O MENELICK2ºATO # EDIÇÃO ZER015

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vAvv REVISTAm O MENELICK 2º ATO É UMA PUBLICAÇÃO TRIMESTRAL DA MANDELACREW COMUNICAÇÃO E FOTOGRAFIA. RUA ROMA, 80 – SALA 144 – SÃO CAETANO DO SUL/SP - CEP: 09571-220 / TEL. (11) 9 9651 8199 I ISSN 2317-4706 DIRETOR NABOR JR. I MTB 41.678 I nabor@omenelick2ato.com DIAGRAMAÇÃO RODRIGO KENAN rodrigokenan.com CONSELHO EDITORIAL ALEXANDRE ARAÚJO

BISPO,

CHRISTIANE

GOMES,

LUCIANE

RAMOS SILVA, NABOR JR. E RENATA FELINTO. DISTRIBUIÇÃO

GRATUITA

EM

CENTROS

CULTURAIS, SARAUS, GALERIAS DE ARTE, SHOWS, FEIRAS, FESTIVAIS, CASAS DE ESPETÁCULOS, LOJAS, BIBLIOTECAS, TEATROS, BOTECOS E ZONAS DE CONFLITO.CONTATO revista@ o m e n e l i ck 2 a t o . c o m / omenelick2ato.com ANO IV – EDIÇÃO ZER0 XV 2015

pág 3 TIAGO MORYA (8 0U 80). Anjo das Crianças de Rua, Imagem da série Anjo 45 (2014). 20 X 8 cm. pág 5 EDUARDO VER. Caos (2014), Xilogravura da série Luz e Trevas. 23 X 30 cm. APOIO

pág 7 MARCOS PALHANO. Fotografias das séries Bumba-Meu-Boi (2013) e Tambor de Mina do Terreiro Kwe Mina Dan Axé Boçô Dá-Hó (2014).


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Flรกvio VM Costa Alexandre ARAร JO Bispo Maria Aparecida DE OLIVEIR A LOPES Christiane Gomes Sidney Santiago Kuanza

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Nabor Jr.

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Luciane Ramos Silva

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Fabiana Lopes

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Q U I L O M B O

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MANI FESTO A PRESENÇA NEGRA - MOISÉ S PATRÍC IO e PETER DE B R ITO A RTES VI SUAI S COI SAS QUE (NAO) EXISTEM - FA B IA N A LOPE S A RTES VI SUAI S GESTOR CRIADOR - ALEXA ND R E A R A Ú JO B IS P O DANÇA RUI MO REI RA - LUCIANE RAMOS SILVA MÚSI CA HOLO CAUSTO URBANO - NAB OR JR . TEATRO ÂNGELA, ESTRELLA NEGRA - SID N EY SA NTIAGO KUA NZA

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U M Á R I

JAMEL SHABAZZ / 40, 41, 43, 45 e 47 MOISÉS PATRÍCIO / 01, 27, 40, 41 e 80 MANDELACREW

MICHELLE MATTIUZZI / 59 KARA WALKER / 67 WANGECHI MUTU

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GAL OPIDO / 14 e 18 FERNANDA ABDO / 54 PRISCILA REZENDE

TIAGO MORYA (8 OU 80) / 05 EDUARO VER / 07 MARCOS PALHANO

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MEMÓ RIA EFEMÉRIDES NEGRAS - MAR IA A Pª DE OLIVEIR A LOP E C OSTA

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ARTISTAS CONVIDADOS

FI CÇÃO NADA A T EMER - FLÁVIO VM C OSTA

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DEPURANDO URGÊNCIAS DANÇAMOS CO M

ru more ra O dançarino Rui Moreira em ação durante o espetáculo Definitivo é o fim.


texto Luciane Ramos Silva fotos Fernanda Abdo e Gal Oppido

Aquele homem não estava perdido, apenas irrequieto. Vestia um terno de linho branco e chapéu Panamá. O gesto era de alguém que não cabia mais em si e cujas histórias esvaneciam pelas pontas dos dedos. Num dado momento, faltou-lhe equilíbrio... caiu, mas a queda não anunciou o fim. Recomeçou com sapateados e volteios entre impermanências e transformações.

pamento artístico que dialogava com a diversidade cultural brasileira em suas estéticas e políticas. As criações coreográficas do grupo inspiravam-se nas manifestações de fé e confluências entre as culturas indígenas e negras. Destaque para a trilogia Ês quis Q’eu Isse Co´Ês, expressão que o grupo absorve do saboroso sotaque mineiro.

Eis a lembrança que tenho dos primeiros instantes do espetáculo Definitivo é o fim, (2013) obra mais recente do bailarino e coreógrafo Rui Moreira. O impacto que seu corpo provoca em cena, em longilínea e fluída gravidade, não é menos potente que o pensamento que produz. Suas reflexões provocam-nos à retomar uma antiga dancinha: afinal, o Brasil conhece o Brasil?

Paulistano nascido na emblemática Barra Funda e radicado em Belo Horizonte, Rui Moreira se mantém em diálogo com diversos artistas. Coreografado por Henrique Rodovalho, dançou Receita (2002), obra que contrapõe o procedimento culinário ao fazer da dança; na criação Faça Algum Barulho (2013), em parceria com Rodrigo Peres, vemos o entrelace do B-Boy e do palhaço da Folia de Reis em seus mundos e imaginários. Com o coreógrafo franco-camaronês Fred Bendongué concebeu Dune Rive à L´autre (2000), trafegando nas ideias do filosofo, poeta e romancista martiniquenho Edouard Glissant (1928-2011).

É da vitalidade e complexidade das culturas populares negras e suas fluências com a contemporaneidade que o artista gera suas obras e constrói histórias. Após marcante trajetória no Grupo Corpo, companhia celebrizada por inscrever na dança cênica uma linguagem que se quer brasileira, e passagem por Cias como o Balé da Cidade e Cisne Negro, Moreira articulou movimentos fundando, no início dos anos 1990, ao lado do músico Gil Amâncio, Guda e outros artistas a Companhia SeráQuê?, agru-

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Rui criou Azougue (2012) para a São Paulo Cia. de Dança, Trama (2001), Calunga (2011), entre outras, para a Cia. Cisne Negro. O vocabulário presente nas investigações do coreógrafo, potencialmente marcadas por elementos estrutu-

rantes das corporeidades negras e em constante conexão com as estéticas contemporâneas seriam desafiadores para as companhias de dança cujos corpos se formam nas técnicas eurocentradas, sobretudo a técnica clássica? Percebo que a educação do corpo a partir das danças afrodiaspóricas oferece outras compreensões para o corpo no mundo. A verticalidade rígida pode remeter à disciplina e a uma noção de civilidade colonizada que não representa a história do brasileiro. Aprofundar a compreensão sobre a presença das culturas africanas no Brasil demanda também um reposicionar de eixos, considerando toda flexibilidade e ondulação que o corpo negro imprimiu na experiência nacional para sobreviver, manifestar e afirmar. Se a diáspora é a passagem da unidade para a multiplicidade, como afirmou Glissant, o tempo atual pede disposição política para abordarmos nossas pluralidades negras. A Rede Terreiro Contemporâneo, encontro que propõe o cruzamento de reflexões e práticas sobre danças negras no Brasil de hoje, bem como o projeto para criação de um núcleo de estudos intercontinental de formação profissional em artes em colaboração com a École des Sables (Escola de Areias), no Senegal, são ações conduzidas por Rui Moreira.

Entre as muitas pelejas que o Brasil enfrenta, o confronto consigo mesmo - negro e diverso – é uma necessidade. ****** O MENELICK 2ºATO: Fale um pouco da sua trajetória de intérprete a criador. RUI MOREIRA: Em 1983, entro no Grupo Corpo com a explícita função de interpretar. Um bailarino que vem para uma empresa que coloca a dança no âmbito da arte, mas também do entretenimento. Lá, trabalho sobre a direção de um coreógrafo que estava desenvolvendo uma linguagem. Então eu tinha um explícito papel de tinta, de material em processo na mão de um coreógrafo também em processo. Nesse momento eu, por um processo de aprendizado, não sabia considerar aquilo que já trazia no meu corpo. Já a SeráQue? criada em 1992, foi resultado de uma busca como artista de me colocar autoralmente, de meu pensamento, meu posicionamento social, político, estético, em função da obra de arte, da dança, da minha dança. A parceria com um músico, que tinha uma pesquisa muito intensa de resgate da família, ele também negro, fez com que eu focasse o meu

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interesse, na transformação do homem de pele preta em um bailarino negro, alguém que considerava as questões enfrentadas pelo menino, pelo adolescente, pelo recente homem de pele preta no meu corpo sensível. Considerávamos todas essas histórias, as técnicas acumuladas, os elementos de individualização e ao mesmo tempo de posição e de posicionamento estético e social frente ao outro. OM2ºATO: E nessas estéticas e políticas quais foram seus combustíveis? RM: O primeiro dos combustíveis ligados a SeráQuê?, especialmente, foi o reconhecimento da família, o reconhecimento da ancestralidade e que vinha como ancestral familiar a voz, as histórias da religiosidade que me remetiam diretamente a ancestralidade, e mais do que isso, a possibilidade de poder encontrar com a criança que existia dentro de mim, através das memórias. Isso foi o grande mote por um bom tempo e nessa criança eu resgatei brincadeiras infantis, como pular corda, bater lata. Da mesma forma como eu encontrei a minha vivência religiosa, os confortos e os desconfortos para com as entidades religiosas ligadas a umbanda e a relação com o catolicismo através das

O dançarino Rui Moreira no espetáculo Definitivo é o fim, onde divide a cena com a filha, Bianca A. Moreira, em apresentação realizada no mês de outubro de 2014, na Funarte Minas Gerais.

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festas populares que frequentei, fosse o samba, samba na minha casa sempre foi religioso e católico, as relações com os congados, com as irmandades de Santo Antônio de Categeró, onde aconteciam as festas, todas elas tinham dança, tinham fogos, tinham imaginários, pirotecnia e uma beleza que eu fui reencontrar quando eu me revisito, a partir da pergunta criativa. Que era a SeráQuê? Essa é uma interrogação criativa: O que será que antes e o que será que vai acontecer depois? E o que será que está acontecendo agora? Então ela sintetizava os combustíveis para o cotidiano que tudo acontecesse ao seu tempo, ali, agora, junto e misturado (risos). OM2ºATO: De maneira geral o artista contemporâneo tem uma certa dificuldade de enxergar as tradições que podem compor seu processo de criação e quando o fazem, apropriam-se delas de maneira, muitas vezes, superficial. Como essas tradições, esses universos simbólicos e estéticos permearam seu processo de criação? RM: O processo da SeráQuê? significou uma transição de criatura para criador, criatura que se colocou a disposição do pensamento estético, técnico de criadores, e que passava então a entender e criar personalidades para criar seus próprios discursos, para a tradição e os processos outros todos relacionados a tradição, foram a esteira dessa transição, tanto é que pelo prisma cronológico eu acho muito justo falar da minha trajetória, como contemporânea, mas pelo ponto de vista conceitual, ela tem muito a ver com o universo moderno,

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onde essa cenóide da tradição não é tão anulada quanto na contemporaneidade. OM2ºATO: Em um momento da nossa conversa você falava sobre as manifestações culturais negras, como elas poderiam ser percebidas como espaços de abertura, ao invés de espaços aprisionados. RM: Sim, esse capítulo do jovem. A criança e o jovem são o ponto de transmutação, a criança e o jovem e a senilidade, eles são, no meu ponto de observação de algumas das manifestações, os pontos de transmutação. É ali, onde as coisas se acentuam e ali também se alternam pelo prisma da flexibilidade. Eu observo muito claramente que o adulto está naquele processo caótico que mistura muitas situações, ele encerra numa prisão essas possibilidades de transição, então eu enxergo algumas manifestações culturais como lugares de difícil trâmite, seja para o velho, seja para a criança, porque essas etapas da vida, elas tem algumas necessidades que não se encaixam em algo estático, e a tradição muitas vezes, em um estágio mediano de dogmas, que o adulto normalmente reafirma, ela se torna uma dificuldade na liberdade do pensamento artístico, na liberdade que a arte necessita para ela mudar, para ela transmutar, para ela transcender processos e para que ela também se torne antena energética do novo. Isso é uma dificuldade que eu observei, e que eu observo em comunidades. Como por exemplo, a comunidade dos Arturos, a Comunidade do bairro Jatobá, que é também outra guarda de congado, elas buscam, por exemplo, os jovens entre 12 e

18 anos, buscam muitas vezes quebrar com esse processo dogmático da tradição. Em função primeiro da necessidade de matar a própria tradição para nascer uma outra coisa, e ao mesmo tempo pela necessidade de trabalhar a criatividade como sobrevivência, então eles precisam sair desse lugar. E eu na SeráQuê? tive a oportunidade de trabalhar com alguns desses jovens com essas urgências, aí é muito lindo, porque foram iniciados nos processos da tradição, mas estão no momento de rever todo os pontos da tradição e isso para a tradição é genial, porque reafirma a tradição, e para eles é uma sensação de prisão, que dá energia para que eles quebrem tudo e entrem em um outro estágio e revejam isso a partir da sua idade mais adulta. Essa foi uma observação que me fez dar uma importância muito grande para essas fases, seja a mais tenra infância, a iniciação, a juventude, que é esse questionamento da iniciação, seja para com os mais velhos, e quando eu falo os mais velhos é mais velho mesmo, é quando eles observam o radical do simples, e aí no radical do simples existe uma possibilidade de flexibilidade de pensamento e de atitude que é muito linda. Parece subjetivo, mas não é tão subjetivo, é reconhecível. OM2ºATO: As danças negras no Brasil sempre se nutriram de uma certa noção de tradição. Uma nutrição que, mal compreendida, muitas vezes faz a dança não seguir a diante. Qual a leitura que você faz do percurso ou daquilo que você experimentou em danças negras?

“É muito importante saber quem somos, de onde viemos, do que somos compostos, para poder estender de maneira ampla e corajosa nossa relação com o universo. Senão eu posso correr o risco de me perder”. (Rui Moreira em Filme de Dança)

RM: Interessante isto né, porque dança negra é um conceito que é necessário ser estudado pra que ele possa ser aprimorado. Há uma variedade e diversidade de manifestações artísticas negras. É necessário que se olhe por prismas diferentes, nós temos um universo artístico que é fruto de cultivos, de culturas, de observação, de exercício de repetição e de absorção do universo, não é? Dentro do artista é absorção e ao mesmo tempo é a maneira dele expurgar o universo que absorve. É isso é algo que nós chamamos de dança, uma dança que é feita para que as pessoas vejam, para que o artista se comunique com alguém. E existem as manifestações de danças negras, existem os estados de dança que não necessariamente são para serem compartilhados, eles são muitas vezes individuais, tem uma função contextual, tem uma função de expansão, de dilatação de um corpo, ou de um tema, ou de uma ação que vai resultar em uma catarse mais coletiva, e são diferentes essas expressões.

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Então, quando nós falamos no Brasil dessa dança negra, é bom que nós observemos em que contexto ela se dá, qual a intenção dos protagonistas dessa dança, não dá para dizer e para generalizar todas as manifestações negras culturais, assim como não dá para categorizar, o trabalho, a intenção e o foco de artistas negros, ou não negros, que elegem o foco de desenvolvimento da sua arte, então pelo Brasil eu vejo hoje uma grande descoberta. O Brasil se descobre como país matricial, mas que é formado por uma série de matrizes e os seus artistas se descobrem também como artistas matriciais, mas também é formado por uma série de matrizes que todos tem o direito de eleger sua própria expressão. Então, o conceito de dança negra é uma decisão, e por ser uma decisão, nós ainda não conseguimos enxergá-lo no contexto contemporâneo cronologicamente, situado entre as artes, porque ele está ainda muito permeado deste contexto antropológico, digamos assim, que se mistura a religiosidade, que se mistura as manifestações populares, ao folclore e à uma serie de manifestações explicitamente relacionadas aos homens da pele preta. OM2ºATO: Que é um lugar complicado, quando pensamos em dança cênica e o mainstream da dança. RM: Exatamente, em determinado momento é necessário separar as questões, quando nós falamos dança no Brasil, é uma coisa, se falarmos danças brasileiras, nós já abrimos uma outra porta. A arte demanda muito trabalho, muita repetição. É como lapidar, o ato de se deixar a lâmina mais resistente e mais afiada, ela demanda muita martelada, esquenta, esfria, muitas alterações. E quando se fala de mainstream, quando se fala de artes da cena, nós estamos vivendo uma crise muito grande, porque a relação da sobrevivência, do mercado, do profissionalismo, dessa coisa toda, ela vai buscando determinadas fórmulas. Fórmulas essas que nunca couberam, e nunca vão ser compatíveis com o ato da arte porque ele é algo que ninguém sabe do que se trata. A arte é visceral, a minha urgência como homem de 50 anos, negro, pai de família, avô, ao mesmo tempo, coordenador de uma associação cultural, tudo isso me gera urgências, e a minha forma de depurar essa urgência sempre foi através da minha pesquisa em arte, sempre foi de me colocar frente ao desconhecido, e fazendo um exercício enorme de me perder e de me encontrar. Então esse lugar faz com que eu me agrupe em determinadas escolhas, hoje, mas naturalmente a minha urgência pode se alterar, e amanhã eu posso estar falando de outra coisa, sem desprezar a experiência de hoje. Amanhã eu posso querer falar de caju. (risos) Não por acaso eu falei caju, porque caju é uma fruta que vem do continente africano.

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OM2ºATO: Falamos em repensar o fazer artístico e suas experiências compartilhadas. A experiência compartilhada pelas gentes de pele preta não é só dos negros, é brasileira. RM: Pois é, a experiência do homem negro, de alguma forma quando ele conhece um pouco da história dele ela se torna universal. E essa universalidade do homem, quando tratada pelo prisma geográfico, pelo prisma da ocupação, do espaço que ele vive e compartilha com outros, ela pode ser muito essencial. O que é essencial para o homem, depois que ele nasce, ele se alimenta, se protege das intempéries, ele dorme e ele morre, isso é essencial. E o artista contemporâneo, muitas vezes envolvido com processos mercadológicos, onde nessa essencialidade foi imposta a relação do dinheiro e das trocas, dos valores dos trabalhos de cada um - isso deixa o artista um pouco transtornado na sua decisão de essencialidade, não é? Muitas vezes ele vive as regras imediatas do mercado, as regras de sobrevivência, como concorrer a editais, conduzir, fazer coisas que não seriam da seara dele, coisas que não seriam nem do interesse dele, mas ele se abre, ele se permeia, ele se enfraquece, porque ele já se esqueceu, por exemplo, das necessidades que ele tem de tomar sol, de tomar o vento, de beber água, de encarar o frio, de encarar situações essenciais, como forma de alimento para sua arte. Ele se deixa reger pelo pensamento intelectual e o corpo dele mesmo vai deteriorando, e o exercício e o aprimoramento do corpo, e o lugar onde se acultura o corpo é na essencialidade do andar, do correr, do comer. Talvez o artista contemporâneo tomou tanto contato com as algumas das deformações, do aspecto da humanidade dentro dos centros urbanos que ele começa a ser reflexo e espelho disso. Daí o espectador não gosta, e o espectador tem a opção de ver ou de não ver, aí ele escolhe muitas vezes não ver. Já o artista, ele se vê preso à necessidade visceral de se expressar, e ele vai se mostrar, vai mostrar aquilo que ele pode mostrar, chega a ser um conflito lidar com o belo em uma sociedade com questões tão complexamente horrorosas. OM2ºATO: Você considera necessário que mãos e pés negros estejam nos lugares de realização, de proposição e inflexão crítica para que outros espaços sejam abertos?

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RM: Claro, considero demais essa necessidade. Quando nós falamos de mãos, pés, negras, cabeça, corpo negro, nós falamos de uma experiência que não dá para negar, a partir da cor da pele se estabelece uma experiência diferenciada, nas trocas que ele tem, que ele efetiva, ao longo da história da vivência dele reconhecida. Não dá para se substituir a vivência prática e a vivência espiritual. Não dá para ser substituído pelos relatos e pelas experiências dos outros, as experiências são pessoais e intransferíveis, e elas tem, aceitemos nós ou não, nuances de questões intransferíveis... da maneira como a gente se coloca no mundo, eu tenho possibilidades de diabetes, eu tenho um tempo e um funcionamento diferente. OM2ºATO: E porque uma Escola Intercontinental de Danças Negras Tradicionais e Contemporâneas do Brasil e a ligação com a Escola de Areias? RM: Observando esse processo de curtos e fortes impactos que estimulam a identidade do artista, assim como a possibilidade de que aconteçam esses importantes encontros, a gente tem de trazer pessoas com experiências concentradas na vivência africana, no exercício de arte do Brasil que tem uma população grande de homens de pele preta, que vão vivendo essas amarguras e as experiências da negritude. É uma possibilidade dele se inserir, ou dele se assumir e encontrar um lugar dentro da sociedade brasileira. A sociedade artística atuante brasileira, não consegue se enxergar pelo prisma da sociedade brasileira, é necessário que ela mude passos no Brasil. Na Escola de Areias há a possibilidade de eu pisar no chão diferente, ela pode me dar um ganho de identidade que também vai fazer com que eu não me crie dentro de um só espaço, em outros espaços eu posso desenvolver outros diálogos, sabe? Eu acho que o Brasil tem que se ampliar, e para se ampliar, ele tem que se identificar como o que é.

PARA LER Introdução a uma poética da diversidade Edouard Glissant Editora UFRJ, 2005 PARA VER Um Filme de Dança Direção: Carmen Luz 2013 Espetáculo: D´une rive a l´autre, da Cia. de Dança Azanie Disponível em: youtube.com PARA SABER + Rui Moreira Cia. de Danças ruimoreiraciadedancas.blogspot.com.br Centro Cultural Virtual centroculturalvirtual.com.br

LUCIANE RAMOS SILVA é doutoranda em Artes da Cena pela UNICAMP e mestre em antropologia pela mesma instituição. Bacharel em Ciências Sociais pela USP, atua na área de estudos africanos, educação e artes do corpo.

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Ângela Corrêa poderia facilmente ser definida por sua leveza e graça. É dessas mulheres que carregam consigo certa majestade, um estado de soberania, imponência. E foi, também, em razão destes atributos que a paulistana nascida no bairro da Freguesia do Ó ganhou o mundo. Desde cedo teve que se acostumar com a “fama”, uma vez que seu nome de batismo Ângela Maria – homônimo da famosa cantora e atriz brasileira - provocava curiosidade e expectativas por onde passava: “Eu era uma Ângela Maria que não cantava, mas toda vez que dizia meu nome era um acontecimento”, lembra. Das primeiras influências artísticas que embalaram sua infância, recorda-se com alegria das rádio-novelas e das interpretações – carregadas de romantismo e dramaticidade – protagonizadas por sua mãe, de voz privilegiada, quando esta entoava repertórios de Ângela Maria e Dolores Duran. “Minha mãe cantava… e chorava. Com oito anos eu já sofria como uma mulher, embalada pelas de dores de amor”. Filha do casal Honofra Rodolfo Corrêa, a dona Dora, uma corista que chegou a integrar o grupo de Ataulfo Alves e suas Pastoras, e Carlos Corrêa, sapateiro com sapataria própria (localizada na rua Amaral Gurgel, no centro da cidade), e que nas horas vagas atuava como figurante, chegando a participar de grandes produções do cinema nacional. A mais importante delas Sinhá Moça, longa metragem de

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ÂNGELA, ESTRELLA

fotos MANDELACREW e ACERVO PESSOAL

NEGRA

texto Sidney Santiago KUANZA

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1953, produzido pela Vera Cruz e dirigido por Tom Payne, e que teve como destaque a atuação da atriz Ruth de Souza.

os negros que não tinham carro desciam um pouco antes do local do baile e tomavam um taxi”. A MODA E O DÉBUT

Aos nove anos, a então pequena Ângela já escrevia suas próprias novelas e chamava os vizinhos para interpretá-las. Foi neste ambiente que a terceira filha de uma família de seis irmãos cresceu. Um lar próspero, erguido com muito trabalho e suor do pai e da mãe; uma vez que esta, com a chegada dos filhos, se viu obrigada a renunciar a vida artística para dedicar-se ao lar e a serviços externos como passadeira. Vivendo entre os bairros da Freguesia, Limão e Tremembé, todos na zona norte da cidade de São Paulo, Ângela aponta interessantes passagens da sociabilidade negra paulistana durante os idos dos anos 1960, algumas delas protagonizadas por sua própria família, festeira e frequentadora dos bailes promovidos pela comunidade negra paulistana, entre eles os famosos concursos da Bonequinha do Café, que objetivavam valorizar a beleza negra feminina. “Papai dizia: ‘vocês preferem uma casa com escada, ou uma casa com banheira?’. Nós comíamos bem, vestíamos bem... Tínhamos a casa mais arrumada do bairro e recebíamos nossos amigos nela. Entre eles, os negros do centro da cidade. As mulheres sempre com coques e bem vestidas. Os integrantes do conjunto Originais do Samba eram figurinhas carimbadas em nossas festas. Nos bailes, as negras usavam casacos de pele, e

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No início da adolescência, Ângela chegou a nutrir o desejo de ser dentista. Achava chique a ideia de ter um consultório e vestir avental. Porém, devido ao porte esguio e beleza ímpar, era frequentemente incentivada por populares, amigos e familiares a seguir outra trajetória: “Você tem que ser manequim!”, diziam. Até que um dia, por volta dos 17 anos, ao frequentar o Bar Sem Nome, que ficava na Rua Dr. Vila Nova, na Vila Buarque, foi abordada por um estilista francês recém-chegado ao país que a convidou para ser modelo de testes. Depois deste oportuno encontro passou a integrar o time de manequins da Têxtil Bayard (fábrica de roupas ainda em atividades no bairro do Bom Retiro), trabalho remunerado e com contrato. Passados alguns meses já abrilhantava as passarelas brasileiras dentro das principais semanas de moda do país, e como destaque nos desfiles televisionados pelo programa Hebe, da apresentadora Hebe Camargo, na TV Bandeirantes. Desta época, início dos anos 1970, guarda a triste imagem de seu pai assistindo a sua estreia na então Semana Internacional de Moda no Brasil do lado de fora, olhando o sucesso da filha pelas vidraças do Clube Paineiras do Morumby.

AS LUZES DAS RIBALTAS Com uma vida repleta de causalidades, em 1971, durante sua primeira visita a boate Café Concerto, de Ricardo Amaral – conhecido como O Rei da Noite, é apresentada ao famoso radialista e empresário carioca Oswaldo Sargentelli – que se definia como mulatólogo, mas que ainda hoje é considerado por muitos setores do movimento negro como uns dos principais apropriadores da cultura negra brasileira. Seu nome, no entanto, continua a figurar no hall dos grandes divulgadores do samba. Na ocasião do encontro, encantado com a beleza e o corpo escultural da jovem Ângela, Sargentelli a convida, na mesma noite, para integrar o espetáculo Oba Oba, onde inaugurou o quadro Balé nas Pontas. Neste período conciliava a carreira de modelo, os shows e as participações nos humorísticos Viva o Gordo e Planeta dos Macacos, ambos da Rede Globo de Televisão. Mas é com sua entrada no espetáculo Brasil Tropical entre os anos de 1972 e 1973, com direção de Edvaldo Carneiro, (o Camisa Roxa), um dos remanescentes do Teatro Castro Alves, que a vida de Ângela ganharia novos contornos. Depois de passar por um teste coordenado por Walter Ribeiro (grande expoente da dança negra no país ao lado de Mercedes Baptista), ela de fato corre o mundo. Brasil Tropical viajou por diversos países da Europa e foi escolhido para substituir o espetáculo de ninguém menos que Josephine Baker, conhecida como

Vênus Negra, e grande vedete do Teatro de Revista francês. Na época, Bake estava em cartaz com um revista retrospectiva no Théâtre Bobino de Paris, porém, em 08 de abril de 1975, foi encontrada desfalecida, e a então direção artística do Bobino procurava por uma companhia negra que pudesse cumprir o restante da temporada. Brasil Tropical foi adaptado e ficou um ano em cartaz. Já com residência fixa na capital francesa, onde viveu entre meados de 1974 e 1979, Ângela retoma sua carreira de modelo realizando desfiles e campanhas publicitárias pela Ásia e Europa, vestindo marcas como Yves Saint-Laurent, Paco Rabanne e Jean Patou. Seu retorno aos palcos aconteceu como corista no Teatro Moulin Rouge, na Revista Fo Le Man, estrelada pela grande vedete da Martinica Lizette Maridor. NOVOS VENTOS, OUTROS DESAFIOS É no ano de 1988, pelas mãos do diretor de telenovelas Walter Avancini e supervisão técnica de Joel Rufino dos Santos, que o ímpeto dramático e a capacidade dramatúrgica de Ângela foram exigidos. Com a árdua tarefa de dar vida a protagonista Iná Inerã, uma quilombola rebelde com aguerridos sonhos de liberdade, a minissérie global Abolição (1988) mostrou a vida desta mulher e os fatos que culminaram na assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Na sequência deste trabalho viéram outros folhetins que também tiveram a temática da es-

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cravidão como eixo central: em 1989, Pacto de Sangue (novela que tematizou o centenário da abolição e a Proclamação da República), na Rede Globo e, em 1990, Escrava Anastácia (minissérie que mostrou o tráfico negreiro seguindo a personagem Ojú Orum), na Rede Manchete. Em paralelo ao trabalho na televisão Ângela continuava estampando campanhas publicitárias para as marcas Tangue e Pernambucanas. Deste período, no auge de seu sucesso como atriz, relembra com certo constrangimento de um convite feito pelo Jóquei Clube de São Paulo, que queria batizar uma égua com seu nome. Discreta, ela preferiu não aceitar tal homenagem. Os encontros com os grandes homens da televisão brasileira Herval Rosano, Henrique Martins e Walter Avancini, foram presentes da vida e se constituíram como sua grande escola. Com uma carreira muito distinta e sólida, Ângela pôde dar vida a grandes personagens que agiam, com nome e endereço. Personagens negras que nunca estiveram na subalternidade, tão comum a dramaturgia e ao áudiovisual brasileiro.

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1. Como protagonista da minissérie Escrava Anastácia, na Rede Manchete, a atriz estampou capas de revistas e diversas colunas sociais. 2. Ângela durante apresentação do espetáculo Brasil Tropical, nos anos 1970.

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Em 1993, fez um de seus últimos trabalhos na Rede Globo, a série Caso Marli, com direção de Tizuka Yamasaki, o trabalho foi proibido pela Polícia Militar que na ocasião estava completamente desmoralizada com a repercussão internacional da Chacina da Candelária. Na série, Ângela interpretou Marli, personagem real que teve o irmão assassinado em um Morro pelo Polícia Militar carioca. Destemida ela reconheceu os policiais e virou símbolo da luta contra o genocídio negro pelo estado brasileiro, seu codinome

passou a ser Marli Coragem. A série, no entanto, nunca foi ao ar. Na televisão sua carreira seguiu por passagens entre a Rede Record e o SBT, com trabalhos nas novelas Chiquititas (SBT, 1998), Vidas Cruzadas (Record, 2000) e Revelação (SBT, 2008), Premiada no cinema atuou em dez longas metragens com destaque para A Nuvem (1992), de Fernando Solanas, Carandiru (2003), com direção de Héctor Babenco, e Garotas do ABC (2003), de Carlos Reichenbach. Foi no cinema, aliás, que conheceu Fernando Solanas, afamado cineasta, produtor e atual Senador argentino com quem divide parcerias artísticas, e está casada há vinte anos. Aos 60 anos de idade e atualmente vivendo entre as cidades de Buenos Aires e São Paulo, a artista e mãe de Flecha do Arco-Íris (fruto do seu relacionamento com o cantor e compositor afro-gaúcho Luís Vagner) prepara uma exposição para 2015 com seus desenhos gráficos. Segue também com seus estudos sobre a influência africana na cultura Argentina e está produzindo uma peça sobre a doença de Alzheimer, com texto da paulistana Ana Maria Dias.

ISSO (TAMBÉM) É ÂNGELA MARIA CORREA NA TV 2008 – Revelação (SBT) 2005 - Carandiru, Outras Histórias (Rede Globo) 2005 – Malhação (Rede Globo) 2004 - Seus Olhos (SBT) 2001 – Amor e Ódio (SBT) 2000 – Vidas Cruzadas (Rede Record) 1998 – Chiquititas (SBT) 1996 – Amor Sagrado (Telefe, Argentina) 1996 – O Campeão (Rede Bandeirantes) 1993 – Guerra sem Fim (Rede Manchete) 1991 - Filhos do Sol (Rede Manchete) 1990 - Mãe de Santo (Rede Manchete) 1990 – Escrava Anastácia (Rede Manchete) 1989 – Pacto de Sangue (Rede Globo) 1988 – Abolição (Rede Globo) NO CINEMA 2008 – Amygas y Amigos 2007 – Inês 2006 - Sólo Dios Sabe 2003 – Carandiru 2003 - Garotas do ABC 2001 – Afrodita, El Sabor Del Amor 1998 – Gasoleros 1998 – La Nube 1992 – El Viaje

SIDNEY SANTIAGO KUANZA é ator formado em arte dramática pela Escola de Arte Dramática da ECA (USP). Atualmente cursa Sociologia e Política (FESPSP). É membro co-fundador da Cia. Os Crespos de teatro e intervenção urbana. Também pesquisa a imagem do negro na mídia.

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Trechos do Termo Depoimento da Senhora Célia Souza ao delegado Mariano Miranda, no dia 20/06/2013, realizado no Complexo Policial dos Barris, Avenida Vale dos Barris s/n.

texto FLÁVIO VM COSTA

Diário do delegado Mariano Miranda, sem data assinalada, folha de número 114. Houve um equívoco momento da minha vida em que passei a acreditar que apenas meu talento bastaria. Certo de possuir faculdades superiores declinei de uma miríade de chances de aperfeiçoar-me. Sentei o rabo na poltrona da mediocridade e julguei ser necessário apenas um ato de vontade, pelo qual me transformaria em um probo juiz; acabei delegado medíocre. Estou afastado das minhas funções. Antes de comandar um inquérito novamente, vegetarei por meses em afazeres administrativos naquele prédio da Piedade, naquela mesa pequena, naquela sala pequena, onde se eu esticar o braço encosto na porta, sob aquela iluminação de puteiro. Pelo menos poderei dizer que fiz algo pela causa. Creio que Abílio concordaria.

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Que a depoente achou que o senhor Abílio Farias era a cara do cantor Emílio Santiago, quando o viu pela primeira vez; que ele disse que não veio ensinar batuque para nossas crianças; que ele disse que Salvador precisava de médicos, tradutores, engenheiros, jornalistas, químicos, dentistas, filósofos, advogados, e um monte de outras profissões, e que esses profissionais tinham que ser homens negros e mulheres negras; que ele iria ensinar português e matemática e ia chamar os amigos dele para ensinar outras coisas, como ciências e história da África; que normalmente o senhor Abílio Farias era muito simples no seu vestir, usava calça jeans e camisa de botão, sempre limpa e bem passada, sapato social preto; que ele disse que se tivesse alguma criança que soubesse batucar seria bom porque assim ele aprenderia alguma coisa também, e que todo mundo riu quando ele disse isso; que as crianças gostavam muito dele; que a depoente nunca soube que o senhor Abílio Farias tivesse desavenças; que ele tinha cara de brabo, mas sempre foi muito educado com todo mundo; que toda sexta-feira ele arranjava um ônibus e as crianças iam comer acarajé no Rio Vermelho; que a depoente nunca soube nada sobre a presença de comissários de menores no bairro; que o senhor Abílio Farias não suportava falta de respeito; que o senhor Abílio Farias nunca mexeu com o pessoal do movimento e o pessoal do movimento nunca mexeu com ele; que ele disse que era um homem antigo e não queria ninguém de brinco nem de cabelo alisado nem pintado; que ele disse que só a mãe dele usava cabelo de escova, mas que ele não discutia com a mãe, que afinal orelha não passa a cabeça; que o senhor Abílio Farias disse que a gente nunca pode se esquecer de onde veio; que a polícia militar também não mexia com ele; que a depoente nunca vai se esquecer dessa primeira reunião com os pais, na associação do bairro de Alto de Coutos; que a depoente nunca

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vai esquecer quando o senhor Abílio Farias disse que o prédio da escola estadual foi construído num formato de caixote e parecia um presídio, cheio de grades; que ele disse que essa era uma das formas dos donos do poder usam para acabar com nossa autoestima; que a depoente nunca perguntou para ele quem são os donos do poder, mas que ela acha que ele devia estar falando dos políticos; que a depoente se lembrava que a sala era mesmo muito abafada e todo mundo estava suado; que o senhor Abílio Farias disse que a gente, os pais, não deve ter vergonha de não ter estudado; que ninguém se conformava com o que aconteceu (...) Nada mais havendo, mandou a Autoridade Policial que se encerrasse o presente termo que, lido e achado conforme, vai devidamente assinado. Papel com brasão da Secretaria da Segurança Pública da Bahia, sem data assinalada encontrado no depósito da sede da Polícia Civil, na Piedade. Tópicos do inquérito: os comissários de menores efetuavam prisões ilegais, andavam armados, apreendiam drogas, portavam distintos e filmavam ações para serem exibidas em programas policiais. Tudo com a conveniência do senhor juiz da Infância. Até um livro com os registros das ações eles possuíam, com papel de timbrado. Mas os adolescentes infratores não apareciam nas casas de acolhimento. O juiz concedia liberdade aos adolescentes infratores, e estes desapareciam no mesmo dia ou pouco tempo depois. A droga e o armamento apreendidos, idem. 14/06/2013, às 2h43: Hotel Libidus, Rua Gamboa de Cima, 61. – Sou amigo da vítima, receio que não tenha objetividade... – Deixe de onda, Mariano. Você não trabalha para Scotland Yard nem para o FBI. Nem mesmo para Federal... Você trabalha para mim. – Só estou dizendo que não é conveniente. – Sobre a conveniência quem decide sou eu. Seu amigo dava um trabalho do cão. Morto vai ser pior ainda... todo mundo vai pressionar, tirar lasquinha da gente, imprensa e esse povo insuportável dos direitos humanos. Então eu quero uma resposta rápida, mas não tão rápida que desconfiem... de qualquer forma, dê os seus pulos, arranje um culpado. – Parece um crime passional... – Mesmo? Não tenha tanta pressa, garotinho. Seu amigo estava atrás daqueles comissários da vara da infância. Parece que tinha uns vídeos e papéis... – Eu não sabia.

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26/11/2002, às 22h37: Bar O Cravinho, Terreiro de Jesus, 3: – A verdade, Mariano, é que não precisamos de negros como você... – Colé, velho? Que conversa errada é essa? – Se doeu, corrente? Desculpe, mas você acha mesmo que pode fugir do que você é? Você se acha muito inteligente porque estuda Direito, então acha que não precisa dos outros, que existe só por si no mundo... – Quem disse que eu fujo, bróder? – Toda essa conversa mole é uma fuga. – Então não presto e fujo porque, em sua opinião, eu me renego, por isso eu não estou militando como você, por isso não desfilo nos blocos dos ressentidos... e assim você cassa minha negritude. Por que eu não posso lutar do meu jeito? – Eu não cassei nada. E onde você vê ressentimento, eu vejo luta por igualdade, reparação e justiça, e é uma luta sem trégua, e sem espaço para ironia, tergiversações e pseudo-heróis solitários. É uma luta coletiva. Então pessoas como você não servem porque se omitem, fingem que está tudo bem, enquanto buscam ganhos individuais. – Hum... acho que essa conversa pede uma rodada de Senzala. – Você se acha o engraçadão, né? Você não vê que nós dois somos a exceção naquele prédio da Graça? Que usam justamente nosso exemplo para justificar toda essa merda... A gente esteve hoje no Nina... quantos tinham essa mesma cor, quantos tinham nossa idade? – Preciso falar obviedades? Eu posso lutar do meu jeito, Abílio. Quer saber? Eu não suporto é essa superioridade moral de vocês. Vocês não conversam, vocês discursam. Prefiro seguir sozinho. TRANSCRIÇÃO DE GRAVAÇÃO FEITA ÀS 23h47, DO DIA 20/12/2013, DO PROGRAMA COMANDO NOTURNO, DA RÁDIO EXCELÊNCIA FM. Locutor Ernesto Macedo: Atenção, ouvintes! Matança! Três agentes da Infância foram brutalmente assassinados em Pernambués. E quem está lá, ao vivo, no rastro da notícia, é a nossa Luana Rios, a nossa repórter intimorata. O plantão é duro, Luana! Repórter Luana Rios: O plantão é duro, Macedo! Duríssimo, queridos ouvintes! Estamos em Pernambués, um dos bairros mais populosos de Salvador, exatamente na rua Renato Cincurá, onde nesse momento impera o medo, Macedo.

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Locutor Ernesto Macedo: Boa noite, Luana, minha colega, me confirme aí. Temos informações de que houve um tiroteio nessa localidade... o que você me conta, Luana? Repórter Luana Rios: Boa noite, Macedo, boa noite, meus queridos ouvintes. Pois é, Macedo, exatamente. Uma chacina. Um massacre. Três agentes de proteção da infância e juventude foram assassinados a tiros. Exatamente nesse bar, onde nós estamos agora, Macedo e ouvintes, em um bar da Rua Renato Cincurá, no bairro de Pernambués, como eu já tinha dito... As vítimas são... deixe-me ler: Romero Cardoso, 33 anos, Jaime Gomide, 34, e Frederico Zingo, 43. De acordo com a Central de Telecomunicações da Polícia Militar, três homens encapuzados descaram de um carro preto, por volta das 22h, e entraram diretamente no bar e foram diretamente à mesa onde se encontravam os comissários de menores, que bebiam alegremente. Os homens encapuzados começaram a atirar na direção dos comissários, e somente nos comissários, que não tiveram tempo para reagir. E é um bar muito apertadinho, Macedo, botecão mesmo, teto abaixo e estava lotado, Macedo. E eles só atiraram nos comissários. Os três receberam vários tiros. Você sabe, Macedo, que comissário de menores é a antiga denominação dos atuais agentes de proteção... Locutor Ernesto Macedo: Eu sei, eu sei. São voluntários, verdadeiros voluntários da paz em um país em que de menor tem licença para matar. Mas o que diz a polícia, Luana? Repórter Luana Rios: Olhe, Macedo, nada foi dito oficialmente. O Departamento de Homicídios investiga o caso. Mas tudo indica que foi crime de mando. Pode ser...

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– Qual é a cor? – Oi? – Caralho, a cor da pele das vítimas! – Ah, pelas fotos eu diria que pardos todos os três. – De novo, né? – Como assim, doutor? – Dessa vez foram três. Bora brincar de chamar o pessoal da Homicídios.

20 CORPOS ENCONTRADOS EM MATAGAL NO CENTRO INDUSTRIAL DE ARATU, PORTAL SALVADOR NEWS, 21/01/2013 Por Alexandre Uchôa

(TERMINA A GRAVAÇÃO)

Pelo menos 20 corpos ainda não identificados foram desenterrados, nesta segunda-feira (dia 21), das margens da rodovia que leva ao Centro Industrial de Aratu, nas proximidades da fábrica da Qboa, em Simões Filho, Região Metropolitana de Salvador (RMS). De acordo com a Polícia Militar, os cadáveres estavam em adiantado estado de decomposição, mas em alguns casos já é possível deduzir que as vítimas foram mortas a tiros, e depois desovadas às margens da estrada da CIA-ARATU. Os policiais militares chegaram ao local atráves de uma denúncia anônima e entraram imediatamente em contato com o Departamento de Polícia Técnica. O Departamento de Homicídios investiga o caso.

21/10/2010, às 7h05: 1ª DP dos Barris, Avenida Vale dos Barris, s/n:

Diário do Delegado Mariano Miranda, sem data assinalada, folha de número 22.

– Qual é a colheita de hoje? – Doutor Mariano, teve uma queixa de maus tratos a idosos, a gente encaminhou para a especializada, teve outra de atentado violento ao pudor, o cara estava mostrando a rola e chamando as mulheres de gostosa num banco do Dique, é cada miséria... está aqui enjaulado o sacana, e tem uma denúncia de desaparecimento. Doutor Afonso pegou o caso, o relatório está aqui. Três pessoas: dois menores, 16 e 17 anos, e uma mulher, de 25 anos. Na noite de sexta-feira, eles saíram de um bar na Carlos Gomes em direção ao Dois de Julho, onde mora a mulher. E ninguém mais viu. Os nomes estão aqui, o de 17 tem passagem, furto de carro, mas os outros não têm. Foi um chororô da porra aqui. Mãe, pai, tio...

Na época da universidade, eu levei uma amiga loira a uma reunião de estudantes negros. A reunião foi organizada por Abílio. Na saída, ele me puxa pelo braço. Você está de sacanagem? Colé a sua, irmão? Provocação gratuita. Eu me afasto, mas antes grito: eu sou independente, porra! Abílio volta a me segurar. Você não pode fugir de quem você é, Mariano, você pode até ter vergonha, mas fugir não pode. Você também tem sua responsabilidade. Quem disse que tenho vergonha, cara? Eu não sou só ressentido, já te disse, é só isso, não acho que me devem nada, e não quero nada que não seja meu, e o que é meu eu conquisto. Eu sou independente, porra! Mariano, cada um de nós tem a responsabilidade... Se um homem tem vergonha do que é... ele de nada vale.

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11/03/2013, às 16h37: Balaustrada da Praia do Porto da Barra.

14/06/2013, às 9h58: IML Nina Rodrigues, Avenida Centenário, s/n.

– Não posso entrar no mar, Mariano. – Não me diga que você... – Isso mesmo. Não estou com as obrigações... – Hum. Se não foi para curtir a praia, diga logo então. – Acho que estão querendo me pegar. – Como assim, rapaz? Quem quer te pegar? – Sério. Não sei quem é. Ainda. Mas no último mês, desde que voltei para casa, já vi umas três vezes os mesmos caras rondando o meu prédio. – Vou ver isso, não se preocupe. Mas pode ser que eles estejam atrás de outras pessoas, pode ser que nem estejam atrás de alguém. – Não é paranoia! – Não disse isso, porra. Relaxe, velho. Mas por que alguém iria querer te pegar? – Estou investigando um pessoal da Vara da Infância...

– Meu velho, vou te dizer uma coisa: estriparam seu amigo todo... – É, eu vi. Julian, quero todos os exames... não economize nada, não importa se vai demorar. – Meteram nele até o osso... Mais de quarenta facadas. Parece crime passional. – É um truque, Julian. Somente um truque.

Carta anônima enviada ao Delegado Mariano Miranda, sem data.

Senhor delegado,

Um amigo em comum me indicou o nome do senhor para ser destinatário dessa missiva-denúncia: o senhor deve investigar os comissários de menores de Salvador. Eles estão fazendo miséria em Salvador, só andam armados prendem os de menor e quem não é de menor, tiram dinheiro das famílias, traficam coca e as porras, e já mataram gente de menor também. São homens que não respeitam as leis, que a deturpam. Em Tancredo Neves, Lobato, Cajazeiras, tudo que é lugar, eles estão fazendo miséria. Em Alto de Coutos, também. O pessoal é tudo desovado na CIA-ARATU. Matam a tiros. Agem como se fossem da polícia. Na tevê dizem que são 20, né? Mas tenho para mim que são mais 40, 50, sei lá. Eles não enterravam só lá não. O senhor conhece a Estrada Velha do Aeroporto? Pois, então. Quem manda é um tal de Zingo. Acho que o senhor já pode começar por aí.

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Bem, irmão, fique com seus orixás. Ogum te protegia, não é mesmo? Eu sou um assimilado, Abílio. Eu creio no inferno católico. Lembrei que fez muito sol no dia do seu enterro. E o preto das nossas roupas aumentava o nosso incômodo. A verdade é que eu nunca quis carregar esse fardo e agora eu lembro que naquela sala da necropsia tinha você e um casal branco. Eis, uma justiça poética, concorda? Vencemos pelo menos uma! Eu gostaria de voltar naquele tempo, irmão, em que éramos apenas nós dois contra uma Faculdade de Direito inteira, um duelo imaginário; em que escorraçamos o diretor de Economia porque ele tentou impedir as cotas, e no final ele tinha votado a favor; em que cada mulher conquistada era uma alegria inaudita e efêmera; em que sorríamos ao nos encontrar na rua, e discutíamos a teoria geral das coisas. Bem, irmão, eu reflito sobre teus atos, tuas frases pomposas, tua sincera indignação. Mas as evidências apresentadas por você a respeito do meu caso são inconclusivas. Sei quem te matou, Abílio, e farei o que é devido, e a única retribuição que peço é que você me recepcione nos portões do inferno. Não ria, caralho! Só assim eu que saberei que não há nada a temer.

Esperançoso em sua rigorosa capacidade investigatória,

X.

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Diário do Delegado Mariano Miranda, sem data assinalada, folha de número 110.

FLÁVIO VM COSTA nasceu em Salvador (1983) e formou-se em jornalismo pela Universidade Federal da Bahia. Mora em São Paulo. Publica contos no blog: contosemchamas.blogspot.com

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O Q U E O F E R E C E R : M O I S É S PAT R Í C I O E A S

POTENCIALIDADES POLÍTICAS DO GESTO CRIADOR Fotomontagem feita com imagens da série Aceita? (2013/2014) e retratos do artista.

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texto ALEXANDRE ARAÚJO BISPO colaboração CHRISTIANE GOMES

Corria o desmonte de uma estrutura política e social rígida - que ainda não se concluiu - quando, em 1984, nasceu Moisés Patrício, na antiga Favela do Jardim Edite, no Brooklin, Zona Sul de São Paulo. Nascia distante da Praça da Sé, marco zero da cidade e local sacralizado das lutas dos movimentos sociais, artísticos e de outros segmentos, como ocorreu com as Diretas Já, por exemplo. Em 84, a praça já era o que hoje conhecemos e, desde 1979, com o inicio do processo de reabertura, a demolição de edifícios como o Santa Helena que abrigou a Frente Negra Brasileira (FNB) – criada em 1931, daria lugar a estação de metrô e ao Jardim de Esculturas. Nesse jardim foi erigido o Marco Sincrético da Cultura Afro-brasileira, obra de Rubem Valentim (1922-1991), no ambiente esquecido e desprezado pelas autoridades urbanas. Quando Moisés Patrício e eu íamos conversando da Liberdade à Sé, nós a vimos imponente, uma inscrição gráfica em concreto armado com elementos vazados construído entre o Palácio da Justiça e a Catedral da Sé, entre a política e a religião. Longe do Brooklin, parte do centro de São Paulo tem historicamente uma forte presença negra, e andar por localidades como Bexiga, Barra Funda, Liberdade e Sé nos permite tomar contato com essa memória urbana cujos passos perdidos contam outras histórias da cidade. Quantos não foram os associados e lideranças da Frente Negra Brasileira, os jornalistas da imprensa negra e muito antes deles escravos, forros e libertos que por ali passaram? Agora somos nós os passantes, deslocando-se pela bagunçada, desigual, excludente e cara cidade de São Paulo. Cidade com rios para jogar lixo de todo tipo e racionamento de água. Um dos motivos desse quadro é o poder modelador da especulação imobiliária que com a permissão das autoridades urbanas interfere na cidade segundo interesses excludentes: vender mais explorando ao máximo os lotes. Privatizar espaços. Em 1988, quando Moisés já desenhava entretido com a relação papel e lápis, no clima de rechaço à ditadura militar e com forte participação dos movimentos sociais – negros, indígenas, mulheres – emergia a chamada constituição “cidadã”. Havia 100 anos fora abolida a escravidão, e São Paulo entraria para a história como a capital abolicionista; só em 1886 proibia-se a prática do açoite, mas muito dos valores escravistas permaneceriam na transição para o trabalho livre como informa a historiadora Lorena Féres da Silva Telles¹. As resistências da elite e do Estado por ela montado em inserir negros homens, mulheres e crianças como sujeitos de direito na sociedade republicana produziriam muitas outras formas de açoite. Os efeitos são sentidos até hoje: a violência institucional na saúde que atinge mulheres negras, a morte de jovens homens negros entre 15 e 29 anos nas periferias, as dificuldades de acesso a educação de qualidade e da apropriação de recursos universalmente disponíveis, segundo reza o sistema democrático. ¹Libertas entre sobrados: mulheres negras e trabalho doméstico em São Paulo (1880-1920). Lorena Féres Da Silva Telles Alameda Casa Editorial São Paulo, 2013

Imagem da série Aceita? (2013/2014), feita a partir de um telefone celular. Fotoperformance de Moisés Patrício


Com a escravização de populações africanas fixou-se a oposição ainda hoje presente entre atividades manuais e atividades mentais. Esta última seria atributo e privilégio de brancos, aos negros apenas o fazer manual: artesãos, empregadas domésticas, mecânicos, sapateiros, cozinheiras, jardineiros, amas-de-leite, amas-secas, carregadores, limpadores de toda sorte e pajens cujos corpos foram desgastados na estruturação da sociedade desigual que vivemos. Tudo no braço! Depois de 1995, Patrício iria do Brooklin para a Zona Leste acompanhando sua família que não se desagregou. No contexto da escravidão brasileira que ultrapassou na prática a década 1880, não foram poucas as famílias desagregadas no tráfico interno entre as províncias do Norte e as do Sudeste (Rio de Janeiro e São Paulo). A economia cafeeira, como já ocorrera em outros ciclos, desintegrara relações de afeto e pertencimento identitário. Respostas a essas ações estratégicamente calculadas pelas elites dominadoras, como sabemos, foram a criação do candomblé, a organização em quilombos e as Irmandades Negras. A mobilidade marca assim as trajetórias de indivíduos e famílias negras, na complexa diáspora a que ainda hoje estamos expostos. Basta vermos o que acontece com os habitantes pobres, quando a especulação imobiliária chega para ocupar um determinado lugar. Ela os expulsa para longe, para além da cidade com infraestrutura urbana de transporte, serviços públicos, saúde, cultura e educação. Com o deslocamen-

to surge também por parte dos prejudicados o desejo de ocupar, de chegar e se estabelecer em algum local para poder ficar. O deslocamento dos Patrício que originalmente chegaram de Minas Gerais decorria dos novos interesses que movimentaram o centro financeiro da Avenida Paulista para o Brooklin, seguindo uma trajetória de valorização espacial que retirou do centro de São Paulo a importância econômica e cultural que historicamente teve. A construção da sede paulistana da TV Globo, em 1999, no Brookin é um destes marcos a interferir diretamente na vida de Moisés. A chegada da emissora e a especulação imobiliária crescente que desapropriaram áreas de favelas o levaram para a Vila Industrial, região do Sapopemba, onde mora desde então. A periferia que começa a surgir na década de 1930, e em grande medida a Zona Leste, foram destinos procurados por negros desde fins da década de 1870: Penha, mais tarde Vila Matilde, Guilhermina Esperança e Vila Formosa já no século 20. Na região da Vila Industrial emergem as obras de Patrício que apresentamos neste texto articulando sensibilidade artística e experiência social. De fato, falar hoje da produção artística apenas considerando as formas plásticas das obras é improdutivo, pois essas dimensões se articulam, e nos mostram que o artista gênio vivendo fora da sociedade, passional e espacialmente apartado do mundo social faz pouco sentido. O trabalho de Moisés cuja poética liga-se ao gesto corporal de deslocamento, a ocupação e a reunião das materialidades residuais que compõe o assentamento urbano ataca o excesso de valorização

da arte e dos artistas como seres excepcionais. Segundo ele: “Parece que existe um pensamento nos artistas burgueses de que a arte é a coisa mais importante do mundo e que as outras áreas não servem. Isso é de uma arrogância absurda. Tem tanta coisa rica na ciência, na tecnologia, na religião, na física quântica...”, afirma. A EDUCAÇÃO PELA ARTE: A UNIVERSIDADE QUE FORMA E O CANDOMBLÉ QUE DESFORMA Muito antes de chegar à ECA (USP), onde se formou em 2004, aos três anos de idade, Moisés ganharia do pai, Manoel Patrício, prancheta, lápis de cor e folhas de papel. Segundo ele, o pai notara que enquanto estavam juntos o pequeno rabiscava entretido no desenho, daí o presente. Foi a mudança para a Zona Leste da cidade que permitiu a Moisés Patrício estabelecer contato com o pintor argentino Juan J. Balzi (1933), que manteve o projeto Meninos da Arte entre os anos de 1994 e 2001. “Comecei como aluno, depois virei assistente e ganhei uma bolsa de estudos para estudar desenho na Oficina de Artes de Santo André e depois entrei na USP para fazer Bacharelado em Pintura. Meu foco sempre foi desenho e pintura” relata o artista sobre sua formação. Essas aulas com Balzi, ainda menino, permitiu a Moisés tomar mais e mais contato com as artes visuais, que se tornariam uma forte e potente forma de comunicação, como afirmou na conversa que tivemos “Eu sou um produtor de linguagem”. Balzi levava a garotada para visitar Série Aceita? (2013/2014) Imagens feitas com telefone celular.

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exposições e Moisés foi acumulando repertórios e capacidade de interpretação, daí a arte, para ele ser comunicação e, mais ainda “percepção humana”. Nesse sentido ela é uma tecnologia de conhecimento do outro, do ambiente, das relações. Esse desejo de conhecer o outro e dividir com ele o mesmo espaço parece estar na gênese da criação de ações sócio-artísticas como M.A.O. U. (Movimento Artístico de Ocupação Urbana), e o coletivo A Presença Negra, cujo manifesto está publicado nesta edição. Moisés Patrício está entre os artistas contemporâneos negros ou afro-brasileiros – Ayrson Heráclito, Thiago Gualberto, Renata Felinto, Michele Mattiuzzi, Janaína Barros, Juliana Santos, Peter de Brito, Rosana Paulino, Paulo Nazareth que engrossam o debate, ainda pouco feito entre nós brasileiros, acerca das potencialidades do tratamento temático de questões raciais, forçando os limites do que vem a ser, afinal, uma arte afro-brasileira, afro-centrada. Uma definição possível para o conceito de arte afro-brasileira pode ser: produção plástica que é feita por negros, mestiços ou brancos em função de suas experiências sociais com a cultura negra nacional. Exemplos clássicos dessa abordagem são Carybé (1911-1997), Mestre Didi (1917-2013), Djanira da Motta e Silva (1914-1979), cujas obras emergem e ganham forma em razão do ambiente social no qual habitaram e viveram. Se Didi era um célebre representante da cultura religiosa nagô baiana e brasileira, iniciado desde o ventre no candomblé, Carybé era o argentino vizinho que naturalizado brasileiro envolveu-se de tal modo com essa religião que alguns dos orixás dos quais conhecemos a imagem visual foi ele quem difundiu, como também o fez o fotógrafo Pierre Verger (1902-1996) promovendo e publicizando as formas materiais e simbólicas do culto dos orixás. Djanira, contudo não tenha produzido apenas representações do candomblé, pintou Três orixás (1966), obra emblemática, hoje na coleção da Pinacoteca do Estado de São Paulo. O ferreiro José Adário (Zé Diabo), Sérgio Soarez e Ayrson Heráclito destacam-se entre os artistas que mantém esse trânsito dentro/fora, contudo esse último mobilize uma diversidade de formas expressivas como a performance, a fotografia e o vídeo atento a dimensão ritual da expressão artística. É possível alinhar alguns dos trabalhos de Moisés Patrício a tradição plástica que olha o candomblé, muitas vezes a partir de dentro, como é o caso de alguns dos artistas acima citados. Patrício, como eles experimenta esse movimento dentro/ fora. Iniciado a pouco mais de quatro anos, ele lembra que sua bisavó teve o terrei-

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Monotipia. Nanquim e guache sobre papel Hahnemuhle - 1,20 X 70 cm (2010)


ro destruído na cidade de Mendes Pimentel, no Sul de Minas, e foi perseguida durante o Estado Novo (1937-1945). Naquela época tinha que pedir autorização, hoje novamente as religiões afro sofrem as perseguições de grupos evangélicos que sob proteção do Estado atacam os terreiros e suas práticas numa revolta renovada. A intolerância religiosa está na ordem do dia. O deslocamento dos Patrício para São Paulo resultou no desapego com as tradições religiosas de matriz africana, mas como rei nunca perde a coroa Moisés vem por outras vias lidando com valores ancestrais que há muito estão presentes em sua historia familiar. Seus pais são evangélicos, mas há respeito quanto a sua adesão ao candomblé. Dona Madalena, sua mãe, discorda das repressões que ainda hoje acometem as religiões afro-brasileiras. Na conversa que tivemos, Moisés recupera um momento marcante em sua biografia. Há uns quatro anos atrás, quando visitava a casa de Pai Cido de Oxum, de quem é filho, no Parque São Lucas, teve contato com um dos patrícios mais importantes para o povo de santo de São Paulo. Tata (pai) Pérsio de Xangô, que faleceu em 2010. Pérsio ao olhá-lo assinalou sua energia, seu axé de nascimento, insinuando que havia nele um destino produtivo no santo. De certo seus parentes deixaram em seu corpo traços de sua experiência mística, do fazer mágico, do feitiço e do fuxico que estruturam a filosofia do orixá. Para Moisés, e nessa definição há muito da imaginação do candomblé, o corpo é “a mãe de todas as artes”. É ele a fonte para suas fotoperformances da série Aceita? ou dos deslocamentos de ocupação

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da cidade deslocando-se e habitando fábricas abandonadas M.A.O.U. e mesmo das ações político-culturais de corpo presente do coletivo A Presença Negra. Para abordar o problema do abandono das fábricas nesse país sem reforma agrária ele produziu uma série de monotipias “feitas com facas a partir do xirê de Ogum. Toda a produção foi assim. São azuis. Imagens que sangram”. Na série Aceita?, trabalho conhecido dentro e fora do Brasil, a mão tem preeminência, ela se abre em dádiva como podemos ver nas imagens que acompanham este texto. Essas mãos abertas, mas não menos o ato corporal de ocupar as fábricas há muito desocupadas colocam em relevo o desejo de compartilhamento, diálogo, de afeto e dádiva em rede, heranças de uma percepção da arte como forma de comunicação, comunidade, nesse sentido é forte a referência a família de santo. A série configura-se assim como uma espinha dorsal na poética do artista, pois ela sintetiza interesses articulados em torno das relações de trabalho, escravidão, assalariamento, sobrevivência, política, magia, democracia e estratégias artísticas de resposta a esse quadro social que insiste que negros limitem-se aos afazeres manuais. A mão visível de Moisés engaja-se no mundo e oferece um gesto estético que implica trabalho, técnica e libido quanto ao que ele quer ver e posteriormente mostrar ao mundo. No facebook e no instagram essas imagens circulam potentes, sugerindo uma economia não monetária, uma economia da dádiva e das trocas recíprocas. A beleza de mais de 650

imagens, feitas em forma de calendário poético e lúdico, oculta as dificuldades enfrentadas no momento de sua produção. “Já teve gente que, ao me ver fazendo fotos da série, chamou a Polícia”. Tal reação resulta do sentido performático que a produção da série implica ao levar para o espaço público a magia, a técnica e a política que configura seu produto artístico. Isso lhe permite refletir acerca dos usos, funções e sentidos do corpo negro na sociedade estratificada e seu lugar como artista. Como diz Moisés: “Um artista é um artista. Ser negro no Brasil é muito específico. Qualquer fronteira é complicado porque a prática da arte é não ter fronteira. Andar a deriva. Na minha profissão, ser negro está no meu gesto, no meu código, no meu corpo, na forma como eu me projeto e oferto minha arte. A série Aceita? tem uma coisa muito importante que é do lance da oferta”. A PINTURA DE UM PATRÍCIO URBANO O Dicionário Analógico da Língua Portuguesa, de Francisco Ferreira dos Santos fornece uma série de significados para o termo patrício. Eu separei alguns entre os muitos sinônimos apresentados, porque os sobrenomes indicam a vida social das palavras, suas funções e usos na construção da pessoa e da família como agentes sociais. Eles indicam pertença, herança, procedência, permanência, identidades. Patrício: Adj. Venerando, beatíssimo, ilustríssimo, excelentíssimo, meritíssimo, sereníssimo, digníssimo, magnífico. Patrício: amigo íntimo/ afim/ do peito/da alma/de fé/de taça/de copo/de todas as horas/ de verdade/ irmão/ conhecido/ anjo tutelar, boa estrela/ devoto/ adepto. OBS: Esse sentido foi apontado por Dona Maria Cecília Braga, de 77 anos, mãe do jornalista Nabor Júnior, como sendo de uso corrente entre os que se reconheciam negros na capital paulistana em meados dos anos 60. Patrício: habitante, morador, povoador, alma, hóspede, residente, cidadão, forasteiro, intruso, citadino, pátrio... A palavra patrício foi amplamente usada entre pessoas negras na cidade de São Paulo por meio da imprensa negra em jornais como O Clarim d’Alvorada, o Progresso e A Voz da Raça. O termo é recorrente, por exemplo, para julgar a atitude de negros indesejáveis no pós-abolição. O tom da fala do jornalista Moysés Cintra é policialesco:

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Um dever. “Hoje, infelizmente, ainda se vêem passar, pelos arredores, mesmo no coração da cidade, muitos patrícios que são escravos, não daquelles senhores carrascos, mas dos vícios que os tornam incapazes para tudo: principalmente ao trabalho, que é a base essencial da nossa vida material. Merecem compaixão, causam-nos dó! Quais os motivos que os obrigam a andar maltrapilhos, cobertos de chagas nos bancos públicos e sendo muitas vezes pensionistas de policia? E porque se deixaram dominar pelos vícios. Pela embriaguez constantemente, vemos chefes de família abandonarem seus lares; jovens que poderiam gozar uma velhice feliz, hoje porém como andam!... tornando-nos inúteis à Patria (...)”. Moysés Cintra – O Clarim d’Alvorada, São Paulo, 02 de março de 1924. A imprensa negra que naquele momento assumiu muitos dos valores brancos em voga, como o Patrício – irmão, cidadão, habitante ou ilustríssimo – do qual tratamos, mudou, mas nos fornece outros elementos para compreender o lugar social do artista negro na sociedade de classes. Para Moisés ser jovem e ser artista em “São Paulo é muito difícil”. Também pudera o universo das artes plásticas não apenas a contemporânea no Brasil é absolutamente fechado para a diversidade social, privilegiando certos assuntos e com isso também as origens sociais e econômicas dos artistas. Evidentemente o cenário se transforma, ainda que com lentidão, e as pressões por inserção no dispu-

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tado campo da arte contemporânea, que inclui galerias, instituições e coleções particulares e públicas é algo que se espera ocorra mais. Atualmente, Moisés é representado por três galerias de arte: Monica Filgueiras, Gabinete de Imagem, ambas em São Paulo e Artefacto, no sul do país. Essa possibilidade de estar em galerias não está aberta, porém, para todos os artistas. Nesse sentido ações coletivas como A Presença Negra tem posto em questão a visibilidade dos artistas, dos coletivos e da reflexão crítica afro-orientadas. Não se pode perder de vista que a internet e ferramentas de comunicação específicas como o Facebook e o Instagram tem efeito positivo no trabalho do artista que maneja bem essas ferramentas, quanto jogam papel decisivo, inclusive na crítica de arte, como bem notou o jornalista Silas Martí no encontro do grupo A Presença Negra, em meados de janeiro último, na casa do colecionador Omar Khouri. O trabalho de Moisés Patrício como de outros artistas interessados nas discussões sobre colonização, desigualdades sociais históricas, relações raciais e de gênero nos dá a possibilidade de ampliar a compreensão da produção artística contemporânea brasileira que é, aliás, muito mais diversa do que as exposições de arte contemporânea tem mostrado. A ausência de espaços de exibição alternativos, bem como a resistência de certos espaços culturais em abarcar a riqueza dessa produção é sintoma das desigualdades que estão na base da construção social do país.

ALGUMAS EXPOSIÇÕES DAS QUAIS PARTICIPOU Histórias Mestiças Curadoria Lilia Schwartz e Adriano Pedrosa Instituto Tomie Otakhe, SP (2014) Papel de Seda Curadoria Marco Antonio Teobaldo Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), RJ (2014) A nova mão afro-brasileira Curadoria Emanoel Araújo Museu Afro Brasil, SP (2013) Afro como ascendência arte como procedência Curadoria Alexandre Araújo Bispo Sesc Pinheiros, SP (2013) Aparecida – A Virgem Mãe do Brasil Curadoria Emanoel Araújo Museu Afro Brasil, SP (2012) ALEXANDRE ARAÚJO BISPO é graduado em Ciências Sociais, mestre e doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo; Diretor da Divisão de Ação Cultural e Educativa do Centro Cultural São Paulo (CCSP); atua como curador e crítico de arte interessado na produção artística que discute gênero e relações raciais. CHRISTIANE GOMES é jornalista, mestra em Comunicação e Cultura pela USP e coordenadora do corpo de dança do Bloco Afro Ilú Obá de Min.

SAIBA + SOBRE O ARTISTA instagram.com/moisespatricio PARA LER Arte Afro-brasileira para quê? Alexandre Araújo Bispo e Renata Felinto Revista O Menelick 2º Ato – Edição zer012 Disponível em: omenelick2ato.com Beleza e ascensão social na Imprensa Negra Paulistana, 1920-1940. Maria Aparecida de Oliveira Lopes Premier, 2012.

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texto FABIANA LOPES fotos GUTO MUNIZ (PRISCILA REZENDE) e HIROSUKE Kitamura (MICHELLE MATTIUZZI)

Eu acompanhava um grupo de colecionadores americanos em visita às galerias de São Paulo durante a semana da SP-Arte, em setembro de 2014. Enquanto observava obras numa grande galeria da cidade, um dos colecionadores foi abordado com a seguinte pergunta: “Como você descreve sua coleção?”. Depois de pensar por uns segundos ele respondeu “Minha coleção é formada, basicamente, por obras de artistas negros e de mulheres.” Vendo que a representante da galeria não expressava mais que um sorriso espantado, completei curiosa: “Você está, claramente, interessado num discurso muito específico, não é?”. Concordando com um sorriso, o colecionador voltou-se para mim e continuamos a conversa. Achei intrigante a reação de espanto da representante da galeria e sua aparente impossibilidade de sustentar uma conversa que combine os temas arte contemporânea, colecionismo, raça e gênero.

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“Eu achava que fosse encontrar muito mais arte que trata de questões de identidade, uma produção maior de artistas negros”, foi o comentário da editora de uma revista de arte americana enquanto seguíamos de táxi para a exposição de Mira Schendel, na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em setembro de 2014. Durante nossa conversa, compartilhei a crença recorrente no circuito local de arte de que não existem artistas negros ou de que isso não seja considerado, entre galeristas, colecionadores e curadores uma consideração relevante. Quando Oscar Murillo — artista colombiano que vive e trabalha em Londres —apresentou sua obra durante uma residência no Rio de Janeiro, em setembro de 2014, ele não fazia a menor ideia de quão profundamente seu trabalho ecoava a produção densamente política de artistas negros brasileiros contemporâneos seus. Em lugar de produzir pintura, como esperavam, Murillo se juntou aos funcionários do programa de Residência, uma casa no Jardim Botânico, e passou dez dias realizando atividades domésticas diárias: cozinhando, limpando, cuidando do jardim. Essa foi a resposta do artista ao cenário de desigualdade que ele encontrou ao chegar ao Brasil — um cenário bem distinto da ideia de harmonia e igualdade geralmente divulgado nas campanhas publicitárias de partidas de futebol. Essa também foi a maneira de superar o impacto emocional gerado por um ambiente que o artista considerou semi-colonial. Para galeristas, curadores, e colecionadores brasileiros — atores que definem o modus operandi do cenário mainstream da arte contemporânea brasileira — o trabalho de Murillo podia pare-

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cer fora de lugar e sem propósito, um projeto que tratava de coisas que não existem ou, se existem, não devem ser tocados. Entretanto, a obra de Murillo tecia um rico diálogo com manifestações artísticas que, apesar da rara presença no mainstream, estão em sintonia com os desafios de ser e estar e no presente momento. A intervenção de Murillo, bem como a reflexão que ela sugeria, levou-me imediatamente a pensar em obras que encontrei recentemente. Obras que, de maneira mais ou menos aprofundada, tratam de questões relacionadas à construção, percepção e negociação da identidade racial e/ou de gênero numa sociedade abertamente discriminadora. Tal é o caso da obra Bombril (2010) de Priscila Rezende (1985), uma performance em que a artista usa o cabelo para esfregar a superfície de utensílios domésticos metálicos comumente encontrados na cozinha, propondo um confronto aberto ao discurso discriminador dirigido ao corpo da mulher negra (foto ao lado). Também a obra de Janaína Barros (1979) que ativa essa discussão mobilizando objetos do contexto doméstico como luvas e aventais de cozinha customizados com paetês, rendas, bordados e pérolas. Outro exemplo é a obra Aceita? (2013-2014) de Moisés Patrício (1984). Na série o artista utiliza parcialmente o corpo para ativar, entre outras referências, parte essencial da economia do Candomblé, operando dentro de um território de aberta resistência. Renata Felinto (1978) em Danço na terra em que piso (2014), faz uma exposição efusiva da imagem de seu corpo negro feminino em movimento, posicionado estrategicamente em espaços permeados pela história e

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memória seja da cidade, seja da biografia pessoal da artista. Com essa obra, Felinto há um tempo apropria-se dos territórios em que atua e os reconfigura, celebra suas raízes e faz uma eloquente declaração política. Outro exemplo é Mercy Beaucoup, Blanco! (2012), de Michelle Mattiuzzi, performance em que a artista ativa um processo de desestabilização de construções sociais sobre o corpo feminino negro dentro do imaginário brasileiro. Também Paulo Nazareth (1977) que na série Cadernos de África (2012) desarticula, através de seu próprio corpo itinerante a produção e/ ou apropriação de objetos efêmeros, as posições fixas dos estereótipos raciais dentro da nossa sociedade. Na obra Sem Título (2013), um dos panfletos da série, o artista desafia diretamente a validade da epistemologia eurocêntrica como referência única para “observar”, “descrever”, “interpretar” e “entender” o mundo. FALANDO DAS COISAS QUE (NÃO) EXISTEM Enquanto essa relevante contribuição segue o seu curso, essa avalanche de enunciações e narrativas social e politicamente informadas, enquanto esses artistas deixam, para as próximas gerações, registros específicos do que significa estar presente e conectado com os desafios que a vida apresenta, no circuito de arte brasileiro parece haver, de um modo geral, uma negação sistemática da existência dessas produções — uma negação da existência mesma do colonialismo como processo histórico-social e de seus desdobramentos: econômicos e sociais, seus efeitos na história e memória das populações, os deslocamentos operados nas formas de ser e perceber a realidade, nos modos de comunicar-se e expressar-se, nos valores associados aos símbolos culturais ou aos usos que deles se faz. O Brasil quer ser europeu desde a segunda metade do século 19, mas sua ideia de Europa, predominantemente colonial, é desatualizada e carente de revisões. E no afã de ser europeu, apoiado na ilu-

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são do eurocentrismo — na centralidade do modo ocidental de ser e estar no mundo, de conhecer e de manifestar-se culturalmente — falha em reconhecer as formas de saber e operar que não respondam, ou dialoguem, com a tradição européia, que não traduzam sua epistemologia¹. Em contrapartida, e como os fragmentos de relatos compartilhados no início do texto tentam ilustrar, em outros lugares como Londres e Nova York é possível ver o resultado de brechas que começaram a se abrir durante as últimas três décadas. Em Nova York, por exemplo, tanto instituições públicas como espaços comerciais apresentaram exposições de artistas afrodescendentes que ganharam status internacional discutindo temas que fazem parte de suas experiências pessoais, como identidade racial e de gênero, racismo e sexismo, questões de classe, de invisibilidade, entre outros. Tais repertórios temáticos são considerados tabu no Brasil embora, como estou tentando mostrar, não faltem artistas abordando esses assuntos. Durante o inverno de 2013-2014, aconteceram exposições importantes em pelo menos três instituições da cidade. O Studio Museum of Harlem mostrou a exposição Radical Presence: Black Performance in Contemporary Art/Presença Radical: performance negra em arte contemporânea (entre novembro de 2013 e março de 2014). Com mais de trinta e sete artistas representados, a mostra explorou a contribuição em performance de artistas afrodescendentes do Estados Unidos e Caribe no decorrer dos últimos 50 anos. Radical Presence… coincidiu com a retrospectiva Carrie Mae Weems: Three Decades of Photography and Video/Carrie Mae Weem: três décadas de fotografia e vídeo, no Solomon R. Guggenheim Museum (entre janeiro e maio de 2014). A retrospectiva da artista cujos trabalhos convidam a contemplação de questões de raça, gênero e classe foi apresentada em cinco instituições do país e culminou com a apresentação no Solomon R. Guggenheim, New York². Radical Presence… coincidiu também com Wangechi Mutu: A Fantastic Journey/Wangechi Mutu: uma jornada fantástica, no Brookyn Museum (outubro de 2013 à março de 2014), a primeira exposição panorâmica da carreira da artista nos Estados Unidos.

¹O sociólogo e pensador peruano, Aníbal Quijano intoduziu, nos final dos anos 1980, o conceito de colonialidade, que entende o processo de dominação colonial não apenas em termos externos de subordinação de culturas às europeias (colonialismo), mas também como o que o autor define de “subordinação da imaginação do dominado”.

²A exposição foi apresentada nos seguintes museus e instituições norte-americanas: First Center for the Visual Arts (setembro de 2012 à janeiro de 2013), Portland Art Museum (fevereiro à maio de 2013), Cleveland Museum of Art (junho à setembro de 2013), Cantor Center for Visual Arts (outubro de 2013 à janeiro de 2014), e Solomon R. Guggemheim Museum (janeiro à maio de 2014).

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Através da combinação de objetos achados, recortes de revistas, escultura e imagens pintadas, o trabalho de Mutu (1972) explora questões de raça, gênero, guerra, colonialismo, consumo global e a exotização do corpo negro feminino. A artista é conhecida por suas colagens de figuras femininas em paisagens fantásticas, imagens essas que desafiam nosso impulso à categorização e identificação fáceis. A primavera e o verão de 2014 trouxeram alguns destaques importantes. Um deles foi a primeira obra pública de grande escala de Kara Walker (1969) organizada pelo Creative Time, A Subtlety: or the Marvelous Sugar Baby an Homage to the unpaid and overworked Artisans who have refined our Sweet tastes from the cane fields to the Kitchens of the New World on the Occasion of the demolition of the Domino Sugar Refining Plant/ Uma Sutilesa: ou a Maravilhosa “Sugar Baby,” uma Homenagem aos Artesãos que com trabalho excessivo e gratuito refinaram nosso Doce gosto desde os canaviais às cozinhas do Novo Mundo na Ocasião da demolição da Fábrica de Açúcar Refinado Domino³ (maio à julho de 2014). Instalada numa antiga Fábrica de Acúcar Domino, uma relíquia industrial do Brooklyn, a obra foi uma resposta ao edifício da fábrica e a história do açúcar. Em forma de mulher-esfinge, a obra é, segundo o curador Nato Thompson, um “híbrido de dois estereótipos racistas associados à imagem da mulher negra: a esfinge tem a cabeça feminina negra com um lenço amarrado, uma referência à mítica cuidadora das necessidades domésticas das famílias

brancas, especialmente o cuidado das crianças, e o corpo é a caricatura da hiper sexualizada mulher negra, com seios proeminentes, bunda gigante e uma vulva protuberante que pode ser vista desde a parte traseira da escultura”.4 E se essa evocação objeto cuidador e sexual acentuada pela cobertura em açúcar pode parecer ofensiva, o curador avisa ser esse exatamente o objetivo da obra. E é assim, como provocadora, que Walker é parcialmente conhecida. A série de exposições de artistas afrodescendentes em instituições de Nova York foi fechada com Chris Ofili: Night and Day/ Chris Ofili: noite e dia (entre outubro de 2014 e fevereiro de 2015), a primeira retrospectiva do artista inglês Chris Ofili (1968) – um dos membros do Young British Artists - nos Estados Unidos. A mostra foi organizada pelo New Museum. E se os brasileiros têm presença rara nos espaços comerciais (apesar da abundante produção de qualidade), notei poucas exposições de artistas negros em galerias entre os meses de agosto e outubro de 2014: em São Paulo, Paulo Nazareth, na Mendes Wood DM, Sónia Gomes (1948) na mesma galeria e Priscila Rezende na Galeria Rabieh — o mesmo não acontece com galerias internacionais. Grandes galerias comerciais americanas também tiveram exposições individuais com artistas afrodescentes durante o ano de 2014. Em abril a galeria David Zwirner, de Nova York, apresentou a primeira individual do artista Oscar Murillo, A Mercantil Novel/ Um Romance Mercantil (entre abril e julho de 2014). Nessa exposição, Murillo reproduziu, no

³Sugar Baby faz referência metafórica ao termo usado para o homem ou mulher jovem que recebe benefício financeiro em troca de um“sugar-daddy” ou uma “sugar-mama” em troca de sua companhia. 4

Veja declaração curatorial de Nato Thompson no site: www.creativetime.org.

espaço da galeria, a fábrica de doces (Colombina) sediada em sua cidade natal, La Paila, e na qual trabalharam boa parte dos membros de sua família, incluindo sua mãe. A Jack Shainman Gallery inaugurou em maio seu novo espaço em Kinderhook, Nova York, com uma exposição e performance do artista Nick Cave (1959). Durante os meses de setembro e outubro Cave teve individuais concomitantes nos dois espaços da galeria no Chelsea. Ainda na Jack Shainman Gallery foi possível ver, durante o segundo semestre, a individual da jovem artista nigeriana-americana Toyin Odutola (1985), Like the Sea/Como o Mar (maio de 2014), dos artistas El Enatsui (1944), Trains of Thought/Linha de pensamento (outubro à novembro de 2014) e Kay Hassan (1956), Everyday People/Pessoas comuns (outubro à novembro de 2014), bem como a individual da pintora inglesa Lynette Yiadom-Boakye (1977), The Love Within 1 e 2/O Amor de Dentro (de novembro de 2014 à janeiro de 2015). A Metropictures apresentou também no segundo semestre a individual de Gary Simmons (1964), Fight Night/Noite de Luta (outubro à dezembro de 2014) e a galeria Sikkema & Jenkins mostrou Afterword/Posfácio (novembro de 2014 à janeiro de 2015), individual de Kara Walker baseada no processo de criação e resultados da obra pública na Fábrica de Açúcar Domino. A exibição incluía as notas e os sketches que culminaram na escultura, desenhos feitos durante a exposição na fábrica e peças documentais sobre a desinstalação da obra. A sala principal da galeria expôs o punho esquerdo cortado da es-

finge-mulher, cujo gesto lembra uma figa afro-brasileira. Mesmo em São Paulo a galeria White Cube inaugurou uma individual da artista Julie Mehretu (1970) em setembro de 2014, essa antecedida pela mostra do artista Mark Bradford (1961) entre abril e junho de 2014. No Rio de Janeiro a galeria David Zwirner ocupou boa parte de seu stand com obras do artista Oscar Murillo durante a ArtRio 2014. Embora não tão recente como as mostras do ano passado, vale a pena citar uma exposição que aconteceu no espaço expositivo de uma coleção privada nos Estados Unidos. Em Dezembro de 2008 a Rubell Family Foundation em Miami inaugurou 30 Americans/30 Americanos. A exposição apresentou o trabalho de muitos dos mais importantes artistas afro-americanos das últimas três décadas. Segundo informações disponibilizadas pelo website da coleção, a mostra, que até agora viajou por seis museus nacionais, trata de questões de “identidade racial, sexual e histórica na cultura contemporânea e explora a influência do legado artístico em diferentes gerações.” Em Londres durante a semana que coincide com a feira de arte Frieze, em outubro de 2014, foi possível ver exposições de artistas importantes como David Hammons (1943), na galeria White Cube, Karry Marshall James (1955), na David Zwirner, Wengetti Mutu na Victoria Miró. A existência de instituições dedicadas exclusivamente a minimizar o problema de invisibilidade cultural e falta de diversidade


nos programas das instituições culturais do mainstream contribuem para a disseminação de práticas artísticas mais abrangentes. Um exemplo é o Iniva (Institute of International Visual Arts), ou Instituto de Artes Visuais Internacionais, instituição dedicada a endereçar os desníveis de representação de artistas, curadores e escritores culturalmente diversos. Um outro exemplo é o Rivington Place, um espaço de artes focado em colaborar com novos debates nas artes visuais, refletindo a diversidade cultural da sociedade contemporânea, através da apresentação e disseminação de práticas geralmente marginalizadas. E o Autograph ABP que advoga a inclusão de práticas fotográficas historicamente marginalizadas, tratando de questões de identidade cultural e direitos humanos.

Suspended Playtime (2008), instalação da artista queniana radicada nos Estados Unidos, Wangechi Mutu.

pág. 54 Performance Bombril, da artista visual Priscila Rezende, em apresentação realizada no Memorial Minas Gerais Vale, em 2013. pág. 58 Mercy Beaucoup, Blanco! (2012), de Michelle Mattiuzzi, performance instalação em site specific. pág. 59 Detalhes da obra Subtlety: or the Marvelous Sugar Baby... (2014), de Kara Walker, instalada na antiga Fábrica de Açúcar Domino, no Brooklyn (NY).

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Esses exemplos ilustram uma diferença de posicionamento entre instituições públicas, galerias e coleções particulares internacionais e seus correspondentes brasileiros. O mainstream da arte contemporânea internacional, pelo menos nos exemplos aqui analisados, parece estar mais aberto a espelhar a diversidade cultural da sociedade contemporânea em que está inserido. Entretanto, no circuito de arte contemporânea brasileiro, e diria que na sociedade brasileira como um todo, diversidade cultural é percebida como tabu e, por isso, deve ser mantida longe dos olhos e fora da pauta de discussão e fruição estéticas. Assim, presos como parecem estar a uma definição conservadora de arte e sociedade, os promotores da arte contemporânea brasileira deixam escapar o que talvez seja uma das características decisivas, definitivas e definidoras da chamada produção contemporânea: responder à vibração do agora5, conectar com o desafio, a incerteza, o desconforto, “a dor e a delícia”6 de ser no presente.

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A expressão foi emprestada do curador e consultor de arte Simon Watson à partir do texto introdutório publicado em seu website. simonwatsonarts.com.

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Referência ao trecho da música Dom de Iludir (1986), de Caetano Veloso, que diz: “cada um sabe a dor e a delicia de ser o que é…”

FABIANA LOPES é curadora independente, vive e trabalha entre as cidades de Nova York e São Paulo. Licenciada em Letras pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho, Pós-graduada em Relações Públicas e Comunicação respectivamente pela Fundação Cásper Líbero e USP, e Mestre em Arte Contemporânea pelo Sotheby’s Institute of Art, de Nova York.

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A

P resença

N egra

M anifesto

Em resposta a esse contexto segregador e excludente em que estamos inseridos, propomos uma ação cultural que congregue artistas e intelectuais afrodescendentes: A Presença Negra. A Presença Negra é uma ação pacífica e alegre, um ato consciente e subversivo que tem como propósito preencher a lacuna que existe entre a comunidade de artistas negros e certos espaços sociais, por meio da ocupação de galerias, museus e instituições culturais, por um grande número de afrodescendentes, em dia de abertura de exposição. O mote da ação é a apreciação da mostra. A exposição na qual deverá ocorrer a ação é escolhida com antecedência e os participantes são convidados a chegar no transcorrer da mesma, de modo que a ocupação ocorra aos poucos. O convidado receberá com antecedência um texto contendo todas as informações para a participação e deverá confirmar sua presença e manter sigilo quanto ao evento escolhido.

O Brasil é um país com uma rica e complexa configuração étnica e cultural. Entretanto, a desproporção na representação numérica de afrodescendentes em certos espaços sociais, e mais precisamente no contexto das artes visuais, é surpreendente e reveladora.

Com a participação n’A Presença Negra, vamos exercer nosso direito de circular livremente por diferentes espaços sociais, vamos nos apropriar dos territórios que também nos pertencem. Com A Presença Negra vamos nos fazer visíveis para desestabilizar o status quo, provocar reflexões e gerar mudanças.

É bem pouco comum encontrar artistas afrodescendentes representados no rol de artistas das galerias comerciais, bem como na maior parte das exposições de artes visuais no País. Essa realidade se reforça com o corrente discurso de que não existem artistas afrodescendentes no Brasil.

“A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.” (Milton Santos).

A presença negra está circunscrita e limitada a contextos de manifestação e fruição culturais bem específicos. Essa invisibilidade programada e sistemática tem se perpetuado por meio de processos não verbais de intimidação que negam aos afrodescendentes a possibilidade de apropriação de certos espaços e do exercício de convivência social nos mesmos.

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Manifeste-se, marque sua presença!

Moisés Patricio e Peter de Brito São Paulo, Fevereiro de 2015

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R e v i s õ e s negras e

d a s

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m e m ó r i a s

H i s t ó r i a

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B rasil

texto Maria Aparecida de Oliveira Lopes

Escrever para a revista O Menelick 2° Ato é um ato político e de satisfação por saber que artistas, jornalistas, intelectuais, professores, enfim, que a equipe da revista, continuou o trabalho dos ativistas lá da antiga e promissora imprensa negra¹ e seus movimentos sociais. Este texto apresenta reflexões sobre as efemérides da História do Brasil. As efemérides se referem as datas de acontecimentos que envolvem a população negra no Brasil. No livro Dicionário de Datas da História do Brasil, organizado por Circe Bittencourt, encontram-se alguns textos que fazem referência as efemérides negras. No sumário é possível encontrar um texto que consagra a efeméride do Levante dos Malês, em Salvador (25 de janeiro de 1835), escrito por João José Reis. Outro referente a Nossa Senhora Aparecida (12 de outubro de 1980), de Jaime Almeida. Mais um sobre o Dia da Consciência Negra (20 de novembro), de Marco Antonio de Oliveira. E por fim, aquele da Revolta da Chibata (22 de novembro de 1910), de Regina Behar. Faltou neste Dicionário de Datas da Historia do Brasil uma análise do dia 28 de setembro de 1871, Lei do Ventre Livre, para não falar ainda da Lei de Sexagenário, o dia 21 de março, entre outras.

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¹IMPRENSA NEGRA. Tratam-se de pequenas publicações das associações dançantes, culturais, recreativas e políticas que surgiram em 1904 no meio negro. As associações congregavam os membros dos clubes de negros, que se reuniam normalmente aos finais de semana e serviam de convívio para as famílias negras. Elas promoviam bailes, cursos de música, literatura, culinária, beleza, alfabetização, jogos, palestras sobre cultura negra, etc. Essa imprensa teve por objetivo dar voz e espaço aos negros, o que era raro nos círculos das elites e da cultura letrada da cidade. Nestas folhas os ativistas negros apresentavam seus interesses, projetos e concepções.

Nesta mesma obra consta o capítulo destinado a efeméride 13 de maio de 1888. Nele Antonia Terra informa que o 13 de maio estabeleceu a abolição, quando a população invadiu as ruas comemorando o fim de um sistema de trabalho de três séculos e meio. Na ocasião, quase oitocentos mil brasileiros foram libertados. Nos anos seguintes, ex-escravos retomaram as comemorações. Em 1890, o governo republicano instituiu o 13 de maio como o Dia da Fraternidade Brasileira. O sistema escravista foi introduzido na América pelos europeus e envolveu populações indígenas e, a partir de 1532, africanas. Em 1758, o marques de Pombal proibiu a submissão dos índios, e a escravidão africana permaneceu lucrativa para senhores da terra, comerciantes brasileiros e europeus por mais de 130 anos. A produção das grandes propriedades de açúcar, da exploração do ouro, no trabalho e na produção do café, era baseada na mão de obra escrava. Calcula-se que o Brasil tenha recebido entre quatro a seis milhões de africanos escravizados. O país foi o último da América a acabar com a escravidão. O objetivo aqui, na revista O Menelick 2° Ato não é apenas discutir as leis de libertação mas como, sobretudo, as vivências das populações negras instigaram revisões pela memória e pela História desta efeméride, que logo deixou de ser festejada de modo unânime. Parte das novas gerações passou a encarar a lei apenas como uma conquista jurídica, já que a população negra permaneceu em uma situação desprivilegiada e com o encargo de lutar contra a

discriminação racial. Neste espaço vislumbra-se ainda uma leitura das revisões pela memória e pela história de outras efemérides negras, além do 13 de maio. Na luta contra o racismo, muitas críticas recaíram sobre o 13 de maio, entendida como uma data oficial que atribuía à princesa Isabel o papel de redentora, sem mencionar a resistência e a luta dos próprios escravos contra o cativeiro. Como contraponto, os movimentos sociais negros e as organizações, no século 20, criaram outras datas, simbolizando outras lutas e memórias. O 13 de maio passou a ser o Dia Nacional da Denúncia contra o Racismo no Brasil; o 20 de novembro, data do assassinato de Zumbi, o Dia da Consciência Negra; o 7 de julho o Dia Nacional Contra o Racismo, e o dia 21 de março, o Dia Internacional da Luta Contra o Racismo. Antes dos anos 30, alguns setores da sociedade paulista festejavam o 13 de maio de 1888. Algumas comemorações de caráter festivo foram registradas pela historiadora Eloíza Silva, em sua dissertação sobre a história de vida das mulheres das escolas de samba paulistanas. Ela conta, por exemplo, sobre a necessidade de se criar locais de lazer para a população negra nos finais de semana ou em datas comemorativas como o 13 de maio. A casa da Tia Olímpia (uma espécie de lenda feminina do samba paulistano) na rua Anhanguera, no bairro da Barra Funda, foi um dos locais de comemoração. A festa, realizada em um terreno ao lado da sua casa, atraia parentes e amigos que realizavam rodas

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de samba e batuques. O mesmo acontecia na casa do Zé Soldado, morador do bairro do Jabaquara, na cidade de Santos, onde se registrara um populoso quilombo no período que precedeu a abolição. Havia também a festa de Santa Cruz, realizada no dia 13 de maio na Baixada do Glicério, que transcorria ao som de instrumentos musicais, principalmente os de percussão como o bumbo e a zabumba. Por fim, Eloíza Silva conclui que, embora esses eventos tivessem contribuído diretamente para a organização do carnaval negro da cidade, poucas foram as instituições formadas com esta finalidade. A ausência de cidadania não impediu que surgissem estratégias de sobrevivência em lugares onde os negros construíram seus próprios territórios de liberdade. Estes espaços se transformaram em lugares privilegiados de elaboração e preservação da memória negra e, consequentemente, de luta pelo reconhecimento social. Em várias regiões do país surgiram associações, entidades e clubes formados pela população negra, como O Clube Treze de Maio de Botucatu. As comunidades dos descendentes de africanos praticavam o congo, o jongo ou o batuque de umbigada para celebrar a liberdade e recordar os tristes tempos dos cativeiros. Por meio dos espaços de socialização é possível pensar a formação da identidade negra e o modo como o 13 de maio de 1888 marcou a formação identitária, sendo preservado ou reinterpretado. Nesta direção, outra obra instigante é a dissertação de Ana Rita Araujo Machado, que analisa a construção da memória social sobre as comemorações do 13 de maio. A autora estudou a Festa do Bembé do Largo do Mercado, que acontece na cidade de Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano ao problematizar as lembranças da comunidade que realiza a festa, os adeptos dos candomblés, capoeiristas e participantes de maculelê. Bembé é uma festa realizada pelas comunidades de terreiro e começou em 1889, quando João de Obá – “pai de terreiro” – reuniu filhos e filhas de santo e armou um barracão de pindoba, enfeitando-o com bandeirolas para comemorar o aniversário da abolição.

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Esta atitude de João de Obá refletia os costumes dos pescadores em ofertarem flores e perfumes para a Mãe D’água. Eles iam de canoas e saveiros enfeitados até São Bento das Lajes para levar presentes para as “águas”. Esse ritual era acompanhado por toques de atabaques. Chegando ao encontro entre o rio e o mar, um pescador experiente mergulhava para entregar as oferendas. Os adeptos dos terreiros de candomblés continuaram realizando os festejos do Bembé. Nas décadas de 1920 e 1930, alguns assumiram as realizações dos preceitos, a exemplo do Ogã Mininho. Neste período, os preceitos e rituais eram mantidos em sigilo e somente as pessoas ligadas ao culto, a exemplo de Toninho do Peixe, sabiam dos fundamentos que caracterizavam o Bembé. Em razão da repressão pela qual passavam os candomblés baianos, na década de 1950, era necessário pedir autorização policial para a realização da festa, que sempre era concedida. Entretanto, em 1956, um delegado da cidade proibiu a realização dos festejos do 13 de maio. Segundo depoimento dos moradores da cidade, ele e sua família sofreram um acidente automobilístico, sendo este episódio atribuído ao ato de proibição da festa. Em 1958, aconteceu a explosão de duas barracas de fogos no largo do mercado, na véspera de São João, fato que também foi associado pelos adeptos ao ato de “proibição”. Para Ana Rita Araujo o Bembé não carrega a lógica do catolicismo popular, a exemplo da festa de nossa Senhora da Purificação que acontece no dia 2 de fevereiro, com procissão, missa e cortejo da santa até a Igreja da Matriz. O Bembé caracteriza-se pelos diversos rituais que compreendem o universo do culto aos orixás, sendo que o calendário da festa coincide com o da semana do dia 13 de maio. Nos primeiros dias que antecedem essa data, começam as cerimônias de preparação do Bembé. Os ritos destinados aos ancestrais e a Exu são realizados nas vias que dão acesso à cidade. O objetivo desse ritual é evitar complicações, propiciar bons acontecimentos e “abrir caminhos”. Essa cerimônia é restrita, pois as pessoas que dela participam são ligadas aos terreiros e se responsabilizam pela organização da festa. Há uma sequência na realização desses ritos e o de Iemanjá é um dos mais significativos, uma vez que a festa é em sua homenagem, mas também ocorrem oferendas para Oxum.

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Iemanjá é uma divindade que concretiza, segundo a lógica cosmológica, um dos princípios geradores da vida, o princípio simbolizado pela água que é um dos aspectos de manifestação do poder vital. Logo, se relaciona a Iemanjá, a gestação existencial da fertilidade. No Brasil, seu culto está associado às águas salgadas e é visto como princípio feminino que dá origem às diferentes formas de existência, bem como é associado à maternidade. O evento histórico como o 13 de maio é importante para a compreensão da cultura negra brasileira, porque demonstra que os orixás, voduns ou inquices não são entidades apenas religiosas, mas principalmente suportes simbólicos, isto é, condutores de regras de trocas sociais. Em outras palavras, festejar o 13 de maio, nos termos da tradição das comunidades de terreiro, implica aderir a uma lógica de pensamento, um sistema capaz de responder aos sentidos da existência do grupo e assegurar a identidade étnico-cultural. Existe uma infinidade de práticas e reflexões sobre o 13 de maio. Tais reflexões sobre o 13 de maio podem ser aprofundadas no capítulo Narrativas e significados das efemérides para a História do Brasil, presente no livro O Movimento Negro, sob os Significados da Justiça Social (2009) organizado por Amauri Pereira e Joselina da Silva. Para finalizar, interessa dizer que a data que mais se contrapõe ao treze de maio é o 20 de novembro. Este debate esteve e está presente nas comemorações das organizações negras, na mídia e nos discurso de outros setores da sociedade. Destaco aqui as ideias de Oliveira Silveira - referentes ao 20 de novembro - pela importância do seu pensamento e atuação política. No livro, Histórias do Movimento Negro no Brasil - Depoimentos do CPDOC (Pallas Editora, 2007), há uma passagem em que Oliveira Silveira narra que a ideia de sobrepor o dia 20 de novembro ao 13 de maio surgiu na efervescência das organizações negras no Rio Grande do Sul. Houve algumas apresentações de teatro na década de 1960, como a peça Orfeu da Conceição, uma montagem feita por dois grupos negros: a Sociedade Aurora, chamado Teatro Novo Floresta Aurora, e o GTM, Grupo de Teatro Marciliense. Estes grupos se uniram e fizeram uma peça, que foi apresentada no Teatro São Pedro de Porto Alegre. A partir do contato com estas pessoas, como Antonio Carlos Cortes, Oliveira Silveira passou a participar de uma associação informal que se encontrava na rua da Praia e ali conversaram sobre questões da

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negritude. Para Oliveira Silveira, Jorge Antonio dos Santos, outro ativista lá do sul, era um dos principais críticos do 13 de maio. Conforme explicou Silveira a reivindicação pelo 20 de novembro foi anunciada em jornal, rádio e televisão. Considerou que a partir deste período as manifestações do 20 de novembro começaram a ganhar visibilidade nacional. Percebe-se, então, que uma parte dos ativistas negros transformaram zumbi em um símbolo da cultura negra e ainda em um personagem síntese da escravidão. Numa versão histórica engajada, evocar zumbi como símbolo significava pensar o negro como agente da sua própria história, como responsável pela conquista da sua própria liberdade. Como apontou Décio Freitas, no livro Palmares, a guerra dos escravos, essa revolta ocupa um lugar especial na história. A conquista desse lugar se deve ao fato desta revolta ter sido a primeira e a de maior envergadura. A rebelião projetou-se como o acontecimento dominante da história pernambucana e como um dos mais sérios problemas que a administração colonial lusitana teve que enfrentar no Brasil. Inúmeras vezes a extinção de Palmares assumiu importância considerável a da expulsão dos holandeses, tanto que mais de 30 expedições marcharam contra o quilombo. Este pesquisador admite que, na história da América, esta rebelião só perdeu em importância para a revolta escrava do Haiti.

PARA LER Dicionário de Datas da História do Brasil. Circe Bittencourt. Editora Contexto, 2007. História e memória do negro: efemérides, símbolos e identidade. Maria Aparecida de Oliveira Lopes Tese do programa de História da Unesp, 2007. Bembê do Largo do Mercado: Memória sobre o 13 de maio Ana Rita Araújo Machado Programa Multidisciplinar de Estudos Étnicos e Africanos, UFBA, 2009.

MARIA APARECIDA DE OLIVEIRA LOPES é Mestre e Doutora em História. Professora da Universidade Federal do Sul da Bahia, campus de Porto Seguro. Escreveu a tese História e Memória dos negros em São Paulo: efemérides, símbolos e identidade (1945-1978), e a dissertação Beleza e ascensão social na imprensa negra paulistana, 1920-1940. ¹IMPRENSA NEGRA. Tratam-se de pequenas publicações das associações dançantes, culturais, recreativas e políticas que surgiram em 1904 no meio negro. As associações congregavam os membros dos clubes de negros, que se reuniam normalmente aos finais de semana e serviam de convívio para as famílias negras. Elas promoviam bailes, cursos de música, literatura, culinária, beleza, alfabetização, jogos, palestras sobre cultura negra, etc. Essa imprensa teve por objetivo dar voz e espaço aos negros, o que era raro nos círculos das elites e da cultura letrada da cidade. Nestas folhas os ativistas negros apresentavam seus interesses, projetos e concepções.

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de ícones da música negra norte-americana, como por exemplo: James Brown (samples das músicas The Payback, Mind Power e Funky Drummer em Pânico na Zona Sul), Barry White and The Love Unlimited Orchestra (samples de Strange Games and Things na faixa Beco Sem Saída) e Public Enemy (samples de Don´t Believe the Hype em Hey Boy). A clássica Corpo Fechado, de Thaíde e Dj Hum, também aparece sampleada na música Tempos Difíceis.

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texto NABOR JR colaboração MÁRCIO MACEDO (KIBE) foto JAMEL SHABAZZ

Em 2015, o seminal Holocausto Urbano, álbum de estreia do grupo paulistano de rap Racionais MC´s, completa 25 anos. Lançado em 1990 em formato EP (Extended Play) – ou seja, um disco com menos faixas e com menor duração do que um LP convencional, o álbum precisou de pouco mais de 29 minutos para abalar as estruturas do hip hop brasileiro e influenciar toda uma efervescente cena rap que já vinha sendo pavimentada por grupos e mc´s como Pepeu, Código 13, Thaíde e Dj Hum, O Credo, MC Jack, Os Metralhas, Geração Rap, Região Abissal, Ndee Rap, entre outros. Primeiro álbum de estúdio dos Racionais MC´s, Holocausto Urbano foi lançado pelo selo independente Zimbabwe Records, uma das facetas

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da Equipe Zimbabwe, tradicional equipe de bailes blacks da cidade de São Paulo e que ao lado de outras não menos importantes como Chic Show (O Som das Ruas, 1988) e Kaskata´s (A Ousadia do Rap, 1987), teve participação fundamental não apenas da divulgação e propagação do gênero em si - através das festas que promoviam - mas como também na viabilidade da produção fonográfica desta fase inicial do rap brasileiro. A produção do disco ficou a cargo do virtuoso Dj Kl Jay e da dupla santista Marcelo e Alexandre, do Dynamic Duo. Se comparado aos trabalhos posteriores do grupo, Holocausto Urbano possui uma produção mediana – obviamente, não para a sua época com batidas simples e alguns poucos samples

Mas foi a potência dos versos e da poesia presentes do trabalho o tapa na cara proporcionado pelo álbum. Holocausto Urbano foi o grito entalado na garganta e, até então, a expressão máxima - e mais próxima - das angústias dos jovens e negros das comunidades pobres e das periferias brasileiras. As letras do disco denunciavam de forma direta e sem rodeios o racismo, a vida na periferia, a desigualdade social, a miséria, a violência policial, a hipocrisia e a demagogia burguesa, bem como o abandono do Estado. Veemência e politização estas incomuns para o período, especialmente se analisarmos o que vinha sendo produzido em termos de rap nacional nos anos de 1980. Vale ressaltar, porém, o pioneirismo no embate contra o status quo protagonizado pela hoje famosa Homens da Lei, de Thaíde e Dj Hum, música lançada no disco Hip Hop Cultura de Rua (Gravadora Eldorado, 1988). Com Holocausto Urbano, o Brasil, quase 20 anos depois do surgimento do rap nos Estados Unidos, finalmente se colocava em pé de igualdade e em sintonia com o que de mais inteligente vinha sendo produzido no berço do rap que, através das letras de grupos como KRS-One, NWA e

Public Enemy, já vinham balançando as estruturas dominantes do país com mensagens extremamente politizadas que contribuíram para a formação intelectual de toda uma geração de jovens negros e latinos em solos estadunidenses. Holocausto Urbano vendeu cerca de 30 mil cópias. Não demorou muito e as seis faixas do disco: Pânico na Zona Sul, Beco Sem Saída, Hey Boy, Mulheres Vulgares, Racistas Otários e Tempos Difíceis, tornaram-se clássicos para um ainda restrito público que já acompanhava a cena rap de então. Em 1991, como consequência do impacto do disco, o grupo abriu o show dos norte-americanos do Public Enemy, em São Paulo, em uma antológica apresentação do ginásio do Ibirapuera. Podemos dizer que Holocausto Urbano conduziu o rap nacional, de fato, a outro patamar, aprimorando tudo o que se vinha fazendo em termos de rap até então, ditando qual caminho o gênero percorreria nos anos que o sucederam e dando início a hegemonia dos Racionais MC´s como principal grupo de rap do país. Importante destacar a influência intelectual da figura do ativista político-musical Milton Salles dentro deste contexto. Produtor do grupo até 1995, Salles foi responsável por unir Brown, Kl Jay, Ice Blue e Edy Rock e, muito provavelmente, uma das referências que germinou as ideias engajadas relacionadas à consciência política, social e racial cantadas pelo grupo. Mas será que hoje, 25 anos depois do lançamento do disco, o rotineiro Holocausto Urbano,

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como destacou Brown na letra de Pânico na Zona Sul, ainda persiste? Nossos motivos para lutar ainda são os mesmos? O preconceito e o desprezo ainda são iguais? As leis ainda são implacáveis com os oprimidos? Buscando refletir sobre as letras do disco, bem como mensurar a potência dos versos, da coerência ideológica e traçar um paralelo entre as aspirações, sonhos e denúncias levantadas pelo grupo na ocasião e atual conjuntura sócio racial do Brasil e do mundo, produzimos uma conversa paraficcionalmusical com os autointitulados quarto pretos mais perigosos do Brasil. Um verdadeiro beco sem saída para eles.

anos de Holocausto Urbano, por exemplo. Não queria falar de inocentes, nem culpados, nem polícia, nem de... EDY ROCK: Aqui é Racionais MC´s. (...) vítimas de uma ingrata herança.

OM2ºATO: Salve Racionais! Fazia tempo que queria trocar essa ideia com vocês. Tudo certo? MANO BROWN: Certo não está né mano. Qual é a mão?

OM2ºATO: Oculta seria a realidade, é isso? Você quer dizer que as ruas refletem a verdade? EDY ROCK: Não pergunte pra mim, tire você a conclusão.

OM2ºATO: Como assim! Porque não? MANO BROWN: …e os inocentes, quem os trará de volta? Quantos terão que sofrer para se tomar providências? Ou vão dar mais algum tempo e assistir a sequência. Eu não serei mais um porque estou esperto. Continua-se o Pânico na Zona Sul.

OM2ºATO: Bom... minha conclusão é que quase nada mudou nas periferias brasileiras desde Pânico na Zona Sul. Soube através de umas pesquisas divulgadas no ano passado que a morte de jovens negros – maioria nas periferias do país - cresceu 21% em cinco anos. Muito foda isso, não!?¹ MANO BROWN: Se eu fosse citar o nome de todos que se foram. O meu tempo não daria pra falar...

OM2ºATO: Inocentes? Trazer de volta? Você está e referindo a banda de punk rock Inocentes, do Clemente Nascimento e pá? Mas se não me engano, eles não são da Zona Sul... MANO BROWN: Gostei, gostei… OM2ºATO: Foi só uma brincadeira pra descontrair. Não me levem a mal. Mas gostaria de falar de coisas boas e tal, sobre os 25

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OM2ºATO: Pode crê! Vocês que mandam, então. Vamos falar sobre... MANO BROWN: A realidade das ruas OM2ºATO: Firmeza! Um assunto urgente. O que a rua significa para vocês? EDY ROCK: As ruas refletem a face oculta. Esse é o meu ponto de vista.

OM2ºATO: Vários irmãos, né? A periferia segue sendo um lugar esquecido pela sociedade, não? MANO BROWN: O abuso é demais. Levam cada vez mais irmãos aos bancos dos réus. Mal te conhecem te consideram inimigo. Espancam

negros nas ruas por motivos banais. Então a velha história outra vez se repete. OM2ºATO: O conhecido cotidiano das periferias que vocês cantaram há 25 anos segue atual nos dias de hoje... MANO BROWN: Só quem é de lá sabe o que acontece. Nossos motivos para lutar ainda são os mesmos. O preconceito e o desprezo ainda são iguais. E nossos ancestrais por igualdade lutaram, se rebelaram, morreram... OM2ºATO: E vocês sabem muito bem “quem é de lá”, não!? Já que atualmente 67% dos habitantes das favelas brasileiras são negros?² EDY ROCK: A burguesia, conhecida como classe nobre, tem nojo e odeia a todos nós, negros pobres. Por outro lado, adoram nossa pobreza, pois é dela que é feita sua maldita riqueza. E na verdade, de nós estão rindo. OM2ºATO: Forte essa declaração, hein. Parece até que não há luz no fim do túnel. EDY ROCK: A esperança é a primeira que morre. Tempos difíceis. A saída é essa vida bandida que levam. Roubando, matando, morrendo.... E assim aumenta a violência. OM2ºATO: E porque essa realidade nos acompanha ainda hoje, mano, em pleno século 21? MANO BROWN: Pois simplesmente é conveniente. No meu país o preconceito é eficaz, te cumprimentam pela frente e te dão um tiro por trás. Para eles tanto faz, não passará de simples fotos nos jornais.

OM2ºATO: Falando em jornais. Como analisam o tratamento que a mídia – especialmente as grandes corporações, e os jornalistas de uma maneira geral, dão aos negros, aos pobres e outas minorias aqui no Brasil? MANO BROWN: O sensacionalismo para eles é o máximo. São pessoas assim que fodem com tudo. OM2ºATO: Vocês tem uma opinião sobre o porquê desta postura por parte da grande mídia, em sua maioria, que tenta tapar o sol com a peneira? MANO BROWN: Ninguém quer ouvir a nossa voz. E nós estamos sós. E pode crer, a verdade se omite. OM2ºATO: Quando você diz a “nossa voz”, você quer dizer a voz do negro, a voz da periferia, ou de ambos? Pode explicar melhor? MANO BROWN: A nossa filosofia é sempre transmitir a realidade em si... mas se analisarmos bem mais, você descobre que negro e branco pobre se parecem mas não são iguais. OM2ºATO: Entendi. Esse seu pensamento, porém vai de encontro aos que são contrários as cotas, ações afirmativas. O que acha do posicionamento dessas pessoas? MANO BROWN: Ao que me parece prevalece a ignorância. OM2ºATO: (risos). Demagogia pura. MANO BROWN: Então que fodam-se eles com sua demagogia. OM2ºATO: O pior é que neste sistema em que vivemos, onde as (poucas) transformações

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ocorrem pela representação política, nossa esperança é bem baixa para os próximos anos. Isso porque apenas 20% dos 513 deputados federais eleitos no ano passado se autodeclararam negros.³ MANO BROWN: E porque ajudariam se nos julgam delinquentes. Acabar com delinquentes eles acham ótimo. Quem gosta de você é você mesmo, morô?. Tipo porque ninguém cuidará de você. OM2ºATO: E você Edy Rock, autor de Tempos Difíceis e Beco Sem Saída, letras essas, infelizmente, atemporais, o que acha deste cenário? EDY ROCK: Porcos, nos querem todos mortos. É dessa forma que eles querem que se proceda. O que se espera de um país decadente? Onde o sistema é duro, cruel, intransigente. OM2ºATO: E tem mais hein, de acordo dados na Anistia Internacional, em 2012, dos 30 mil jovens (entre 15 e 29 anos) assassinados no Brasil, 77% eram negros. A maioria dos homicídios foi praticada por armas de fogo, e menos de 8% dos casos chegaram a ser julgados.4 EDY ROCK: Enquanto homens de poder fingem não ver... Se algo não fizermos, estaremos acabados. OM2ºATO: Então a nossa cara é dar as caras, chutar a porta, financiar o próprio sonho? EDY ROCK: É difícil, mas não custa nada tentar. O dia de amanhã te espera, morô? OM2ºATO: Sim, sim. Mas nosso tempo está acabando e gostaria de parabenizá-los pelos 25 anos do grupo. Como vocês definem essa trajetória? ICE BLUE: O sistema é a causa e nós somos a consequência. 76

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OM2ºATO: E como receberam as críticas, especialmente dos fãs das antigas, direcionadas ao álbum Cores e Valores? KL JAY: Normal. Só falamos a verdade e a nossa parte você sabe de côr. OM2ºATO: Acontece que muitas pessoas que ouviram o novo disco disseram que o velho Racionais morreu. O que vocês têm a dizer sobre isso? MANO BROWN: Sua moral não se ganha, se faz. E tem mais... NESTE MOMENTO MANO BROWN INTERROMPE ABRUPTAMENTE SUA FALA AO IDENTIFICAR O CANTOR LOBÃO, SEU DESAFETO PESSOAL, ENTRANDO NO BAR ONDE ESTAMOS REALIZANDO A ENTREVISTA, LOCALIZADO NA REGIÃO CENTRAL DA CIDADE DE SÃO PAULO. MANO BROWN: Que esse otário esta fazendo aqui? OM2ºATO: Ei pessoal, segura a peruca aí. Vamos continuar aqui com a nossa entrevista que já esta quase acabando.... MAL TERMINO A FRASE E MANO BROWN LEVANTA-SE DA MESA ONDE ESTAMOS, APONTA O DEDO PARA LOBÃO E DISPARA: MANO BROWN: Ai dá um tempo ai, chegai... OM2ºATO: Brown, desencana mano. Deixa ele pra lá. Já passou! BROWN NÃO ME OUVE, E SEGUE INTERPELANDO O CANTOR, ENQUANTO LOBÃO, ENCONSTADO NO BALCÃO DO BAR E DE COSTAS

Imagem feita pelo fotógrafo norte-americano Jamel Shabazz, que registrou o nascimento da cultura hip hop nos Estados Unidos, como podemos observar na foto ao lado produzida nos idos dos anos 1980.

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PARA NÓS CONVERSA COM UM ATENDENTE E FINGE QUE A CONVERSA NÃO É COM ELE. MANO BROWN: Lembra de mim mano? LOBÃO: Não. MANO BROWN: Então vamo trocar uma ideia nós dois agora....

¹Segundo o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade (IVJ) 2014, a morte de jovens negros em 2012 cresceu 21,3% em relação ao ano de 2007. Só em 2012, foram mortos quase 23 mil jovens negros e pardos de 12 a 29 anos no país. O número é superior à média anual de mortes em conflitos como o da guerra civil de Angola, com 20,3 mil mortos ao ano entre 1975 e 2002.

VISIVELMENTE INCOMODADO COM A SITUAÇÃO, LOBÃO E UM AMIGO QUE LHE FAZ COMPANHIA DÃO MEIA VOLTA, E COM PASSOS RÁPIDOS SE DIRIGEM A PORTA DE SAÍDA DO BAR. NESTE MOMENTO BROWN VOLTA A PROVOCÁ-LO:

²Dados estatísticos do Data Favela, braço do instituto Data Popular sobre o tema. A informação, entre outras, está presente no livro Um País Chamado Favela (Editora Gente, 2014), de Renato Meirelles e Celso Athayde.

MANO BROWN: Aí boy sai andando ai certo...

³Segundo classificação inédita realizada pelo Tribunal Superior Eleitoral, dos 513 deputados que compõe a atual legislatura (eleitos em 2014), 81 se disseram pardos e 22 pretos. O restante da Câmara (410) afirmou ser branca.

ICE BLUE: Não tem nada pra você aqui não, seu otário! ICE BLUE: Vai caminha mano! ICE BLUE: Vai embora!

Dados da Anistia Internacional.

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ICE BLUE: Sai fora! MANO BROWN: E não pisa mais aqui hein! OM2ºATO: Bom, gente, o clima esquentou por aqui. Todos ficaram de cabeça quente (Brown e Blue principalmente), levantaram de suas cadeiras, quiseram partir o Lobão ao meio e por isso vamos encerrar nossos trabalhos por hoje! Até a próxima. Obrigado família Racionais! Vida longa! FIM

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Asfalto, latéx e atitude hip hop Vila Carioca, Zona Sul, São Paulo. Domingo, 18 de Janeiro de 2015. 08h33min


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