35% 55% 165.471 70% 20% 10% 34.749 30% 60% 10% 56.515 6% 70% 24% 5.595 14% 12% 74% 80.581 25% 20% 55% 137.465 18% 62% 20% 203.004 19% 17% 64% 15.659 12% 39% 58% 2.000.000 16% 10% 74% 150.036 22% 42% 36% 13.000 53% 24% 23% 110.746 12% 88% 303.998 53% 47% 15.869 12% 88% 37.162 21% 79% 93.392

Consolidado Hortifruti Brasil

4.199.155

Fonte: IBGE 2016 – Produção Agrícola Mensal

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EVOLUÇÃO DO CAMPO PARA A MESA Quanto mais tecnologia se emprega na produção de frutas e verduras, maior tende a ser a eficiência na utilização dos insumos e de todos os recursos naturais. Essa benéfica relação tem reflexos diretos na qualidade e na segurança dos alimentos e, por consequência, no nível de satisfação do consumidor final. O relatório Cenário Hortifruti Brasil traz detalhes sobre o perfil tecnológico dos agricultores por cultura. Os produtores de mamão e melão são os destaques no segmento frutas, pois 80% e 70%, respectivamente, aparecem entre os avaliados com alto nível de uso de tecnologia. No grupo dos olericultores, 53% é o volume de produtores de tomate de mesa e de brócolis que se enquadram na categoria dos mais tecnificados. Entre as várias conclusões possíveis a partir dos dados da tabela de perfil tecnológico dos produtores de hortifrúti, uma delas reforça o quanto o setor ainda pode evoluir. “É a discrepância de produtividade entre agricultores mais e menos tecnificados”, destaca Adriana, cuja opinião é compartilhada pelo presidente da Abrafrutas. Barcelos cita como exemplo a intensificação da agricultura irrigada no semiárido, inclusive com a tecnologia de gotejamento e a fertirrigação. Em sua propriedade, o dirigente mantém


foto: divulgação CNA Brasil

foto: divulgação CNA Brasil foto: divulgação

10,5 mil hectares produzindo frutas com esse manejo. “Sem contar as novas gerações de produtores, mais conectadas às inovações tecnológicas, que estão ganhando espaço nas fazendas”, comenta. Outro campo frutífero nesse segmento é o do melhoramento genético, pois além da geração de plantas mais produtivas, resistentes e adaptadas às diversas condições climáticas do Brasil, ainda podem ser desenvolvidas com características que atendam demandas específicas dos consumidores, como algo na composição nutricional e até a durabilidade. A ideia é que se consolide um ciclo virtuoso. “O valor agregado da produção permite que haja mais investimentos em tecnologia, e uma coisa vai puxando a outra”, diz Barcelos. Essa combinação de fatores servirá como plataforma para que a cadeia estimule o crescimento do consumo de frutas, legumes e verduras – grupo de alimentos chamado

Em todos os segmentos, ainda há muito espaço para crescer. Ao lado, Barcelos, da Abrafrutas, quer avançar nas exportações

de FLV – no mercado interno. Segundo Barcelos, hoje esse índice está em 56 quilos por habitante/ano no Brasil, o que dá pouco mais de 153 gramas por dia. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o consumo de pelo menos 400 gramas diários de produtos FLV por pessoa, ou seja, 146 quilos por ano. “Precisamos trabalhar com base nos fatores que fazem o consumidor comprar ou não uma fruta ou hortaliça”, diz o dirigente. A meta definida pelo PNDF é alcançar 70 quilos por habitante/ano até 2028. Essa empreitada para estimular o consumo de frutas e hortaliças recebeu como reforço uma publicação digital, cujo título é Viagem pelo Brasil em 15 alimentos regionais, que destaca o valor nutricional e a versatilidade gastronômica desses produtos. O e-book gratuito é uma produção do programa Hortifruti Saber & Saúde e tem a contribuição da nutricionista especialista em Nutrição e Esporte Sueli Longo. Além das diversas informações

sobre esses diferentes produtos, o livro traz ainda uma receita de cada região do País: pato no tucupi com jambu, bobó de camarão, galinhada com pequi e quiabo tostado, costelinha com ora-pro-nóbis e bolinho de chocolate com creme inglês de mate. Para os organizadores do projeto, essa é também uma forma de valorizar o trabalho dos agricultores, pois para que alguém saboreie uma dessas receitas, por exemplo, foram necessárias horas e horas de dedicação de toda uma cadeia produtiva. “Os produtores brasileiros se valem tanto de conhecimentos tradicionais quanto de tecnologia de ponta para conseguir que essa comida esteja à mesa com qualidade e segurança. No campo, convivem lado a lado ensinamentos passados de geração a geração e engenhosas técnicas de irrigação, recentes inovações genéticas e uso responsável de insumos como fertilizantes e defensivos”, analisa Adriana Brondani. PLANT PROJECT Nº14

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Elefantes e o rebanho bovino dividem espaço e até mesmo os cochos: explicação está no manejo 54


P L A N T

POSITIVO

SAFÁRI DA PAZ O professor Mateus Paranhos, da Unesp, busca nas Savanas africanas o conhecimento para desenvolver técnicas que melhorem o bem-estar animal e a convivência entre rebanhos e animais selvagens Por Flávia Tonin | Fotos Acervo Pessoal Mateus Paranhos

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E

le não sossega diante de um dilema que envolva a sensível relação entre a produção e a vida animal. Nem dormir em uma tenda em meio à Savana africana o intimida. Ali, ele acampou em um local de vida livre, que tem mais de 60 espécies de predadores carnívoros como leões, chitas, leopardos, hienas, cães selvagens e chacais, além de mamíferos gigantes como elefantes, rinocerontes e girafas, que compõem o cenário. Estar próximo desses animais foi parte da realidade do zootecnista e pesquisador Mateus José Rodrigues Paranhos da Costa, de 62 anos, fundador do Grupo Etco, da Unesp de Jaboticabal (SP). A experiência foi recente, em fevereiro e início de março passados, em uma imersão pelo Quênia, na costa leste da África. Paranhos desembarcou disposto a aprender. Como um diário de bordo, enviou de lá áudios diários por WhatsApp para a reportagem da PLANT, descrevendo o que via e os paralelos com suas pesquisas no Brasil. Diferentemente dos demais estrangeiros que buscam o turismo naquele país, já que a atividade é o que mais alavanca o PIB local, Paranhos passou a maior parte do tempo em uma região pouco visitada, na

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companhia de pesquisadores suecos que tinham curiosidade semelhante: queriam entender como elefantes e rebanhos bovinos convivem no mesmo espaço – e até mesmo posam juntos para fotos. E, se essa harmonia é possível por lá, por que não seria também no Brasil, em regiões em que a pecuária ocupa áreas vizinhas aos habitats de animais selvagens? Parece “coisa de louco”, mas é a partir de questões como essa que Paranhos quebra paradigmas e difunde o bem-estar na produção animal há decadas, transformando a realidade brasileira de forma “radicalmente moderada”, como diz, porém, persistente. No início dos anos 2000, veio com a ideia da vacinação de animais contidos em brete, substituindo as agulhadas descontroladas durante a passagem pelo tronco coletivo. A prática foi adotada em grandes projetos pecuários – com milhares de cabeças – e avança no Brasil. No gado de leite, seu grupo sugeriu que o tratador escovasse os bezerros, por dois minutos, durante a mamada – e o fez, diariamente, em centenas de bezerros. Parecia bobagem, mas reduziu a mortalidade pela metade e o manejo foi


Aventura

P L A N T

POSITIVO

O sistema de pastoreio no clima seco exige que os animais caminhem em busca de alimento. Ao lado, Paranhos em uma aldeia no Sul do Quênia

incorporado à rotina. Em outra linha mais recente, encoraja os peões a fazer massagem em bezerros de corte no nascimento e percebe, ainda preliminarmente, a menor reatividade na vida adulta. A última, agora, é essa história de buscar alternativas para reduzir o conflito entre animais selvagens e de produção. “Em regiões específicas, pensando na unidade de produção, as perdas são significativas”, afirma. Essa busca por respostas foi o que o levou para o outro lado do mundo. Durante os 33 dias de aventura e observação, o professor fez algumas conexões com a realidade brasileira. “São vários os paralelos, mas o mais impressionante é a certeza de que a proximidade entre homem e animal facilita todo o trabalho”, relata, com base principalmente no sistema de pastoreio praticado no Quênia. Desde sua chegada em Nairóbi, capital com mais de 3 milhões de habitantes, ele pôde ver alguns bovinos nas estradas sendo conduzidos por pessoas a pé. “Eles usam os bovinos como uma estratégia de poupança”, conta o pesquisador, sobre o status dos fazendeiros locais. “Quanto mais bovinos você tem, mais rico você é.” Portanto, os animais são sempre vigiados para a proteção do patrimônio.

A CERCA DE ABELHAS O gado é criado em sistema de pastoreio, sendo que os trabalhadores saem com animais para buscar áreas de forragem, mas voltam com a intenção de protegê-los em um local fechado, o “boma”, evitando o ataque de predadores. Essa é a essência da criação, seja em pequena ou em larga escala, e Paranhos conheceu essas duas realidades. Começou com rebanhos menores ao Sul e terminou a viagem em uma fazenda de 6 mil bovinos pastoreados no Norte. “Uma história interessante está no controle de elefantes. São usadas abelhas para evitar que eles invadam plantações e que, por conta disso, sejam abatidos pelos agricultores”, explica o professor. Assim como Davi derrubou o

gigante Golias, o segredo das abelhas está em agir no ponto certo. Já que não conseguem ferroar a pele grossa do corpo do animal, elas entram em suas orelhas provocando um zumbido insuportável. Assim, fazem com que os grandões recuem, salvando a lavoura e os elefantes da morte. Em nova fase, iniciam testes com gravações de zumbido de abelhas para verificar se essa poderá ser uma barreira tecnológica de proteção e preservação. “É uma forma de valer-se do conhecimento de comportamento animal para afastar os predadores, ao invés de exterminá-los”, explica o professor, que remete a um experimento que está sendo feito no Brasil, no Pantanal (MS) e também no vale do Araguaia (MT). Nas duas regiões, o objetivo é PLANT PROJECT Nº14

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monitorar e reunir dados sobre qual é o animal selvagem que ronda as fazendas. “Ao sabermos as espécies mais frequentes na região, podemos criar estratégias preventivas de acordo com os hábitos dos predadores”, explica. E enumera, por exemplo, características diferentes entre a onça-pintada e a parda. “A onça-pintada dificilmente se aproxima do ser humano, já a parda não tem o mesmo receio.” Em unidades com maior ocorrência de onças-pintadas podem ser aplicadas estratégias que demonstrem a presença humana como luzes, barulhos, bezerros próximos às casas etc. “Se a maior ocorrência for de onças-pardas, essas estratégias podem não funcionar”, diz. JORNADA EM BUSCA DE ÁGUA Após sair de Nairóbi, seguiu rumo Sul, para a região do róseo 58

Lago Magadi, no Grande Vale do Rift, com povos masai. Era uma comunidade de pequenos proprietários, com rebanhos de 50 unidades. Eles têm um tipo animal bem variado, com porte mediano, várias cores e ocorrência de chifres. “Mas estão se tornando bem parecidos com o Zebu brasileiro, porém menores”, descreve Paranhos, que percebeu o uso da raça bovina Boran como alternativa de cruzamento para agregar valor às crias. Para se alimentar, os animais precisam caminhar e buscar comida, pois a seca do período deixa o solo completamente descoberto. Parece uma estrada de terra de chão batido, exceto nas regiões que compõem o horizonte, mais próximas das montanhas, onde há cursos de água. De acordo com a disponibilidade de alimento, os animais e acampamentos vão avançando pelas áreas de pastoreio e,

somente na fase árida, podem entrar em locais de reserva, convivendo ainda mais com a vida selvagem. “Apesar da seca, os animais apresentavam boa condição corporal, alguns até gordos”, diz sobre bovinos, zebras, girafas e o que mais cruzou seu caminho. Diferentemente dos adultos, os bezerros não saem para a Savana, mas ficam no acampamento em cercados improvisados com galhos de acácia, cheios de espinhos. "Os galhos são colocados principalmente por causa das hienas”, diz sobre os ágeis predadores. Para identificação, os animais são marcados a fogo, de forma aleatória, o que assustou Paranhos, que é um defensor de formas de identificação menos invasivas como brincos, colares ou qualquer outra tecnologia que não cause ferimentos. Nessa região, por questões culturais e alguns rituais específicos, as famílias podem acompanhar a caminhada. “Participamos de um ritual de despedida, todos discursaram, principalmente os mais velhos. Foi incrível”, lembra. Apenas em datas especiais e festas é consumida a carne bovina. Nos demais dias, a proteína é proveniente de cabras e ovelhas ou do leite das vacas. Na região, a renda mensal de um trabalhador não ultrapassa US$ 150, equivalente a R$ 600. “O preço do boi eu não consegui descobrir, é um segredo que depende de cada negociação”, confidencia Paranhos.


Aventura

O PASTO MILAGROSO Rumo ao Norte do país, a realidade vai se transformando, alavancada pelo turismo. As barracas, deixadas de lado, deram lugar a pequenos bangalôs e hotéis, alguns de cinco estrelas. A agricultura é desenvolvida, com grandes equipamentos, principalmente na produção de frutas, como manga e abacaxi para a exportação. O gado também é outro. Há bovinos com chifres imensos da raça AnkoleWatusi, para preservação, como também animais para a produção de carne. “Esses, com predominância da raça Boran, são mais parecidos com o nosso Nelore”, descreve o professor. O que não muda são os hábitos de pastoreio e de temperamento dos animais. “São extremamente mansos”, relata – e se recorda de pesquisa em andamento no Brasil para entender se uma vaca menos reativa tem risco de ser uma presa mais vulnerável. “Ainda estamos avaliando dados, mas se essa correlação não se confirmar, podemos seguir selecionando animais menos reativos, como fazem naturalmente no Quênia”, afirma. Isso facilita o manejo e a produtividade dos animais, pois gado mais calmo dá menos trabalho e come mais. Ansioso para conhecer sistemas mais profissionais, Paranhos esteve em uma das maiores propriedades do país, uma área de conservação com 40 mil hectares, que tem um

rebanho total de 6 mil bovinos, em meio a uma população de 15 mil herbívoros e outros tantos carnívoros. Se a diversidade fosse menor, com certeza, haveria mais bois. O manejo segue a lógica do pastoreio, mas com algumas adaptações. O grande lote é subdividido em grupos de no máximo 200 cabeças, que ficam sob a responsabilidade de dois pastores durante a caminhada pela Savana. A reprodução é por monta natural, com sincronização de cio, em algumas épocas, para concentrar os nascimentos. O local também conta com frigorífico para abate de 60 cabeças por semana para distribuição em açougues locais.

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POSITIVO

Os cercados com a vegetação seca para os bezerros e os espaços mais estruturados nos espaços mais ao Norte: “a proximidade do homem com os animais facilita o trabalho”, diz Paranhos

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POSITIVO

Aventura

O acampamento, a diversidade de raças no rebanho e a constante presença de animais selvagens: expedição permitiu muitos aprendizados

Apesar de o gado viver em meio aos selvagens, a mortalidade por predação é de 6% na fazenda. “A taxa é reduzida, pela proximidade com pessoas”, reconhece Paranhos, lembrando que não há nenhuma estrutura para separá-los de seus predadores naturais durante o dia, apenas os olhos humanos. Tanto que elefantes e bovinos consomem água no mesmo local. “Essa foi a cena mais surreal que já vi”, confidencia. “E eles estavam em harmonia”, diz em tom de muita surpesa. Antes do início da noite, os animais são trazidos para um cercado de metal, onde ficam confinados até raiar o sol. “Eles se acostumam com a rotina e há espaço adequado para a movimentação.” Com tantos bois presos, esse seria um banquete para leões das redondezas, se não houvesse vigilância noturna. “Quando percebem alguma movimentação de predador, eles 60

acendem luzes, movimentam-se ou fazem barulho”, diz Paranhos. A estrutura do cercado é móvel e “arrastada” conforme a necessidade de avanço do pastoreio. A viagem termina em uma reserva natural de Masai Mara, na divisa com a Tanzânia, com uma pastagem de dar inveja a qualquer especialista em adubação. “É impressionante como isso pode formar-se após o capim ir a zero com uma alta taxa de lotação, que ocorre durante a migração de zebras e mais de 1 milhão de gnus, vindos do Serengueti, na Tanzânia.” Na volta para casa, ficava nítido que sua cabeça fervilhava de ideias, que serão adaptadas e testadas nas fazendas brasileiras para a maior sustentabilidade. Pode-se esperar também um maior incentivo à interação homem-animal, mesmo que por alguns minutos, pois isso é muito salutar para os manejos e resultados produtivos. Resta agora esperar como ele vai sistematizar

tudo isso, pois riqueza de experiência, lá e cá, Paranhos tem. PIT STOP NA SUÉCIA Em cooperação com o pesquisador Jens Jung, da Universidade de Ciências de Agricultura Sueca, de Uppsala, na Suécia, Mateus Paranhos desenvolve pesquisas para a conservação de espécies. A Europa enfrenta os mesmos problemas de predação, porém com menor estatura, já que a disputa está entre lobos e ovelhas. O diferencial da Suécia está em uma compensação financeira recebida pelos produtores que têm os rebanhos atacados. A medida é um paleativo, já que não há desenvolvimento de práticas mais sustentáveis ou redução de conflitos. Por esse motivo, o interesse em ampliar estudos que harmonizem a vida de animais de produção e selvagens, já que ambos caminham, literalmente, lado a lado nos campos.


Poder da voz: Do radinho de pilha aos aplicativos de streaming, o áudio mantém seu papel na comunicação rural

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Ideias e debates com credibilidade

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NAS ONDAS DO AGRO: SINTONIA FINA PARA A NOVA INFORMAÇÃO AGRONOMÍDIA, POR RICARDO CAMPO* Do carro de som anunciando a oferta vem também o “modão sertanejo” que embala a audiência das comunidades rurais. De Tião Carreiro à previsão do tempo, da cotação da soja ao novo hit do mercado AgTech. E assim segue a vida do peão, de estação em estação, navegando nas ondas do rádio em busca de lazer e informação. Poderosa ferramenta de marketing para promoção de marcas, produtos e serviços, o rádio é um importante mobilizador social e sempre esteve presente em nosso dia a dia como fonte de notícias, oportunidades comerciais e música, muita música. De berrante na mão e ouvido no rádio, é possível reverenciar pelo som os ídolos musicais e dar atenção aos âncoras da imprensa. Talvez seja por isso que esta mídia tradicional se diferencie das demais ao despertar uma relação afetiva em seus ouvintes. Até em partida de futebol o gol narrado tem mais emoção. Do radinho de pilha aos aplicativos de streaming, cada um em sua frequência tecnológica, mas todos na mesma sintonia. E assim vamos seguindo em frente, na companhia dos acordes da viola e com boas doses de lucidez nas resenhas das manhãs (Boechat, descanse em paz!). Sou fã do rádio. Mas, como consumidor de informação, mantenho os ouvidos atentos para a melodia da inovação que começa a ecoar com a chegada das novas mídias. E você, já consegue ouvir o som do novo? Nas ondas do rádio e além Na última edição da pesquisa Hábitos do Produtor Rural, realizada em 2017 pela FNP Informa e ABMRA (Associação Brasileira de Marketing Rural e Agronegócio), o rádio ainda aparece em destaque como um dos meios de comunicação com maior audiência no meio rural.

Nessa pesquisa que ouviu 2.835 agricultores e produtores de animais de 15 estados, de todas as regiões do País, o rádio ficou atrás apenas da TV aberta, mas permanece à frente da internet, jornal, TV por assinatura e revista. No mesmo estudo, a música é citada como principal motivo para o uso do rádio, com 88% de citações. Mas é como fonte de informação que está a grande contribuição desse meio para a rotina do campo, com acesso à informação via noticiários locais (63%), noticiários nacionais (25%), noticiários do tempo (23%), noticiários do trânsito (9%) e noticiários internacionais (6%). Se as notícias são um grande atrativo das ondas do rádio, não dá para deixar de destacar como o WhatsApp tem contribuído na conversão de conteúdos para arquivos de áudio, que circulam notícias rapidamente entre grupos rurais das mais diversas regiões do País. O “zap zap” é muito querido pela turma do campo, sendo utilizado pela grande maioria dos produtores rurais (96% dos entrevistados). Transcende as barreiras do espaço e das gerações, entre jovens e seniores, viralizando notícias que antes levavam dias ou semanas para chegar ao conhecimento público. Outros formatos, como vídeos curtos e infográficos, também ganharam notoriedade nas telas dos celulares, informando as massas rurais em um fluxo de convergência e complementariedade entre as mídias. Nesse contexto, o podcast aparece como uma alternativa interessante para atualização sobre os mais diversos assuntos, sejam de lazer ou de gestão. Resultado da junção de iPod (dispositivo de reprodução de mídias da marca Apple) com broadcasting (radiodifusão em inglês), o podcast é um formato de conteúdo multimídia muito popular na


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internet para transmissão de conteúdos que podem ser acompanhados em tempo real ou então ser baixados para audição off-line. Companheiros de lida e de estrada O acesso à internet ainda é um dos grandes gargalos da área rural, mas com a vantagem do download, o pod-cast pode ser ouvido em ambientes sem conexão e ser um grande companheiro nas jornadas agrícolas, em tablets ou smartphones. Distribuído em episódios ou séries, muitas vezes há um tom de informalidade na maneira como os conteúdos são apresentados, de forma leve e casual, o que torna o formato do podcast muito mais convidativo para o público das fazendas. Em propriedades dos Estados Uni-

dos e da Austrália, o podcast já é uma realidade e aqui no Brasil tem despontado como recurso para as longas horas dentro das cabines dos tratores ou para as centenas de quilômetros muitas vezes encarados nos trajetos desse nosso agro continental. De olho nessa tendência, veículos de comunicação tradicionais como grandes emissoras, jornais e revistas já começam a publicar em canais específicos para podcasting. Por permitir uma comunicação de nicho para audiências dos mais diversos setores, o formato pode ser uma ferramenta eficaz para ativações de marcas rurais, integração de cooperativas e cooperados, geração de novos negócios ou para, simplesmente, atender àqueles interessados em se atualizar de forma prática e conveniente, onde e como quiserem.

*Ricardo Campo é coordenador de inovação da Raízen e gestor do Pulse hub. É técnico em artes gráficas pelo Senai Fundação Zerrenner, graduado em Propaganda e Marketing pela Universidade Mackenzie, especialista em Marketing de Varejo pelo Senac e possui MBA em Marketing pela Fundação Getulio Vargas (FGV). Admira a coragem dos empreendedores rurais e sua trajetória no agro também inclui a atuação nos times de marketing da DSM/Tortuga e do Rabobank Brasil.

PRÓXIMOS PASSOS PARA A PECUÁRIA NO BRASIL POR MAURICIO BAUER E FRANCISCO BEDUSCHI, REPRESENTANTES DA NWF NO GTPS A pecuária, bovinocultura de corte mais propriamente dita, está passando por muitas transformações no Brasil e elas vêm acontecendo de forma cada vez mais acelerada recentemente. Sendo assim, as mudanças no sistema produtivo são inevitáveis e é essencial que os produtores que participam dele estejam preparados para se adaptar. Partindo do conceito de que temos três pilares na sustentabilidade – econômico, social e ambiental –, neste texto nos propomos a discutir algumas mudanças do ponto de vista ambiental, como elas se relacionam com o econômico e quais oportunidades

surgem no curto e no longo prazo. No Brasil os Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) assinados entre o Ministério Público Federal e os frigoríficos atuantes na Amazônia são já bem conhecidos. Agora temos também as auditorias. Pelo segundo ano consecutivo, o MPF auditou os relatórios dos frigoríficos do Pará e alguns tiveram um resultado excelente. Outros, nem tanto. Mas o fato é que com a auditoria vem a necessidade de melhoria nos sistemas de monitoramento. Simultaneamente, o prazo para adesão ao Cadastro Ambiental Rural (CAR) se encerrou e o PLANT PROJECT Nº14

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prazo para adesão ao Plano de Regularização Ambiental (PRA) termina no fim deste ano. Será a última chance para aqueles produtores que têm algum passivo protocolarem um projeto de regularização com alguns benefícios e com prazo longo para execução dos planos. Sendo assim, temos uma porta que está se fechando, mas muitas janelas estão se abrindo. Os bancos, principalmente aqueles que participam ativamente de fóruns de discussão como o GTPS, estão cada vez mais proativos no seu papel de financiar a regularização ambiental e querem fazer isso unindo os pilares ambiental e econômico. Faz todo o sentido, afinal para poder pagar pela recuperação do passivo ambiental é preciso que o produtor aumente a sua renda. O lado positivo é que com bons projetos a renda seguirá sempre num patamar mais elevado, à medida que o passivo é eliminado. Há ainda fundos de investimento de impacto, aqueles que trazem recursos financeiros mais baratos para a promoção de mudanças no status quo, que começam a buscar novos projetos no Brasil. A perspectiva de melhoria na economia do País proporcionou isso. Há ainda oportunidades como o IMAC, o Instituto Mato-grossense da Carne, uma iniciativa público-privada que visa promover a carne produzida no Mato Grosso e que pode colocar um holofote sobre bons exemplos. No cenário internacional, há mudanças que são bastante significativas e que também têm implicações diretas sobre a produção nacional. Na China, a Declaração de Carne Sustentável de outubro de 2017 reuniu, pela primeira vez, a China Meat Association e 64 empresas chinesas declararam esforços conjuntos para promover a produção, o comércio e o consumo sustentáveis de carne. Esse conjunto de compromissos são um sinal para o mundo e visam ajudar a garantir que a pecuária seja um contribuinte positivo para o planeta, mantendo-a saudável e capaz de aten-

der às necessidades das futuras gerações. Na União Europeia, as pressões internas aumentam e surgem novidades que afetam até mesmo operações em outros países. Na França, já está valendo uma lei que permite ao governo processar e multar empresas que tenham sede/grandes operações no país e que estejam ligadas ao desmatamento ilegal em outros países. Isso fatalmente fará com que as empresas nessa situação comecem a ir além dos compromissos assumidos e coloquem mais velocidade e esforço na implementação de políticas para desvincular suas compras do desmatamento ilegal. Dado esse cenário, no curto prazo é preciso que os atores da cadeia – produtores, frigoríficos, varejistas e sociedades civil – se organizem para acordar regras claras e comuns para todos no Brasil, independentemente do porte da empresa. Ter regras comuns para todos torna essa uma questão pré-competitiva, deixando de ser aquela situação em que um tem a regra A e outro a regra B, ou ainda um tem uma regra e outro não tem. Esse tipo de iniciativa faz com que a atuação na cadeia passe a ser igual para todos. Isso facilita o planejamento dos produtores e das empresas que compram dos frigoríficos, devendo acontecer com a participação de todos, desde o produtor de bezerros até o varejista. Como respostas de longo prazo, devemos começar a discutir hoje o que estaremos fazendo daqui a cinco anos. Se acreditamos que podemos ter acordos internacionais nesse sentido, temos que começar a discutir isso agora. O mesmo vale para o uso de tecnologia, como o compartilhamento de informações via tecnologia de blockchain (a mesma utilizada para a comercialização de criptomoedas). Devemos começar a avaliar as possibilidades hoje. De qualquer forma, sejam soluções de curto ou de longo prazo, a participação é fundamental, as discussões devem começar agora e os fóruns como o GTPS e o GRSB são fundamentais para avançarmos nisso.


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NATURAL OU INDUSTRIAL, O QUE IMPORTA É A QUALIDADE DO VINHO POR IRINEU GUARNIER FILHO*

Quem gostaria de consumir alimentos – e aqui incluo o vinho – contaminados por elementos químicos perigosos à saúde? Eu não. Nem você, não é? Vejo, portanto, com bons olhos essa tendência de valorizarmos cada vez mais os alimentos produzidos em harmonia com o meio ambiente – especialmente no caso dos vinhos. Mas, vamos com calma: todo alimento “natural” é bom? Não acho que tudo seja obrigatoriamente saudável, muito menos “moderno”, como o marketing de certos produtores de orgânicos faz supor. Por outro lado, não veja esse movimento como mais um modismo passageiro. Trata-se, na verdade, de um retorno a uma agricultura mais natural, tal como era praticada até o começo da utilização em grande escala de agroquímicos, mas que veio para ficar. O que, em tese, é bom. Isso não significa, no entanto, que eu considere qualquer vinho orgânico, biodinâmico ou mesmo natural incondicionalmente melhor do que um vinho dito “industrial” elaborado de forma cuidadosa, com manipulação e intervenção química limitadas por regras oficiais de certificação agrícola e de saúde pública. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra. Há vinhos “naturebas”, contaminados por impurezas ou bactérias, que podem ser bem mais nocivos à saúde do que rótulos industriais elaborados dentro de rigorosos padrões de higiene e sanidade. Sem falar que alguns vinhos turvos de fundo de quintal são intragáveis do ponto de vista organoléptico… Nem tudo que é “natural” é bom: veneno de cobra, por exemplo, é 100% natural – e mata!

Andei provando vinhos naturais e, lamento dizer, muitos estavam com evidentes problemas técnicos de elaboração. Oxidados, adstringentes, desequilibrados, acéticos, quando não bouchonné ou contaminados por Brett. Fossem rótulos de vinícolas conhecidas, seriam prontamente recusados após o primeiro gole por qualquer enófilo de primeira viagem. Mas, como trazem no rótulo uma declaração de “orgânico” ou “biodinâmico”, noto uma certa condescendência por parte de quem os bebe… Comigo, não. Para mim, existem apenas dois tipos de vinhos: os bons e os ruins. Não contemporizo com defeitos grosseiros só porque um vinho se declara “puro”. Contudo, se foi elaborado por métodos naturais e está delicioso, que maravilha! É a perfeição. O fato é que evoluímos muito em tecnologia desde o Cáucaso, há 7 mil anos, para chegarmos ao vinho que bebemos hoje: límpido, macio, equilibrado, estável, rico em aromas e sabores. Assepsia de cantinas, tanque de inox, controle de temperatura, bactericidas, análises laboratoriais, esterilização de rolhas – tudo isso tem contribuído para uma evolução extraordinária da qualidade, da sanidade e da durabilidade dos vinhos modernos. Lamentavelmente, no entanto, poucos desses recursos têm sido utilizados na elaboração de muitos vinhos autoproclamados “naturais”. Quem quiser conquistar adeptos com esse tipo de vinho terá de se preocupar, em primeiro lugar, com a qualidade. Preceito que vale, aliás, para os produtores de qualquer tipo de vinho.

*Irineu Guarnier Filho é jornalista especializado em agronegócio, cobrindo este setor há três décadas. Metade deste período foi repórter especial, apresentador e colunista dos veículos do Grupo RBS, no Rio Grande do Sul. É Sommelier Internacional pela Fisar italiana, recebeu o Troféu Vitis, da Associação Brasileira de Enologia (ABE), atua como jurado em concursos internacionais de vinhos e edita o blog Cave Guarnier. Ocupa o cargo de Chefe de Gabinete na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, prestando consultoria sobre agronegócio. PLANT PROJECT Nº14

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ADEALQ - HÁ 75 ANOS CONECTANDO ESALQUEANOS

ESALQ - USP

A PECUÁRIA BRASILEIRA EM INTENSIFICAÇÃO POR MAURÍCIO PALMA NOGUEIRA*

Apesar de ser pouco reconhecida, a produtividade da pecuária brasileira é bem acima da média mundial. O mundo produz cerca de 1,3 arroba/ha/ano, enquanto o pecuarista brasileiro consegue 4,5 arrobas/ ha/ano, produtividade que é considerada baixa pelos padrões dos próprios brasileiros. Cada arroba são 15 quilogramas de carcaça, ou seja, apenas a soma de carne e osso. Em média, o peso vivo de um animal é quase o dobro do peso da carcaça. Se o Brasil produzisse com a mesma tecnologia média adotada no mundo, seriam necessários 565 milhões de hectares para produzir a quantidade atual de carne. Hoje a pecuária ocupa 162 milhões de hectares, ou 19% da área total do País. Recentemente, depois de finalmente aceitarem o aumento da produtividade média na pecuária, alguns ambientalistas tentaram capitalizar suas ações vendendo a ideia de que o ganho teria ocorrido a partir das pressões ambientais dos últimos anos. No entanto, o grande driver para a intensificação da pecuária é de ordem econômica e tem o seu início a partir da consolidação do plano Real. De agosto de 1994 até março de 2019, o custo de produção de um boi gordo em ciclo completo (cria-recria-engorda) aumentou 1.100% em valores nominais. Os preços pagos pela arroba bovina aumentaram 550%. A inegável queda nas margens leva os produtores a buscar escala, aumentando as vendas por hectare. Essa busca é intuitiva e independe de estudos econômicos ou rigo-

rosos controles financeiros. Nesse processo, a pecuária brasileira assistiu a um boi gordo sair das 16,4 arrobas, em média, para 18,8 arrobas em 20 anos. Os animais chegam a esse peso mais jovens e ocupam áreas menores do que ocupavam há 20 anos. Entre o início dos anos 1990 e 2018, a produtividade brasileira saiu de 1,6 arroba/ha/ano para as atuais 4,5 arrobas/ha/ ano. O aumento da tecnologia no período evitou que 250 milhões de hectares fossem desmatados. O ganho de produtividade é incontestável. E, por ora, nada indica que o processo de intensificação venha a cessar. Um produtor de alta tecnologia que produza cerca de 30 arrobas/ha/ano reúne condições de crescer mais rapidamente. O raciocínio é simples. Nessa faixa de produtividade, o pecuarista poderia receber até R$ 25 a menos por arroba que ainda registraria o mesmo lucro que o produtor de média tecnologia (4,5 arrobas/ha/ano) consegue obter. Como o mercado responde à oferta e à demanda, ao longo dos anos a tendência é de que os preços se ajustem à pecuária mais intensiva. Ou os produtores se adaptam, aumentando o pacote tecnológico, ou acabam saindo do mercado por não suportarem produzir a custos mais elevados do que os preços. Em ambos os casos, os indicadores médios de produtividade acabarão aumentando. * Maurício Palma Nogueira, engenheiro agrônomo, sócio e diretor da Athenagro.


Vista aérea de campos cultivados às margens do Mar da Galileia: Israelenses venceram condições adversas para se tornar referência em tecnologia agrícola

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As regiões produtoras do mundo

foto: Shutterstock PLANT PROJECT Nº14

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As regiões produtoras do mundo

O SEGREDO DE ISRAEL Como, com inovação, cooperação e praticidade, o país do Oriente Médio se tornou referência em tecnologia agrícola e de uso de água

foto: Shutterstock

Por Daniela Kresch, de Tel Aviv (Israel)

Agricultor trabalha em lavoura em pleno deserto do Neguev: tecnologia transformou terreno árido em área produtiva 68


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tradição judaica conta a história de Honi, o Desenhador de Círculos, que viveu no século I a.C. Após uma seca, ele desenhou um círculo no chão, ficou no meio dele, ergueu as mãos para o céu e jurou não se mover até chover. Surpresa, surpresa: choveu! A fábula simboliza as dificuldades e a resiliência dos moradores dessa região do Oriente Médio onde, atualmente, está o Estado de Israel. Não é de hoje que a falta d’água tira o sono dos habitantes desse pequeno país com escassez crônica de chuvas, que caem por apenas três meses por ano. Israel é um dos 15 países nos quais há mais carência de água no mundo: menos de 500 metros cúbicos per capita/ anuais. Para se ter uma ideia, no Brasil o número é 10 mil metros cúbicos. Por algum motivo, a Terra Santa bíblica ganhou o apelido de "Terra do leite e do mel". Mas, na realidade, está mais para um deserto semiárido e árido, onde só 20% da área é cultivável. O apelido atual talvez faça mais jus à realidade do século 21: “Startup Nation”, um país que é obrigado a inovar e empreender. “Eu costumava trabalhar com Shimon Peres”, conta Erez Ron, CEO da empresa de sensores agrícolas SciRoot, citando o ex-primeiro-ministro israelense. “Ele costumava dizer que a grande sorte de Israel é que é um país em que tudo falta. Não temos muitos recursos minerais. Quando você não tem nada, então você tem que desenvolver, você tem que pensar em inovações.” Aplicando abordagens revolucionárias, os israelenses superaram as carências. A escassez de recursos naturais, a cultura de praticidade e o ecossistema acadêmico/ industrial é a mistura de ingredientes que 70

levou ao modelo atual de inovação. Aplicado na agricultura, transformou o território árido em um canteiro de inovações exportadas para o mundo todo. Hoje, Israel consegue produzir 95% de suas próprias necessidades alimentares, sem contar as exportações de frutas e legumes. Entre as principais inovações desenvolvidas lá estão irrigação por gotejamento, reciclagem de águas residuais, sistemas computadorizados de alerta para vazamentos, geração de imagens térmicas para a detecção do estresse hídrico, controle biológico de pragas e novas variedades de frutas e vegetais. “Estamos desenvolvendo uma nova tecnologia que nos permite utilizar água com mais eficiência”, conta Victor Alchanatis, diretor do Instituto de Pesquisa Agrícola “Centro Volcani”. “Usamos a temperatura das folhas para preparar um índice que nos diz quanta água precisamos para plantar grãos integrais, muito melhores do que grãos normais, de acordo com os parâmetros dos agricultores. Assim, conseguimos ser seis ou sete vezes mais eficientes no uso da água em relação ao que éramos há 50 anos.” O setor agrícola de Israel é uma indústria altamente desenvolvida, embora sua importância na economia geral local seja relativamente pequena. Ao longo dos anos, Israel desviou de uma economia baseada na agricultura para uma industrializada mais sofisticada. Em 1979, a agricultura respondia por cerca de 6% do PIB. Hoje, é apenas 3%. Tudo começou com as primeiras comunidades agrícolas coletivas, os kibutzim, no começo do século 20, antes mesmo da independência de Israel (1948).


Brasil. “Estávamos buscando uma solução. A ideia da irrigação por gotejamento, essa inovação, é distribuir água e nutrientes, às vezes chamamos de ‘nutrirrigação’, distribuir a quantidade certa diretamente para as raízes, onde e quando é necessária.” Para muitos, o sucesso agrícola de Israel é atribuído a seu modelo de estreita cooperação entre os agricultores, a agroindústria e a pesquisa tecnológica (a área de pesquisa e desenvolvimento - P&D representa cerca de 17% da alocação orçamentária de Israel para a agricultura). Erez Ron, um ex-piloto da Força Aérea Israelense que hoje trabalha com agricultura, conta que muitos acadêmicos fazem o caminho para a vida comercial. Investem em seus próprios desenvolvimentos tecnológicos para que se transformem em produtos reais. Esse vai e vem entre academia, indústria e comércio diminui o tempo entre inovação e implementação de descobertas. “Israel é um país pequeno, as pessoas se conhecem. Todos são

Campos de trigo e pomares de oliveiras na região do Mar da Galiléia: crise hídrica ainda é ameaça

foto: Natura

Imigrantes judeus europeus – a maioria identificada com o socialismo – deixaram as perseguições do Velho Continente para tentar se reinventar como agricultores na então chamada “Palestina”. Para eles, trabalhar a terra era símbolo dessa renovação pessoal e social, no contexto da luta pela criação de um Estado Judeu. Hoje, há 273 kibutzim no país (onde vivem 2,2% da população), além de 450 moshavim (3,1%) – a versão menos ideológica desse tipo de cooperativa. Com trabalho árduo e uma pitada de ingenuidade, eles superaram as condições ambientais adversas e as transformaram em trunfos para a criação de negócios de impacto (e lucrativos). É o caso da Netafim, empresa que nasceu no Kibutz Hatzerim – no deserto do Neguev, sul de Israel –, famosa por inventar a irrigação por gotejamento, um sistema que fornece água diretamente à planta, reduzindo o consumo de água e incrementando a produção. “Em 1965, éramos um grupo de jovens agricultores no deserto e enfrentamos o obstáculo de escassez de água e um solo muito pobre”, conta Naty Barak, diretor de sustentabilidade da Netafim, hoje pertencente ao grupo mexicano Mexichem e uma das líderes globais em soluções para irrigação, com forte presença no

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práticos aqui”, explica Erez Ron. “Quando alguém está trabalhando na universidade e desenvolve alguma coisa, ele tem amigos que podem experimentála no campo. Os professores querem ver suas ideias na prática. Faz parte da cultura daqui”. A realidade também fez com que os israelenses corressem atrás de novas tecnologias de purificação de água – produto raro e disputado no Oriente Médio. O país é líder mundial em tratamento de água de esgoto para agricultura e um dos mais avançados em dessalinização de água do mar para consumo humano. Há um esforço nacional para reduzir a demanda por recursos hídricos escassos. Praticamente todo o consumo de água é medido. Como os preços da água aumentaram significativamente, há incentivos para conservar os recursos hídricos. A maior preocupação é com o Mar da Galileia (Kineret, em hebraico), que supre 30% da água potável do país. O nível da água está tão baixo que muitos acreditam que o local bíblico – sobre o qual, segundo a tradição cristã, Jesus Cristo caminhou sobre as águas – está 4 metros abaixo da chamada linha vermelha, o mínimo para voltar à normalidade, depois de anos de secas e de erros. Nos anos 1950, Israel construiu o que, na época, foi um “orgulho nacional”: o National Water Carrier, uma série de tubulações gigantes para levar 72

a água do Mar da Galileia ao sul do país desértico. Se, por um lado, isso ajudou a desenvolver a agricultura no Sul, por outro ajudou na crise pela qual o país passa. No começo dos anos 2000, Israel também embarcou em uma política ambiciosa de dessalinização de água do mar para evitar que faltasse água nas casas dos israelenses, que consomem 2,1 bilhões de metros cúbicos de água por ano. O país, no entanto, só tem à sua disposição 1,2 bilhão. Para resolver essa equação, é preciso economizar e ser criativo. Atualmente, Israel tem cinco usinas de dessalinização (Sorek, Ashkelon, Ashdod, Palmahim e Hadera). A de Sorek é a maior do mundo, produzindo 624 mil metros cúbicos de água diariamente – 20% do consumo do país. Mais duas plantas serão completadas nos próximos anos. O objetivo é, em 2025, produzir 1,1 bilhão de metros cúbicos de água dessalinizada. O processo de dessalinização envolve tecnologia de membrana, na qual a água salgada é empurrada para dentro de membranas contendo poros microscópicos. A água passa, enquanto as moléculas de sal maiores são deixadas para trás. A chave é capturar os microorganismos em água salgada antes que eles atinjam as membranas para minimizar a obstrução delas. Uma desvantagem da dessalinização é que ela consome muita energia

(consumindo 3% da produção de energia elétrica de Israel) e um subproduto é água muito salgada. Outra área de foco dos israelenses é a de tratamento de aquíferos no solo para reutilização de águas residuais tratadas. O Estado de Israel investe aproximadamente US$ 120 milhões por ano em assistência no desenvolvimento e reabilitação da infraestrutura de esgoto. Israel produz cerca de 470 milhões de metros cúbicos por ano de esgoto puro. Mais de 80% das águas residuais são destinadas para várias aplicações, como reúso na agricultura, na indústria e em plantações públicas. A Espanha, o segundo país mais avançado nesse tema, só recicla, para se ter uma ideia, menos de 20%. OS EUA reciclam apenas 1%. O estrume que sobra da água purificada é transformado quase totalmente em fertilizante biológico. Todo o esgoto produzido por Tel Aviv e outras seis cidades do centro do país, por exemplo, é coletado por uma empresa coletiva, a Shafdan, em Rishon LeZion, e reaproveitado para fins agrícolas no deserto do Neguev. A Shafdan coleta as águas residuais, filtra duas vezes – a segunda com micro-organismos -- e as deixa tão limpas que é seguro até mesmo bebê-las, embora sejam utilizadas apenas para a agricultura. Com ajuda de 120 km de tubos subterrâneos, a empresa coleta e limpa 400 mil metros cúbicos de esgoto diariamente, o que significa que mais de 50% da água


Lavouras irrigadas nas proximidades de Eilat: sistema de gotejamento foi desenvolvido em Israel e exportado para todo o mundo

A NAÇÃO STARTUP Nos últimos cinco anos, as startups israelenses voltadas para o setor de agricultura e alimentação receberam US$ 759 milhões em investimentos. Foram, no total, 278 contratos realizados, mostrando uma atividade impressionante para um país pequeno e com pouca área cultivável. Os dados fazem parte do recém-lançado Israel AgriFood Tech Startup Investing Report, primeiro levantamento sobre o cenário local realizado pela empresa americana AgFunder, referência global no setor, em colaboração com a organização israelense Start-Up Nation Central. Segundo o levantamento, o destaque ficou com as empresas que desenvolvem sistemas de gestão para as propriedades, sensores e aplicações de IOT, que levantaram mais de US$ 548 milhões no período. O interesse por elas viria do alcance global já obtido por algumas companhias locais e, sobretudo, pelo entendimento de que elas combinam conhecimento do setor de produção, apoio de instituições agronômicas de qualidade e tecnologias de ponta em áreas como análise de dados, uso de imagens aéreas e de satélite, desenvolvidas em função dos investimentos do país no setor de defesa.

utilizada para a agricultura, em Israel, é oriunda de águas recicladas. “Nosso produto é distribuído gratuitamente para os agricultores”, diz Yuval Selah, engenheiro-chefe da Shafdan, explicando que a água purificada não pode ser usada em plantações de frutas e legumes que crescem junto à terra, mas é liberada para alimentos que crescem em árvores, campos de algodão e de outros produtos não alimentícios e cultivo de flores. Na primeira visita de uma autoridade do governo Jair Bolsonaro a Israel, em janeiro deste ano, o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Marcos Pontes, foi a cinco usinas de dessalinização e estações de tratamento de água e esgoto no país. O objetivo foi colher informações e estudar se

as tecnologias israelenses podem ou não ser implementadas no Brasil. “Ele veio como um mensageiro de Bolsonaro em busca de soluções para a questão da água no Nordeste e muitos outros tópicos. Foi um prólogo para a visita do presidente Bolsonaro”, diz Modi Ephraim, vice-chanceler de Israel para América Latina e Caribe. EXPORTAÇÃO DE TECNOLOGIA Pontes tinha como foco principal as usinas de dessalinização, mas pode tirar grandes lições também do modelo de funcionamento do ecossistema de inovação da Startup Nation, que além da Netafim gerou empresas com alcance global no agronegócio, como a fabricante de defensivos Adama, hoje parte do

grupo ChemChina, que também adquiriu a suíça Syngenta. Com produtos desenvolvidos a partir da estreita relação entre agricultores e pesquisadores, a companhia inovou na formulação de produtos genéricos e ganhou espaço em vários países, inclusive o Brasil. Na nova safra de AgTechs, outras empresas agrícolas israelenses têm despertado atenção internacional. Entre elas está a plataforma de inteligência Taranis, que utiliza imagens de satélite, inteligência artificial, imagens aéreas, Big Data e análises produtivas para monitorar os campos, ajudando os agricultores a tomar as melhores decisões. Desenvolvida por Ofir Schlam, filho de agricultores que fez carreira como desenvolvedor de sistemas PLANT PROJECT Nº14

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Fr

Israel

ISRAEL EM NÚMEROS Área total: 20,7 mil km2

para a área de segurança, ela incorporou tecnologias de uso militar na solução de problemas da produção agrícola. Outro exemplo é a BioView, que utiliza vespas predatórias para controlar outros insetos como um biopesticida. Desse modo, reduz a necessidade de pesticidas químicos em até 70%. Já a Groundwork BioAg utiliza fungos microscópicos para fazer com que as raízes das plantas absorvam mais nutrientes. O fungo penetra a raíz da planta e efetivamente expande essa raíz de modo subterrâneo. Para o professor Uri Shani, ex-diretor da Autoridade de Águas de Israel (2006-10), a principal lição de Israel é outra. Mais além da tecnologia e do empreendedorismo, o que ajuda Israel a crescer é um nível mais baixo de burocracia e, principalmente, de corrupção. “Conheço muitas pessoas empreendedoras no Brasil. De verdade. O problema do Brasil é a burocracia. Em Israel, a burocracia é ruim, mas não como no Brasil. Fora isso, também há a corrupção”, diz Shani. “Eu sempre digo que se pode dividir o mundo de acordo com a relação entre impostos e corrupção. No final das contas, os dois são para o mesmo objetivo: receber serviços. A corrupção é mais eficiente, porque recebe-se um serviço direto e rápido. Mas obviamente que, em nível nacional, é uma tragédia. Em Israel, apesar do que dizem, não há corrupção. Mesmo se tentam, é descoberto rapidamente. Creio que isso é a verdadeira chave do sucesso.” 74

População: 8,8 milhões PIB: US$ 350 bilhões (2017) Participação da Agricultura no PIB: 3% Número de startups AgTech e FoodTech: 700 Total investido em startups do setor entre 2014 e 2018: US$ 759 milhões

LÍBANO SIRIA

MAR DA GALILEIA

TEL AVIV

JERUSALÉM MAR MORTO

FAIXA DE GAZA

EGITO

JORDÂNIA

DESERTO DE NEGEV


Jeep Compass, um dos SUVs mais vendidos no Brasil: Categoria passa por transformações e cai no gosto dos consumidores do campo e das cidades

W WORLD FAIR

A grande feira mundial do estilo e do consumo

foto: Divulgação PLANT PROJECT Nº14

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W WORLD FAIR

A grande feira mundial do estilo e do consumo

UM SUV PARA CHAMAR DE SEU Por que todo mundo quer um utilitário esportivo e as montadoras aumentam o cardápio de ofertas de SUVs? Por Sergio Quintanilha

Lamborghini Urus: modelo de R$ 2,4 milhões teve cinco unidades vendidas nos dois primeiros meses de 2019 no Brasil 76


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W Automóveis

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ocê adora SUV, mas não usa o carro na lama ou mesmo em estradas ruins? Quer um SUV, mas não quer a sensação de estar dirigindo um caminhão? Tudo bem, isso é normal. Assim como você, milhões de pessoas adotaram os SUVs (sigla para Sport Utility Vehicles) como o tipo de carro perfeito para usar na rua, na chuva ou na fazenda. Esse movimento começou nos anos 1980, foi reinventado no final do século 20 e conquistou corações e mentes no século 21. Ninguém mais resiste ao charme, à bravura e à versatilidade dos SUVs. No Brasil, por exemplo, as vendas dessa categoria (24,6%) só perdem para as vendas de hatches pequenos (35,3%), segundo o ranking da Fenabrave (Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores). Mesmo assim, no segmento de luxo, os SUVs são insuperáveis. Carros como Porsche Cayenne, Jaguar E-Pace e Volvo XC60 vendem muito mais do que modelos clássicos como Porsche 911, Jaguar XE e Volvo V40. Por isso, a variedade de SUVs disponíveis no mercado é cada vez maior. Não apenas a variedade, mas também a utilidade. Na origem, um SUV nada mais era do que uma perua sobre o chassi de uma caminhonete. Por isso, até recentemente, os SUVs eram considerados “comerciais leves” pela legislação brasileira. Assim eram veículos como o Nissan Pathfinder e o Jeep Cherokee, dois desbravadores desse mercado no Brasil. Porém, o gosto dos consumidores por esses veículos robustos aumentou tanto, em todo o mundo, que os fabricantes acabaram transformando-os em carros normais. Inicialmente, os SUVs mantiveram a robustez e a capacidade off-road, mas ganharam conforto, um 78

item que faltava nos veículos originais. Os SUVs tinham a carroceria montada sobre duas longarinas que unem os eixos dianteiro e traseiro. Mas esse tipo de veículo é instável, desconfortável, sua dirigibilidade lembra a de um caminhão. Por isso, alguns fabricantes abandonaram a construção sobre chassi e adotaram a carroceria tipo monobloco, que é uma peça de aço única montada diretamente sobre os eixos. Isso melhorou a segurança e deu aos SUVs um comportamento dinâmico parecido com o de um automóvel normal. Ainda assim, mantinham grande altura do solo e também o teto bem alto. E suas linhas eram retas, valorizando mais a praticidade do que a aerodinâmica e a beleza exterior. O BMW X5 foi o precursor desse tipo de carro. Isso não resistiu por muito tempo. As montadoras logo perceberam que a forma era mais importante do que o conteúdo para a maioria dos consumidores. As pessoas não queriam carros altos e capazes de enfrentar qualquer terreno, mas sim carros com posição de dirigir elevada e que transmitissem uma sensação de poder no trânsito. Assim, os SUVs ficaram mais baixos em relação ao solo e ganharam formas mais aerodinâmicas, porém com a posição de dirigir (que os engenheiros chamam de ponto H) elevada. Foi assim, por exemplo, que o Cayenne salvou a Porsche da falência – e, por consequência, manteve vivo também o baixíssimo esportivo 911 Carrera. Claro que muitos puristas e especialistas torceram o nariz para o Porsche Cayenne. Mas o público adorou. Assim, novos “Cayenne” foram surgindo


em todas as marcas. Não demorou para que a Nissan criasse o conceito de crossover (mistura de SUV com qualquer outro tipo de carroceria) e lançasse o modelo Qashqai, que logo se tornou um sucesso mundial e foi copiado. O Nissan Qashqai é uma mistura de hatch com SUV. Perfeito para uso na cidade. No Brasil, a Ford foi a primeira a perceber o potencial desse mercado e lançou o EcoSport, que nada mais era do que um Ford Fiesta elevado e reforçado para ganhar imagem de SUV – com um detalhe: era acessível ao grande público, ao contrário dos chamados “jipões”. Por incrível que pareça, a Ford ficou sozinha nesse mercado durante dez anos. Hoje, porém, todas as marcas têm o seu “Qahsqai”. A própria Nissan tem o Kicks, a Honda tem o HR-V, a Citroën tem o Cactus, a Volkswagen acaba de lançar o T-Cross, baseado no Polo. O interesse pelos SUVs é tão grande que a Renault arriscou apresentar o pequeno Kwid como “o SUV dos compactos”. Um exagero, sem dúvidas, mas ainda assim o modelo tem feito sucesso nas vendas. REAL VERSUS IMAGINÁRIO Para entender o comportamento do público que deseja um SUV mesmo sem necessidade de possuir um carro desse tipo, é preciso se

aprofundar em leituras que mostrem a construção de valor no imaginário. No livro O que É Imaginário (Editora Brasiliense), os professores François Laplantine (francês) e Liana Trindade (brasileira) fazem uma introdução ao tema, que reúne filósofos de várias vertentes de pensamento. “Para construir o processo do imaginário é preciso mobilizar as imagens primeiras, como dos homens, cidades, animais e flores conhecidas, libertar-se delas e modificá-las. Como processo criador, o imaginário re-constrói ou transforma o real”, afirmam. “O imaginário possui um

O EcoSport, da Ford, e o Qashqai, da Nissan: cada um a seu momento, eles guiaram mudanças no universo dos SUVs

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compromisso com o real e não com a realidade. A realidade consiste nas coisas, na natureza, e em si mesmo o real é interpretação, é a representação que os homens atribuem às coisas e à natureza. Seria, portanto, a participação ou a intenção com as quais os homens de maneira subjetiva ou objetiva se relacionam com a realidade, atribuindo-lhe significados.” É mais ou menos disso que estamos falando quando se trata de dar aos SUVs um valor que, na maioria dos casos, eles não têm. Carros como o Land Rover Discovery Sport, o Jeep Compass 4x4 e o Mitsubishi Pajero realmente entregam toda a essência dos utilitários esportivos, porém modelos como o Honda HR-V, o Hyundai Creta e o Renault Captur oferecem apenas a posição elevada, o visual marcante e o imaginário do utilitário-esportivo para seus proprietários. Por isso, na hora de comprar um SUV, também vale a pena analisar o custo/benefício de adquirir certas tecnologias que jamais serão usadas. Isso seria a compra racional. Mas a maioria das compras é emocional – nesse caso, novamente o 80

imaginário impõe o seu valor e faz o sucesso dos carrões das marcas de luxo. O primeiro SUV que se popularizou no Brasil foi o Willys Rural. Era montado sobre o chassi do Jeep Willys, que tinha também uma versão caminhonete. O carro era chamado de “perua Rural” e tinha tração 4×4 com reduzida. Nos Estados Unidos, o Willys Rural foi substituído pelo Jeep Cherokee. Outro SUV pioneiro no mercado americano é o Chevrolet Suburban, uma enorme perua montada sobre chassi de caminhonete. Hoje, somente três carros à venda no Brasil mantêm esse, digamos, “DNA de dinossauro”, ou seja, a fórmula da carroceria montada sobre chassi: o Toyota SW4 (irmão da picape Hilux), o Chevrolet Trailblazer (irmão da picape S10) e o Mitsubishi Pajero Sport (geração antiga do Pajero Full). Mas o desaparecimento desse tipo de carro é tão certo como a morte do Sol – só que não vai levar 5 bilhões de anos para acontecer. A General Motors já apresentou a nova geração do Trailblazer, produzida no

Canadá. Ele se transformou totalmente e mais parece um Chevrolet Camaro do que uma S10. Nos EUA, a Ford chocou o mundo recentemente ao revelar um Mustang-SUV. O carro tem carroceria cupê (a nova onda dos SUVs) e antecipa o que a montadora quer para o seu futuro. Claro que o carro não tem nada a ver com a esportividade do Mustang, mas o visual do modelo mais icônico da marca mostra que ela não quer mais saber de carros tradicionais como o Focus, o Fusion e o Fiesta em alguns mercados. Não menos chocante foi a atitude da Mitsubishi de recriar o mitológico Eclipse (um esportivo adorado no mundo inteiro e que foi produzido de 1989 a 2011) como um... SUV!!! O Mitsubishi Eclipse Cross chegou e já ganha novos adeptos, enquanto os fãs do antigo Eclipse roem as unhas. No ano passado, foi a vez de a Lamborghini reescrever a história dos SUVs, ampliando seus limites. O supercarro, que usa um motor V8 biturbo 4.0, acelera de 0 a 100 km/h em 3,2 segundos e vai de 0 a 200 em 12 segundos. Nada mal para um modelo de duas toneladas. Mas,


Automóveis

16 SUVS DOS SONHOS CARRO

POTÊNCIA

Audi Q7 BMW X6 Chevrolet Trailblazer Ford Edge Hyundai Santa Fe Jaguar F-Pace Jeep Compass 4x4 Kia Sorento Lamborghini Urus Maserati Levante Mercedes GLS Peugeot 3008 Porsche Cayenne Toyota SW4 Volkswagen Tiguan Volvo XC90

por incrível que pareça, o Lambo Urus também tem enorme capacidade off-road. Com isso, a Lamborghini espera simplesmente dobrar o seu volume de vendas de 3.500 para 7 mil unidades anuais. No Brasil, já foram vendidos cinco exemplares do Urus nos primeiros dois meses deste ano. A marca italiana se vangloria de ter inventado o “Super-SUV” nos anos 1980 – uma referência ao modelo LM002, construído para uma concorrência do Exército americano nos anos 1970. O carro foi um fracasso de vendas, mas ficou conhecido como Lambo Rambo. No ranking global dos SUVs, o Toyota RAV4 roubou o primeiro lugar do Honda CR-V. Segundo os números da consultoria Focus2Move, o RAV4 vendeu 800.676 unidades no ano passado, contra 754.417 do CR-V. Em terceiro aparece o Volkswagen

333 306 277 335 270 250 170 172 650 350 258 165 300 163 150 320

cv cv cv cv cv cv cv cv cv cv cv cv cv cv cv cv

PREÇO BÁSICO R$ 424.890 R$ 473.950 R$ 181.990 R$ 299.000 R$ 196.702 R$ 326.700 R$ 156.990 R$ 166.990 R$ 2.400.000 R$ 690.000 R$ 505.900 R$ 145.990 R$ 389.000 R$ 154.380 R$ 128.990 R$ 299.950

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Toyota SW4, Porsche Cayenne (na página Anterior) e o Willys Rural (abaixo): terá sido ele o precursor de toda a categoria?

Tiguan, com 718.773 unidades. Um dado interessante no ranking global é que dos dez SUVs mais vendidos do mundo, nenhum faz grande sucesso no Brasil, provavelmente pelo preço. Apesar do sucesso dos SUVs, todos aqueles que amam o carro baixo, dinamicamente perfeito, de aerodinâmica impecável, continuam resmungando. Não dão o braço a torcer! Por mais que a Porsche tenha aperfeiçoado a qualidade dinâmica do Cayenne, por mais que a BMW tenha feito inúmeros sucessores esportivos para o X5, como o X6M, o X4 e o próprio X5M, por mais que a Mercedes tenha nos dado um GLE Coupé com a impecável qualidade da mecânica AMG, por mais que a Land Rover tenha provado com o Evoque que um SUV pode ser esportivo e até conversível (!), continuam, todos, torcendo o nariz para os SUVs! Você se importa com isso? PLANT PROJECT Nº14

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CORDEIROS NA REDE O jovem empresรกrio Guto Quirรณs usa a tecnologia, o entretenimento e as redes sociais para difundir o consumo da carne premium de ovinos e influenciar novos criadores a entrarem na atividade Por Luiz Fernando Sรก

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Perfil

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a tela, tudo está no lugar. O jovem com visual moderno, discurso afinado, diante de um cenário que parece desenhado à mão. Tudo está no lugar, como deve ser para promover um produto. A questão é o que se vê quando as câmeras não estão na Cabanha Oviedo, uma bucólica propriedade de pouco mais de 500 hectares, encravada em uma paisagem serrana de Morungaba, na região de Amparo, a cerca de uma hora de São Paulo. Guto Quirós, o protagonista da série de vídeos Na Cabanha, transformou o local em uma espécie de showroom de seu projeto de construir os pilares de uma ovinocultura premium no Brasil. “Quero transformar uma commodity em uma experiência. Acredito que podemos agregar valor através de um case diferente.” Os 1.500 ovinos da raça Poll Dorset criados ali são personagens dessa história, cujo roteiro combina técnicas de produção, comunicação e marketing digital com o objetivo de colocar a carne de cordeiro no radar dos consumidores brasileiros. Está tudo bem amarrado no plano de negócios desse empreendedor/ palestrante/youtuber, que discorre naturalmente entre termos típicos do ambiente rural e da pecuária ou expressões do ambiente corporativo e do mundo das mídias sociais. Num minuto ele está tratando de pastagens e silagem. No seguinte, de engajamento, audiência, Instagram etc. É assim, servindo de ponte entre dois universos nem sempre conectados, que Guto Quirós, administrador formado pela Fundação Getulio Vargas, procura se posicionar como um jovem líder do setor, com perfil contemporâneo e atuação em entidades empresariais como o Lide – é atualmente

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presidente do Lide Jovem na região de Campinas – e a Fiesp. E também uma boa dose de storytelling, termo moderninho usado pelos especialistas em comunicação para definir a narrativa usada para contar uma história. Nesse quesito, também, o case da Cabanha Oviedo e seus cordeiros de qualidade está afinado. Guto Quirós é membro da quarta geração de uma família com origem em Oviedo, cidade da região das Astúrias, norte da Espanha, famosa pela qualidade de suas sidras, pela ovinocultura e pela pecuária. Lá, há a cada ano, sempre no primeiro domingo de julho, o Festival do Cordeiro. Cada produtor leva seu melhor animal para ser compartilhado em um banquete comunitário – há mais de 100 anos os Quirós, também ovinocultores, participam do evento. A trajetória brasileira dessa história começou em 2009, pelas mãos de Priscilla, irmã de Guto Quirós. Foi ela quem iniciou o projeto, se propondo a seguir a tradição familiar de produção artesanal e fazer da propriedade da família a primeira a produzir cordeiros de forma orgânica e sustentável. Trouxe da Nova Zelândia e Austrália as matrizes e os machos reprodutores, buscou as melhores variedades de pastagens e passou a formular na própria fazenda a silagem para a alimentação do rebanho. O pasto escolhido foi o Aruana, de origem sulafricana. “É o melhor que existe para essa finalidade, com 17% a 19% de nível proteico, enquanto a braquiária normalmente usada no Brasil tem 11%.” A água dos cochos é fornecida por 15 nascentes de água mineral existentes na área da cabanha. “Temos três galpões térmicos, centro de manejo, fábrica de ração e laboratório”, explica Priscilla. PLANT PROJECT Nº14

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“A Poll Dorset é uma raça prolífica, leiteira, que produz cordeiros o ano todo e tem excepcional carcaça (comprida, light e precoce) e adaptabilidade a diferentes altitudes, climas e alimentos.” O passo seguinte foi transformar o sobrenome em marca. A carne produzida na cabanha ganhou o rótulo Quirós Gourmet e começou a ser oferecida a restaurantes e açougues-butique. O mercado era restrito demais para as ambições da família. Foi então que Guto juntou-se à empreitada, trazendo os conceitos de marketing para a empresa. Primeiro, para lançar as vendas online, em 2010. “A pergunta que fazíamos era: como vender? Nossa opção inicial foi uma espécie de comunicação de guerrilha, com o mote ‘da minha família para a sua mesa’.” Nos últimos anos, no entanto, o modelo foi aperfeiçoado e profissionalizado, migrando forte para redes sociais como Instagram, YouTube e WhatsApp. A participação do e-commerce no faturamento, hoje na casa dos R$ 8 84

milhões anuais, saltou de 6% para 60%. “A comunicação é para mostrar o que estamos fazendo”, diz Guto. “Passei os últimos anos debatendo, brigando. Agora, a estratégia é levar conhecimento com entretenimento.” A receita adotada levou Guto para a frente das câmeras e apostou em uma associação que parece óbvia, mas que poucas vezes é explorada: gastronomia (leia-se churrasco) / agronegócio / empreendedorismo. Desenvolto e habilidoso, ele passou a comandar uma série semanal de vídeos em que ora pilota grelhas e panelas, ora faz comentários sobre temas do agronegócio. Ele mistura trilha de música pop com fogo no cupinzeiro, método tradicional dos tropeiros paulistas, sempre com a Cabanha Oviedo ao fundo. O modelo caiu no gosto de um público mais amplo. Guto atingiu a marca de 14 mil inscritos em seu canal no YouTube e possui 119 mil seguidores em seu perfil no Instagram. São números expressivos no universo do agronegócio. Mas há um imenso


trabalho a ser feito para atingir os objetivos do empresário. “Nossa meta é criar uma cultura em torno do consumo da carne de cordeiro. Antes de ter acesso a ela, acreditamos que o consumidor precisa conhecer sua versatilidade e benefícios.” Então, criada a demanda, há novos desafios, também culturais, a serem vencidos junto a toda a cadeia da ovinocultura, como criar padrões de produção, abate e cortes. A atividade é exigente e lida com um animal sensível, que requer manejo qualificado. Um cordeiro é abatido com cerca de 40 quilos, mas seu rendimento líquido fica em torno de 13 quilos, o que mostra a necessidade de eficiência na gestão dos rebanhos para se conseguir boas margens. Além disso, há a concorrência com a carne importada, que hoje abocanha mais de 70% do mercado. “É difícil ter volume com um bom padrão de produção”, afirma Guto. Tão desafiador quanto fazer o consumidor comprar é convencer mais

produtores a ingressarem nesse negócio, permitindo uma popularização da carne ovina no mercado brasileiro. A escala é fundamental para reduzir custos e preços ao consumidor e, por isso, a Quirós Gourmet tem se preocupado em expandir sua atuação para além das cercas da Cabanha Oviedo. Além da produção própria, a marca busca criadores parceiros com a genética Poll Dorset e com os mesmos conceitos de manejo na região e no sul do País para incrementar a oferta de carne premium. A estrutura da fazenda vem sendo preparada para dobrar o rebanho para 3 mil cabeças – e futuramente atingir um total de 5 mil matrizes, número considerado máximo para manter ali as características de “fazenda-conceito”. E, como está nos planos de Guto para breve, permitir aos interessados visitarem e experimentarem o seu produto ao vivo em seu belo cenário. “Vivemos a era do sentimento. A experiência tem de envolver 100% o consumidor”, diz. PLANT PROJECT Nº14

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W Consumo OS PÉS NO FUTURO INSPIRADO PELA NECESSIDADE DOS ATLETAS, DE AFROUXAR E APERTAR OS CADARÇOS DURANTE UMA PARTIDA DE BASQUETE, A NIKE DESENVOLVEU O HYPERADAPT, COM SENSORES QUE ANALISAM A PISADA E OS MOVIMENTOS DO SEU PÉ PARA AJUSTAR AUTOMÁTICA E ELETRONICAMENTE A PRESSÃO E OS CADARÇOS. PREÇO PREVISTO NO LANÇAMENTO: US$ 350,00

EU, ROBÔ O CLOI SUITBOT NÃO É EXATAMENTE UM TRAJE. TALVEZ SEJA MELHOR DEFINIDO COMO UM INSTRUMENTO DE TRABALHO, DESENVOLVIDO PELA COREANA LG PARA DAR UMA FORÇA EXTRA A QUEM PRECISA. APÓS “VESTIR” O EQUIPAMENTO, SEMELHANTE A UM EXOESQUELETO, TRABALHADORES COM DIFICULDADES DE LOCOMOÇÃO OU QUE MANIPULAM CARGAS PESADAS SE TRANSFORMAM EM “ROBÔS”, COM MAIOR CAPACIDADE DE ALONGAMENTO DAS ARTICULAÇÕES E MAIOR CAPACIDADE PARA SUPORTAR PESO. O PROTÓTIPO É O PRIMEIRO DE UMA SÉRIE QUE A LG DESENVOLVE PARA AJUDAR A VIDA DOS TRABALHADORES.

TECNOLOGIA PARA VESTIR

Calçados e roupas dotados de sensores e conectados a aparelhos eletrônicos ganham espaço nos guarda-roupas modernos Por Rafael Lescher

SOM E IMAGEM IMAGINE ÓCULOS ESCUROS QUE PROTEGEM SEUS OLHOS DOS RAIOS DO SOL, PERMITEM OUVIR MÚSICA SEM USAR FONES E ATÉ MESMO AJUDAM COM DIREÇÕES DE GPS. É EXATAMENTE ISSO QUE A BOSE, UMA DAS MAIS RENOMADAS MARCAS DE FONES DE OUVIDO NO MUNDO, DECIDIU FAZER. COM UM DESIGN ELEGANTE E O SISTEMA DE SOM BEM ESCONDIDO, OS BOSE FRAMES FARÃO SUCESSO COM AQUELES QUE QUEREM CURTIR UM SOM SEM CHAMAR ATENÇÃO. US$ 199,95 (BOSE.COM)

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JAQUETA ESPERTA CRIADA PELA GOOGLE EM PARCERIA COM A LEVI’S, A JAQUETA COMMUTER TRUCKER JACQUARD TRAZ UM DESIGN CLÁSSICO, QUE NÃO REVELA A TECNOLOGIA EMBUTIDA NAS FIBRAS EM QUE ELA É PRODUZIDA. O QUE PARECE UM JEANS É, NA VERDADE, UM TECIDO INTELIGENTE, QUE PERMITE A CONEXÃO COM SMARTPHONES. ASSIM, OS APARELHOS PODEM SER COMANDADOS, EM UMA SÉRIE DE FUNÇÕES – COMO NAVEGAÇÃO, CONTROLE DA BIBLIOTECA DE MÚSICAS, ENVIO DE MENSAGENS E RECEBIMENTO DE ALERTAS –, ATRAVÉS DE SIMPLES GESTOS PROGRAMADOS PELO USUÁRIO. US$ 350,00 (HTTPS://ATAP.GOOGLE.COM/JACQUARD/)

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Gastronomia

A maturação do mosto nos tonéis kioke da Yamaroku: início de um processo que cultiva a tradição na produção do molho de soja no Japão 88


O SAMURAI DO SHOYU Produzindo tonĂŠis e molhos de forma artesanal, Yasuo Yamamoto promove o resgate do mais tradicional condimento da gastronomia japonesa Por Tom Schiller (texto e fotos)*

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o longo do período Edo (16031868), as ilhas e o litoral do Mar Interior de Seto tornaram-se centros de produção de alimentos para o restante do país. Outrora um polo da cultura original do Japão e uma pujante zona de navegações, a região passou a ser valorizada principalmente por suas empresas de transporte marítimo e seus alimentos crus. Primeiro veio o ingrediente essencial do sal marinho, que foi produzido em massa em grandes salinas (enden) iniciadas no século 17 em lugares como a cidade de Takehara, na província de Hiroshima – onde grandes variações nos níveis das marés permitiram uma produção barata e eficiente. Em seguida, veio outro produto indispensável – o saquê. Graças ao desenvolvimento revolucionário dos grandes tonéis de madeira, chamados de kioke, o saquê pôde, pela primeira vez, ser produzido em grande escala (até então era feito em pequenas panelas de barro). Então, um grupo de fermentadoras logo começou a fazer saquê perto das excelentes águas de nascentes e dos campos de arroz do distrito de Nada, que fica às margens do

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Mar Interior de Seto, na província de Hyogo. Os alimentos processados eram carregados em barcaças e enviados à nova capital, em Edo-Tóquio, e outras grandes cidades no norte, onde o poder político e social do país então residia. A terceira grande indústria de produção de alimentos a ser estabelecida na região foi a do shoyu, o tradicional molho de soja japonês, na ilha de Shodoshima. Até o início do século 17, os fabricantes de alimentos do Japão já haviam refinado a receita do molho de soja, adaptando-a ao paladar dos japoneses para que ficasse com aroma mais agradável e sabor mais sutil do que a versão chinesa original. Também havia outros benefícios. Como uma forma diluída de sal líquido, era mais barata do que o sal granulado seco e tornou-se uma alternativa na conservação de alimentos. Além disso, sua combinação completa de sabores – salgado, ácido, doce e, especialmente, seu rico sabor umami – fez dele um condimento útil para cozinhar e finalizar os alimentos à mesa. Rapidamente o molho de soja se tornou um condimento popular entre a


Gastronomia

grande, crescente e cada vez mais urbanizada população do Japão. Para atender à demanda, uma indústria de produtores de molho de soja foi estabelecida na ilha de Shodoshima, reutilizando os grandes tonéis de madeira que os produtores de saquê de Nada haviam descartado após 30 anos de uso. Além de viabilizar a produção em massa de molho de soja, os tonéis kioke se mostraram muito mais importantes na fabricação do molho de soja do que na do saquê. Um motivo para isso era porque os produtores do molho de soja poderiam usá-los por 100 anos ou mais, contra apenas 30 anos para o saquê. Mais importante, as bactérias benéficas presentes nos veios da madeira do tonel são fundamentais para o desenvolvimento do sabor encorpado e rico (o umami) do molho de soja ao longo do período de fermentação de dois anos, necessário para fazer um molho de soja de alta qualidade. Um bom saquê, por outro lado, é fermentado por um período muito mais curto, entre 30 a 45 dias, deixando menos importante o tipo de recipiente utilizado. Shodoshima foi o principal produtor de molho de soja durante a maior parte do período Edo. Segunda maior do Mar Interior de Seto, a ilha era um grande produtor de sal marinho e também tinha grandes reservas de água doce, dois dos ingredientes essenciais para o molho de soja. Além disso, a

ilha estava convenientemente localizada nas principais vias de transporte marítimo, garantindo fácil acesso aos carregamentos de soja e trigo (os outros dois ingredientes principais do molho de soja) cultivados na região e possibilitando o embarque de molho de soja acabado. Em seu auge, havia, em Shodoshima, centenas de produtores de molho de soja usando milhares de tonéis kioke. Com o tempo, os produtores da ilha foram suplantados por produtores de molho de soja localizados ao norte de Edo-Tóquio. (O molho de soja sempre foi um condimento mais popular no frio norte do Japão, em parte porque a região não consegue produzir facilmente sal marinho natural.) Ainda hoje Shodoshima tem o maior número de tonéis kioke do setor – 1.000 dos cerca de 3 mil ainda em uso para a produção do molho de soja. Infelizmente, porém, muitos dos fabricantes locais sacrificaram a qualidade do seu produto usando farelo de soja importado dos EUA e Canadá, que teve seu óleo e grande parte dos nutrientes retirados, e/ou estão abreviando o tempo de fermentação para menos de dois anos necessários para fazer um molho de soja com sabor encorpado. Há, porém, um produtor local que se destaca. Yasuo Yamamoto, da Yamaroku Soy Sauce, faz o molho de soja à moda antiga, com ingredientes totalmente naturais, de alta qualidade, e com

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Yasuo Yamamoto, o artesão do shoyu: para ele, quem faz todo o trabalho são os mais de 300 tipos de esporos de bactérias presentes na sua propriedade

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longo período de fermentação. E, o principal, está liderando um esforço nacional para renovar a arte de fabricar tonéis kioke e consolidar o papel deles como um ingrediente-chave na produção de molho de soja fino. Yasuo está demonstrando a importância dos tonéis kioke, confiando neles e nas bactérias benéficas que vivem dentro deles para produzir um shoyu clássico, com sabor único, que tem profundas e deliciosas camadas de riqueza umami. TONÉIS DA TRADIÇÃO A Yamaroku fica num labirinto de ruas estreitas, ladeadas por impressionantes muros construídos com o granito das montanhas escarpadas que se erguem atrás da fermentadora. Há outros fabricantes de molho de soja naquele tranquilo bairro residencial, porém os grandes produtores da ilha, incluindo a Marukin, quinto maior produtor do Japão, ficam mais ao sul, na movimentada cidade de Shodoshima – localizada às margens da Baía de Uchinomi, na região de um parque temático chamado Soy Sauce Village. A Yamaroku é uma operação menor, muito mais tradicional, e os seus 66 tonéis de madeira ficam num galpão ao lado da residência da família. O negócio começou há cerca de 150 anos e Yasuo é a quinta geração dessa família a produzir shoyu. Ele é um artesão dedicado que faz tudo sozinho à mão. Mas não 92

acredita ser o único trabalhando. Há 300 tipos diferentes de esporos de bactérias benéficas vivendo na fermentadora – nos antigos tonéis kioke, nos deques de madeira que os cercam e nas paredes, vigas e telhado do prédio – e ele os considera como os verdadeiros agentes que fermentam o molho de soja e dão a ele um sabor encorpado e rico. Yasuo acredita que seu papel é nutrir e cuidar delas. Sua função é fornecer a elas os melhores grãos de soja, trigo, sal marinho e água e também os tonéis kioke para que possam viver e fazer sua mágica na fermentação, e intervir o mínimo possível no processo de produção do molho de soja. Yasuo começa a fazer novos molhos de soja a cada inverno,

de novembro a março, quando o ar frio é puro e as baixas temperaturas permitem que os esporos comecem a trabalhar suave e lentamente. Sua filosofia de que o bom shoyu deve ser aquele pretendido pela natureza, e não o resultado do trabalho de um produtor, está refletida em cada etapa de seu processo. Primeiro, produz o koji inicial, misturando grãos de soja cozidos no vapor e trigo torrado com o fungo koji-kin (Aspergillus oryzae), deixando essa mistura maturar por dois dias, sem tocá-la. Produtores de molho de soja geralmente maturam o koji por três a quatro dias, constantemente rastelando, afofando e trabalhando-o com outras técnicas desenvolvidas internamente. Depois desses dois


O templo Eikoji, próximo da fábrica da Yamaroku, e a entrada do principal pavilhão da empresa: viagem no tempo

dias, Yasuo mistura o koji com sal marinho e água nos tonéis kioke, criando o principal mosto de fermentação, chamado moromi. Novamente, deixa os esporos fazerem sua parte pelos meses seguintes. Ciente de que são organismos vivos, Yasuo vai à fermentadora todos os dias "para cumprimentar e conversar com eles". Ele diz que eles, por sua vez, "percebem que há alguém lá". A fermentação de ácido lático ocorre durante essa primeira fase de produção do molho de soja, e o galpão é tomado pelo aroma de maçãs, bananas e melões. Na primavera, quando o tempo esquenta, as leveduras saem, e Yasuo mexe de vez em quando o moromi para dar ar às leveduras e ajudá-las a crescer. No verão, o cheiro de chocolate preenche o galpão e Yasuo mexe o moromi com maior frequência para ajudar a vigorosa fermentação do ácido lático e das leveduras. Quando o inverno retorna, os esporos novamente se acalmam. O moromi é deixado nos tonéis para passar por pelo menos mais uma vigorosa fermentação de verão. Durante esse período

ocorre a sacarificação completa, e o aroma de bebida alcoólica predomina. Ao final do segundo ano, só de olhar para ele, Yasuo sabe que o shoyu está pronto. Ele filtra e prensa o moromi usando uma máquina antiga, que espreme até a última gota de molho de soja do mosto para obter todo o seu sabor e riqueza. Outros produtores artesanais podem gotejar levemente o molho de soja ou pressionar o mosto a menos de 100% para criar um produto mais refinado. Yasuo então pasteuriza o molho de soja a uma temperatura relativamente baixa – entre 70 e 72 graus no inverno e 69 a 70 graus no verão – para estabilizá-lo e ainda assim preservar ao máximo os sabores criados pelos esporos. Assim que o molho de soja atinge essas temperaturas, ele corta o aquecimento. O molho de soja está pronto para ser envasado. A cada inverno, ao final de janeiro, após preparar os novos lotes de molho de soja e os lotes antigos terem entrado em estado de dormência, Yasuo fabrica os tonéis kioke. Os tonéis que ele faz para si e para outros produtores

de molho de soja estão ajudando a preservar a tradição de fazer molho de soja de alta qualidade. Os tonéis hoje em uso no Japão têm uma média de idade de 75 anos e podem ser usados por no máximo mais 50 anos. Além disso, seu número vem diminuindo porque a maioria dos fabricantes de alimentos fermentados passou a usar, ao longo do último século, tanques de aço mais eficientes. Como consequência, existem hoje apenas dois fabricantes de tonéis kioke no país e seus mestres fabricantes de tonéis estão ficando velhos. Em 2012, Yasuo tornou-se aprendiz de um desses mestres, Takeshi Ueshiba, da Fujii Wood Work, em Sakai, província de Osaka. No ano seguinte, ele começou a fazer tonéis nos fundos de seu galpão e, desde então, realiza um evento anual de inverno, durante o qual voluntários de todo o país vêm ajudar e aprender com ele. Seu impacto tem sido notável. Além de renovar seu estoque de tonéis kioke e garantir o futuro do molho de soja da Yamaroku, ele aumentou a percepção sobre PLANT PROJECT Nº14

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a importância dos tonéis kioke como ferramenta e ingrediente fundamentais para fazer alimentos fermentados de alta qualidade por causa dos milhões de bactérias benéficas que eles abrigam. Outros fabricantes artesanais de shoyu, saquê, mirin, vinagre e missô, entre outros alimentos fermentados, foram inspirados por ele e estão aumentando a utilização de tonéis kioke em seus processos. E, ao compartilhar seu conhecimento sobre a produção de tonéis, deu origem a um número crescente de fabricantes de tonéis em outras pequenas empresas de alimentos fermentados, promovendo um ciclo virtuoso de renovação e expansão da fabricação de condimentos fermentados de alta qualidade no Japão. HISHIO – O ANTIGO NOME DO MOLHO DE SOJA A Yamaroku fabrica uma linha de produtos bastante limitada, refletindo a crença de Yasuo de que é a natureza, e não ele, que produz o molho de soja, e que existe apenas um tipo de shoyu – com longa fermentação de soja, trigo, sal e água. Existe um tradicional molho de soja koikuchi e um molho de soja 94

(ut3) saishikomi com dupla fermentação e maturação extralonga. Embora o sabor do molho de soja de Yasuo mude a cada ano, às vezes de forma sutil, às vezes de formas mais significativas, ele sabe como misturar os lotes para criar um sabor consistente. O molho de soja tipo koikuchi feito por Yasuo é chamado de Kiku-Bishio. (Bishio é uma corruptela de hishio, que é o nome antigo do molho de soja). Tradicionalmente envelhecido por dois ou dois anos e meio, ele é feito com alguns dos melhores grãos de soja no Japão, marudaizu kuro-mame (grãos de soja negros, inteiros e redondos) da região de Tamba-Sasayama, a oeste de Kyoto, famosa por cultivar os melhores grãos de soja do país. São grãos ricos, cremosos e amanteigados que transcendem o sabor "de feijão" da maioria dos grãos de soja, além de serem particularmente ricos em nutrientes. Eles são tão saborosos e valorizados que são servidos apenas cozidos como um prato especial nas celebrações do Ano-Novo. Yasuo os adquire da Odagaki Shoten e Kane-zan, duas lojas que produzem seus grãos há séculos e são conhecidas pela forma

como cultivam suas plantas e manualmente separam os grãos. O trigo usado é produzido localmente na província de Kagawa, o sal marinho é natural, e a água bruta, carregada de micróbios, não tratada, vem de um poço na propriedade, como era a prática antiga dos fabricantes de molho de soja. Kiku-Bishio é um clássico molho de soja, excepcionalmente bem feito, com uma rica cor vermelho-sangue, salinidade agradavelmente acentuada (a enbun, ou razão salina, é de 14,5%), e profundas camadas de umami. Tem um sabor único da região por causa dos sabores passados pelos esporos no ar, água, tonéis kioke e estrutura do edifício, mas não é o sabor da culinária delicada, leve e balanceada da região. Yasuo preserva a tradição Shodoshima de preparar um molho de soja para o paladar forte e rico do norte do Japão, para onde o molho de soja da ilha era enviado nos séculos passados. O Kiku-Bishio deve ser usado para cozinhar. O sabor salgado, profundo umami e paladar único podem melhorar e enriquecer os alimentos e adicionar complexidade e profundidade de sabor aos pratos. Em sua aplicação mais tradicional,


o molho de soja pode ser usado para conservar alimentos. Ele também pode agregar aroma e sabor a alimentos como peixe grelhado e legumes assados. Por fim, uma colher de chá de KikuBishio é a quantidade perfeita para adicionar um kakushi-aji (tempero secreto ou um sabor oculto) aos refogados. O outro molho de soja produzido por Yasuo é um molho para finalização, que adiciona aroma, cor e sabor aos alimentos à mesa ou nos instantes finais da preparação. Ele se chama Tsuru-Bishio e trata-se de um molho de soja do tipo saishikomi, duplamente fermentado, com maior tempo de envelhecimento. Para prepará-lo, Yasuo parte de um molho de soja envelhecido por dois anos e o mistura com um moromi novo e então envelhece tudo por mais dois anos. A maioria dos fabricantes desse tipo de molho de soja o envelhece por apenas três anos ao todo. A soja é do tipo Enrei híbrida, da província de Toyama, na região de Hokuriku, ao norte do Japão. O trigo é do tipo Haruyutaka híbrido e também é cultivado no norte, em Hokkaido. As duas espécies são híbridas resistentes e ricas em proteínas e glúten, que produzem

o umami. Elas têm a resistência para suportar um longo período de fermentação, que serve para trazer à tona seu melhor sabor. O Tsuru-Bishio é muito escuro, quase preto, e é muito rico, cremoso e levemente adocicado e alcoólico. O enbun desse molho é mais baixo, 13,8%. É um delicioso molho de soja, e o seu aroma rico, adocicado e frutado, nos deixa com fome, enquanto o seu profundo sabor umami o faz querer consumi-lo puro. O “Tsuru-Bishio” confere riqueza a alimentos delicados, porém cheios de sabor, como tofu e peixe cozido no vapor. Ele também pode ser usado em sashimi e combina melhor com peixes ao-zakana de sabor forte, que são peixes ricos e com ácidos graxos. Pode ainda ser regado em saladas, queijos, legumes assados e carnes grelhadas e é uma excelente cobertura para sobremesas – pudins, sorvetes e cheesecake – quando sua leve salinidade e acidez intensificam pratos ricos e doces. Yasuo prepara uma versão ki-age (não pasteurizada) desse molho de soja. A diferença é que o tipo ki-age tem um sabor mais rústico e dá um rápido toque de umami, enquanto o tipo não pasteurizado tem um aroma mais

A produção dos tonéis kioke: Yamamoto preserva a mesma técnica usada há séculos na região e a transmite para as novas gerações

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Vista aéera da região de Shodoshima

suave e mais lento e seu sabor se dissipa mais gradativamente na boca. Yasuo produz duas variedades versáteis de molhos mesclados (blendados). Um é um ponzu clássico, muito bem feito, que mistura o molho de soja Yamaroku com uma gama completa de alguns dos melhores temperos do Japão, incluindo os cítricos yuzu e sudachi, da província de Kochi, açúcar mascavo de cana, da Ilha Tanegashima, alga rausukonbu suave, perfumada e rica, de Hokkaido, e o rico dashi soda-katsuo (atum de cavala), de Kochi. (A maior parte dos dashis no Japão é feita a partir do atum bonito, ou atum gaiado, mais comum, com sabor mais leve.) Ao contrário do ponzu comum, que é simplesmente um condimento salgado-cítrico leve e refrescante, o ponzu Yamaroku é um molho com sabor encorpado que combina todos os elementos de sal, ácido, açúcar e umami dos condimentos. Assim como o ponzu, ele pode ser usado em 96

tofu, saladas, picles e como molho tipo dipping sauce para legumes e carnes levemente cozidos. Por ser encorpado, ter sabor universal e profundo umami, ele também pode ser usado como kakushi-aji para sopas, ensopados, curries e outros pratos assados como nitsuke, oden e sukiyaki e tipos similares de pratos ocidentais assados como um molho tipo "dipping sauce" para alimentos mais pesados como bolinhos gyoza, e como um caramelado para teriyaki e marinado para todos os tipos de grelhados. O outro blendado, chamado “Molho de Tomate Hishio”, é um molho igualmente rico e profundamente saboroso que usa a principal fonte culinária ocidental de umami – o tomate – como base. Os tomates são de um tipo especial chamado Tomates Hishio, cultivados localmente por um agricultor que usa o shoyu-kasu (borra resultante do processo de produção do molho de soja) da Yamaroku como fertilizante para as plantas, o que aumenta o rico e adocicado

sabor dos tomates. Yasuo prensa os tomates em sua fermentadora e os mistura com o molho de soja Tsuru-bishio intensamente rico e levemente adocicado da Yamaroku e acrescenta açúcar, vinagre de maçã, temperos e alho para criar um molho espesso e saboroso que é adocicado, condimentado e picante, além de ter um forte impacto umami. O molho pode ser usado como condimento, como o ketchup em omeletes e hambúrgueres, como um kakushi-aji em Bloody Marys, molho coquetel, gazpachos, salsa, fritadas agridoce e massas, e como marinada e caramelados para todos os tipos de grelhados asiáticos e ocidentais. Combina muito bem com frango e carne de porco. Este é um produto de edição limitada, que está disponível apenas no outono, logo após a colheita dos tomates. *Publicado originalmente no site Oishi So Japan (oishisojapan.com), um blog sobre gastronomia e viagem devotado a apoiar os artesãos da comida japonesa e as comunidades em que eles vivem.


O pau-brasil no ateliê de um arqueteiro: Como os arcos de violino são produzidos de maneira artesanal no centro de São Paulo

Ar ARTE

foto: Michael Dantas/SEC

fotos: Helio Campos Mello

Um campo para o melhor da cultura

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Ar A RTE

Um campo para o melhor da cultura

As baquetas de pau-brasil que serĂŁo transformadas em arco: a madeira possui rigidez e densidade ideais 98


A MÚSICA DAS ÁRVORES Explorada desde o século 16, a madeira do pau-brasil é a mais indicada na fabricação de arcos de violino, um ofício que ainda desperta o interesse de luthiers apesar da escassez de matériaprima e de políticas de preservação da espécie nativa Por André Sollitto | Fotos Rogério Albuquerque

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Música

A

poucos metros do Teatro Municipal de São Paulo, Francisco Silva produz arcos para instrumentos de corda em um pequeno ateliê. É um archetier, ou arqueteiro, responsável por transformar madeira em arcos de violino, violoncelo, contrabaixo e viola da gamba, entre outros. A luz do sol que entra por uma grande janela com vista para a Rua Conselheiro Crispiniano, na zona central da cidade, é suficiente para que o artesão trabalhe. E o processo de construção é totalmente artesanal. As ferramentas são todas manuais, arrumadas em suportes sobre

sua mesa, também de madeira. Cada pedaço da árvore, já cortado no tamanho certo, é desbastado, trabalhado e lentamente assume o formato do arco. O talão, onde o músico segura o instrumento, é feito de casco de tartaruga ou marfim. As crinas vêm de cavalos siberianos, criados especialmente para essa finalidade. Não menos especial é a madeira que Silva trata com carinho. Raro e nobre, o pau-brasil é a estrela dessa atividade pouco conhecida, mas devidamente valorizada por quem faz música. A matéria-prima utilizada no ateliê vem de Pernambuco ou da Bahia – normalmente de estoques antigos, formados quando a legislação era menos rigorosa quanto à exploração da árvore, que já foi símbolo do País. Alguns dos trabalhos do arqueteiro são feitos sob encomenda. Outros ficam expostos em suas paredes, dividindo o espaço com pequenos suvenires de clientes satisfeitos: da partitura de uma canção escrita pelo compositor André Mehmari em sua homenagem a um bilhete manuscrito do grande violinista israelense Itzhak Perlman, contando como recebeu cumprimentos pelo arco. A pequena assinatura que deixa em cada peça mostra o orgulho do trabalho. O SOM DA HISTÓRIA Desde o século 15 o pau-brasil desperta o interesse dos colonizadores europeus, inicialmente por conta de sua pigmentação avermelhada, que permitia o tingimento de roupas. O tom era muito apreciado pela nobreza na época do Renascimento e simbolizava o luxo. O comércio se tornou um monopólio da coroa portuguesa, e os navios abastecidos

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com troncos da árvore eram atacados por corsários, tamanho o valor dado à sua pigmentação. Mas a madeira logo provou ser ainda mais útil. Enquanto os fabricantes italianos de violinos e outros instrumentos se tornaram os mais importantes do mundo, graças ao talento de nomes como Antonio Stradivari (1644-1737), um dos maiores luthiers da história, os franceses assumiram a liderança na criação de arcos para esses instrumentos. François Tourte (1747-1835) foi pioneiro em perceber a qualidade do paubrasil e responsável por diversas mudanças no formato dos arcos – as versões anteriores, usadas no período Barroco, não eram eficientes em novas técnicas que surgiram com os movimentos musicais posteriores. Trabalhando ao lado de virtuoses do instrumento, ele ajudou a definir o formato dos arcos

utilizados até hoje por profissionais do mundo inteiro. A madeira do pau-brasil conquistou os arqueteiros por possuir algumas características anatômicas que a tornam especial para a fabricação de arcos: rigidez e densidade ideais. Forte, mas também flexível para que possa ser moldada no formato adequado quando exposta ao calor. Em teoria, existem outras árvores capazes de fornecer madeiras com características dentro dos parâmetros necessários, como o cumaru (Dipteryx odorata) e algumas espécies do gênero Handroanthus, conhecidas popularmente como “ipês”. Mas a tradição ainda fala mais alto e essas “substitutas” não têm igual aceitação. “Existe um certo preconceito com essas madeiras que não possuem a mesma pigmentação. O ipê tem uma tonalidade amarelada e o

Francisco Silva em seu ateliê: usando apenas ferramentas manuais, ele produz cerca de um arco por semana

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As crinas de cavalo, vindas da Mongólia: Francisco Silva testa cada arco antes de entregar ao cliente

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cumaru, acastanhada. Só pela cor o julgamento da qualidade do arco é prejudicada”, afirma Eduardo Luiz Longui, pesquisador científico do Instituto Florestal cuja tese de doutorado explora justamente o potencial de árvores nativas na fabricação de arcos para instrumentos de corda. Por esse motivo, o pau-brasil continua sendo explorado. Francisco Silva paga cerca de R$ 100 por cada baqueta, nome dado à vareta de madeira usada no processo de fabricação, já cortada a partir do pedaço mais nobre de cada tronco. O valor de um arco finalizado começa em R$ 1 mil. O arqueteiro compra as baquetas de vendedores licenciados, que lhe apresentam os documentos comprobatórios da legalidade daquela madeira. O problema é que nem todos fazem o processo dentro dos conformes. Em

novembro de 2018, o Ibama apreendeu 20.804 arcos feitos ilegalmente. Nove empresas apresentaram irregularidades e duas foram embargadas. No total, a operação desmontou uma serraria, apreendeu nove máquinas e emitiu 12 autos de infração, que somaram R$ 9,7 milhões. Desde 2007, o pau-brasil foi incluído no anexo II da Convenção sobre o Comércio Internacional das Espécies da Flora e da Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (Cites), que estabelece as regras para o comércio controlado, evitando, assim, sua extinção. Atualmente, a madeira só pode ser extraída de planos de manejo ou de estoques antigos, desde que os vendedores apresentem a documentação necessária. Sua inclusão nesse anexo, o segundo de três graus regulatórios (o primeiro, mais exigente, só permite a


Música

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comercialização em ocasiões excepcionais), foi feita para atender a demandas internacionais de regulação, permitindo a livre circulação das orquestras e de seus músicos. FUTURO PARA A ESPÉCIE Existem algumas iniciativas de preservação. A mais importante é feita pela organização International Pernambuco Conservation Initiative (IPCI), com sede nos Estados Unidos e escritórios na Alemanha e no Canadá. No Brasil, desenvolveu um programa em parceria com a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), que adota um sistema de conservação produtiva, em que as árvores fornecem o sombreamento necessário para o desenvolvimento do cacau. No programa atual, mais de 150 mil mudas já foram plantadas, sendo 50% destinadas à produção comercial, 30% para conservação da base genética e 20% para atividades educacionais, cívicas e culturais. Tudo isso ainda é pouco. O problema é o tempo necessário para que a árvore se torne adulta: trata-se de um ciclo de 50 a 70 anos. “Falta empenho de se pensar a longo prazo”, afirma Eduardo Luiz Longui. “Alguma empresa precisava apostar nisso, mesmo sabendo que não teria o mesmo lucro que obteria se continuasse plantando eucaliptos, por exemplo”, diz o pesquisador. Segundo Longui, existe uma PLANT PROJECT Nº14

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Música O ateliê de Francisco, a poucos metros do Theatro Municipal: o archetier trabalha com apenas um assistente, mas sempre recebe mensagens de interessados em aprender o ofício

quantidade considerável de madeira circulando pelos mercados do mundo, suficientes para a produção de muitos arcos por um longo tempo. “Eventualmente, no entanto, vai faltar material”, afirma ele. Um agravante do pau-brasil é o pouco aproveitamento do tronco. Apenas 10% a 12% é destinado a arcos de alta qualidade. O resto é desperdiçado ou usado na fabricação de versões inferiores, voltadas a iniciantes. Um tronco de ipê, por outro lado, tem um aproveitamento muito maior por conta da homogeneidade da árvore, mas a tradição e o preconceito novamente prejudicam sua utilização. Se falta interesse em sua conservação, não se pode dizer o mesmo quando o assunto é a centenária arte de construção de arcos. Francisco Silva trabalha com um aprendiz, que o ajuda na fabricação das peças, mas recebe constantemente mensagens de alunos que querem aprender o ofício. Por falta de tempo, o arqueteiro é obrigado a recusar os pedidos. E isso porque o violino e o violoncelo são instrumentos menos populares que o violão, por exemplo, assim como a música erudita. E, por mais que um arco possa durar décadas nas mãos de músicos, sempre é necessário fazer reparos, trocar as crinas. Ao contrário da madeira do pau-brasil, o ofício está longe de correr risco de extinção. 104


CowTech, a era digital da pecuária: Inovações tecnológicas estão elevando a eficiência da produção de bovinos em todos os sentidos

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STARTAGRO

Imagem: Camila Sá

As inovações para o futuro da produção

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STARTAGRO

As inovações para o futuro da produção

Sistema de pesagem instalado no campo garante praticidade, redução de custos e economia de tempo, além de fornecer diversas outras informações ao pecuarista 106


O COWBOY VIROU COWTECH

A invasão das tecnologias digitais leva a pecuária a uma nova fase, prometendo manejo mais inteligente e expressivos ganhos de produtividade e rentabilidade

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A ndré S ollitto

foto: divulgação Coimma

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Reportagem de Capa

m vez de vaqueiro, um drone. O olho do dono, aquele que engorda o gado, está na câmera ou no satélite. E o próprio gado, através dos movimentos ou até das expressões faciais, “dirá” ao pecuarista como se sente. Nos pastos, nos currais, nos troncos, nas salas de ordenha, em cada espaço das fazendas onde se cria gado, para corte ou leite, uma nada silenciosa revolução digital está transformando a pecuária e as empresas que fornecem insumos para a atividade que, no Brasil, é responsável pelo manejo de um rebanho de mais de 200 milhões de bovinos. Sucesso, na bovinocultura, agora é questão de alta performance. Como nos esportes, em que cada milésimo de segundo pode fazer diferença, desempenho estratégico, inteligência e inovação tecnológica aplicados à gestão do gado têm agora a missão de buscar eficiência nas mínimas variações do dia a dia da propriedade, seja em consumo de água e comida (pasto, silagem, ração ou suplemento mineral), ganho de peso, produção e composição do leite, padrão de qualidade do produto final, seja em eficiência reprodutiva, entre tantos outros pontos. A transformação tem vários nomes, dependendo de quem fala. Para alguns, é CowTech, a tecnologia das vacas. Para outros, Pecuária 4.0, numa analogia à Indústria 4.0, em que sensores e robôs levam as fábricas a um inédito grau de eficiência e autonomia. O princípio é o mesmo: gerar e analisar em tempo real uma imensa quantidade de dados gerados por máquinas inteligentes, permitindo aos empresários a tomada mais assertiva de decisões. Mudam as ferramentas e o ambiente. No campo, lidando com seres vivos, as variáveis são maiores e, com isso, os desafios se multiplicam. A tecnologia encara todos eles e os casos de inovações se multiplicam no setor. Na Embrapa Informática Agropecuária, de Campinas (SP), por exemplo, uma pesquisa iniciada recentemente envolve o uso de veículos aéreos não tripulados, os Vants ou drones, para detecção e contagem de bovinos em sistemas de pecuária extensiva. O objetivo principal do estudo, liderado pelo pesquisador Jayme Garcia Arnal Barbedo, é aprimorar a gestão e o manejo do gado a campo, pois contabilizar o rebanho, ou controlar o estoque, é essencial para uma série de tomadas de decisão do produtor. Fazer isso do alto preserva os animais do estresse do deslocamento. Esse manejo já era feito a partir de imagens de satélite, método que oferece vantagens semelhantes, mas com algumas limitações por conta da distância estratosférica entre o equipamento e os rebanhos, como o fato de não apresentar resolução espacial suficiente para a identificação individual dos animais e a interferência das nuvens. O uso dos drones para tal fim também enfrentará desafios, a começar pela preparação desses dispositivos para que contem os animais um a um, principalmente quando dois deles estiverem muito próximos, e não os confunda com outra coisa, como uma pedra. A expectativa dos responsáveis pelo projeto é que os drones aprendam a driblar esses problemas e a distinguir exatamente o que devem fazer. É o processo chamado de machine learning, quando o equipamento evolui em suas

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Imagem: Camila Sá

funções a partir dos dados que recebe e que são transformados em algoritmo. Neste caso, haverá uma combinação de técnicas de processamento de imagens com softwares desenvolvidos especificamente para esse propósito. A aplicação de drones na pecuária também é tema de um estudo desenvolvido com gado de corte pelo Texas A&M AgriLife Research and Extension Center, departamento de pesquisa da Texas A&M University, nos Estados Unidos. Voltado ao manejo sanitário, o trabalho visa detectar animais doentes ou feridos e, dessa forma, direcionar o tratamento com antibióticos, quando necessário, apenas para esses indivíduos, otimizando e reduzindo a aplicação do medicamento. Por meio de termovisores, ou câmeras térmicas, os drones enxergam no corpo dos bovinos pontos mais quentes, com temperatura acima do normal, que podem ser o sintoma de alguma inflamação. Apesar de ainda estar

em uma fase preliminar, o projeto aperta o passo rumo à pecuária de precisão, seguindo a trajetória da agricultura. No universo CowTech, drones e satélites podem fazer até o papel de vaqueiros. Em fazendas da Nova Zelândia, uma potência da pecuária leiteira, já está em testes um sistema semelhante a um rastreador de veículos, que, por meio do georreferenciamento, determina uma área-limite para o deslocamento das vacas. Todas elas estão equipadas com um colar eletrônico, que produz um leve choque – bem menos intenso que o de uma cerca elétrica – cada vez que alguma das fêmeas tenta sair desse espaço predeterminado. “No total, são quatro avisos. Se já no primeiro o animal que lidera o rebanho for contido, os demais seguirão o exemplo e permanecerão dentro do limite de área”, diz Fernando Rott, gerente comercial no Brasil da Gallagher, empresa neozelandesa especializada em cercas elétricas e responsável pela inovação.

Barbedo, da Embrapa, coordena pesquisa de uso de drones para contagem do gado PLANT PROJECT Nº14

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A Pecuária 4.0 tem dado muitos passos e em várias direções. Para que seja efetiva, depende primordialmente da qualidade na apuração dos dados, rigor que deve ter continuidade nas etapas seguintes, de transmissão e processamento. É aí que entra o diferencial da integração de tecnologias, inclusive seguindo o exemplo de outros segmentos. A Cargill, uma das gigantes globais do agronegócio, vem promovendo uma evolução tecnológica na avicultura brasileira com a plataforma digital Poultry Enteligen, que ajuda a transformar dados em ações. Caso você 110

tenha se perguntado se o foco da matéria não era bovinos, confie que a gente chega lá. A estrutura do sistema é baseada em aplicativos para smartphones, em que o produtor insere informações como peso e produtividade. Posteriormente, elas são transferidas para a nuvem e, sempre que necessário, podem ser acessadas por avicultores e técnicos da empresa. “Para assegurar a agilidade, ficam no celular apenas os dados do lote mais atual, os demais permanecem armazenados na nuvem”, explica Vinicius Chiappetta, diretor global da Unidade de Negócios

Foto: divulgação Cargill

CRIAçÃO DE DADOS


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Identificação dos animais é ponto central para integração das informações sobre produtividade, nutrição, genética, entre outros fatores

Digital Insights da Cargill. “Tudo isso é processado com algoritmo e inteligência artificial. Um dos objetivos é padronizar a produção das aves”, acrescenta Chiappetta. “Avicultores que nem sequer tinham celular compraram seu primeiro smartphone para poder usar o sistema. Foi um incentivo para a atualização”, diz Chiappetta. Ele acrescenta que exatamente por isso tiveram a preocupação de desenvolver aplicativos leves, que trabalhassem offline. Nos Estados Unidos, há também uma versão dessa plataforma para a pecuária leiteira, a Dairy Enteligen, e a ideia é que logo os produtores brasileiros possam contar com a ferramenta. A data ainda não está definida, mas o executivo entende que é melhor não demorar. Outra tecnologia que a Cargill espera trazer ao Brasil é a de reconhecimento facial do gado leiteiro a partir de câmeras instaladas nos galpões do confinamento. Em aplicação nos EUA, no Canadá e na Europa, o sistema já conta com mais de 15 mil vacas monitoradas. “Estamos estudando com parceiros como trazer para o Brasil, talvez no ano que vem”, diz Chiappetta. A tecnologia foi desenvolvida pela startup irlandesa Cainthus, de quem a Cargill é aceleradora, como investidora minoritária. A partir das câmeras, o sistema faz a leitura da imagem do animal e, caso esteja identificado com brinco, até confere se o número

corresponde àquele indivíduo. “O mais interessante é que a tecnologia consegue monitorar o tempo de alimentação, o consumo de água, a frequência de idas ao cocho e ao bebedouro, se há algum comportamento que demanda a intervenção do veterinário, ou seja, faz a observação e a captação de dados 24 horas por dia gerando alertas e insights sobre o que o produtor pode fazer para melhorar a eficiência do rebanho”, descreve Chiappetta. As informações são processadas no servidor instalado na fazenda, e daí surgem os algoritmos que são enviados para a nuvem e ficam disponíveis na internet, podendo ser acessados a partir de um celular. Essa funcionalidade é potencializada pelo cruzamento com dados de produção de leite, por exemplo, índices coletados simultaneamente com o leite nas salas de ordenha. “Às vezes, esses dados estão nos robôs de extração de leite”, comenta o diretor da Cargill. Segundo ele, a empresa aposta em outros meios de captação de dados, como o comando de voz. Um projeto-piloto chamado Pig Voice está sendo testado no ambiente de inseminação artificial da suinocultura. “O produtor pode estar com as duas mãos ocupadas, realizando um processo de inseminação, e ainda assim conseguir registrar os dados sobre a matriz e o reprodutor”, explica.

Chiappetta, da Cargill, diz que a empresa pode trazer ao Brasil tecnologia de reconhecimento facial para vacas leiteiras no ano que vem

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Balança de passagem: software e inteligência artificial interpretam movimentações e geram pesagem precisa

Foto: Divulgação Bosch

TECNOLOGIA EM PESO

Para Dancieri, da Coimma, tão importante quanto o pecuarista ter acesso a muitos dados e saber usá-los nas tomadas de decisão

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Uma das inovações tecnológicas que tem atraído olhares e investimentos na pecuária de precisão é o sistema de pesagem a campo, seja no pasto, seja no confinamento. Em especial porque essa nova modalidade de aferir o peso dos animais traz embarcada toda a tecnologia de digitalização, que vai envolvendo cada vez mais a atividade com inteligência artificial, internet das coisas, transferência de dados online (offline também), ou seja, tudo o que o pecuarista precisa para ter nas mãos dados exatos da

performance do seu rebanho e o poder de administrá-lo à distância. No ano passado, a fabricante brasileira Coimma apresentou ao mercado a plataforma de pesagem BalPass, projeto desenvolvido pela empresa em parceria com a Embrapa Gado de Corte (Campo Grande - MS) e a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Diretor executivo da empresa, Paulo Dancieri Filho conta que a ideia inicial era criar um sistema de pesagem inteligente que ajudasse o produtor. No entanto, no


decorrer do processo, a tecnologia de conectividade passou a ser técnica e economicamente mais viável. “Com isso o projeto acabou se tornando um produto sofisticado de pecuária de precisão, que oferece muito mais do que o peso dos animais em tempo real. É uma verdadeira ferramenta de suporte para tomada de decisão, com inteligência artificial baseada em algoritmos”, explica o executivo. Segundo ele, tudo começa pela confiabilidade da pesagem. Ainda que os animais sejam pesados no campo – a prioridade foi desenvolver o sistema para trabalhar em pastejo –, o objetivo é oferecer ao pecuarista a mesma precisão que teria se fizesse a contenção do animal para pesar. Isso envolve tecnologia da estrutura com plataforma e barras de pesagem, sensores de captação dos dados que reconheçam e descartem quando o boi ultrapassa a plataforma, para evitar que “suje” a medição. Depois vem todo o pacote tecnológico, que envolve placa solar, antena de RFID (identificação por radiofrequência), leitura de identificação e o receptor, que praticamente é um computador com sistema Linux. Aqui, também, a integração das plataformas e, consequentemente, das informações é um grande salto de gestão para o produtor. “O sistema não se limita a uma ferramenta de input de dados. A BalPass é um sistema que está pronto para integrar e falar com o que o pecuarista desejar”,

diz Dancieri, que até criou com alguns sócios uma empresa de software, a Bovexo, para desenvolver programas que possam entender as demandas dos clientes. Mas essa transformação toda não passa apenas por equipamentos e conexões digitais. “A gente sabe que o ser humano é, ao mesmo tempo, neofílico e neofóbico. Deseja o novo, mas tem medo. E ainda temos uma gama significativa de produtores que não sabem eventualmente o que fazer com os dados”, comenta Dancieri. “Nosso desafio vai desde o processo de conseguir dizer que esses dados precisam fazer sentido no contexto sistêmico maior, para que seja de fato útil e ajude o pecuarista na tomada de decisão e tenha impacto em seu negócio. A gente deve ter esse cuidado, de colocar o produto e ao mesmo tempo ajudar no processo educacional para que a ferramenta faça sentido”, analisa o executivo. Esse projeto colocou a Coimma, em 2018, na lista da revista Forbes das dez empresas mais inovadoras do Brasil. A companhia brasileira enfrenta concorrentes com poder global. A alemã Bosch também ingressou nesse segmento, mas com a opção de atender os confinamentos, exatamente por conta do estresse mecânico ao qual o equipamento fica exposto nesse sistema de criação. “São entre oito e dez pesagens diárias por animal, então se considerar um curral com 200 animais, são 2 mil pesagens todos os dias”, calcula

Gustavo Ferro, gerente da área de Negócios de Pecuária de Precisão da Robert Bosch América Latina. Nesse período, a empresa já registrou mais de 9 milhões de pesagens, somando os seis estados onde já atua: Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará e São Paulo. Grande desafio da Bosch foi também assegurar que o pecuarista recebesse uma pesagem precisa de cada animal. A receita também não foi diferente: tecnologia. “Quanto mais animais você coloca na balança, maior é o desafio de captar o peso, pois eles passam em fila indiana, sequencialmente. A tecnologia embarcada, com software e inteligência artificial, é que faz a diferença”, afirma o gerente. É tudo tão milimétrico nessa relação que, ao resolver um problema, surgiu uma nova adversidade. Para garantir que apenas um animal por vez subisse na balança, impedindo que aparecessem seis patas na plataforma, o dispositivo passou por uma redução, o que tornou a pesagem um pouco mais difícil, pois exigiu ainda mais agilidade. “O algoritmo do software reconhece as diferentes curvas e consegue tratá-las de maneira diferente, interpreta tudo isso”, comenta Ferro. Entre as vantagens dessa precisão, o gerente da Bosch destaca o processo de “descascar o lote”, ou seja, de identificar os animais que estão prontos para o abate e retirá-los do confinamento no momento certo, sem depender da ronda diária de um colaborador PLANT PROJECT Nº14

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da fazenda. Além da melhor valorização pelo boi, há uma redução de custo, pois manter no curral um animal que já está terminado é só aumentar o custo sem que ele tenha condições de corresponder. A tecnologia tem contribuído bastante para os negócios de Luiz Venturi, do Grupo Guarujá, que administra 60 mil hectares distribuídos em diferentes propriedades localizadas no Centro-Oeste, onde engorda de 35 mil a 45 mil animais por ano. “A meta é chegar a 50 mil animais abatidos por ano, sendo 35 mil próprios e 15 mil de clientes”, comenta o empresário. Com a pesagem associada à tecnologia digital, Venturi otimizou o manejo alimentar do gado. “Posso ter dois animais consumindo a mesma comida, mas com ganho de peso diferente. Isso pode ser a diferença entre meu lucro ou prejuízo”, avalia. Outro fator positivo desse manejo é o monitoramento do rebanho, inclusive em relação à condição sanitária. Quando não está bem, o animal deixa de comer e até de beber água. E o sistema consegue enxergar esse comportamento, indicando que pode haver alguma complicação subclínica. “Esse olhar sobre as doenças subclínicas vai impactar muito na pecuária daqui para a frente quanto à sanidade animal”, diz Ferro. 114

DE OLHO NO COCHO Foto: divulgação Coimma

Nos cochos, equipamentos medem o consumo de alimentos e registram o comportamento dos animais. O sistema processa as imagens e, se necessário, envia alertas ao produtor

Multinacional voltada à produção de nutrientes, a DSM tem uma propriedade em Rio Brilhante (MS), a Fazenda Caçadinha, onde avalia tudo o que sua equipe descobre de mais inovador na pecuária. Dona da Tortuga, tradicional marca de nutrição animal, a companhia direciona grande parte de seus estudos para o segmento de alimentação. A exemplo dos testes com cochos eletrônicos, que fazem a mensuração

do consumo individual dos animais a pasto. A plataforma tecnológica da Caçadinha tem também balanças automáticas, que pesam o gado diariamente quando vai beber água e ainda fazem uma estimativa da quantidade de água consumida por animal. Esses dados vão todos para o sistema de gestão do rebanho e ficam disponíveis para acesso a qualquer momento. “Isso tudo é online e on time. Pelo celular,


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além do consumo de suplemento e de água, consigo saber quanto cada animal no centro está ganhando de peso”, informa Tiago Acedo, gerente em Inovação e Ciência Aplicada para América Latina no setor de ruminantes. As informações ajudam inclusive a definir o ponto ótimo de abate dos animais, aumentando o poder de tomada de decisão para o pecuarista. “Isso tudo é algo muito novo. Essas tecnologias surgiram para otimizar a coleta de dados em pesquisa e foram crescendo, se tornando mais viáveis economicamente para a prática no campo.” Entre as novidades para mensuração, a DSM também tem usado um sistema de inteligência artificial com base em câmeras tridimensionais, que estimam o peso dos animais a partir de medidas de largura e profundidade. “Essas câmeras são instaladas no confinamento, mas também podem ser utilizadas no pasto, e fazem a estimativa de forma rápida, barata e sem causar estresse ao gado”, comenta Acedo. “Além de conseguirmos mais precisão, mais acurácia no processo, conseguimos comparar o comportamento dos animais. E não precisamos ficar conferindo as imagens, o sistema faz toda a leitura e nos envia alertas e até sugestões para a tomada de decisão.”

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ALIMENTANDO STARTUPS Por conta dessa evolução tecnológica, diz Tiago Acedo, está nascendo um novo setor na pecuária, que é o das empresas que vão desenvolver as soluções tecnológicas, produtos, serviços e sistemas capazes de integrar e analisar. “Esse movimento também está ligado às universidades, pois a criação das novidades passa pela pesquisa”, diz o executivo. A DSM, inclusive, tem contatos e parcerias com diversas AgTechs, as startups do agronegócio, e com universidades, como a University of Wisconsin-Madison, nos EUA. Quando se fala em startups ligadas em agronegócio, a pecuária ainda tem um caminho a percorrer para reduzir a distância em relação à agricultura. Nos levantamentos que mapeiam o ecossistema de inovação no campo, as AgTechs dedicadas à pecuária representam menos de 20% do total. Mas esse cenário está em

plena transformação. “Tratase do principal mercado de commodities, com grande valor agregado”, diz Juliana Chini, responsável pela inteligência de marketing da @Tech, de Piracicaba (SP). A startup foi uma das pioneiras em apostar na Pecuária 4.0. Ela oferece o Beef Trader, algoritmo de monitoramento de animais em confinamento que visa potencializar o lucro do produtor. As soluções voltadas a gestão e controle do rebanho são as mais buscadas pelas empresas novatas, como a Agromarra. Há também iniciativas para comprovar cientificamente a qualidade da carne (BBQ – Brazil Beef Quality), facilitar a venda e a compra de gado (Webgados e Boi na Linha) e analisar dados para melhorar a performance na produção de carne, leite e genética (BovControl). Outros setores, no entanto, ainda são carentes. PLANT PROJECT Nº14

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Cada vez mais, plataformas e ferramentas digitais permitem que o pecuarista acompanhe e interfira na gestão da propriedade a partir de qualquer lugar do planeta

O Animals Hub, criado pela @Tech, surge com a proposta de acolher startups de grau mais avançado de biotecnologia voltada à produção animal, ou que explorem a relação entre animal, solo e plantas. “Queremos acelerar a criação dessa nova pecuária”, diz Pedro Chamochumbi, agente de inovação do Hub. Por conta da multiplicação de oportunidades no setor da pecuária, até empresas que não tinham tradição na área estão começando a se aproximar. A própria @Tech foi selecionada para receber aporte de um fundo criado pela Positivo Tecnologia, de Curitiba (PR), para investimento em startups. O segmento agro foi o primeiro a contar com uma vertical exclusiva dentro do programa da empresa paranaense e a pecuária chamou a atenção nas análises de mercado feitas por sua equipe. “Verificamos que o setor estava mais atrasado na adesão a novas tecnologias”, afirma Graciete Lima, líder da vertical de agronegócios na Positivo. “Mas vimos que haverá uma grande e rápida evolução para a pecuária de precisão. Focamos na área de confinamento, porque o potencial de mercado para novas soluções é global.” 116

DECISÕES À DISTÂNCIA Entre as facilidades da digitalização mais apreciadas pelos produtores está a capacidade de gerenciar a fazenda remotamente. Que o diga o zootecnista e pecuarista Paulo Henrique Vieira Saddi. É ele quem administra as fazendas de sua família, localizadas em Goiás, Pará e Tocantins. Nessa terceira propriedade, que tem cerca de 500 hectares, começou a experimentar uma nova tecnologia para avaliar os índices de consumo de suplementos minerais do gado de corte. Para dar uma dimensão mais exata do que significa essa praticidade, quando atendeu nossa

reportagem Saddi estava na Flórida, nos EUA, acompanhando o torneio de tênis de Miami. “Mas posso olhar diariamente um relatório já todo detalhado, com análises e indicações do que fazer para otimizar a alimentação do gado”, explica o produtor. Saddi está se referindo a um sistema oferecido por sua fornecedora de minerais, a Minerthal, que conecta o cocho no campo, a fábrica dos suplementos e a gestão da fazenda. A conexão entre as informações começa por uma combinação de QR-Codes, um gravado nas embalagens de mineral e outro, no cocho. Por meio de um aplicativo, chamado


de CLICQ, o tratador faz a leitura desses códigos, digita as informações sobre o alimento que ofereceu ao rebanho, pode inserir imagens – tudo isso já com georreferenciamento. “É possível correlacionar o ganho de peso com o produto oferecido, como um proteinado, e fazer uma análise econômica por lote, um índice importante para avaliação do resultado financeiro da fazenda”, explica Sergio Morgulis, diretor da Minerthal. Um bom exemplo da confiança do pecuarista nas inovações tecnológicas é quando ele decide dividir – ou até ceder – seu espaço, ou de seus colaboradores, com um robô na ordenha de suas vacas. Afinal de contas, é preciso ter muita confiança para apostar em um investimento na casa dos sete dígitos antes da vírgula sem que antes possa ver o equipamento funcionando com suas próprias vacas. Pelo que mostram os resultados já registrados nas fazendas e a maior procura pelo sistema robotizado, dentro e fora do Brasil, está valendo a crença na positiva relação custo/ benefício. Os ganhos com os robôs aparecem de diversas formas. Uma delas é o próprio conforto dos animais, que seguem para a ordenha por conta própria, quando têm vontade, com menor risco de estresse. A partir daí a máquina assume o comando do manejo, faz a higienização dos tetos e do úbere, posiciona e coloca as teteiras e inicia a retirada do leite. Esse minucioso processo reduz os

riscos de problemas sanitários, beneficiando a longevidade das vacas, e impacta nos índices de volume e qualidade da produção. Cada etapa desse procedimento também se transforma em informação, pois o robô ordenhadeira ainda lê a identificação de cada animal e integra os dados ao histórico da vaca correspondente. Não é incomum o rebanho se acostumar à novidade antes mesmo que seu dono, até porque a lida diária muda bastante. Sem a necessidade de manter a rotina de horários das duas ou três ordenhas, que quase sempre começa com o dia ainda escuro, o pessoal da fazenda pode rever a programação de atividades cotidianas, e até ganhar em qualidade de vida. A maior tranquilidade vem ainda pelo aumento de subsídios para as tomadas de decisão a partir da associação dos números e relatórios fornecidos pelo sistema robotizado com o programa de gestão. O avanço da tendência de automação na sala de ordenha já impacta nas estratégias de outras empresas do setor. A Genex, de inseminação artificial, incluiu em seu catálogo de reprodutores de raças leiteiras de origem europeia o Índice de Contabilidade Robótica (RC$). A ideia é ajudar os produtores que já investiram ou pretendem optar pela ordenha robotizada a escolherem touros com base em características como comprimento e colocação de tetos e maior resistência à mastite.

Morgulis, da Minerthal, destaca a importância da relação entre insumos e o ganho de peso para a análise econômica

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TECNOLOGIA NA GENÉTICA Seleção dos rebanhos com base em avaliação genômica aumenta potencialmente as chances de acerto no planejamento genético

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A integração tende a ser cada vez mais ampla e intensa na área de melhoramento animal. “A genética já é um segmento bastante relacionado com a tecnologia”, comenta Sergio Saud, diretor executivo da Genex. Para ele, ainda que muitas ferramentas provoquem olhares desconfiados, basta que cumpram suas propostas para que a aceitação e a adesão sejam apenas uma questão de tempo. “Imagina quando se falou em congelar sêmen bovino, colocar as doses em um recipiente do tamanho de uma carga de caneta e que dali poderia surgir um bezerro”, compara.

A matriz da Genex nos Estados Unidos, que é uma cooperativa, gerencia dados de 20 mil fazendas. “Ou seja, são 20 mil rebanhos. E temos dados de tudo, como produção e sanidade. São aproximadamente 30 milhões de vacas no banco de dados”, destaca Saud. Essas estatísticas abastecem, por exemplo, um dos aplicativos fornecidos pela empresa, o Dairy Bull Search, que reúne informações de 45 mil touros das raças leiteiras Holandês, Jersey, Pardo-Suíço, Ayrshire, Guernsey e Milking Shorthorn. No caso das centrais de genética, os aplicativos em


smartphones se tornaram uma opção prática e fácil de manter nas mãos dos pecuaristas a listagem de reprodutores sempre atualizada. Ainda que o processo de seleção de touros seja baseado em três provas por ano (no caso dos EUA), o usuário fica sabendo imediatamente quando um novo reprodutor é adicionado. Essas informações podem ser inseridas no programa de gestão da fazenda. Saud vê nessa integração uma valiosa contribuição para superar alguns gargalos da pecuária. “Um dos grandes limitantes do setor é a falta de gestão, pois muitos criadores ainda não sabem se estão ganhando ou perdendo”, diz ele. O executivo da Genex, que também é presidente da Associação Brasileira de Inseminação Artificial (Asbia), comenta que a evolução é uma reação em cadeia. “Tem caído muito o custo de desenvolvimento das ferramentas como aplicativos e softwares, isso facilita o avanço”, afirma. É o que se vê pela diversidade de programas oferecidos pelas empresas de genética bovina para auxiliar o pecuarista na gestão do melhoramento genético. A partir de um histórico do rebanho, esses sistemas praticamente decidem o “match” entre as vacas e os touros, economizando tempo e aumentando consideravelmente as chances de acerto. Isso pode estimular o crescimento do uso da própria inseminação

artificial, que, apesar das diversas vantagens zootécnicas e econômicas, com participação pequena no custo total de produção, ainda é uma técnica relativamente pouco utilizada, considerando o tamanho do rebanho brasileiro. Se de um lado há pecuaristas que ainda desconsideram o uso da inseminação, de outro cresce o grupo dos que apostam alto nos avanços da genética. “O que tem de mais moderno em termos de acasalamento é a avaliação genômica. Com essa tecnologia, o criador passou a ter uma auditoria genética de seu rebanho”, explica Márcio Nery, diretor da central de biotecnologia ABS. Segundo o executivo, a partir dos marcadores moleculares o setor passou a usar a ciência para definir a cabeceira, a parte mediana e o fundo do criatório, algo que era realizado de forma visual, empírica. “E a era digital deu mais robustez aos algoritmos que fazem essa análise genética, acelerando a resposta. Em uma fazenda onde todo o rebanho tem avaliação genômica, basta inserir o código de cada indivíduo no programa de melhoramento que você já vai saber quem é o pai, a mãe, o avô, o bisavô, se há consanguinidade e várias outras características”, acrescenta. Todo esse processo leva em consideração o comportamento dos animais e das raças, pois há diversas características distintas para as diferentes raças, tanto

Saud, da Genex, afirma que o segmento de genética tem estreita relação com a tecnologia. Para Nery, da ABS (abaixo), era digital deu robustez aos algoritmos que fazem a avaliação genômica

de gado de leite quanto de corte. A seleção genética considera fatores isolados conectados a vários outros com pesos diferentes. Uma das principais vantagens dos marcadores moleculares para a pecuária é permitir que a seleção seja cada vez mais específica, pontual, quase que cirúrgica. Quando se conhece a exata relação entre os genes e as características mais desejáveis do ponto de vista produtivo e econômico, o caminho até o rebanho ideal vai perdendo os desvios – fica mais rápido e certeiro. É esse o padrão que se busca no mundo CowTech. PLANT PROJECT Nº14

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OS OLHOS DO DONO A TECNOLOGIA DIGITAL QUE AUXILIA A TOMADA DE DECISÕES NA PECUÁRIA EQUIPAMENTOS PARA A FAZENDA

Cocho e bebedouro Equipamentos automáticos monitoram o consumo de comida e água e fornecem os insumos na quantidade e no momento exatos. Balança Equipamentos de passagem, instalados no pasto ou nos currais de confinamento, oferecerem precisão com agilidade.

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O REBANHO VISTO DE CIMA

Câmeras Pecuarista pode acompanhar comportamento do rebanho e, no caso de dispositivos tridimensionais, é possível até fazer estimativa do peso dos animais. Também fazem reconhecimento facial. Satélite Imagens captadas do espaço podem ser usadas até para avaliar a disponibilidade e a qualidade da pastagem. Drone Experimentos recentes avaliam a aplicação do dispositivo na contagem do rebanho e na identificação, por termovisores, de animais doentes ou feridos.

DIRETO NO ANIMAL

Brinco eletrônico Identificação funciona também como ponto central de integração de diversas informações sobre os animais, como genética, sanidade, nutrição e desempenho. Sensor de cauda A partir dos padrões de movimento da cauda, dispositivo prevê quando a vaca vai parir. E avisa o pecuarista por SMS uma hora antes do parto. Colar eletrônico Dispositivo controla ruminação, ajuda a identificar doenças do rebanho e prevenir problemas maiores e ainda diz quando vacas estão no cio. Há estudos de aplicação em cercas virtuais.

Pedômetro Contagem dos passos diz se vacas estão andando demais ou de menos e ajuda a identificar condição de saúde e de fertilidade. Genômica Com identificação dos genes relacionados às principais características de importância econômica, pecuarista define com precisão as melhores estratégias reprodutivas.

CENTRAL DE CONTROLE

A conexão dessas ferramentas e plataformas, com integração de dados e disponibilidade em sistema de nuvem, coloca de fato a pecuária na era digital. Agilidade, precisão e acesso aos dados a qualquer momento, em qualquer lugar, dá ao pecuarista uma autonomia valiosa para as tomadas de decisão. Smartphone>Tablet>Computador>Nuvem

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TEMPO DE RENOVAÇÃO RenovaBio e perspectiva de ligeiro crescimento animam o setor sucroenergético presente no evento Abertura de Safra 2019/2020

Era apenas a terceira edição. Mesmo assim, a presença maciça e o nível das discussões consolidaram o evento Abertura de Safra Cana, Açúcar e Etanol 2019/2020 – realizado pela consultoria DATAGRO em parceria com o banco Santander – como o local certo para se avaliar o clima que dominará o setor sucroenergético no restante do ano. E o que se percebeu, no palco e entre a plateia de mais de 900 pessoas, 122

naquele 12 de março no Espaço Golf, em Ribeirão Preto, foi um ambiente de moderado otimismo. Com o tema “Etanol, Açúcar e Bioenergia: Rumo a Maior Eficiência Energética e Ambiental”, a conferência reuniu um time de mais de 30 palestrantes – de especialistas no setor, empresários, produtores e autoridades como Duarte Nogueira, prefeito de Ribeirão Preto; Arnaldo Jardim, deputado federal e presidente

da frente parlamentar de defesa do setor sucroenergético; Aurélio Amaral, diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP); e Evandro Gussi, ex-deputado e atual presidente da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) – e debateu tendências e riscos da safra, além de temas caros aos produtores, como o RenovaBio, cujo projeto é de autoria de Gussi. A política de Estado teve papel central nas discussões e


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Entre os palestrantes do evento, Mario Leão, vice-presidente do Santander; Evandro Gussi, presidente da Unica; Duarte Nogueira, prefeito de Ribeirão Preto (da esq. para a dir., na fileira superior); Fernando Gonçalves, presidente da Jacto; Julia Guerra, da Marsh Brasil; deputado Arnaldo Jardim

remeteu à histórica edição de 2018 do evento, que foi palco para assinatura o decreto que regulamentou o RenovaBio. O documento estabelece dois pilares principais: o ganho de eficiência na produção e o reconhecimento do papel dos biocombustíveis na redução das emissões de gases de efeito estufa. Agora, a perspectiva de ver seus efeitos práticos anima o setor. “Primeira das atividades agrícolas brasileiras, foi a que mais soube se reinventar por meio de processos disruptivos nesses 500 anos”, disse Gussi. “O RenovaBio é um marco em termos de perspectiva, mas também será um marco em termos de entrega de resultados”, afirmou. 124

O sentimento foi compartilhado por Mario Roberto Opice Leão, vicePresidente executivo do Santander. “Com o RenovaBio, pela primeira vez em sua história, este setor passa a ter um norte para orientar investimento futuro, promovendo meritocracia, induzindo maior eficiência energética e menor impacto ambiental, o que vai levar a menores custos e menores preços para o consumidor”, disse. Demonstrando o interesse dos empresários no agronegócio, ele afirmou que o Santander já investiu R$ 35 bilhões no setor nos últimos anos, sendo R$ 8 bilhões no setor sucroalcooleiro.

O programa, no entanto, ainda vai demorar um pouco para efetivamente ser colocado em prática. Atualmente, está disponível uma consulta pública sobre a resolução sobre as metas compulsórias anuais de redução de emissões que serão exigidas de todas as distribuidoras de combustível. Posteriormente, será feita uma audiência pública. A próxima regulamentação, de acordo com a ANP, vai definir os critérios de comercialização, metas de descarbonização e os processos que serão adotados para fiscalizar essas metas. A conclusão está prevista para meados de 2019. Portanto, o programa poderá ser aplicado apenas em 2020.


Miguel Ivan Oliveira, diretor de Biocombustíveis do MME; Marcelo Ismael, diretor da Basf; Ricardo Tomczyk, CEO da UNEM. Na fileira inferior, André Rocha, presidente do Fórum Nacional Sucroenergético; Gustavo Junqueira, secretário de Agricultura do Estado de São Paulo; e Maurilio Biagi, do grupo Maubisa

Para os produtores reunidos na conferência, uma questão mais premente é o resultado da safra. Plinio Nastari, presidente da DATAGRO, apresentou as projeções para 2019/2020. “É difícil fazer previsões, mas podemos analisar o levantamento em campo, o acompanhamento das variáveis e as estatísticas do que ocorre no mundo”, afirmou ele. "As condições do clima permitiram que os canaviais recuperassem o desenvolvimento fisiológico das plantas, favorecendo a estratégia das indústrias em antecipar a safra 2019/2020." De acordo com os dados apresentados, a moagem de cana terá um aumento de 1,39%, passando de 575 milhões de

toneladas para 584 milhões. As usinas da região centrosul devem processar 12,03% mais açúcar (29,7 milhões de toneladas contra 26,7 milhões do ciclo 2018/2019) e recuar 1,82% na produção de etanol (32,2 bilhões de litros, 600 milhões a menos que no ano passado). A produção inclui 1,15 bilhão de litros de etanol de milho, um dos destaques desta safra e motivo de empolgação para os produtores. Embora a porcentagem ainda seja pequena, mostra que há muito potencial na produção a partir do milho. É mais uma inovação entre tantas que o setor vem encarando nos últimos anos. Em seu painel “Tendências

Agro 2030 – Novas tecnologias e impacto na produtividade”, Marcelo Ismael, diretor de marketing estratégico da BASF para a América Latina, apontou alguns dos principais avanços em áreas como biotecnologia, uso de internet das coisas, sensores e inteligência artificial em maquinário e capacidade de rastrear cada etapa da produção por meio de blockchain. “Nenhuma delas é específica para a produção de cana, mas é importante saber que a tecnologia já existe. Agora, é só uma questão de tempo”, disse ele. Entre o RenovaBio e as inovações, o momento é de mudança para o setor, que deverá se fortalecer e retomar o desenvolvimento. PLANT PROJECT Nº14

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M MARKETS

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BIOCOMBUSTÍVEIS E DESENVOLVIMENTO AGRÍCOLA P o r P lin io Nastari

A produção de biocombustíveis tem representado uma oportunidade de absorção de excedentes agrícolas cada vez mais relevante em várias partes do mundo. No Brasil, o etanol e o biodiesel são um enorme sucesso. Em 2018, o etanol substituiu 43,8% de toda a gasolina consumida, através da mistura de 27% de anidro na gasolina e do uso de hidratado pela frota flex. Estamos também adicionando 10% de biodiesel em todo o diesel fóssil. A flexibilidade industrial do parque sucro-energético permitiu que em apenas um ano, em 2018, os produtores brasileiros pudessem reduzir a produção de açúcar em 24,9%, ou 9,6 milhões de toneladas, gerando um aumento na produção de etanol de

18,3%, ou 5,1 bilhões de litros. Desta forma, evitaram os impactos negativos dos preços baixos do açúcar, que têm como origem principal as exportações subsidiadas da Índia e do Paquistão e os mercados protegidos dos Estados Unidos, Europa, China, Japão e Rússia. Nos Estados Unidos, a produção de etanol a partir do milho surgiu no final da década de 1970 como uma maneira de aproveitar os enormes excedentes de milho acumulados com o embargo de grãos à União Soviética, como punição por ter invadido o Afeganistão. A punição teve pouco efeito, mas à época estava sendo feito um esforço grande para substituir o chumbo tetra-etila como aditivo anti-detonante da gasolina,

e o etanol foi adotado para resolver simultaneamente os dois problemas. Desde então, a conversão do milho em etanol cresceu ao ponto de, em 2018, representar o seu maior uso, 38,7% de toda a produção, ou 144 milhões de toneladas, volume equivalente a toda a produção somada do Brasil (94,5 mmt) e da Argentina (46 mmt). A mesma direção começa a ser adotada na Índia, para absorver excedentes de açúcar, e pela China, para absorver estoques excedentes de milho. Na Índia, a produção de etanol está crescendo rapidamente, de 1,75 para 2,35 bilhões de litros no último ano, devendo chegar a 4 bilhões de litros dentro de 18 meses. A proporção do etanol no pool de gasolina passou de 3,2%

* Presidente da DATAGRO e representante da sociedade civil no CNPE, Conselho Nacional de Política Energética.

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para 7,2% em um ano. Na China, a meta é chegar em pouco tempo a 10%, e na sequência a 20%. Estas não são iniciativas isoladas. A IRENA, Agencia Internacional de Energia Renovável, sediada em Abu Dhabi, prevê que, para que seja atingido o objetivo de limitar o aquecimento global a 2 graus Celsius, é mandatório que a produção de bicombustíveis sustentáveis passe dos atuais 130 bilhões de litros no mundo para 500 bilhões de litros até 2030, e 1,12 trilhão de litros até 2050. No meio cientifico e no dos formuladores de políticas públicas há um certo senso de urgência sobre a necessidade de avançarmos mais rapidamente na adoção de estratégias que levem à expansão da bioenergia e dos biocombustíveis sustentáveis. A opção pelos biocombustíveis é natural, pois sua adoção é relativamente simples, inexistem barreiras tecnológicas significativas e sua implementação pode ser imediata, utilizando a infraestrutura de distribuição de combustíveis líquidos

já existente. Ademais, são livres de enxofre, de compostos carcinogênicos – como são os aromáticos da gasolina –, e reduzem significativamente a emissão de material particulado e a formação de ozônio e de smog fotoquímico. Para complementar, são muito eficazes para reduzir as emissões de gases do efeito estufa, contribuindo para o controle do aquecimento global. A adoção dos biocombustíveis de forma cada vez mais intensa pela engenharia automotiva mundial vai permitir o desenvolvimento de motores mais leves e eficientes, com maiores taxas de compressão, aproveitando a elevada octanagem do etanol (116 AKI). Vai permitir a adoção de sistemas com menor consumo energético, como os veículos híbridos capazes de utilizar etanol, e em breve as células a combustível. Da mesma forma, o biodiesel vai ser um elemento de importância crescente no aproveitamento de produtos agroindustriais.

O que é mais interessante é que os biocombustíveis vão dar longevidade e sustentabilidade para o uso de combustíveis tradicionais, como gasolina e diesel, e o aproveitamento de nossas enormes reservas de petróleo e gás. O emprego, a economia circular no interior do País e o meio ambiente agradecem. O exemplo mais eloquente tem sido o desenvolvimento de polos agroindustriais no interior, onde se instala a produção de biocombustíveis a partir de cana, milho, e óleos vegetais. O etanol de milho, produzido principalmente no Mato Grosso, está quase triplicando o valor do grão com a sua conversão industrial, trazendo mais renda e progresso à região. Para muitos países das Américas, da África e Ásia, os biocombustíveis sustentáveis vão continuar representando a complementação virtuosa entre a produção de energia e de alimentos, alavancando e capitalizando a agricultura e trazendo independência energética com energia limpa e renovável.

PLANT PROJECT Nº14

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