O MENELICK2ºATO # EDIÇÃO ZER012

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alexandreketo.blogspot.com | assista ao vĂ­deo com a entrevista do artista em omenelick2ato.com


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A revista O Menelick 2º Ato é uma publicação trimestral da MANDELACRE W COMUNICAÇÃO E FOTOGRAFIA Rua Roma, 80 – Sala 144 – São Caetano do Sul/SP CEP: 09571-220 / Tel. 11 9 9651 8199 | ISSN 2317-4706 DIRETOR Nabor Jr. | MTB 41.678 | nabor@omenelick2ato.com DIAGRAMAÇÃO Edson Ikê | ensaiografico.com.br CONSELHO EDITORIAL Alexandre Araújo Bispo, Christiane Gomes, Luciane Ramos Silva, Nabor Jr., Renata Felinto DISTRIBUIÇÃO GRATUITA EM Centros CULTURAIS, Saraus, Galerias de Arte, Shows, Feiras, Festivais, Casas de Espetáculos, Lojas, bibliotecas, teatros, botecos e Zonas de Conflito. ||||||||||||||||||||||||| Contato revista@omenelick2ato.com | ANOIII - EDIÇÃO ZER0XII

APOIO:


ILUSTRAÇÕES TIAGO MORYA ISHIYAMA

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LUCIANE RAMOS SILVA (1), NABOR JR. (2), RENATA FELINTO (3), PRISCILA FERREIRA ROMIO (4), CHRISTIANE GOMES (5), ALEXANDRE ARAÚJO BISPO (6), IRACEMA SANTOS MEDRADO (7), JAERGENTON CORRÊA (8), JACKELINE ROMIO (9), UBIRATÃ SOUZA (10), OSWALDO DE CAMARGO (11) .

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MEMÓRIA 17 A Luta de Duas Feministas Afro-latinoamericanas, JACKELINE APARECIDA ROMIO e PRISCILA FERREIRA ROMIO 34 Guarda Negra: Origem e Formação (Rio de janeiro, 1888 à 1890), IRACEMA SANTOS MEDRADO e NABOR JR. (Colaboração)

MÚSICA 11 Batucada Tamarindo, CHRISTIANE GOMES

LITERATURA 42 Ualalapi, UBIRATÃ SOUZA 45 Oboé, OSWALDO DE CAMARGO

MODA 26 Reflexões em torno da Moda Afro-brasileira Contemporânea, JAERGENTON CORRÊA


DANÇA 52 Germaine Acogny: Escritas de um corpo em tempos reais, LUCIANE RAMOS SILVA

ARTES PLÁSTICAS 57 Arte Afro-brasileira para quê? ALEXANDRE ARAÚJO BISPO e RENATA FELINTO

ARTES VISUAIS 2 ALEXANDRE KETO 7 TIAGO MORYA ISHIYAMA 10, 17 FERNANDO EDUARDO 24, 28, 29 MANDELACREW 15 PIERRE VERGER 18, 19, 21 KARA WALKER 44, 46 RICARDO DAS NEVES 50 GUTO MUNIZ 56 ALEIJADINHO 59 MESTRE VALENTIM 63 ARTHUR TIMÓTHEO DA COSTA 65 WAGNER VIANA

ILUSTRAÇÃO GREG VINHA


BATUCADA


TAMARINDO


texto CHRISTIANE GOMES, fotos FERNANDO EDUARDO s batuques, palmas e gingado que acompanham boa parte das manifestações festivas da comunidade negra afro-brasileira entorno de uma comemoração, homenagem ou devoção (religiosa ou profana), são elementos culturais herdados dos povos africanos que, em terras brasileiras, perseguidos pelo regime colonial, controlados pela igreja e violentamente reprimidos pelos senhores de engenho, foram em boa parte ressignificados, ganhando cores, sabores, temperos e tambores bem particulares. Respeitando a comprovada e fundamental influência dos povos indígenas e europeus na construção dos elementos que constituem a chamada identidade nacional, é certo também que parte das festas e tradições culturais que aqui se desenvolveram e se popularizaram só foram possíveis em virtude da presença africana no país. Como é o caso, por exemplo, das festividades religiosas de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito, bem como o Maracatu, o Congado, o Jongo e o próprio Carnaval. E falando em Carnaval, a história da música nacional nos mostra que foram os batuques ecoados das reuniões noturnas que ocorriam as escondidas nos fundos das senzalas e posteriormente nos quintais das casas das famílias negras, que deram origem não apenas ao samba, mas também a diversas outras manifestações de bambas. Tia Ciata1, por exemplo, não nos deixa mentir. Nos dias de hoje, na contemporaneidade, palavra tão em voga ultimamente, estes mesmos batuques e encontros festivos da comunidade negra seguem como ambiente frutífero da música negra brasileira. Prova viva da efervescência e riqueza dessa tradição está, por exemplo, no depoimento do músico Maurício Badé, que em uma dessas reuniões da raça teve o estalo para começar um projeto que há muitos anos sentia o desejo de tocar: um grupo percussivo que reunisse a tradição rítmica africana a elementos culturais contemporâneos da diáspora negra. Assim nascia a Batucada Tamarindo. O ano era de 2006 quando eram constantes as festas na casa de Márcio Monjolo, irmão de Maurício e que também integrou a formação inicial do grupo. Nestas festas, o tambor comia solto, fazendo inevitavelmente, a alegria de quem lá estava. “A gente precisava de um grupo que representasse a pegada que rola nestas festas de quintal e que pudesse chegar a mais pessoas e lugares”, conta Badé. Com uma bagagem profissional que inclui trabalhos com artistas como Mestre Ambrósio, Céu, Arnaldo Antunes e Criolo (com ele, tocou com o mestre etíope Mulatu Astatke), Badé, mentor-fun-

1 – Mãe de Santo respeitada, Hilária Batista de Almeida, também conhecida Tia Ciata (1854 – 1924), nasceu na Bahia e mudou-se para o Rio de Janeiro aos 22 anos. É considerada uma das mais influentes figuras para o surgimento do samba carioca. Foi em uma das tradicionais sessões de samba ocorridas no quintal da sua casa (próxima à Praça Onze) – que reuniam músicos, boêmios, batuqueiros e políticos locais – que nasceu a música Pelo Telefone, o primeiro samba gravado em disco, assinado por Donga e Mauro de Almeida.

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dador do grupo, divide as batucadas no couro com outros percussionistas igualmente experientes: Mestre Nico (Siba e a Fuloresta, Beto Villares e Alessandra Leão), Rômulo Nardes (Bixiga 70 e Djembedon), Abuhl Júnior (Curumin e Coco Seco), Ilker Ikesaki e Alysson Bruno (Orquestra Heartbreakers e Aláfia). Quando a Batucada surgiu oficialmente, estes músicos e seus tambores já tinham uma história de pesquisa e dedicação as infinidades de ritmos de influência africana surgidas no Brasil, além de já se conhecerem e tocarem juntos não apenas em apresentações e shows, mas também nas aulas de dança do bailarino e coreógrafo Irineu Nogueira, que até então estava na cidade de São Paulo. O leque de possibilidades era imenso: samba de roda, afoxés, sambas do recôncavo baiano, cavalo marinho, partido alto. Mas o que fazer com tudo isso? Como organizar tantas influências e tanta riqueza musical? Badé conta que a responsabilidade de mexer com estes ritmos é imensa, o que exige calma e respeito. Afinal, há muita coisa deste tipo no mercado e a Batucada Tamarindo não quer ser apenas mais um. “Não queremos cair na mesmice, queremos fazer diferente”, afirma o pernambucano apaixonado pela Bahia como ele mesmo se define. E este “fazer diferente” é algo pensado e pesquisado pelos integrantes da Batucada de maneira calma, sem sangrias desatadas. De primeira, o processo começou internamente, ou seja, enxergar o que cada um tinha de conhecimento, o cerne de cada um para que individualmente cada músico pudesse mostrar o que coletou em suas trajetórias e experiências musicais, todos os integrantes têm uma intensa vivência com tradições. Ao compreender, tocar e trocar mutuamente estas influências, os Batuqueiros fortalecem a percepção do que pretendem com este trabalho em uma pesquisa que não cessa nunca, em uma investigação orgânica e coletiva que acontece no cotidiano destes músicos. “Ao longo do tempo venho buscando um aprimoramento pessoal e musical do qual ainda não havia feito e a Batucada Tamarindo, nesse período, me proporciona essas pesquisas. Estamos buscando essa inter-relação com toda musicalidade que os integrantes têm, isso que deixa o trabalho com uma assinatura muito forte”, conta Abuhl Júnior.

SE É PRA FAZER DIFERENTE.... Ver uma apresentação da Batucada Tamarindo é uma experiência que acessa uma memória ancestral de uma forma fora do lugar comum. Os sons dos tambores e das vozes, ao mesmo tempo em que remetem a algo tradicional, também chegam com uma roupagem moderna que quebra alguns padrões que o público pode estar acostumado ao assistir (e sentir) uma apresentação de um sexteto de percussão. A levada do batá (tambor cubano) está ali junto com um canto de Ketu (uma das mais populares nações do Candomblé), dialogando com um surdo de samba ou, em outro momento, com o djembé e dununs (tambores africanos). E assim a mistura se faz. Algo diferente é verdade, mas que nos toca, porque também é nosso. “O que mais me despertou a vontade de fazer parte desse grupo, foi o encontro com as diferentes formas de musicalidade e a oportunidade de aprendizado, tendo bases de música tradicional Malinke (oeste da África), candomblé Nagô, Ketu, Angola, toques tradicionais do candomblé de Cuba, afoxés da Bahia e Pernambuco, sambas tradicionais de várias partes do Brasil, criando uma infinidade de formas de estudos, criação e misturas, nos fazendo particularmente um grupo de música com um repertório amplo e de infinitas possibilidades”, festeja Alysson Bruno. Quando fala sobre as influências e pesquisas que guiam a Batucada Tamarindo, Badé faz questão de afirmar sempre

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o termo percussão brasileira, que em nada tem a ver com sonoridades folclóricas. A diáspora negra fez com que a influência africana chegasse a espaços distintos nas Américas, que guardam semelhanças que a ancestralidade reconhece na hora. Mas é bom deixar aqui bem marcado que memória ancestral, neste caso, não esta relacionada a algo antigo, estritamente tradicional. Badé é categórico: a Batucada Tamarindo não quer cair no óbvio, não quer ser um grupo de música tradicional, mas sim agregar os temperos e sabores tão ricos e diversos da música negra. “É um grupo que o Femi Kuti pode chamar pra tocar, que o Lenine pode convidar para acompanhá-lo. Eu quero que a gente tenha o nosso trabalho autoral, usando de um glossário de música percussiva brasileira. E uso este termo para enfatizar as diversas influências que temos. Porque o negro brasileiro é isso: influência de inúmeros lugares. O mesmo cara que manda suas rimas no rap também sabe bater um samba de roda na palma da mão. E essa diversidade para a Batucada é também, um posicionamento político”, enfatiza. Nesse caldeirão de ritmos negros, algumas influências são norteadoras do trabalho. O cantor, compositor e repentista baiano Bule Bule; o mestre Gilberto Gil; o Samba Chula de São Braz (região do Recôncavo Baiano); as bandas pernambucanas como Mestre Ambrósio, (expoente do Movimento Manguebeat da década de 90, da qual Maurício Badé fez parte) e Chão e Chinelo. “Além

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da postura política de cada um destes grupos e pessoas, isso aqui já dá uma África, um Brasil que dá muito pano pra manga pra ler e reler”.

NO TABULEIRO O grupo pensa com estratégia. Tocar por tocar não está entre os valores dos seus integrantes. Os constantes encontros semanais para a percussão das aulas de dança, que seguem sendo desenvolvidas hoje com as bailarinas Janette Santiago e Luciane Ramos (que também é integrante do Conselho Editorial de O Menelick 2ºAto), propicia e beneficia a sintonia entre os Batuqueiros. O mundo lá fora exige, mas o estar junto, para Badé é alimento, treino e resistência. E é isso que faz com que eles se entendam apenas com um olhar. “A gente debate e reflete muito e sempre sobre a nossa estratégia musical. Toco de graça, toco ganhando, mas sempre equilibrando e pensando lá na frente”, vislumbra. Nesse pensar estratégico, um passo é dado de cada vez. Para se ter uma ideia, o grupo, que já tem oito anos de estrada, ainda não possui CD gravado. Assessoria de imprensa, releases, sites e página em redes sociais também não constam. Para ser ter uma ideia, a OM2ºAto é o primeiro meio de comunicação que a Batucada concede uma entrevista. E isso em nada tem a ver com levar o trabalho em “banho-maria”. É uma opção calculada, bem marcada. “Eu digo que este nosso trabalho é o nosso bibelô. Eles (os outros músi-


PIERRE VERGER Três Tambores na África 1949 – 1979, Nigéria Fotografia P&B 33 X 30 cm

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cos) dão risada, mas é isso. A Batucada Tamarindo é aquela pedra preciosa que se guarda dentro de uma caixa embaixo da cama. Uma hora a gente vai tirar ela de lá e colocar para todo mundo ver”, diz Badé. E tudo indica que este momento de revelação está bem próximo. Para Maurício o ano de 2014 se mostra como um período de mudanças efervescentes que tem tudo para ser só positividade. Chega o momento então de retomar alguns projetos, como o Batucadança, uma festa de quintal, que atendia à expectativa de um público que buscava música, comidas, bebidas, discotecagem, tambor e alegria. Realizada em 2008, a festa sempre acontecia em um sábado ou domingo à tarde e fazia a felicidade da geral. A ideia é voltar com a festa de forma regular em 2014. Outro projeto é, gravar o esperado disco. Repertório é o que não falta. Nos planos também está intensificar o trabalho com bailarinos e coreógrafos, tocando ao vivo nas aulas de dança, uma importante contribuição da Batucada Tamarindo.

Por falar em dança, alguns dos batuqueiros, Alysson Amaral e Mestre Nico, além do próprio Badé, quem diria, são exímios dançarinos. Corpos diferentes, de áreas diferentes, que conhecem de dança negra e popular e que se conversam e se costuram. Bailarinos convidados já participaram das apresentações da Batucada, como Rubens Oliveira, Priscila Paciência e Arlete Alves. Mas neste ano, a ideia é que os batuqueiros possam largar seus tambores por um instante e mostrar seu requebrado na pista ou no palco.

PRETO BEM TRAJADO, ELEGANTE, CHARMOSO Os Batuqueiros da Tamarindo também se apresentam na estica, com figurino próprio. Nada de “regatinha” ou camisa pólo, já avisa Badé. Afinal a forma também faz parte do conteúdo. Ele conta que esta relação com a roupa vem da infância, quando observava seus pais saírem todos trabalhados na elegância, com camisas de seda e calças de linho para dançar na gafieira. Essa preocupação com a moda e o figurino está estritamente ligada à recon-

figuração e a postura do negro na sociedade. O pernambucano lembra que essa ligação sempre existiu, tendo sido perdida durante o período da escravidão. Basta saber que, nas tribos e povoados da África, tanto a vestimenta cotidiana quanto a ritualística eram caracterizadas pelo requinte e bom gosto. Quando estes negros escravizados no Brasil chegaram, tudo, inclusive suas roupas, lhe foram negadas. Badé destaca que “erguer a cabeça e assumir a postura é essencial” e que por isso trouxe a preocupação com as roupas para a Batucada. Uma parceria com o estilista João Pimenta está em curso, inspirado na vestimenta dos Ogans (homens que tocam os atabaques nas casas de candomblé), dos grupos cubanos e afoxés. Forma e conteúdo juntos e conectados. Mas Badé avisa: “se a estética precisa estar bonita a música tem que estar maravilhosa; o canto impecável; a dança, sublime”. Fiquem tranquilos Batuqueiros da Tamarindo. Está tudo sob controle.

PARA LER O Banquete do Rei – Olubajé Coleção Introdução a Música Sacra Afro-Brasileira José Flávio Pessoa de Barros Editora Pallas 2005

PARA VER E OUVIR Assista ao vídeo da entrevista com Maurício Badé e veja o ensaio fotográfico completo da Batucada Tamarindo em omenelick2ato.com

CHRISTIANE GOMES é jornalista, mestre em Comunicação e Cultura pela USP. É bailarina e atua como coordenadora do corpo de dança do Bloco Afro Ilú Obá de Min, na cidade de São Paulo.

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Corpos diferentes, de รกreas diferentes, que conhecem de danรงa negra e popular, que se conversam e se costuram.

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LÉLIA E SUELI

A Luta de Duas Feministas Afro-latinoamericanas (1975 – 1985) texto JACKELINE APª. FERREIRA ROMIO e PRISCILA FERREIRA ROMIO intervenções gráficas KARA WALKER O feminismo é um movimento político que se iniciou nos países da Europa ocidental e Estados Unidos em meados do final do século 19 e início do século 20, e na maneira como se constituiu no mundo teve como marca a prevalência da visão das mulheres brancas das classes médias e ricas. As mulheres pobres, indígenas e negras sempre tiveram dificuldade de se identificar como “feministas” pelo teor das pautas, e a clausura dos ciclos sociais e políticos onde a pauta do movimento entrava em questão. No Brasil, o movimento feminista ganhou seu espaço e força articulando-se aos movimentos sociais do inicio da década de 70, quando as mulheres lutavam contra a ditadura, pela liberdade de expressão e anistia aos presos políticos. Anteriormente a este momento o movimento de mulheres, desde a década de 30, lutava pelo direito ao voto, ingresso no mercado de trabalho e às universidades, que na época eram es-

KARA WALKER The Means To An End: A Shadow Drama In Five Acts 1995


paços mais restritos aos homens. Estas pautas eram extremamente ligadas às demandas das mulheres brancas escolarizadas das elites, pois as mulheres negras, indígenas e pobres já faziam parte do mercado de mão-de-obra não qualificada - cada vez em maior número e em situações precárias - tinham pouco acesso até mesmo à alfabetização, pressuposto para o acesso ao voto, às carreiras universitárias e ao mercado de trabalho formal. Contrariando esta situação de desigualdade em relação às mulheres brancas da elite e a incompatibilidade entre a luta dos direitos das mulheres tidas como universais e a realidade vivida por mulheres marginalizadas na plataforma política feminista, mulheres negras, pobres e indígenas também lutavam pelo fim do sexismo e direito das mulheres dentro das suas condições de gênero específicas, exigindo o fim da violência policial e lutando pelo acesso à educação, saúde e contra a discriminação. Não existiria um feminismo brasileiro sem a presença contraventora, ideias e força mobilizadora das mulheres negras. Desde meados dos

anos 70, mulheres negras são pioneiras nos movimentos feministas nacionais. Um marco deste protagonismo pode ser observado no ano de 1975, quando a ONU (Organização das Nações Unidas) declarou o Ano Internacional da Mulher, e considerou a década que se seguiu como a Década da Mulher, cuja mobilização no Brasil resultou na criação do primeiro Conselho Estadual da Condição Feminina1, em 1983, e do Conselho Nacional de Direitos das Mulheres2, em 1985. Neste período o movimento feminista ganha força internacional e as mulheres brasileiras participam deste processo, um dos resultados destas movimentações é a ratificação do Brasil, em 1984, da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1979), momento em que duas feministas negras emergem de suas realidades para transformar a política nacional e internacional desde o lugar da mulher negra na sociedade brasileira, são elas: Lélia Gonzalez e Sueli Carneiro. Nosso objetivo com este texto é mostrar um pouco da atuação e ideias destas duas mulheres dentro do feminismo brasileiro, especialmente entre os anos de 1975 e 1985, período de consolidação do feminismo no Brasil. Não pretendemos esgotar o tema, muito menos apresentar suas trajetórias neste curto texto, temos a intenção de mostrar caminhos e chaves interpretativas que as diferenciam nas suas maneiras de luta contra o patriarcado, sistema que oprime e explora mulheres, mas de maneiras diferenciadas, fato que sempre foi desmascarado pelas duas. Essas mulheres são referências internacionais da intelectualidade e da política brasileira, e suas contribuições devem ser difundidas.

1– O Conselho Estadual da Condição Feminina foi criado pelo Decreto n. 20.892, de 4/4/1983, e institucionalizado pela Lei n. 5.447, de 1/12/1986. Integrado por representantes da sociedade civil e do poder público, contribui para a formulação e faz o acompanhamento das políticas públicas referentes aos direitos da mulher. 2– O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), órgão colegiado de natureza consultiva e deliberativa, no âmbito de suas competências foi criado pela Lei n° 7.353, de 29 de agosto de 1985, tem por finalidade, respeitadas as demais instâncias decisórias e as normas de organização da administração federal, formular e propor diretrizes de ação governamental voltadas à promoção dos direitos das mulheres e atuar no controle social de políticas públicas de igualdade de gênero.


Lélia Gonzalez nasceu em 1935, na cidade de Belo Horizonte, em Minas Gerais, e morreu em 1994, no Rio de Janeiro. De família grande e pobre, ainda criança migrou para a cidade do Rio de Janeiro, onde estudou, formou-se e atuou cultural e politicamente pelo fim do racismo e sexismo e em prol de uma cultura negra que prezasse pela ancestralidade e liberdade de expressão. Acreditava que a atuação anti-racista se dava onde quer que o ativista estivesse, na faculdade, na família, no emprego. Fez historia não só no feminismo, onde compôs a gestão de fundação do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM), de 1985 a 1989, mas em diversos âmbitos da atuação politica.

bara (UEG), atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e marcou a academia brasileira lecionando sobre Cultura Brasileira na PUC do Rio de Janeiro, onde também chefiou o departamento de Sociologia e Política. Discutiu sobre psicanálise e foi uma grande debatedora sobre a obra de Jacques Lacan (1901 – 1981). Integrou o quadro político do PT e PDT, alcançando suplência com deputada federal e estadual. Foi uma das mulheres monitoradas pelo DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) durante o período da ditadura. Sua biografia e trajetória são debatidas em diversas teses e estudos3. Teve fim prematuro em 1994, ainda aos 59 anos, vítima de infarto.

Contar com a participação de Lélia e o mandato de Benedita da Silva nestes primeiros anos de CNDM foi fundamental para assegurar que as pautas da mulher negra estivessem presentes na agenda nacional de políticas públicas das mulheres. Elas abriram portas para que as demais pudessem reivindicar o lugar do protagonismo político das mulheres negras, até os dias de hoje ainda sub-representado, pensando que desde a criação da atual Secretaria de Políticas Especiais para as Mulheres da Presidência da República, em 2003, nunca tivemos uma ministra negra comandando a pasta. Lélia também teve forte participação na imprensa feminista tratando da questão da opressão racial contra mulheres. Escreveu, por exemplo, para o jornal Mulherio, entre 1981 a 1984, época em que era parte do conselho editorial do jornal.

Sueli Carneiro nasceu em 1950, em São Paulo. De “família negra, pobre e operária”, como ela própria diz, assim como Lélia, alcançou o ensino superior onde estudou filosofia e se doutorou em educação. Atuou no movimento feminista ainda jovem contemporaneamente a Lélia, e foi fundamental assim como ela para o ingresso das mulheres negras na política nacional de mulheres. Suas contribuições são especialmente no campo político e intelectual brasileiro. Ressignificou conceitos e abordagens como a sua visão sobre o epistemicídio negro, tese que explica o assassinato cultural e de saberes da população negra. Tratou em seus diversos textos sobre a questão da condição da mulher negra, o feminismo do ponto de vista da mulher negra, a saúde da mulher negra e a luta dessas mulheres contra o racismo.

No movimento negro sua atuação também foi pioneira e fundamental. “Lélia foi membro da Comissão Executiva Nacional do MNU entre 1978 e 1982. Em 16 de junho de 1983, na Associação do Morro dos Cabritos, fundou em conjunto com outras mulheres negras o Nzinga – Coletivo de Mulheres Negras, e nele permaneceu até 1985”. Além de participar do Grêmio Recreativo de Arte Negra e da Escola de Samba Quilombo, onde foi co-autora, com o sambista e compositor Antônio Candeia Filho, o Candeia (1935 – 1978), do enredo Noventa Anos de Abolição (1978), apresentado pela escola em 1979. Graduou-se em História e Geografia, em 1958, e em Filosofia, em 1962, na antiga Universidade do Estado da Guana-

3-Ver: Enegrecendo o feminismo ou Feminizando a raça: narrativas de libertação em Angela Davis e Lélia Gonzáles Tese de Raquel de Andrade Barreto, orientador: Marco Antônio Villela Pamplona. Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de História 2005

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Definitivamente sua participação na articulação feminista em São Paulo da década de 80 foi fundamental para que hoje possamos entender os caminhos do feminismo negro no Brasil. Fundou junto a outras companheiras o primeiro Coletivo de Mulheres Negras de São Paulo, em 1982. “Ao longo da sua carreira, foi pioneira em vários projetos com foco nos problemas que afetam as mulheres negras e a população negra em geral, além de ter acumulado títulos e cargos. Foi, por exemplo, a segunda mulher negra a assumir uma vaga no Conselho Estadual da Condição Feminina em São Paulo, na década de 1980. A primeira havia sido a professora, atriz e teatróloga Tereza Santos (1930 -2012). A vaga para uma representante negra só ocorreu após a radialista Marta Arruda ter denunciado que não havia mulheres negras entre as 32 conselheiras convocadas”.

Lélia Gonzalez Flavia Rios e Alex Ratts Coleção Retratos do Brasil Negro Selo Negro Edições 2010


Uma contribuição crucial que nos estimulou a fazer este texto foi a publicação Mulher Negra: Política governamental e a mulher (Conselho Estadual da Condição Feminina, 1985), sendo a primeira parte do livro fruto do trabalho de conscientização e denuncia sobre o impacto do racismo na vida das mulheres negras no Brasil, em especial com a análise da situação de São Paulo. Ela escreveu o livro junto a Tereza Santos e Albertina Costa. Este trabalho foi apresentado como contribuição antecedente à criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) e como resultado da luta das feministas negras em desnudar o racismo embutido no feminismo brasileiro, analisando a década da mulher. Nesta obra encontramos dados estatísticos sobre a condição da mulher negra em relação aos homens brancos, aos homens negros e as mulheres brancas na educação, na estrutura ocupacional, nos níveis de rendimento e ocupações, onde foi possível constatar que a mulher negra sofre desvantagens em todos os campos analisados. No texto elas discutem de maneira profunda as consequências políticas e ideológicas do racismo e do sexismo contra as mulheres negras, e expõem de maneira direta a relação entre a mulher negra e o movimento feminista. Sua resposta ao movimento feminista vai direto ao ponto nesta reflexão: “ora, ao falarmos de mulheres negras e de discriminação racial não se está falando de nenhuma minoria, ou subtema. Falamos de quase 50% da população feminina nacional visto que 44% da população brasileira é composta por negros...”. E sobre o sistema de opressão contra as mulheres negras no período colonial, demonstraram onde deveriam ser endereçadas a divisão sexual e racial do trabalho: “sua condição biológica propiciou apenas um alargamento nos níveis de exploração a que estava submetido o negro em geral, já que enquanto fêmea podia-se extrair-lhe ainda o leite para amamentar os futuros opressores e aliviar taras sexuais dos sinhôs”. Em 1988, Sueli ajudou a fundar a organização não governamental Geledés (Instituto da Mulher Negra), primeira organização negra e feminista de São Paulo. Daí em diante uma infinidade de trabalhos que vão de questões sobre direitos sexuais, reprodutivos, trabalho, saúde, violência policial e educação foram produzidos. Lélia e Sueli doaram suas vozes e suas energias para denunciar o racismo embutido nos movimentos feministas universalizantes da situação da mulher e o machismo que invisibilizava e inviabilizava a atuação de mulheres negras nos movimentos sociais. As ativistas, mesmo se identificando como parte do movimento feminista não se calaram perante ao racismo, discriminação e preconceito camuflado na aparente “harmonia” entre a pauta das mulheres brasileiras. Segundo Lélia Gonzáles: “... o Movimento Feminista ou de Mulheres, que tem

KARA WALKER Consume 69 X 32 cm 1998

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PARA LER Cultura, Etnicidade e Trabalho: Efeitos Linguísticos e Políticos da Exploração da Mulher Trabalho apresentado por Lélia Gonzalez no 8º Encontro Nacional da Latin American Studies Association Pittsburgh, EUA 1979. Lélia Gonzalez Coleção Retratos do Brasil Negro Flavia Rios e Alex Ratts 2010. Sueli Carneiro Coleção Retratos do Brasil Negro Rosana Borges 2009.

PARA NAVEGAR www.geledes.org.br www.mulhernegraecia.com.br www.hiphopmulher.ning.com www.blogueirasnegras.org www.cidinhadasilva.blogspot.com

4-Defining Black Feminist Thougth Patricia Hill Collins 2001.

suas raízes nos setores mais avançados da classe média branca, geralmente ‘se esquece’ da questão racial, como já dissemos anteriormente. E esse tipo de ato falho, a nosso ver, tem raízes históricas e culturais profundas”. E nas palavras de Sueli Carneiro: “Inegavelmente, o movimento feminista nacional vem lutando historicamente contra as diferentes formas de discriminação sexual que atingem as mulheres em geral. E é precisamente neste geral que residem às dificuldades... (pois este discurso) aprisiona outros dentro deste quadro de referências, generalizando uma ‘identidade feminina’ a femininos historicamente construídos de maneira diferenciada, isto é, apresenta às mulheres uma problemática uniformizada que aparentemente explica, resgata padronizando experiências diversas”. Atualmente muito tem sido questionado sobre o que seria o feminismo negro brasileiro, se concluirmos assim como Patricia Hill Collins4 que o entendimento do pensamento feminista negro e sua definição envolvem enfrentar o complexo entendimento das relações entre as classificações biológicas, a construção social de raça

JACKELINE APARECIDA FERREIRA ROMIO é demógrafa, grafiteira e membro do Coletivo de Mulheres Negras Louva Deusas. PRISCILA FERREIRA ROMIO é produtora cultural, escritora e membro do Coletivo de Mulheres Negras Louva Deusas. KARA WALKER é artista plástica afro-estadunidense e docente do programa de mestrado na Universidade de Columbia, nos EUA. Nascida na Califórnia, é conhecida por explorar, através de silhuetas, questões de raça, sexo, gênero, violência e identidade em seu trabalho. Em 2002, representou os Estados Unidos na Bienal de São Paulo.

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e gênero como categorias de análise, as condições materiais que acompanham as mudanças nas construções sociais, e a consciência das mulheres negras sobre estes temas. E que o pensamento feminista negro consiste no especializado conhecimento criado por mulheres negras no qual explica um ponto de vista de, e para mulheres negras, ou seja, que o feminismo negro oferece compreensões teóricas e políticas da realidade das mulheres negras por aquelas que vivem tal realidade. Então, se conclui que Lélia Gozanlez e Sueli Carneiro devem ser entendidas como precursoras do feminismo negro brasileiro, por suas contribuições teóricas, atuações e trajetórias de vida. Procuramos evidenciar com este texto que durante este período de consolidação do feminismo no Brasil, de 1975 a 1985, mulheres negras lutaram e construíram um poderoso movimento, articulações políticas e numerosas organizações comunitárias. Tanto Sueli quanto Lélia estiveram envolvidas como fundadoras destas organizações e como protagonista do movimento feminista brasileiro.


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REFLEXÕES EM TORNO DA MODA

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AFRO-BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

Marisa Aparecida Azevedo veste bata e calça saruel em linho de algodão Cozinheira 58 anos Pacaembu, São Paulo/ SP

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texto JAERGENTON CORREA fotos MANDELACREW Reassumir as ações de moldar, revestir e ampliar o próprio corpo como um avatar, possibilita visualizar na cabine de comando, um painel de controle e os dispositivos que transformam cada cenário por onde interage. Não há pré-definições que esgotem as possibilidades de interação entre o usuário e seu meio, tendo o elemento têxtil como mediador no cotidiano urbano. Antes de reproduzirmos os movimentos de ataque e defesa numa docilidade coletiva, conforme as especificidades de cada grupo estético, social ou cultural, precisamos observar que cada meio é composto por fatores de origens distintas que possuem lógicas próprias, convivendo simultaneamente e constituindo novas possibilidades de arranjo social, consequentemente promovendo leituras antes inimagináveis. De tempos em tempos surgem fissuras entre as rochas, pelas quais assistimos contraposições às logicas vigentes. Nesse diálogo, as metáforas possibilitam a interação de pessoas que não estão necessariamente envolvidas com o contexto de produção têxtil ou imersos em discussões de cunho étnico, mas que já se vestiram alguma vêz em suas vidas. Chamo de avatar o corpo físico do usuário das roupas e de cabine de comando o pensamento sobre esse fato. O painel de controle é a consciência do repertório construído durante o protagonismo têxtil, que é representado pelos dispositivos. Nesse contexto, após décadas de desenvolvimento urbanístico e tecnológico associado às ondas migratórias intermunicipais, interestaduais e internacionais, grupos interagiram, se pluralizaram e compartilharam diversos aspectos culturais traduzidos anteriormente por linguagens definidas geográfica e socialmente. Na itinerância urbana é possível captar vestígios dessa trama cultural à céu aberto. As mãos detentoras de alguns saberes tradicionais adaptaram-se aos novos contextos, fecundando produções específicas, mas não de maneira homogênea. É arriscado pensar numa única expressão estética ou artística como identificação cultural para todos os participantes de ondas diaspóricas das mesmas matrizes.

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Vamos acrescentar dois elementos importantes para essa temática: a má escolha da programação televisiva (um dos responsáveis pela deformação e manutenção de imaginários que são plasmados no dia a dia) e a experiência pessoal. O primeiro elemento atua na retroalimentação entre fenômenos comportamentais como o consumo, as escolhas estéticas, os modos de expressão, as opções morais, etc. Parcela considerável da sociedade movimenta essa engrenagem, e como parte desse fluxo de ações, algumas manifestações culturais são apropriadas, reprocessadas, associadas à valores éticos, morais e mercadológicos, passando por sistemas de hierarquia estético cultural, para finalmente serem reinseridos ao cotidiano desses atores. O segundo elemento é a experiência pessoal, que possibilita através de pequenas escolhas, resultarmos no fortalecimento desse processo de consumo coagido, ou na subversão desse circuito. Pequenas alterações no dia a dia são capazes de gerar micro-sabotagens em escala pessoal, familiar ou maiores. A eficácia não está na ampliação dimensional dessas escalas ou na oficialização de grupos urbe políticos, nem tão pouco do embate direto à qualquer setor social. Também não depende da articulação de terceiros, ou de aparatos tecnológicos. A força dessas ações está na potencialização didática e pedagógica do próprio cotidiano e da experimentação artística associada à sensibilização dos cinco sentidos. A estimulação de aptidões pessoais que foram abdicadas ao longo da vida no processo de civilização, alfabetização e adequação ao mercado de trabalho, é como o assumir de uma herança por muito tempo guardada. Ela é sua, mas você pode negligenciá-la por toda a vida sem saber que, por direito, teria uma trajetória mais orgânica. Agora mensure o quanto você gastou em vestimentas ao longo da vida, criadas para serem semestralmente descartadas, sem preocupação ecológica, nem anatômicas de seus usuários, como deficientes físicos, plus size (pessoas com medidas maiores), anões e todos os perfis alheios aos padrões desse mercado. Transversalmente a esses fatores, a diversidade cultural e suas pluralidades étnicas, estéticas, filosóficas, corporais, performáticas e seus conceitos de beleza; numa constante retroinfluência em suas diásporas. Entre os grandes contracensos contemporâneos, o merca-


do da moda se nutre superficialmente de culturas orais oriundas da África, Ásia e das Américas esporadicamente. No desenvolvimento de suas temáticas compactam a densidade cultural de cada uma delas, afunilando-as à padronagens geométricas, peles de animais e paisagens naturais apresentadas por modelagens restritas ao perfil hegemônico nas passarelas clássicas.

Quando o usuário passa a ter consciência desses fatores, após um choque, naturalmente inicia um processo de “protagonismo têxtil” vestindo-se à partir do seu íntimo, mesmo antes da aquisição ou produção da própria roupa. Suas escolhas se tornam mais criteriosas e as convenções perdem a importância. Posteriormente, algumas pessoas com as quais convive, se sentirão provocadas devido à nova energia desse corpo liberto da coação mercadológica ou política. Pois transcende o território biológico, se expande à novos elementos a partir dos tecidos que o reveste e o remodela. Isso também ocorre na identificação, na incorporação e intervenção em elementos arquitetônicos e paisagísticos. Monumentos subjetivos são legitimados, e uma nova mediação com os ambientes que compõem seu cotidiano é iniciada. Esse processo deve ter continuidade para que expressões de oralidades controladas subvertam a pressão oriunda na urbe.

Há uma itinerância realizada conforme as relações sociais estabelecidas. Os moradores de bairros periféricos trafegam durante horas para desenvolverem suas atividades profissionais, educacionais, de lazer ou de cidadania diariamente. Após o trajeto, o que fica são as queixas em relação à superlotação dos transportes públicos, ao trânsito, à poluição do ar, sonora e de imagem. Esse processo se acumula ao longo da semana e se sobrecarrega com o passar dos meses. Aparecem os quadros clínicos de stress, tensões musculares e nervosas, má circulação, problemas de coluna e nas pernas devido ao percurso realizado em pé, no mal acomodamento do corpo e pela pressão causada por outros corpos nas mesmas condições sub-humanas. Suas sequelas não desaparecem com o O M E N E L I C K 2 O ATO

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Silmara Almeida veste macacão/calça saruel em microfibra (estamparia digital) Funcionária Pública 47 anos Vila Silvia, Zona Leste - São Paulo/ SP Márcio Araújo veste calça saruel em microfibra (estamparia digital)

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Dançarino 29 anos Jardim Abaeté – Sorocaba/SP

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suposto descanso. O corpo tem memória e essas experiências constituem um acervo sensitivo, que é potencializado negativamente ao longo da vida. Vale aqui uma nova metáfora: a cada segundo de vídeo produzido, são utilizados entre 24 e 30 frames ou fotografias em média. Esse é o número necessário de quadros para termos a impressão da imagem em movimento assistida na televisão. Muitos habitantes urbanos descendem de grupos étnicos compostos por culturas orais. Desenvolvem relações milenares com seus meios articulados aos reinos animal, mineral, vegetal, e sobre-humano através das trocas simbólicas de energia, por sistemas de comunicação em temporalidade cíclica e rítmica, em que são performatizadas simultaneamente à voz, à audição, ao paladar, ao tato, ao olfato e à visão. Esse último, é o mais explorado em nosso contexto pelo processo de letramento e ao mesmo tempo, tem sua potencialidade reduzida, quando desconecta aos outros quatro, que são cada vez mais abafados durante o processo de civilização, alfabetização e adequação ao mercado de trabalho. Esses sensores são inibidos diariamente e captam apenas os elementos que geram o desconforto desse ir e vir diário, ao passo que a visão capta quase sempre as mesmas coisas, fortalecendo essa rotina. Esses usuários, como descendentes de culturas orais em diáspora, têm abdicado as potencialidades comunicativas do seu corpo, suficientemente docilizado para o mercado de trabalho. Uma parcela respeitável das instituições de ensino são estruturadas para não reconhecerem a memória multimidiática dos corpos de seus alunos. Priorizam o letramento, desestimulam atividades físicas, artísticas, criativas e intuitivas à partir da infância. Momento que inicia a coerção às aptidões, aos talentos herdados, às associações simbólicas e metafóricas oriundas do desenvolvimento natural das crianças, que futuramente somarão à massa aglutinada de corpos transportados sem o respeito ergonômico, anatômico, humano. Refletir sobre as possíveis modas afrobrasileiras na contemporaneidade é pensar em interferir didática e pedagogicamente desde a infância da população, independentemente de seu fenótipo, para que ela seja culturalmente auto-suficiente já na adolescência, apto à subverter esse repertório hostil que essa experiência urbana pode proporcionar.

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Reconhecer a roupa como ferramenta didático pedagógica para crianças à partir dos seis anos de idade é estimular sua criatividade e sensibilizar seus sentidos desde cedo, para que ela não perca as variantes comunicativas através das experimentações artísticas nas mais distintas linguagens, iniciando assim um investimento sensitivo através da mediação com o meio e da comunicação multimidiática natural e diária. É crescer vivenciando que simples elementos do cotidiano podem compor um repertório cultural que estimule o intelecto, nas associações que fizer, conforme sua própria natureza, seus conhecimentos orais, sua tradição familiar, na ludicidade do brincar, cantar, correr, sentindo o cheiro da grama, sem perder-se aos poucos para os materiais didáticos e para as estratégias pedagógicas ultrapassadas e contraditórias de algumas instituições de ensino. Se existissem esses estímulos às crianças desde cedo, uma base pedagógica faria toda a diferença anos mais tarde. A ausência desse arsenal lúdico-artístico-sensitivo nos atuais adultos dificulta a subversão dessa rotina, e é exatamente onde a metáfora do áudio visual se conecta ao trânsito: as 24 imagens por segundo que geram a sensação fílmica, transpostas no cotidiano. Se multiplicarmos 24 X 60 (segundos) X a quantidade de minutos que duram o trajeto entre a residência e o trabalho, quantas milhões de imagens descartadas diariamente, continuam a compor esse acervo hostil durante o trânsito? Com a mínima sensibilização artística, o estímulo às aptidões pessoais e a potencialização dos cinco sentidos, esse corpo multimidiático por natureza seria capaz de converter a experiência do cotidiano em proposições artísticas através das inúmeras linguagens já existentes, sem contar as novas que surgiriam. Cada uma em seu contexto específico, contemporâneas e dialógicas às tecnologias de sua época, como atualmente são os smartphones, celulares, máquinas fotográficas, filmadoras digitais, tablets, etc.


Entre muitas possibilidades comunicativas, encontra-se a proposição do auto estilismo à partir da captação de uma única imagem, dentre as milhares diariamente descartadas. Ela se plasma em tecido por um processo subjetivo de transposição entre linguagens artísticas. Inicia com a experimentação técnica de maior afinidade, passando à associação de diversas outras. Após um tempo realizando essa ação o usuário/criador subverte o que se tornaria uma simples rotina em repertório cultural e exercício lúdico, naturalmente transposto em diversas plataformas e na educação não formal. Muitos atores desenvolvem metodologias próprias, convertem o dejeto urbano em linguagem artística, constrõem suas próprias metáforas, simbologias e dribles. Edificam universos de possibilidades que aproximam estética e/ou conceitualmente urbes em pontos distantes do mundo. Seus resultados estão plasmados em linguagens como a tatuagem, pixação, jazz, hip-hop, literatura periférica, dança contemporânea, historias em quadrinhos, animação, vestimenta despig, parkour, computação gráfica e muitos outros circuitos de tamanha relevância vinculados ou não às redes sociais. As performances do corpo urbano apresentam a pluralidade fenotípica para o imaginário afro-brasileiro contemporâneo. Que nutrido e consciente de toda essa retroinfluência amplia as possibilidades de diálogo entre o idealizador/usuário das vestimentas com os diversos ambientes por onde circula. Sob o skate, no ciclismo urbano, patins ou à pé, promove em tempo real uma experiência urbe educativa que interfere na percepção das demais pessoas participantes desses mesmos espaços. Tudo isso ocorre simultaneamente e todas as manifestações culturais compõem a paisagem urbana a ser contemplada, numa grande metalinguagem. Essa nutrição é capaz de absorver os mesmos elementos urbanos causadores dos desconfortos captados pelo corpo, que se transforma numa válvula irrigadora, bombeando informações por plataformas que nem sempre são pré definidas ou já reconhecidas pela sociedade a qual faz parte. Dentre as matérias primas das quais esses diálogos são oriundos, cito as ruínas urbanas, estações de trem e metrô, onomatopéias urbanas, o cheiro do habitat sob os viadutos, a movimentação dos transeuntes; do asfalto às rachaduras pós chuva; às calçadas danificadas e conforme o grau de mobilidade do usuário, percebe com maior intimidade a negligência em relação à voz do solo urbano. Pois se assim não fosse, os pisos táteis

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jamais conduziriam os deficientes visuais em trajetos dentro e fora de estabelecimentos comerciais e equipamentos culturais. As vitrines continuarão a existir. O posicionamento auto estilístico requer determinação e pensamento criativo numa época que as possibilidades tecnológicas também contribuem para o acomodamento da mente, ao passo que para existirem, também são patrocinadas pelas mesmas corporações que conduzem pensares, agires e vestires. Essa temática está repleta de subjetividade. Foi muito importante ter nascido numa familia que mantém sua oralidade na tradição têxtil desde 1950. Compartilho aqui algumas reflexões dispertas no inicio da adolescência e que se trasnsformaram em pesquisa pessoal.

CURSO AUTOESTILISMO EM DIÁSPORA E MODELAGEM 3D Consciência Corporal, Produção Têxtil, Estamparia Artesanal e Digital, Modelagem Digital e Simulação Virtual de Desfiles. Aulas individuais ou em grupos Informações e inscrições hagadimae@hotmail.com hagadimae.art.br

A associação de diversas áreas foi fundamental para a compreensão e o amadurecimento do conceito de auto estilismo, no constante diálogo entre as manifestações tradicionais e as novas tecnologias. Por cada experiência de vida, juntos construirmos o que um dia poderá ser identificado como a historiografia da moda afrobrasileira contemporânea. Há mutos pontos a serem explorados e que precisam de pensadores atuantes em diversos setores da sociedade para ampliarmos reflexões sobre: - Protagonismo têxtil e modelagem capilar em ambientes corporativos; - A performance em passarela clássica como desfile afro; - Moda afro-brasileira contemporânea é uma questão da área da moda oficial? - Ascensão social de afrobrasileiros: protagonismo textil e performances individuais em novas zonas de nutrição cultural e quebra de estereotipos. - Parametros de legitimação da Moda Afro-Abrasileira.

JAERGENTON CORRÊA é mestrando em História Social pela PUC-SP, bacharel em Artes Visuais pelas FASM-SP (Faculdade Santa Marcelina), produtor de moda pelo SENAC-SP, atua como arte-educador, estilista e pesquisador nos temas: auto estilismo, memória das roupas e vestimenta afro urbe.

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GUARDA NEGRA ORIGEM E FORMAÇÃO (RIO DE JANEIRO, 1888 À 1890) texto IRACEMA SANTOS MEDRADO colaboração NABOR JR. Por representarem os interesses da monarquia nos campos de batalha durante a Guerra da Paraguai (1864 – 1870), um número ainda desconhecido de combatentes negros escravizados1 que defendeu o exército brasileiro durante o conflito, conseguiram suas cartas de alforria. Com a promulgação da Lei do Ventre Livre (1871), em um curto período de tempo o número de negros alforriados e libertos aumentou consideravelmente no Brasil. Ao mesmo tempo em que, com o fim do tráfico negreiro, os donos de engenhos de açúcar em decadência no Nordeste passaram a vender os seus cativos para os barões do café do Vale do Paraíba e de Minas Gerais, resultando na maior migração forçada de pessoas em toda a história brasileira. Estima-se que, entre 1864 e 1874, a população escrava nas regiões cafeeiras saltou de 645 mil para 809 mil, o que contribuiu e muito para que um enorme contingente de negros (escravos, ex-escravos e mestiços livres) passasse a habitar as áreas rurais e os centros urbanos da região sudeste do país. Políticos do império, temerários por essa alta concentração de negros no sudeste brasileiro, viam na movimentação o estopim para rebeliões e fugas na região. Previsões que se confirmaram com o inicio da campanha abolicionista, na década de 1880, promovida, em especial, pela Confederação Abolicionista de André Rebouças (1838 – 1898) e José do Patrocínio (1854 – 1905). Os abolicionistas ajudaram na libertação e na fuga de muitos escravos de São Paulo e Rio de Janeiro, em ação semelhante à de jangadeiros do Nordeste. Os fugitivos formavam quilombos ao invadir terras e fazendas abandonadas próximas aos núcleos urbanos, ameaçando a sociedade escravista que tinha receio desta proximidade entre a elite branca e os negros. O medo de uma grande rebelião escrava foi comentado pela historiadora Célia Marinho de Azevedo (1987), que concluiu em sua obra Onda Negra, medo Branco: o Negro no Imaginário das Elites - Século XIX (2005), que a pressão política para o fim da escravidão estava relacionada ao receio de uma revolta de negros semelhante aos embates no Haiti. No meio urbano, os negros que permaneciam escravos prestavam serviços nas casas de veraneio dos Barões do Café, como escravos domésticos ou alugados 1 – Não existem números certos sobre a porcentagem de escravos alistados no exército imperial durante a Guerra do Paraguai (1864 – 1870). Ricardo Salles que dedicou um livro sobre o assunto cita algumas estimativas. Segundo o general Queiroz Duarte, que trabalhou os números dentro de uma ótica que visava a valorizar os alistamentos voluntários (de ex-escravos e libertos) seriam apenas 8.489 pessoas em meio ao contingente mobilizado para a guerra, que perfazia um total de 123.150 soldados. Ou seja, 6,9% de escravos do total de soldados do exército. O historiador norte-americano Robert Conrad, por sua vez, estima em 20 mil o total de escravos, incluindo-se as mulheres dos soldados, que conseguiram a liberdade com a

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(de ganho) para outros senhores. Muitos deles adquiriram sua liberdade ao pagar pelas alforrias com a prestação de serviços aos comerciantes, principalmente na Corte do Rio de Janeiro. Na Corte e nos arredores da cidade, muitos desses ex-escravos, porém, não encontravam moradia fixa ou acolhida pela população local. Somente as irmandades de negros como os de Nossa Senhora do Rosário, de Santa Efigênia e de São Benedito prestavam assistência aos ex-escravos que se instalavam nas redondezas das igrejas. A população urbana vivia em constante apreensão com estes grupos que adentravam a corte e se integravam às maltas de capoeiras2. O historiador Carlos Eugênio Líbano Soares, em sua tese de mestrado A Negregada Instituição: os capoeiras na Corte Imperial 1808 – 1850, defendida em 1993, na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e posteriormente em sua tese de doutorado pela mesma instituição sob o título A Capoeira escrava no Rio de Janeiro 1808 – 1850, estudou as maltas de capoeiras desde a colônia e concluiu que os grupos de mestiços livres e escravos africanos se dividiam entre Guaiamús (composto por mestiços, pardos e brancos pobres) e Nagóas (composta por negros escravos e alforriados), e agiram na cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 1850 e 1890. Os Nagóas integravam os africanos que vieram da Costa dos Escravos (região nordeste da África) para a região sudeste através do tráfico interprovincial, enquanto os Guaiamús viviam na região portuária fluminense. Estes grupos se confrontavam entre si nas ruas da cidade do Rio de Janeiro durante o período de crise na sociedade escravista, ou seja, entre os anos de 1850, com o fim do tráfico negreiro estabelecido pela Lei Eusébio de Queirós (1850) até o advento da República, em 1889. Essa crise surgiu diante do dilema de libertar os escravos ou prorrogar o regime escravista por alguns anos. Os conflitos ideológicos e a disputa entre os partidos sobre a emancipação escrava gerou o aliciamento de maltas de capoeiras. O recrutamento era feito de acordo com os interesses políticos da região a qual pertenciam os negros e mestiços na cidade do Rio de Janeiro. Um dos conflitos foi o crescimento do interesse político de grupos antagônicos pelo controle das principais regiões da cidade. Isso instigou a brutalidade e as brigas entre as maltas e a polícia carioca. A violência das maltas foi apoiada por grupos e membros dos partidos Conservador e Liberal, que se utilizavam das mesmas como milícias armadas para assassinar inimigos pessoais e desafetos políticos. Os Nagóas eram protegidos por membros do Partido Conservador, que re-

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crutavam estes bandos para invadir residências, lojas comerciais ou jornais abolicionistas. Já os Guaiamús eram apoiados pelos liberais e depois escolhidos como guarda costas de políticos contra as ameaças de membros do Partido Conservador. Para ilustrar este domínio, na década de 1870, o pesquisador Carlos Eugênio L. Soares3 – conta que o controle das ruas do Rio de Janeiro era dividido entre as milícias de capoeiras que repartiam entre si o domínio das zonas urbanas e rurais, conforme o domicilio e o local de trabalho de negros, escravos de ganho e libertos. Essas milícias recebiam libertos que haviam atuado na Guerra do Paraguai e retornado em 1870 com patentes do exército, mas sem prestigio social. Relatos de documentos da época apontam que os grupos que lutavam capoeira na área de Mata Atlântica e morros da zona portuária pertenciam ao grupo Nagóa, enquanto os Guaiamús se concentravam nas áreas residenciais e no centro da Corte Imperial. As maltas do grupo Nagóa habitavam as áreas de chácaras e grandes sítios que ocupavam a parte rural da cidade do Império (Rio de Janeiro), pois eram em sua maioria escravos ou prestavam serviços como negros de ganho no centro. Seu domínio se estendia da região do Glória até os limites do Campo do Santana, e seus membros eram divididos pelos bairros e freguesias conforme o local em que residiam. Por exemplo, a malta Cadeira da Senhora controlava a região do Santana e a Flor da Gente exercia seu domínio sobre a freguesia do Glória. Os Guaiamús tinham seu território restrito ao centro comercial, periferia e portos próximos da orla marítima, como o Morro da Providência e do São Bento, cujo limite natural ia do Largo do Rocio (atual Praça Tiradentes) até uma parte do Campo do Santana. As maltas Três Cachos, da freguesia de Santa Rita e Franciscanos, da freguesia de São Francisco de Paula, eram as mais conhecidas dessa região. Com o apoio de partidos políticos, o poder e repercussão das atividades destas maltas cresceram em importância perante a imprensa carioca que passou a escrever em seus periódicos os distúrbios provocados pelos capoeiristas, a violência e a rivalidade entre os grupos. Segundo a imprensa, os Guaiamús e os Nagóas pretendiam dominar todo o meio urbano carioca com a conivência da elite política. Para coibir suas ações, a delegacia da Freguesia do Glória incorporava capoeiras como integrantes da força policial para controle da região. Por isso, os crimes das maltas eram destaque nos jornais que atribuíam aos negros ou brancos, de descendência portuguesa, a prática da violência associada à capoeira e a responsabilidade das mesmas pelo aumento da criminalidade urbana.

3- A negregada instituição: os capoeiras na corte imperial, 1850-1890. Carlos Eugênio L. Soares Editora Access

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Os registros criminais do período apontam a prisão de inúmeros negros, pardos e brancos pela prática da capoeira em festas e comemorações religiosas. No entanto, a grande maioria dos negros apreendidos eram libertados alguns dias depois graças a ação judicial impetrada por algum senhor de posses que devia favores as milícias da região ou donos dos escravos que integravam as maltas. Ou seja, as ações criminosas das maltas de capoeiras não eram passíveis de punição por causa do interesse de grupos econômicos ou políticos que lucravam com a violência nas ruas do Rio de Janeiro.


A ABOLIÇÃO E A ASCENSÃO DA GUARDA NEGRA Com a abolição da escravatura, em 1888, as maltas mudaram suas relações com os partidos políticos, especialmente pela introdução de membros do Partido Liberal ao inexpressivo Partido Republicano. Assim, os grupos de capoeiras se dividiram em milícias, de acordo com os interesses políticos recebidos de ambos os partidos: Conservador e Liberal. Abolicionistas como José do Patrocínio tentaram apaziguar as tensões entre os grupos sociais ao publicar artigos exaltando as qualidades dos ex-cativos. Para a Confederação Abolicionista e José do Patrocínio era necessário mudar a mentalidade da população carioca que associava os ex-escravos às maltas de capoeiras e à violência urbana. Para Patrocínio, a integração do negro passava pela proteção das instituições políticas ao apoiar o Império no terceiro reinado e ao educar os ex-escravos para o trabalho assalariado tanto nas fazendas quanto no meio urbano. Pela ideologia de correção dos vícios, educação e inclusão na política, os negros seriam integrados à sociedade escravista. José do Patrocínio foi responsável pela divulgação dessa ideia na redação de seu jornal Cidade do Rio, no ano de 1887, até o advento da República, em 1889. O fortalecimento do Partido Republicano levou o gabinete de João Alfredo de Oliveira (Partido Conservador) a dar apoio direto as maltas de capoeiras da região da Lapa e Santana, que formariam a temida Guarda Negra. Ela foi reunida por José do Patrocínio, em 25 de setembro de 1888, na redação do jornal Cidade do Rio, como um grupo de proteção à Monarquia diante dos exaltados discursos de republicanos nos comícios ao redor da cidade. As milícias ou maltas de capoeiras do grupo Nagóa da região do Santana e do largo da Lapa (locais controlados politicamente pelo Partido Conservador) foram nomeadas Guarda Negra pela imprensa carioca, ao relatar a onda de violência nos comícios republicanos promovidos por Silva Jardim. Como a formação da Guarda Negra foi posterior as rivalidades entre Guaiamús e Nagóas diante do fim escravidão, parte do grupo Guaiamús e a maioria dos membros dos Nagóas se reuniu em torno do Partido Conservador por sua gratidão a Princesa Isabel e ao gabinete de João Alfredo. Dessa união surgiu a Guarda Negra da Redentora, e o início de uma campanha para dar aos ex-escravos educação e alfabetização para se adaptarem a liberdade e se integrarem a sociedade. A integração seria pelo trabalho no comércio urbano ou nas áreas rurais como assalariados, seguindo as orientações da Confederação Abolicionista. Só que Patrocínio não pensava que essa inclusão deveria incorporar as impressões dos negros em seu meio social, uma vez que eles tiveram contato com esta sociedade no cotidiano quando ainda eram escravos. Vale lembrar que os negros que integravam as maltas já viviam no meio urbano, seja como livres ou escravos. Também tiveram contato com o meio político através dos interesses mútuos entre as maltas e os partidos. Para eles, a abolição significava criar um partido político para eliminar a discriminação dos brancos e promover o acesso à terra para os negros. Mesmo com a perspectiva de transformações advindas com a promulgação da Lei Áurea, a condição social e econômica do negro não mudou com a abolição. Seu status como cidadão só foi permitido através do controle político e ideológico dos partidos no período de transição entre Monarquia e República.

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AS VERSÕES DE HISTORIADORES SOBRE A ORIGEM DA GUARDA NEGRA Houve várias versões sobre a formação de milícias negras no Rio de Janeiro e em outras províncias como Maranhão, Amazonas e Bahia. Algumas fontes também apontam para o envolvimento de conservadores como Ferreira Viana, João Alfredo e de abolicionistas como Patrocínio e Emile Rouéde com grupos de capoeiras. Na formação da Guarda Negra, pós abolição, há relatos de dois grupos criados ou articulados por abolicionistas e membros do Partido Conservador. O primeiro foi reunido por Emile Rouéde, em julho de 1888, na casa de amigos em que convidou os negros libertos do 13 de maio para criar uma associação que representasse a submissão dos mesmos a sociedade branca. O segundo foi a milícia de brancos e negros alforriados reunidos pelo gabinete de João Alfredo, que repetia a forma empregada pelo Partido Conservador, contra os inimigos políticos do regime monárquico. O grupo deveria agir de forma clandestina para que espalhasse o medo entre os adversários, permitindo ao Partido Conservador incorporar a camada popular mais pobre à sua tutela. A primeira versão dada sobre a origem do grupo foi narrada pelo escritor Oswaldo Orico4 –, biógrafo de José Patrocínio. A Guarda Negra, para Orico, foi constituída a partir de um grupo de negros apoiados por monarquistas que se reuniram para formar uma irmandade negra, a Sociedade Recreativa Habitante da Lua, na região de Santana – reduto dos Nagóas. Essa irmandade era formada por negros alforriados e, posteriormente, passou a aceitar negros libertos pela Lei Áurea. Os dados mais precisos sobre essa irmandade sugerem que o grupo dos Nagóas foram os elementos que formaram a Guarda Negra, por terem no passado apoiado o Partido Conservador. Essa irmandade jurava defender a Monarquia e obedecia a compromissos solenes e rituais de devoção a Isabel, com sessões secretas e juramentos sagrados baseados na Bíblia. A violação do segredo dessa irmandade levava à expulsão ou à morte dos culpados.

Rio de Janeiro, 1994 4 – O Tigre da Abolição Osvaldo Orico Editora Civilização Brasileira, 3. ed. Rio de Janeiro, 1977. 5 – A vida turbulenta de José do Patrocínio Raimundo Magalhães Junior Editora Sábia

O grupo esperava o advento do terceiro reinado e deveria reagir a qualquer ameaça pessoal à Princesa Isabel. O Isabelismo motivou o grupo a agregar novos adeptos quando a irmandade mudou de nome para Sociedade Beneficente Isabel A Redentora, cujos dados sobre a origem do grupo e seus membros ainda são ocultos. Segundo Magalhães Junior (1976)5, a formação da primeira versão da Guarda Negra foi iniciativa não de José do Patrocínio, mas do abolicionista e monarquista Manuel Maria Beaurepaire Pinto Peixoto. Magalhães Júnior explica que os republicanos ficaram indignados pelo aliciamento de homens de cor (negros) para engrossar as hostes monarquistas e insinuavam que a Guarda Negra estava ligada ao ministro da Justiça, Ferreira Viana, com total apoio de João Alfredo. Para Maria Lúcia Rangel Ricci (1990)6, os idealizadores da Guarda Negra foram os abolicionistas mais exaltados, como José do Patrocínio, que queriam combater a influência do Partido Republicano perante a população do Rio de Janeiro. Patrocínio queria que a ideologia de proteção à Redentora Isabel, construída por esse grupo, se estendesse para as demais províncias do Império. A Guarda Negra, segundo Robert Daibert Júnior (2004)7, foi uma milícia política com ares religiosos. Seus membros comportavam-se como arruaceiros e tinham como principal foco de ação desestabilizar as conferências republicanas.

Rio de Janeiro, 1969 6 – A Guarda Negra, um perfil de uma sociedade em crise. Maria Lúcia de Souza Rangel Ricci Editora AWKR Campinas, 1990. 7 – Isabel a “Redentora” dos escravos. Uma história da princesa entre os olhares negros e brancos (1846-1988). Robert Daibert Junior O M E N E L I C K 2 O ATO

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Augusto Mattos (2009)8 - aponta que a Guarda Negra teve sua formação iniciada na casa do abolicionista e monarquista Emilio Rouedé, em 10 de julho de 1888, com o total apoio de José de Patrocínio, que se intitulou o criador e mentor do grupo. Segundo Mattos, nos estatutos sobre o grupo, publicados em Cidade do Rio, os negros escolhiam os membros de uma diretoria que autorizava admissão de novos integrantes. Mattos ainda descreve os integrantes da Guarda Negra como negros alfabetizados que tinham a missão de agregar outros ex-escravos para o grupo, sobre a proteção dos abolicionistas. Seus associados consideravam a data de 13 de maio como um marco da libertação dos cativos no Brasil e juravam defender a pessoa que promoveu a extinção da escravidão, a Princesa Isabel. Os estatutos da Guarda Negra ordenavam que os negros só trabalhassem em fazendas cujos proprietários não fossem hostis a Isabel e apoiassem o terceiro reinado.

Com o fim da aliança entre Patrocínio e o Partido Conservador, o jornal Cidade do Rio se torna alvo constante de ataques dos republicanos, e entra numa crise interna. O apoio ao gabinete de João Alfredo foi justificado por Patrocínio como gratidão pela Abolição. Com a queda do mesmo e diante das reformas propostas por D. Pedro II, ao retornar da Europa, em agosto de 1889, não havia razão para continuar seu apoio à Monarquia.

Patrocínio solicitou o apoio da Confederação Abolicionista à Guarda Negra, para que suas idéias fossem divulgadas nas demais províncias do Brasil para o que contava também com o apoio da imprensa. Os republicanos por sua vez não aceitaram a formação de milícias armadas apoiadas por abolicionistas e o Isabelismo de Patrocínio, e em seus jornais como Província de São Paulo, Gazeta da Tarde e O Paiz criticavam a postura da Confederação Abolicionista de aceitar semelhante ideia e apoiar o fanatismo de Patrocínio.

Com a queda do gabinete abolicionista, Patrocínio tentou uma reaproximação com os republicanos, afastando-se dos monarquistas. Ele percebeu que sua permanência na política e a continuidade como jornalista na imprensa dependia do apoio dos republicanos, liberais e do novo regime de governo, já que o estado absoluto regido por reis, rainhas, príncipes e princesas estava falido e condenado à extinção.

A REPRESSÃO AS MALTAS DA GUARDA NEGRA E O INÍCIO DA REPÚBLICA

Essa atitude levou à reestruturação do jornal Cidade do Rio, que perdeu velhos colaboradores. A crise no jornal leva à saída do redator chefe, Bandeira Júnior, em 12 de junho de 1889.

Os boatos sobre a saúde do imperador D.Pedro II e a inabilidade política de Isabel levaram à adesão dos militares e fazendeiros na conspiração para mudanças no regime monarquista. A cisão dentro do próprio Partido Republicano levou à formação de dois grupos. Um deles pregava que a República teria êxito com a participação dos militares e o outro, principalmente o do Rio de Janeiro, queria o apoio popular. O restabelecimento da saúde de D.Pedro II não aplacou as críticas à Monarquia pela crise com os republicanos. Mesmo com o Partido Liberal no poder, o afastamento de Isabel do cenário político fortaleceu a oposição, que queria reformas urgentes no estado imperial.

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encontrava isolado politicamente e alvo de críticas por todos os jornais cariocas pelas ações da Guarda Negra.

Neste período, as maltas de capoeiras iam sendo dissolvidas pouco a pouco, por causa da repressão e do aumento das prisões, após os distúrbios de 14 de julho. Osvaldo Orico diz que “o golpe militar de 15 de novembro operou o milagre desejado: sacudiu o alicerce e fez desabar a cariótide negra que devia servir de coluna mestra ao advento do terceiro reinado”.

A pressão republicana sobre o gabinete abolicionista de João Alfredo levou à formação de um novo gabinete com o Visconde de Ouro Preto, do Partido Liberal, e com a proposta de reformas no Estado Imperial. Em Setembro de 1889, D. Pedro II dissolveu o gabinete de João Alfredo em meio à crise entre os cafeicultores e o monarca, pela ausência de indenização prometida aos fazendeiros pelos escravos libertados através da Lei Áurea.

EDUSC Bauru, 2004.

A ascensão do gabinete do Visconde de Ouro Preto, em setembro de 1889, do Partido Liberal e inimigo político de Patrocínio, o leva novamente a se aproximar dos antigos correligionários republicanos. Para se justificar, declarava-se a favor do republicanismo num período em que se

8 – A Guarda Negra. A redemptora e o ocaso do império. Augusto Oliveira Mattos Hinterlândia São Paulo, 1990

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Também o afastamento do Partido Conservador, que apoiava as maltas, enfraqueceu o poder que os grupos tinham nas ruas da cidade. Somente um ataque da Guarda Negra ocorreu após o 14 de julho. Foi o atentado contra o redator do jornal Arquivo Contemporâneo Ilustrado, Castro Soromenho, em agosto de 1889. Desde o último ataque aos comícios republicanos não houve mais nenhuma ocorrência violenta do grupo nas ruas do Rio de Janeiro que fosse relatada pela imprensa. Houve, de fato, uma total desarticulação das maltas com a repressão imposta pela polícia e pelo Gabinete Ouro Preto, devido as críticas da imprensa à violência dos capoeiras. Ao assumirem o governo, os republicanos trataram de apagar todos os resquícios do antigo regime no Brasil. A imprensa foi controlada e a censura imposta. Os jornais monarquistas foram fechados e seus donos presos por ordem do governo. A segurança e a ordem eram necessárias nas ruas da capital do Rio de Janeiro. O exército foi posto nas ruas para evitar badernas e motins de monarquistas descontentes com o banimento da família Imperial. O advento da República foi o inicio do banimento das maltas para as prisões na Ilha de Fernando de Noronha. O principal responsável por esta repressão foi o chefe de polícia João Batista Sampaio Ferraz, advogado e promotor de justiça em casos que envolviam as capoeiras, além de ser membro do Partido Republicano. Ele foi redator de jornais como A República e O Paiz até ser nomeado como chefe da polícia da Corte. Sua tarefa era manter as ruas da cidade seguras e evitar atos violentos por parte da população carioca. A ação policial contra as maltas durou entre 1889 a 1890 com inúmeras deportações como forma de impedir a intervenção do Partido Conservador (extinto) e de políticos que apoiavam os capoeiras. Uma dessas prisões foi a de Fernão Diogo vulgo Diogo da Lapa ou Diogo Francisco de Oliveira que participou da Guarda Negra do largo da Lapa assim como de dez capoeiras no bairro do Santana em meados de dezembro de 1889. Essa ação tinha o intuito de desarticular os grupos e por fim ao domínio das maltas na cidade do Rio de Janeiro a partir de 1890. Isso foi somente o início de ações que visaram o banimento das maltas e o fim da criminalidade atribuída a capoeira nas ruas do Rio de Janeiro durante toda a República Velha.

A escassez de registros com as narrativas das inúmeras movimentações protagonizadas pelos negros no Brasil entre meados dos séculos 16 e 19, os discursos “oficiais” históricos que resumem o passado do negro africano e afro -brasileiro à escravidão, a tendenciosa desconstrução dos símbolos e qualidades do homem não branco – são elementos que acompanham a vida cotidiana do país desde o período colonial e muito nos revelam sobre os inúmeros dilemas que vivemos nos dias de hoje. Assim, este texto não tem a pretensão de esgotar o tema sobre a origem e a formação da Guarda Negra na cidade do Rio de Janeiro – mesmo porque, torcemos para que mais jornais e pequenas anotações informais que elucidem o tema possam vir a ser descobertos ou reinterpretados. Este artigo espera, por sua vez, iluminar as ainda nebulosas memórias sobre a trajetória do negro na historiografia nacional. Reconhecer-se no passado é o primeiro passo para o futuro, e o negro brasileiro precisa muito acreditar que esse futuro um dia chegará.

PARA LER Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do exército. Ricardo Salles Editora Paz e Terra Rio de Janeiro 1990

IRACEMA SANTOS MEDRADO é historiadora pela PUC-MG NABOR JR. é jornalista especializado em jornalismo cultural, fotógrafo e fundador-diretor da revista O Menelick 2º Ato.

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GUERREIRO NGUNI texto UBIRATÃ SOUZA Lançado originalmente em 1987, Ualalapi, de Ungulani Ba Ka Khosa (1957), foi um marco para a geração de 1980 e, por conseguinte, para toda a literatura moçambicana. Embebida num espírito crítico que toma distância da literatura a serviço da revolução independentista, as obras de escritores como o próprio Khosa, Nelson Saúte, Suleiman Cassamo, Lilia Momplé, entre inúmeros outros, quase sempre apresentam características comuns, como o realce ao patrimônio cultural dos povos de Moçambique, o trabalho apurado relativamente às experimentações estéticas e às ácidas críticas à concretização do projeto de Estado em seu país após 1975. Neste sentido, o emblema máximo dessa geração é Ualalapi, originalmente publicado em 1987. Trata-se de uma obra profunda, tanto do ponto de vista estético quanto de suas implicações sociais, ideológicas e históricas. Em termos estéticos, a obra é construída sobre uma estrutura tão peculiar que sua caracterização de gênero faz críticos se debaterem até hoje: são seis capítulos antecedidos por seis “Fragmentos do fim”, coletâneas de paratextos de origem muito diversa. Cada um desses capítulos é composto com um núcleo central atomizado, que estabelece uma autonomia relativa dentro do livro, mas que, ao mesmo tempo, não os permite descolar-se de um enredo de fundo que estabelece um princípio, um meio e um fim de uma história. E a história do enredo de fundo é a ascensão, apogeu e queda do poder do hosi nguni Ngungunhane, derradeiro soberano do chamado Império de Gaza, última instituição política local destruída pelo governo português para estabelecimento do colonialismo em Moçambique, assim como definido pela partilha do continente na Conferência de Berlim entre os anos de 1884 e 1885. Ao retomar esse dado histórico, Ualalapi volta-se para o passado de um território, revisitando a brutalidade do sistema colonial português, sobretudo do sul de Moçambique ao Vale do Zambeze onde o império nguni havia assentado sua força política, militar e econômica. A forma como a obra se compõe a partir desse confronto entre interesses externos e internos faz com que Ualalpi aponte, inevitavelmente, para o presente e, também, para o futuro. Ocorre que à altura do lançamento da obra, o mito de Ngungunhane era reelaborado pelo governo moçambicano de partido único dirigido pela FRELIMO. Ngungunhane era então eleito um herói pátrio moçambicano, pai da resistência ao colonialismo português, modelo de bravura para uma luta contínua. Essa reelaboração do mito pela FRELIMO, com efeito, invertia o sinal negativo imposto pela historiografia colonial portuguesa, que tinha definido Ngungunhane como um líder bestial e selvagem, cuja prisão seria necessária para a “pacificação” das terras portuguesas ao sul de Moçambique. A obra de Khosa, no entanto, apela justamente para a pluralidade de perspectivas históricas possíveis, desenhando um Ngungunhane no mínimo ambíguo: ao passo que era uma força política nativa de resistência , a obra não deixa de apontar para o fato de que ele também foi um dominador cruel, antes de tudo nguni que, para estabelecer seu poderio subjugou e dominou inúmeras outras populações. Ao realizar essa dubiedade estética, a obra de Khosa não deixa de problematizar as novas e autoritárias diretrizes assumidas pelos dirigentes do país a partir da independência, em 1975, que buscaram, desde o prin-

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cípio, neutralizar e/ou eliminar as inúmeras diferenças culturais e pertenças “étnicas” das quais Moçambique se compõe. Nesse sentido, vale atentar particularmente para o discurso de Ngungunhane no momento de seu embarque para o exílio: composta num tom profético, revisando o tempo do seu poder e realizando previsões para o futuro, esse discurso de Ngungunhane acaba sendo um pequeno trecho que resume uma visão catastrófica da história daquele território. Essa polissemia temporal proposta por Ualalapi acaba por articular uma dura crítica aos modelos políticos autoritários moçambicanos: seja no passado, por parte do Império de Gaza, e posteriormente, pelo etnocentrismo do colonialismo português; ou também naquele presente, pela centralização do poder e o projeto do “homem novo” moçambicano. Neste sentido, a ação das personagens abarca a questão não só de seus percursos históricos específicos, mas dá conta de como estes percursos pessoais estão inscritos numa dimensão muito maior, que será a própria história do país. A inscrição das personagens nesse cenário, portanto, implica numa espécie de revisão do passado (via Ngungunhane e via o colonialismo português), que acaba por potencializar as dimensões presentes e futuras (e já críticas) no que se refere à construção de um projeto de nação.

PARA LER Ualalapi Ungulani Ba Ka Khosa Editora Nandyala Belo Horizonte, 2013

ARTISTAS RELACIONADOS Sembéne Ousmane (1923 – 2007) Mongo Beti (1932 – 2001) Chinua Achebe (1930 – 2013) Ngugi Wa Thiong’o (1938)

Vale lembrar que tudo isso se realiza na obra através de um projeto estético ambicioso: são inúmeros paratextos presentes em epígrafes e citações, colhidos em documentos históricos, provérbios, na Bíblia, e mais uma vasta constelação de origens. São também diversos narradores que vão se sucedendo no turno narrativo, muitas vezes se contrapondo, e até mesmo discutindo entre si a respeito de pontos específicos da história. É, em suma, uma polifonia composta por uma infinidade de vozes falando todas ao mesmo tempo, cada uma contando suas versões de uma história que, tanto no passado remoto quanto naquele presente, havia se fechado num discurso único, autoritário e centralizador. A obra depõe contra essa violência simbólica se utilizando de uma estética da pluralidade. Importante obra da literatura africana de língua portuguesa, Ualalapi ganhou a pouco uma excelente edição brasileira pela Nandyala, de Belo Horizonte, inserido no catálogo da série Para ler África. A edição é composta por um cuidadoso projeto gráfico que abusa das cores e semitons de preto e vermelho, o que situa o leitor no trágico clima de gravidade e catástrofe que percorre toda a obra. A capa extrai de um conhecido alto-relevo em bronze do Mestre Leopoldo de Almeida, exposto na Fortaleza de Maputo, uma terrível feição de revolta e ódio no rosto de um Nungunhane no momento de sua captura. Uma fonte adequada e bem situada na página torna o texto arejado para uma leitura fluente. A ausência total de qualquer texto crítico a respeito da obra, por mais introdutório que fosse, faz com que o complexo texto literário seja facilmente legível somente a um público que já tenha se iniciado na literatura moçambicana. Não que o texto não seja capaz de falar por si, mas uma rápida introdução crítica explicitando o uso de inúmeros vocábulos de diversas línguas moçambicanas, bem como situando a obra no quadro geral da literatura moçambicana, serviria para evidenciar o enorme valor literário dessa obra para o público brasileiro, ironicamente tão distante do continente africano e suas dinâmicas culturais. UBIRATÃ SOUZA é mestrando do Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (FFLCH - USP) O M E N E L I C K 2 O ATO

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Sou hoje um homem desbotado, mas tive a minha cor. 44

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texto OSWALDO DE CAMARGO ilustrações RICARDO DAS NEVES

SOBRE O TEXTO – Os trechos inéditos reproduzidos a seguir correspondem ao início da novela Oboé, do escritor e jornalista Oswaldo de Camargo (1936), livro que tem previsão de lançamento para o final do primeiro semestre de 2014 pela Editora Com-Arte - USP. Autor de inúmeros textos fundamentais para fruição e compreensão das artes negras brasileiras, dentre eles a novela A Descoberta do Frio (1979), o livro de poesias O Estranho (1984), além de diversos ensaios, como o seminal O Negro Escrito (1987), Oswaldo de Camargo também é coordenador de Literatura no Museu Afro Brasil, em São Paulo. Em 1998, recebeu da Secretaria de Cultura de Santa Catarina a Medalha de Mérito Cruz e Sousa, pelas publicações e palestras em torno do Poeta e, em 2013, a Medalha Zumbi dos Palmares, da Câmara Municipal de Salvador (BA), pelo trabalho desenvolvido, como escritor, na divulgação da importância cultural e social do negro no Brasil.

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As cantorias deles eram diferentes. 46

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1O CAPÍTULO Absurdo esta minha vida! Minha vida seria muito diferente se eu não tivesse, quando pequeno, aprendido a tocar oboé. Criança preta, pais apanhadores de café, absurdo que, com sete anos, sempre descalço, vadiando na fazenda Cristiana – em uma região hoje chamada Vale dos Castelos —, havendo me aproximado do notável instrumento logo alcançasse habilidade e inexplicável brilho. Absurdo também, eu, por volta dos seis anos, trazer às vezes no corpo cheiro de sabonete alemão (Seife) - em circunstâncias que retive de narração até hoje, e só vou contar ao doutor porque vejo que já estou demais vergado debaixo da idade – 86 , cheios, à meia noite – e saber isso é muito importante para que desvende o que luziu e o que foi escuro nesta minha intricada existência. O oboé na minha vida se deveu à alemãzinha Liddy Anne, uma entre os vinte e cinco emigrantes que aportaram a Cristiana, herdade antiga de Sinhazinha, na primeira leva que lá chegou, em 1934, para espanto e susto dos simplórios camaradas, gente preta , a maior parte. Eu tinha seis anos. Absurdo eu ali, naquele ano em que vieram os alemães. Minha mãe apanhava café, e não me levava mais com ela; meu pai tinha sido escolhido para o trabalho de separador de grãos; com uma vassoura juntava as sementes, depois tirava as que não prestavam. Minha mãe achava mais digno eu ficar com meu pai – a mesma coisa que estar ao léu na fazenda, na barroca, solto, pois ele andava sempre, enquanto vassourava, distraído com imaginar alguma cantoria para apresentar nas festas em Pretéu, povoado adjacente a Cristiana. Meu pai inventava música, longe de pauta, sustenidos e bemóis, mas inventava bastante. Absurdo esta minha vida! Às vezes chego até a pensar que Deus, pra se divertir, mas me estimando muito, resolveu que eu estivesse na fazenda da Sinhazinha naquele ano em que os alemães, descendo até o Vale, terminaram sua viagem; resolveu deixar o paiol ali escondidinho atrás do casarão, deixar que Liddy Anne tivesse doze anos e iniciação de corpo. Absurdo! Sou assim, por isso, um tanto “desnegrado” -- dizem que pouco ligo pra minha raça -- mas, anote: é que às vezes me desocupo de mim mesmo e volto àqueles anos. Pra quê? Pra revolver-me no paiol antigo, à busca de alegria; mas sou triste. Como, doutor, escapar de toda essa desavença? Veja: sou hoje um homem desbotado, mas tive a minha cor. O oboé mostrou minha cor, de preto que se alçou e, então, foi notado; eu luzi, brilhei por cinquenta anos, na fazenda de Sinhazinha, em Pretéu, Vila Morena, em Mundéu, Tuim, aqui no triste dia do enterro do Antoninho, que perdeu a vida pela mão do mestre por ter matado o pavão dele; depois, na capital. Quando os alemães chegaram, vindos de uma região perto de Zwickau -- Saxônia -- ,mudou tudo na fazenda. De repente, os apanhadores de café, empregados de Sinhazinha – meu pai, um deles -- , perceberam a paisagem extraordinária que eram os teutos saindo cedo para examinar a terra, quase todos grandões, sorrindo, sem saber palavra de nossa fala, oferecendo chocolate pros molequinhos – exclamando So schöne schwarze Kinder! (Que lindas crianças pretas!), e os camaradas rindo da prosa deles. E eles sorriam, cor de sol, cabelos lambuzados de ouro. Seis anos, e a mãe de Liddy Anne me ouviu cantarolando alguma coisa, sentado no primeiro degrau da escada do casarão de Sinhazinha. Na certeza, estropiação de alguma toada caipira, invenção de meu pai. Talvez assim -- (vou tentar tirar da memória, que já está muito gasta): Me vingo dessa tristeza,

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cantando só alegria, vingo sim, oi lá! Parou diante de mim, tentou chegar mais perto de minha face e acariciar -me o pixaim de molequinho; corri. Ela exclamou algumas palavras lá na língua dela, creio que lamentando, mas eu corri pra casa, que reunia dois recintos -- paredes barro; cobertura, folhas de zinco. Para espantar pulgas, minha mãe borrifava o chão com mistura de água e estrume de vaca, e espalhava com vassoura urdida com galhinhos de alecrim- do- mato. Na comida, dava às vezes mingau de fubá com folhas de taioba. Mas eu estava pensando na mãe de Liddy Anne, o cheiro perfumoso dela e a mão alva, sem nenhum calo. Demais vivida com gente alemoa esta minha existência, doutor; difícil limpar. Mas tudo abrindo caminho para o oboé, que eu iria conhecer com sete anos. Sem os alemães, não saberia de oboé. Sem eles, eu nunca entraria no salão da casa imensa de Sinhazinha, com ocasião para assistir ao despropósito que era viver no meio de tanta beleza, móveis de gente nobre, piano vistoso num dos cantos, luminárias muitas encimando peanhas lindas de metal dourado. Só mesmo por eu tocar oboé; mas, quando sucedeu isso de eu ser chamado pela Sinhazinha pra tocar no casarão dela, eu já ia nos meus doze anos, e um tanto sofrido, porque ninguém lá nem ligava para a música que meu pai inventava, só mesmo em Pretéu, nas festas como a de São Benedito ou na comemoração do passamento do Beato Nego Vito. E eu queria que ligassem.

2O CAPÍTULO - O BEATO NEGO VITO MERECIA MEU OBOÉ Foi destino nascer em Cristiana, no Vale dos Castelos, ali, rente a Pretéu. Tuim era a maior vila da região, depois vinha Morena, depois o povoado de Pretéu, em seguida, Mundéu. Em Pretéu só vivia preto; meu pai, em certo tempo, ia muito às festas em Pretéu. -- Não era quilombo, não; tinha escola, um coretinho a poucos metros da capela, consagrada ao preto escravo Nego Vito, que havia “ensantecido”, isto é, tornado santo e “tirava milagre”, como diziam. Tipo São Benedito, muito bondoso, prestimoso para com os “malungos” – (era assim na fala deles o chamamento para companheiro). Nego Vito tinha perdido a vida defendendo molequinho que sangrava no chicote de um feitor endemoninhado. Mil oitocentos e oitenta e sete. Da morte dele saíam muitos prodígios, sobretudo havendo como destino criança magoada com ferida brava, engasgo sem volta garantida do objeto, caimento de berne morando teimoso em coco de molequinho. As cantorias deles eram diferentes, tanto que difícil pôr junto oboé, a não ser em tom bem baixo, pra misturar sem estragar o canto. Provei isso quando certa noite estive lá, e já corria em todo o Vale fama de que eu tinha sido convidado por Sinhazinha pra mostrar a beleza do que eu tocava. Então, com admiração e curiosidade, me viram chegar. E com ruidosa alegria, pois meu pai era conhecido e estimado por causa das cantorias que levava pra dentro da capela de Pretéu. Contentes, esperavam que ele imaginasse o novo hino para o Beato Nego Vito, substituindo o antigo, pouco dizente com a significação do protetor dos molequinhos, que, mesmo sempre atento às urgências das crianças, oferecia larga proteção para os mais velhos; por isso o santo era muito querido e merecedor, sim, de renovação de hino – comentavam. Doze anos, e já tocara no casarão de Sinhazinha! Decorrência disso, decidiram me homenagear como “menino do oboé”. E deu-se, a seguir, que naquela noite pediram que eu tocasse a canção O Kinimbá¹, melhor, que pusesse acompanhamento para a apresentação de Alicinha, uma pretinha linda e voz que condizia com a aparência dela -esguiazinha, olhos graúdos, celestes. Alicinha, pouco antes, já me passara a melodia, que segurei na memória com muita facilidade. Pra meu acerto, explicou que era canto afro-religioso de preto

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pernambucano e – certeza -- pondo junto oboé ia sair bem mais bonito. Subi com ela ao coretinho e iniciei a introdução, com bastante fé e sentimento. E Alicinha, olhos voltados para o céu, donde o Nego Vito abençoava aquela gente toda: O Kinimbá! Kinimbá! Dada ô kê Kinimbá! Salô ajô nuaiê... Doutor, pela primeira e única vez meu oboé foi indeciso, vacilante. Ainda mais quando um molequinho, todo grudado à noite, iniciou batida num pequeno tambor --- tum, tum, tum, tum... E Alicinha: O Kinimbá! Kinimbá! O Kinimbá! Kinimbá! Não pude ir junto; meu oboé não pôde; a dificuldade curvava o som dele, que me pareceu fictício, diferente do que assumia com os cantares na fazenda de Sinhazinha, na capela dedicada à Imaculada. Olhei o céu; vi que estrelas conversavam com a noite, e pareceu-me que o Vale todo estava ouvindo Alicinha e o tambor – tum, tum... Mas, doutor, o oboé não podia parar. Sabia, eu estava desenhado pra tocar; certeza, não podia parar. --- O doutor concorda comigo? Me alegra saber. Sim, o Nego Vito merecia meu oboé. Era preciso contrapontar com a canção de macumba, com Alicinha, o tambor... Eu tinha treze anos; salvou-me a minha inocência. Junto a Kinimbá, à voz de Alicinha e o tambor coloquei a Dança das Sombras Bem-aventuradas, da ópera Orfeu, de Gluck, que eu havia tocado algumas vezes na capela de Cristiana ou, em outras, distraindo-me junto ao Córrego da Solidão, que corria inteiro dentro da fazenda de Sinhazinha. Surpreendido, procurava conversar com tudo aquilo. E o molequinho seguia: tum, tum, tum... E eu tocava Gluck... Mas eles entenderam logo a minha alma. E me acolheram e me acarinharam , naquela noite, e sempre que voltava para aulas de Teoria com o organista Noé, nascido em Pretéu e de lá morador. Assim, em seguida à apresentação de Alicinha, oboé e o tambor, naquela noite soltaram uma cantoria combinada com o assobiar de três pretos – (tradição serem três). Soviavam bem alto em direção à mata, que, sob tão grossa escuridão, me pôs grande medo. Diziam que era canto e jeito de cantar guardado do tempo dos cativos na região. Servia para acordar a Liberdade, que dormia lá no muito longe. Sendo assobiado, com aquele sopro fininho, seguia fácil nas veias de quilômetros e quilômetros dentro do mataréu denso. Mas isso não era conhecimento de quem nascera em Cristiana, no Vale dos Castelos, como eu, a cinco léguas de Tuim, sete de Vila Morena, muito, muito mais de Mundéu. Pretéu – já falei – era mais pegada a Cristiana. Porém, se eu tivesse nascido em Pretéu, não haveria nunca aprendido oboé; nem estaria contando tudo isso ao doutor.

1- Canção de macumba recolhida em Pernambuco e com trânsito também no repertório de cantores eruditos. Segundo o maestro Aricó Júnior, que a transcreveu para piano e quatro vozes: Xongo, divindade presente na macumba, está na terra; Kinimbá, porém, sente nostalgia do céu: a nuiaê.

Oboé Oswaldo de Camargo Editora Com-Arte USP Previsão de lançamento: 1o semestre de 2014 + info: editoracomarte.com

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GERMAINE ACOGNY:

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ESCRITAS DE UM


CORPO EM TEMPOS REAIS

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texto LUCIANE RAMOS SILVA foto GUTO MUNIZ

Num outono de 2004, a cidade de São Paulo conheceu Fagaala, obra coreográfica que discutia a tragédia humana do genocídio de Ruanda¹. Foi quando, pela primeira vez testemunhei, na pele do olhar, a criação e confluência de arte, política e arrebatamento de uma das mais importantes personagens da dança dos nossos tempos: Germaine Acogny. Aquela não foi sua primeira passagem pelo Brasil, mas naquele dia, a máxima “dançar é uma forma de estar no mundo”, ensinamento da experiência africana no Brasil, fez-se para mim, concreta, em carne e movimento. A trajetória da bailarina, coreógrafa e mestra franco-senegalesa de origem beninense, faz-nos refletir sobre como dançam as identidades, tradições e modernidades, a consciência de si e as reinvenções das africanidades no mundo contemporâneo. Sua pedagogia e obra artística acumulam ideias e convicções muito caras aos nossos dias, abordando princípios para a consciência do corpo e do mundo.

Reprodução da capa do livro African Dance (Danse Africaine / Afrikanischer Tanz) Germaine Acogny, 1980.

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Além do reconhecimento internacional ao longo de mais de 50 anos de carreira, ensinando e apresentando trabalhos na França, Alemanha, Dinamarca, Bélgica, Holanda, Itália, Estados Unidos, China, Brasil, Madagascar, Burkina Faso; em instituições como o Theatre de la Ville, de Paris, ou em eventos como a Bienal de dança de Lyon e o Festival de Melbourne, Germaine escreve sua história a partir de uma percepção sobre África bem distinta do senso comum - muito além do sujeito africano vitimizado, primitivo e instrumento passivo. Como artista-cidadã atenta, ela aborda, critica e reflete sobre o chão que pisa, anunciando o universal a partir das corporeidades e simbologias africanas.

RAÍZES E GALHOS O PROJETO MUDRA AFRIQUE Nascida em 1944, no Benin, Germaine chega ao Senegal por volta dos cinco anos de idade. Ainda jovem segue para a França, onde cursa educação física. Quando retorna ao Senegal amplia e aprofunda sua prática agregando as sabedorias do corpo legadas por seus ancestrais, bem como os elementos muito comuns e fundantes das danças africanas – a música associada ao movimento, ao tempo e espaço; o gesto conectado aos elementos da natureza. Em meados dos anos 70, Leopold Sedar Senghor (1906-2001), primeiro presidente do Senegal independente, convida Maurice Béjart (1927-2007) idealizador do Mudra, escola de dança internacional em Bruxelas, na Bélgica, para dirigir o projeto de uma escola pan-africana de dança, o Mudra Afrique, empreendimento que consolidava uma ideia mais abrangente de política cultural, concebendo as artes como parte importante do plano de Estado Nação. O projeto estava calcado na ideia de que a unidade política da África estava associada à consciência das identidades culturais das civilizações negras – uma política de abertura, pois Senghor acreditava na universalidade que essas expressões poderiam adquirir - tese controversa que gerou uma série de desdobramentos no movimento que ajudou a idealizar – a Negritude – e posteriores reflexões sobre o lugar das sociedades africanas no mundo moderno. Através de Senghor, Maurice Béjart conhece Germaine e a convida para a direção artística da escola, um empreendimento de natureza interdisciplinar e intercultural reunindo artistas de todo o continente africano.


Inaugurada em 1977, em Dakar, a Mudra Afrique almejava desenvolver uma dança africana que pudesse ser experimentada “por todos os homens de todas as civilizações”, porque se queria universal. As bases de formação giravam em torno das danças africanas e do balé clássico, entre outras linguagens. A escola recebeu em seu quadro colaboradores como o coreógrafo cubano Jorge Lefebre (1936-1990), que atuou na , Judith Jamison (1943), bailarina e coreógrafa estadunidense diretora artística da Alvin Ailey American Dance Theater, além do prestigiado músico senegalês Doudou Ndiaye Rose, responsável pela instrução musical dos estudantes. Por falta de financiamento e apoio institucional a escola fechou as portas em 1982, mas dela brotaram outras experiências nos corpos de artistas que por lá passaram, como Irene Tassembedo (Burkina Faso), Longa Fo Yeye Oto (Congo) e, sobretudo, Germaine Acogny, com sua proposta de uma escola internacional de dança que se tornaria realidade anos mais tarde.

DA AREIA, SURGE A DANÇA Após o encerramento das atividades do Mudra Afrique, Germaine dedicou-se a projetos que vislumbravam a criação de um centro internacional de danças tradicionais e contemporâneas africanas, concretizado em 1998, com a fundação da Ecole des Sables (Escola de Areias), em Toubab Dialaw, Senegal. Um espaço para educa-

ção profissional, fórum para trocas de experiências entre dançantes da África e do mundo. No projeto da escola, diversos cursos, estágios e imersões são propostos, com protagonismo para as danças africanas. Entre os treinamentos oferecidos está o Transmission, voltado especificamente para a formação na pedagogia e prática da técnica de dança moderna africana de Germaine Acogny - que aglutina a essência das danças tradicionais da África do Oeste com danças de matrizes européias, como o balé. O que se chama “passo” na linguagem da dança clássica, Germaine, em sua técnica denomina “movimento” e, não por acaso, codifica os ensinamentos através de imagens e elementos simbólicos inerentes às culturas africanas: o baobá, a boneca ashanti, a palmeira da costa, o dromedário, entre outras referências. Acogny relaciona o simbólico com a estrutura do corpo, focando na energia agregada ao movimento, no enraizamento ativo dos pés no solo, na consciência do centro e da coluna vertebral, cerne de sua pedagogia. Uma das grandes contribuições de seu pensamento, além da sistematização concretizada no livro trilíngue Dança Africana (1980), é a evidência de que, ao contrário do que se imagina, as danças africanas não são inatas, mas sim fruto de longo e constante aprendizado e disciplina. As principais bases de financiamento da Escola de Areias são estrangeiras. Germaine persevera, ao lado do marido, Helmut Vogt, seu parceiro na fundação da Escola e do filho Pa-

trick Acogny, cuja tese de doutorado abordou a técnica Acogny e a gênese de corporeidades interculturais. A tentativa de receber apoio do Estado e de instituições privadas africanas, que possam viabilizar a formação dos jovens bailarinos senegaleses e africanos em geral, é uma constante, considerando que o tema da formação é central no projeto da Escola – virtude e necessidade, pois sabemos que, assim como em outros campos, a “fuga de cérebros” do continente também acomete o universo da dança. O trajeto de bailarinas e bailarinos rumo à França, Itália, Espanha, Republica Checa, Estados Unidos e outros países, almejando melhores estruturas e condições de vida é frequente, mesmo que esses desejos sejam, muitas vezes, castelos de areia. “Se a criação da dança africana é domínio dos africanos, ela é aberta à todos. Os estudantes não africanos ampliam seus universos aprendendo nosso método, nossos movimentos , assim como o estudante africano aprende os passos de dança clássica ou moderna” O trecho do livro Dança Africana, acima citado, abre nossa percepção para um caráter de extroversão muito presente nas culturas negras, interessadas em receber o que é de fora, negociando e reelaborando essas influências. Numa reflexão mais detida ao contexto brasileiro cabe a pergunta: estarão os artistas da dança, em suas múltiplas áreas de atuação, dispostos à tal deslocamento, abertura as danças de matrizes africanas?

1- GENOCÍDIO DE RUANDA Um dos maiores massacres da história mundial, ocorreu em 1994, ocasionando a morte de mais de 800 mil pessoas em aproximadamente 3 meses. O conflito envolveu dois grandes grupos sociais do país, que partilhavam a mesma língua e muitos hábitos culturais - os Hutus, majoritários na população, e os Tutsis, minoritários em termos quantitativos. A trajetória de tensão entre os dois grupos começa no período de colonização quando o Estado belga, então colonizador, institui direitos diferenciados favorecendo a minoria Tutsi em detrimento da maioria Hutu, na evidente ação de “dividir para dominar”. As autoridades coloniais criaram documentos de identidade carimbados com os nomes dos grupos, transformando-os em “etnias” contrapostas. Tais rivalidades foram fomentadas por décadas, mesmo depois da independência do país, culminado no genocídio, que recebeu pouca atenção da grande mídia, assim como desinteresse e negligência das instituições internacionais, que interviram muito tardiamente.

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JANT-BI: O CONTEMPORÂNEO COM RAÍZES ANCESTRAIS Um dos grandes dilemas das sociedades africanas e da diáspora é o reconhecimento de suas contribuições para a história e experiência contemporânea. A companhia Jant-Bi (que em wolof, uma das línguas faladas no Senegal, significa Sol), ao longo de sua trajetória fomentou criações que desmancham os estereótipos relacionados às culturas africanas, iluminando riquezas e dilemas atuais sem entretanto, negarem aquilo que pode ser constituinte dos seus saberes vernaculares.

Como bem disse o mestre congolês Longa Fo, anos atrás em seminário na cidade de Uberlândia: “A tradição não é imóvel, ela evolui”. Criada em 1998 na fundação da Escola de Areias, a Cia. Jant-Bi acumula coreografias já apresentadas em diversos contextos do mundo: Le coq est mort, coreografada pela alemã Suzanne Linke (1999); Fagaala (2003) em colaboração com o coreógrafo japonês Kota Yamazaki e impulsionada pela ficção Murambi, do escritor senegalês Boris Boubacar Diop; Waxtaan (2007) uma crítica aos chefes de estado africano e apelo ao poder transformador da cidadania do continente; Opera du Sahel (2007), Les écailles de la mémoire (2007), criação em parceria com a poderosa cia. nova-iorquina Urban Bush Women, são obras que, em suas pluralidades, levam para a cena corpos potentes em dança e discurso, pois trazem à tona questões mais profundas das sociedades ao qual pertencem e suas relações com o mundo ao redor. Alterando o lugar de importância das danças africanas em relação às danças ocidentais, Germaine anuncia uma convivência mais horizontal entre África e Ocidente.

Reprodução do livro African Dance (Danse Africaine / Afrikanischer Tanz) Germaine Acogny, 1980.

SONGOOK YAAKAAR – A EXPERIÊNCIA DIANTE DA ESPERANÇA E o corpo da “mãe da dança moderna africana” projeta-se também em atuações solo. Sua vivacidade e poder em cena se desenvolveram em Sahel (1987), Ye´Ou (1988), Tchourai (2001) e Songook Yaakaar (2010). Na contramão de uma tendência muito presente entre os profissionais de dança, que ao atingirem uma certa idade são descartados pelo mercado, Germaine não para. Sendo prova viva do que ela mesma defende como benefício das danças africanas – o fato

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de não deformarem ou suprimirem o corpo – prestes a completar 70 anos, continua lecionando e atuando com energia. Seu solo Songook Yaakaar, apresentado em 2012, na Bienal Sesc de Dança, leva às ultimas instâncias o seu significado literal. Confrontando a esperança. Ela aborda com ironia os imaginários do Ocidente acerca dos africanos e satiriza uma série de pressupostos da “comunidade global”, colocando em questão os processos de migração, exílios e diásporas. Política e poética se mesclam entre os sentidos produzidos por sua dança, por projeções e textos anunciados em forma de plaisanterie uma prática social presente em vários universos culturais da África do Oeste que autoriza os membros de uma mesma família, mesmo os primos distantes ou membros de etnias próximas, a zombarem e tirarem sarro entre si. Esse confronto verbal serve como meio de depuração das tensões através do riso. Germaine traz o hábito da cultura e o atualiza, como na cena onde, em tom de escárnio, revisita momentos contemporâneos da história e cita o infeliz discurso do ex-presidente da França, Nicolas Sarkozy, sobre a presença africana na história mundial: “àquele senhor que disse [que o drama da África é que o homem africano ainda não entrou suficientemente na história], eu respondo: Você tem razão senhor, desde que o primeiro homem a entrar na história foi uma mulher, há três milhões de anos, Lucy, a mãe da humanidade, celebrada pelos Beatles.” Atualizando suas ironias para o contexto brasileiro, Germaine convidou o público para celebrar a independência do Brasil, já que era 7 de setembro. Sua plaisanterie caiu como uma luva não apenas ao que satiricamente provocava, mas também por chamar atenção para nossa experiência comum de colonização.


A dança de Germaine Acogny não se desvencilha de sua história, constantemente renovada por uma noção muito sábia de ancestralidade como um trampolim para a experiência moderna. Ela fala de África, mas também de nossas humanidades, que são universais.

DOS MARES ONDE ESCOLHEMOS NAVEGAR Em 1995 Germaine foi convidada para coreografar o Balé da Cidade de São Paulo, importante Cia do país. Naquela época comemorava-se o tricentenário de Zumbi dos Palmares e o balé elegeu algumas figuras de renome para encabeçar o trabalho. Não por acaso, a trilha sonora foi desenhada por Gilberto Gil. A coreografia não voltou a ser apresentada em palcos brasileiros em tempos recentes, mas, conforme conversa com bailarinos que participaram da montagem, o espetáculo abriu portas para os palcos internacionais e circulação de outras coreografias da Cia. Germaine voltou ao Brasil em outros momentos, mas a partir de 2005, aproximadamente, um movimento inverso surgiu com a ida de pesquisadores, bailarinos e artistas brasileiros que percebiam a Escola de Areias como possibilidade de aperfeiçoamento e aproximação com os contextos culturais africanos. Esse fluxo e permanente diálogo foi impulsionado principalmente pelo bailarino e coreógrafo Rui Moreira, diretor da Cia. SeráQue? e idealizador da Rede Terreiro Contemporâneo de dança, que articulou encontros, estágios e vivências de brasileiros na Escola, assim como a vinda da própria coreógrafa e seu filho Patrick Acogny para o FAN (Festival de Arte Negra), nas edições de 1994, 2006 e 2009, bem como Mestre Longa Fo (ex bailarino do Mudra) e Pape Ibrahima N’diaye (bailarino da Jant-Bi) durante o 22º

Festival de Dança do Triângulo. Há um movimento muito pertinente de aproximação de artistas e pesquisadoras ao trabalho de Germaine Acogny, de sua escola e bons ventos, para uma relação de parceria com o continente africano. São deslocamentos, mudanças de eixos que parecem apontar para possibilidades de encontrarmos referências dentro de nossos contextos culturais e pluralizarmos redes de criação e ação. Não trata-se apenas de enaltecer um “retorno à mama África ”, ideia já bastante gasta. Esses movimentos, já abordados em algumas pesquisas acadêmicas relacionadas as questões do corpo, ancestralidade e legados das matrizes africanas, anunciam mudanças no foco daquilo que consideramos formação em dança, conhecimento técnico, poética e linguagem. Mesmo assim, as transformações seguem em passos lentos, vide os currículos dos cursos de graduação em dança do país – predominantemente euro-centrados e em descompasso com a pluralidade de linguagens que alimentam o corpo brasileiro.

PARA LER African Dance (Danse Africaine / Afrikanischer Tanz) Germaine Acogny Weingfarten 1º EDIÇÃO, 1980

PARA NAVEGAR REDE TERREIRO CONTEMPORÂNEO DE DANÇA centroculturalvirtual.com.br ECOLE DES SABLES jantbi.org URBAN BUSH WOMEN urbanbushwomen.org

PARA VER E OUVIR Documentário: A Dançarina de Ébano Dir: Seydou Boro França, 2002

O Brasil, em seu astigmatismo crônico, ainda olha para o espelho e não se enxerga tal como é. É preciso saber de onde se vem, pra seguir adiante, premissa valiosa das formas africanas de escrita de si, e, não por acaso, ensinamento de Germaine, uma pioneira. Ao entrelaçarmos e incorporarmos essas escrituras africanas, abrimos caminhos para descobertas de outros mares para dançar e, portanto, viver.

LUCIANE RAMOS SILVA é doutoranda em Artes da Cena pela UNICAMP, mestre em antropologia pela mesma instituição e bacharel em Ciências Sociais pela USP. Atua na área de estudos africanos, educação e artes do corpo.

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Ant么nio Francisco Lisboa (Aleijadinho, 1730-1814) Nossa Senhora das Dores Madeira Policromada 100 x 50 x 34 cm S茅culo Xviii

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ARTE AFRO-BRASILEIRA PARA QUÊ? texto ALEXANDRE ARAÚJO BISPO e RENATA FELINTO

O título desse texto parafraseia, de certa forma, o título do livro seminal da crítica e historiadora da arte Aracy Amaral (1930) Arte para quê? A preocupação social na arte brasileira - 19301970 (1984)1. Nele a autora discorre acerca da necessidade de uma arte que dialogue com a realidade não somente dos profissionais do meio das artes, tais quais críticos, marchands, artistas, galeristas, colecionadores, entre outros, mas que trate da sociedade e de seus assuntos, que seja um painel crítico e reflexivo do mundo no qual vivemos, e que se conecte com o simples apreciador de arte. É essa relação entre arte, sociedade e seres humanos que este texto apresentará, todavia, a partir do prisma das heranças africanas e do que se convencionou denominar arte afro-brasileira. Podemos afirmar que existe no Brasil uma produção de artes visuais afro-orientadas, isto é, inspiradas em temas, problemas e experiências da história nacional dos afrodescendentes brasileiros? Sim, podemos. Desde que façamos a distinção entre arte no sentido geral e arte afro-brasileira em particular. Assim para responder sobre a pertinência dessa produção expressiva em contexto democrático e urbano, resolvemos fazer este texto, refletindo sobre o fato da arte ser uma forma de conhecimento que está intimamente ligada à experiência social das pessoas. Essa experiência fornece inspiração para uma multiplicidade de expressões plásticas: desenho, pintura, escultura,

objetos, instalações, fotografias, vídeos e performances. De Antônio Francisco Lisboa, vulgo Aleijadinho (1738 - 1814), aos artistas contemporâneos, veremos que a arte afro-brasileira se transforma no tempo e no espaço, mantendo noções e técnicas africanas, gestos especializados, mas também é aberta para a incorporação de abordagens inéditas, e cada artista resolve a seu modo os problemas que lhe interessam. A ideia aqui é apresentarmos elementos expressivos, artistas, obras e conceitos que permeiam o entendimento sobre o que, afinal, pode ser chamado de arte afro-brasileira. Contudo ajudemos a definir a expressão, nosso objetivo é ampliá-la de modo a mostrar suas potencialidades enquanto um conceito revelador de uma rica produção, que em nada pretende reduzir a atividade artística dos artistas à categoria “afro-brasileiros”. Dividiremos esse recorte da história da arte brasileira que foca especialmente nos artistas negros em quatro momentos a partir do século 18, para em seguida trazermos referências e artistas do século 19, posteriormente adentraremos a produção modernista e pós-modernista do século 20 para, por fim, lançarmos luz aos emergentes artistas do século 21 que condensam e ressignificam tudo o que havia sido feito até então em termos de uma arte que dialoga com a ideia de afrobrasilidade, negritude, mestiçagem e identidade social.

1 - Neste livro, a autora cita Mário de Andrade que dizia: “toda arte é social porque toda obra de arte é um fenômeno de relação entre seres humanos”.

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SÉCULO 18 DAS ESCULTURAS TRADICIONAIS AFRICANAS ÀS TALHAS BARROCAS Certamente que o talento demonstrado pelo escravizado africano, oriundo das populações do tronco linguístico bantu, juntamente ao crioulo e mestiço, foi decisivo para a configuração do barroco singular que se desenvolveu aqui. Decisivo porque esses homens que dominavam a escultura em madeira e a metalurgia trouxeram seu conhecimento ancestral para movimentar a economia brasileira em diversos aspectos. No Brasil colonial quase tudo era produzido pelo negro escravizado, das residências ao santo feito em madeira para o qual se dirigiam pedidos e preces. As tecnologias africanas, portanto, foram importantes para a estruturação desse Brasil nascente, ainda que os livros de História adotados pela maior parte das instituições de Ensino Fundamental e Médio não abordem esse fato. No século 18 (ou setecentos), a participação de negros e mestiços na produção de artes e ofício era mais acentuada nos grandes centros urbanos, como em Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Ela era visível em trabalhos como a escultura em madeira, também chamada de talha; na arquitetura; na ourivesaria; na pintura e na música, nas quais negros e mestiços trabalharam sob o comando de mestres portugueses em corporações ou manumissões. O domínio da madeira enquanto matéria prima para representação de formas tridimensionais já era uma tradição entre os povos bantus. Assim, para esse escravizado que atuava nas corporações de ofício, muito provavelmente, o manuseio das ferramentas e a conferência de forma a esse material era algo rela-

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tivamente simples, posto já haver esse conhecimento acumulado. Aliás, sabemos hoje que a escravidão de povos africanos que detinham tais habilidades foi fundamental para o sucesso da empreitada exploratória da colônia. Não foram poucos os negros e mestiços que, anonimamente, imprimiram as suas marcas nas produções artísticas do primeiro movimento artístico brasileiro, já denominado na historiografia da arte como mestiço por incluir brancos portugueses, negros africanos, índios e mestiços. Nesse sentido, podemos destacar alguns nomes de artistas afrodescendentes. Na pintura, temos, por exemplo, as produções dos fluminenses Leandro Joaquim (1738 - 1798), que também foi arquiteto e coreógrafo, e de Manoel Dias de Oliveira (1764 - 1837), conhecido como o “Brasiliense” e que foi o primeiro professor público de desenho do Brasil do qual se tem conhecimento. Também podem ser mencionados os nomes do mestiço baiano alforriado José Theófilo de Jesus (1758 – 1847), que foi pintor e dourador; e do paulista Jesuíno Francisco de Paula (1764 – 1819), que também dedicou-se à arquitetura e à musica e, ao enviuvar, dedicou-se ao oficio sacerdotal adotando o nome pelo qual tornou-se conhecido, Frei Jesuíno do Monte Carmelo. Na escultura, sobressaem-se os nomes do baiano Francisco Chagas, conhecido como o “Cabra”, cuja biografia é escassa; e os dos mineiros Valentim da Fonseca e Silva (1745 - 1813), o Mestre Valentim, filho de um contratador de diamantes e de uma crioula (negra nascida no Brasil), e do filho de um arquiteto angolano Antônio Francisco Lisboa (1730 - 1814), eternizado pela alcunha de Aleijadinho. Indubitavelmente que as produções de Antonio Francisco Lisboa em diversas

Mestre Valentim (1750 – 1813) Ninfa Eco (1783) Escultura Em Bronze 178 X 81 X 80 Cm


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cidades de Minas Gerais e as de Mestre Valentim, na capital do Rio de Janeiro, são as mais expressivas dentre as dos artistas citados. Notem que ambos eram filhos de africanas com pais portugueses. Mestre Valentim teve a sua formação em Portugal, para onde viajou com a família retornando ao Brasil após o falecimento do pai, enquanto que Aleijadinho teve a sua formação artística junto de seu pai, o reconhecido arquiteto Manuel Francisco Lisboa. Ambos exerceram grande influência sobre os artistas das regiões onde produziram, as escolas mineira e carioca.

2 - O Aleijadinho e Mestre Valentim, texto de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira. Em: Mão Afro-Brasileira: significado da contribuição histórica. Organização: Emanuel Araújo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Museu Afro Brasil, São Paulo, 2010. 3 - Arte Colonial: Corporação e Escravidão, texto de Jaelson Britain Trindade. Em: Mão Afro-Brasileira: significado da contribuição histórica. Organização: Emanuel Araújo Imprensa Oficial do Estado de São Paulo Museu Afro Brasil, São Paulo, 2010. 4 - Dicionário Oxford de Arte Martins Editora São Paulo 1996 5 - “Artistas negros do século XIX”, texto de Marcelo D´Salete Em: Culturas africanas e afro-brasileiras em sala de aula: saberes para os professores fazeres para os alunos. Organização Renata Felinto Fino Traço Editora Belo Horizonte, 2012 6 - Pintores negros do oitocentos. José Roberto Teixeira Leite Motores MWM Brasil/Edições K São Paulo, 1988.

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Segundo a pesquisadora Myriam de Andrade Oliveira, eles são: “(...) verdadeiros artistas e não meros imitadores, ambos introduziram inovações na adaptação dos modelos europeus ao meio colonial, especialmente os do rococó internacional, principal estilo da época em voga na Europa, na segunda metade do século18” 2 Aleijadinho destacou-se na área religiosa, enquanto que Valentim nas obras de urbanização. As grandes obras de Antônio Francisco Lisboa são a Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, em Ouro Preto, e o da de mesmo nome localizada em São João Del Rei. O Santuário de Bom Jesus de Matosinhos, situado em Congonhas do Campo é sua grande obra reconhecida internacionalmente e tombada como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Segundo o pesquisador Jaelson Britain Trindade, o único grupo de oficiais negros e mestiços livres de que se tem conhecimento é o de Aleijadinho3. De Valentim podem ser mencionadas as obras Passeio Público (1779 – 1783), o Chafariz das Marrecas (1789), o Chafariz das Saracuras (1795), as esculturas em ferro, as primeiras fundidas no Brasil, Ninfa Eco (1783) e

Caçador Narciso (1785), que possuem originais no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. É importante ressaltar que o status de mestre não era comumente alcançado por negros e mestiços. Observando as obras você pode estar se perguntando o que possuem de afro. Esteticamente, julgando a época na qual os mesmos viveram, não havia interesse nas heranças africanas, o que se produziu foi uma arte sacra cristã a partir de cânones europeus e outra que serviu para urbanizar a recém capital do país com a chegada da Família Real, em 1808. SÉCULO 19 PARA MUITO ALÉM DA RELIGIÃO, OUTROS GÊNEROS DA PINTURA Embora Mestre Valentim seja considerado um dos introdutores dos elementos da estética neoclássica em sua obra classificada também de rococó, foi com a chegada da Missão Artística Francesa ao Brasil, em 1816, que esse estilo ganharia ampla difusão opondo-se aos estilos antes predominantes: Barroco e Rococó. Segundo o Dicionário Oxford de Arte4 o neoclássico busca “recriar o espírito heroico, bem como os padrões decorativos, da arte da Grécia e de Roma”; é a partir da imitação em particular dos gregos que os modernos se tornariam grandes artistas. Valentim, como vimos, retoma um tema mitológico grego em sua obra Narciso e Eco. A fundição em bronze indica os novos materiais da arte e faz frente ao uso disseminado da madeira no período anterior. As talhas vão dar lugar a modelagem, a fundição e ao mármore. A pintura de cavalete também é introduzida pela missão que criará a Academia Imperial de Belas Artes (AIBA), cujo edifício foi entregue apenas em 1826. Dessa institucionalização do ensino da arte no Brasil por meio


da AIBA são ensinados diferentes gêneros de pintura: pintura histórica, retratos, paisagens e natureza morta. Se a pintura histórica será o gênero mais importante, e seus maiores representantes brasileiros os pintores Pedro Américo (1843-1905) e Victor Meirelles (1832-1903) no campo da natureza morta destaca-se o pintor negro Estevão Roberto da Silva (1844-1891) de quem falaremos mais adiante. Entre os efeitos da instauração do estilo neoclássico no Brasil estão o desmantelamento das antigas corporações de ofícios, nas quais mestres e discípulos trabalhavam para atender a igreja: seu principal cliente. A produção artística era vista até então como uma atividade manual, mecânica, feita entre nós, fundamentalmente por negros e mulatos. Nessa nova forma de aprendizado sistemático e teórico das artes visuais, os alunos eram admitidos por meio de exames e o aprendizado acadêmico de disciplinas como desenho de estatuária clássica, perspectiva, luz e sombra entre outros, os mais prodigiosos alunos eram premiados em concursos com viagens ao exterior e, se até então predominavam artistas negros e mulatos na feitura de pintura, escultura e arquitetura, a partir desse momento surgem também os artistas brancos como Meirelles, Américo e, mais para o fim do século 19, também mulheres como Georgina de Albuquerque (1885-1962). A religião cristã, tema dominante no período anterior abre espaço agora para a multiplicidade de gêneros ensinados na academia. Como Valentim no campo escultórico, José Theófilo de Jesus (1758-1847) pintor, dourador e encanador, pardo e forro baiano, discípulo predileto de José Joaquim da Rocha (1737-1807), é um desses artistas cuja produção híbrida une elementos do barroco, do rococó e do classicismo. É considerado um dos

melhores pintores da escola baiana de pintura e sabemos que o estilo neoclássico está em sua obra pelo tratamento de alguns temas mitológicos e históricos, mas também pela influência que recebeu entre os anos de 1797 e 1802, quando esteve em Portugal a estudos, em viagem financiada por seu mestre. Neste período, Theófilo tomou contato com as obras do famoso pintor italiano Pompeu Batoni (1708-1787), na Basílica da Estrela, em Lisboa. Se Theófilo é um artista de transição, híbrido, sem um estilo definido e que não teve contato com a AIBA, Estevão Roberto da Silva (1845?- 1891), pintor negro será considerado pela crítica da época um dos melhores pintores de natureza morta, gênero que estava no extremo oposto da pintura histórica - então o mais valorizado na França desde o século 18 - para representar a república francesa e exaltar as glórias do império no Brasil. O pesquisador Marcelo de Salete nos ensina que essa pintura de natureza morta “realizada com perícia” por Silva “era considerada o ponto alto do gênero” apresentando “linhas bem definidas” e “cores fortes” típicas da estética neoclássica5. Embora de reconhecido talento, Estevão Silva sofreu todos os constrangimentos de sua condição de homem negro vivendo numa sociedade de forte tradição escravocrata. Em 1879, por ocasião do prêmio da exposição anual da AIBA para os mais destacados pintores de natureza-morta, Silva, o favorito da crítica ganhou o segundo lugar, mas recusou-se diante de D. Pedro II (1825-1891) a receber a premiação. Como resposta a sua indisciplina ele foi afastado por cerca de um ano da AIBA. Reforçava-se aí uma noção difundida na sociedade brasileira ainda hoje de que negros são naturalmente inferiores se comparados aos brancos. O artista não foi expulso da academia

devido ao apoio de outros artistas seus, colegas que justificaram que sua atitude decorria de certo “acanhamento da inteligência” 6 . Com isso, nos diz Salete, sua atitude contestatória ganhou ares infantis, de tal modo que ele não poderia ser responsabilizado pelo que fez. Os irmãos Arthur (1882 1922) e João Timótheo da Costa (1879 - 1932) estudaram com Rodolfo Amoedo (1857 - 1941), João Zeferino da Costa (1840 - 1916), Daniel Bérard (1846 - 1910) e Henrique Bernardelli (1857 – 1936), todos artistas brasileiros de prestígio à época. Premiados em diferentes momentos com viagens ao exterior, os irmãos Timóteo iniciam seus estudos na Casa da Moeda do Rio de Janeiro e, mais tarde, em 1894, na Escola Nacional de Belas Artes. Artur viaja a Paris em 1898 por aproximadamente dois anos, e José vai para a mesma cidade, em 1910. Ambos tomam contato com as inovações modernas de tal maneira que distanciam-se cada qual a seu modo da estética neoclássica ensinada na academia tendendo em vários trabalhos a abordagem impressionista e pós-impressionista. Tratava-se de um novo modo de ver no qual a luz e a cor deviam ser experimentadas ao ar livre, fora do ateliê. Quanto aos temas de suas produções, em Artur destacase o interesse pela representação de negros, mas também as relações de trabalho como em A Forja (1911), que destaca a temática social. Como veremos, esta temática estará presente no modernismo brasileiro que olha para as vanguardas e ao mesmo tempo para as raízes do Brasil com relativa solidariedade em relação a população negra. Os irmãos realizam juntos, em 1920, o primeiro de uma série de painéis para o Fluminense Futebol Clube terminado apenas por João, em 1924, após a morte de Arthur, em 1922, no Hos-

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pício dos Alienados, lugar onde, mais tarde, também João morreria. Embora inovadores e premiados dentro e fora do Brasil os irmãos Costa, em especial Artur, não se tornaram uma referência para os modernistas. Também da AIBA saíram outros artistas negros como Crispim do Amaral (1858-1911), Firmino Monteiro (18551888), Horácio Hora (1853-1890), Rafael Pinto Bandeira (1863-1896), além de artistas que não eram dessa escola, como Emanuel Zamor (1840-1917), pintor e cenógrafo mulato que estudou na célebre Academia Julién, em Paris. SÉCULO 20 SUJEITO NEGRO ENQUANTO SÍMBOLO DE BRASILIDADE E DE MARGINALIDADE Apesar de, ao estudarmos o modernismo não serem mencionados artistas afrodescendentes, mas sim o negro ou mestiço enquanto sujeitos representados em pinturas e esculturas, isso não quer dizer que eles inexistam. Nas Artes, o negro e o processo de miscigenação tinham sido alçados a qualidades da cultura brasileira, que a diferenciava e a valorizava em comparação à norte-americana e à européia. Já em fins de século 19, ambos eram tidos como índices definidores da degeneração e do atraso do país. Contribuiu

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para essa transformação positiva a publicação do clássico livro de Gilberto Freyre (1900 - 1987): Casa Grande e Senzala (1933), no qual o sujeito negro africano e a miscigenação são analisados de forma otimista. Ou seja, Freyre não atribuía o atraso do país aos negros. Todavia, na sociedade, as manifestações culturais afro-brasileiras ainda eram amplamente marginalizadas e reprimidas até, via a aceitação da miscigenação, passarem por um processo de incorporação e de branqueamento: “A feijoada, por exemplo, até então conhecida como ‘comida de escravos’, a partir dos anos 1930 se converte em ‘prato nacional’, carregando a representação simbólica da mestiçagem (...) A capoeira reprimida pela polícia do final do século 19 e incluída como crime no Código Penal de 1890 – é oficializada como modalidade esportiva nacional em 1937. Também o samba sai da marginalidade e ganha as ruas, enquanto as escolas de samba e seus desfiles passam, a partir de 1935, a ser oficialmente subvencionados”.7 Artistas como Tarsila do Amaral, Cândido Portinari, Emiliano Di Cavalcanti, Alfredo Volpi, Lasar Segall e Djanira da Morra e Silva, dentre outros trouxeram essa temáticas às suas pinturas. Djanira, por exemplo, exaltou os orixás, os deuses iorubanos, até então

pouco representados enquanto tema e aspecto da cultura brasileira. Entretanto, artistas negros como Heitor dos Prazeres (1898 - 1966), Benedito José Tobias (1894 – 1963), Benedito José de Andrade (1906 – 1979), Wilson Tibério (1923– 2005), Sérgio Vidal (1945) e Yêdamaria (1932), tiveram as suas produções eclipsadas e podemos afirmar que eles são representantes de um modernismo afro-brasileiro que esteve focado na visibilidade da cultura afro -brasileira, mais precisamente, numa esfera particularista, no cotidiano das famílias negras. Cada um representou esse dia a dia familiar sob um prima. Prazeres via a vida nos morros cariocas como que ilustrando sambas de Cartola (Angenor de Oliveira); Vidal enquanto seu discípulo, idealizou as famílias negras de maneira romântica; Tibério retratando as religiões de matriz africana e Yêdamaria trazendo a realidade de famílias negras que já haviam ultrapassado a condição de pobreza a partir de suas mesas elegantemente postas, destacando hábitos de educação e civilidade. Foquemos as produções de Wilson Tibério e de Yêdamaria que, de certo modo, incorporam também uma das preocupações dos modernistas clássicos que são as experimentações das inovações pictóricas propiciadas pelas pesquisas nas vanguardas artísticas


europeias, tais quais o Cubismo, o Futurismo, o Expressionismo, o Construtivismo, dentre outras. Yêdamaria, primeira professora negra da Faculdade de Belas Artes da UFBA, primeira bolsista negra brasileira a cursar mestrado em Artes Plásticas nos EUA. Foi neste período, em contato com as questões levantadas pelo movimento Black Power, na década de 1970, que ela, após pintar barcos e paisagens no Brasil, identificou-se com a luta de negros e negras por direitos civis no Brasil. Passou a pintar e a realizar colagens com a temática de Iemanjá, entretanto, a orixá era repre-

sentada branca, e ela alegava que “não era a figuração de Iemanjá, não tinha nada a ver com gente”. Após essa experiência pela temática religiosa, ele passa a dedicar-se às naturezas mortas pintando grandes telas. Como se fosse herdeira de Estevão Roberto Silva, ela pinta atualmente muitos copos, jarras, louças, flores, guardanapos, mesas postas em uma reverência à sua família, cuja mesa era um símbolo de união fraternal. Ela interpreta a sua produção como reflexo de memórias vividas junto aos seus, contrariando a recorrência de famílias negras, pobres, social e afetivamente desestruturadas.

Arthur Timótheo Da Costa (1882-1922) Retrato de Negro 1906 Óleo Sobre Tela 48 X 57 X 9,5 cm

7 - “Racismo no Brasil”. Lilia Moritz Schwarcz Publifolha São Paulo, 2001.

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Wilson Tibério, nascido em Porto Alegre, foi pintor e escultor, começou a estudar artes ainda criança como bolsista da Escola Nacional de Belas Artes, posteriormente foi se aperfeiçoar na Europa, onde percorreu diversos países. Também conheceu alguns países africanos. Assim como ocorreu com Yêdamaria, foi a experiência no exterior que fez com que Tibério se voltasse às temáticas afro-brasileiras, dos retratos às cenas de candomblé. Nesse modernismo afro-brasileiro é a experiência íntima familiar e religiosa que define o interesse dos artistas. Talvez devido a um desinteresse da crítica desse período, seja tão oneroso encontrar informações acerca das obras e, por vezes, das biografias dos artistas. SÉCULO 21 COM A PRODUÇÃO DO ARTISTA AFRO-CONTEMPORÂNEO Também a produção contemporânea apresenta artistas afro-brasileiros que, inspirados em temas, experiências e problemas comuns a si próprios e a população negra e afrodescendente problematizam em suas obras o corpo, as relações de gênero, a religiosidade de matriz africana e a memória, história e identidades negras. Desde Rubem Valentim (1922-1991), artista que faz o elogio da mestiçagem inspirando-se nas manifestações africanas no Brasil presentes no Candomblé e na Umbanda; passando por Mestre Didi (19172013), que opera com as técnicas expressivas e modos de fazer artístico -ritual do Candomblé homenageando os deuses da terra do panteão nagô; Rosana Paulino (1967) e o tratamento que dá à relação entre biografia e experiência sócio-histórica feminina negra, a arte afro-brasileira sinaliza para importância da diversificação histórica da produção de artes visuais no Brasil. Essa diversificação fica mais explícita na arte contemporânea que há muito vem ampliando seus interesses.

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A revista O Menelick 2º Ato já tratou desses e outros artistas individual ou coletivamente, daí que nesse momento apresentamos outros nomes que vem despontando no cenário nacional e cujas produções, ao se enquadrarem nessa categoria, nos ajudam a entender as potencialidades desses artistas no cenário mais amplo da arte brasileira. Essa delimitação não tem o propósito de reduzir o alcance expressivo ou conceitual dos trabalhos, mas ampliar suas capacidades de diálogo com o público. Afirmar esse intuito é importante para mostrar que o papel desse segmento da arte não é ilustrar problemas sociais como um panfleto político. PESQUISAS FORMAIS Comecemos a tratar o tema na contemporaneidade pela apresentação da obra de um artista que embora negro não se inspira na temática afro-brasileira nem evoca quaisquer elementos desse universo. Ele não é o primeiro a fazer isso, muito antes dele Antonio Bandeira (1922-1967) também distanciou-se da temática encaminhando-se gradativamente para a abstração informal, da qual tornou-se um mestre. Wagner Viana nasceu em 1981, em São Paulo. Professor de artes na rede pública, doutorando em poéticas visuais pela ECA-USP, mestre em Artes Visuais pelo Instituto de Artes da Unesp e graduado em Artes plásticas pela Faculdade de Artes, Arquitetura e Comunicações UNESP – Bauru, Viana tem se interessado pela cor como elemento que circula social e geograficamente, e incorpora nesses deslocamentos os nomes dos lugares de onde provém. Sua poética se estrutura por meio de um formalismo abstrato, aparentemente frio e distante, desde que não saibamos as condições de produção de seu trabalho, no qual dirige

grande interesse ao comportamento das cores em instalações como: “Projeto Terra de Pirapora 23º 25’ 0” Sul e 47º0’0” Oeste” que foi exibido na exposição Afro como Ascendência Arte como Procedência, no Sesc Pinheiros, entre dezembro de 2013 e março de 2014, em São Paulo. REPRESENTAÇÕES DE CORPO E GÊNERO Seguindo uma trilha aberta por Rosana Paulino (1967) que desde o início de sua carreira vem discutindo a relação entre raça, corpo, gênero e história da mulher negra no Brasil, Janaína Barros e Renata Felinto tomam o corpo como plataforma expressiva. Janaína Barros é paulistana, nasceu em 1979, é mestre em Artes Visuais e graduada em Artes Plásticas pelo Instituto de Artes da UNESP, com especialização em Linguagens Visuais pela Faculdade Santa Marcelina. Interessada na discussão sobre memória, corpo e identidade cultural negra e fazeres manuais, a artista reconstrói a relação entre mulher negra e trabalho braçal doméstico em uma série de obras dos últimos quatro anos, como em Bulina-me (2010), no qual ilumina com lantejoulas um avental de cozinha aproximando trabalho doméstico (verso) e festa (frente). A frase que dá nome à obra é bordada em linha vermelha sobre um tecido opaco de mesma cor, nos convidando a chegar mais perto. Com delicadeza, a artista costura roupas para objetos ordinários como luvas de cozinha, puxa-sacos, liquidificador, aproximando artefato e gênero. Tais trajes, dado ao cuidado de sua feitura e decoração, escondem relações desiguais de gênero e classe social, como no trabalho Sou todo seu, na qual a artista reflete sobre o desejo da mulher negra, muitas vezes frustrado, de ser desejada, de encontrar abrigo afetivo em uma relação de igualdade e respeito. Renata Felinto nasceu em 1978, é paulistana, empresária, produtora cultural,


escritora e doutoranda em artes visuais pela UNESP, mestre em Artes Visuais e bacharel em Artes Plásticas pela mesma universidade. Especializou-se em Curadoria e Educação em Museus de Arte pelo MAC/USP. Em sua produção mais recente a artista que tem grande interesse por retratos de família, seus e de outras pessoas, se autorretrata como Brigite Bardot, Kim Bassinger e Marilyn Monroe, loiras famosas, sedutoras e sorridentes. Força relações de alteridade, e sem negá-las transforma-se nelas. Nessa operação, as estrelas das telas do cinema hollywoodiano são antropofagicamente assimiladas. Felinto questiona os padrões de beleza construídos, mas veiculados como naturais pela cultura de massa. Ao brincar com os cabelos louros, cor que no Brasil tem muitas representações positivas e marca o desejo de homens e mulheres em torno desse símbolo erótico, o efeito é uma figura híbrida, irônica e cômi-

Wagner viana Detalhe da obra Projeto terra de pirapora 23º 25’ 0” sul 47º0’0” oeste Vermelho terra de pirapora, amarelo terra de pirapora e cinza terra de pirapora Instalação: 49 pinturas guache sobre cartão 15 X 21 cm 2013

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ca. Há aqui uma paródia da figura de Adelaide, representação altamente negativa da mulher negra brasileira, um dos quadros do programa Zorra Total, da Rede Globo de Televisão. Em White Face and Blonde Hair, parte do projeto Também quero ser sexy (2012), ela investe no travestismo de classe social e se autorrepresenta como uma loura que esbanja riqueza e capacidade de consumo do luxo oferecido na rua Oscar Freire, em São Paulo, na qual fez uma performance desconcertante para aqueles que foram seu público, ainda que sem saber. A MATERIALIDADE DA HISTÓRIA Mineiro de Igarapé, Tiago Gualberto nasceu em 1983, estudou na Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, faz bacharelado em Têxtil e Moda, pela USP, e atualmente mora em São Paulo. A temática étnico -racial está presente em seus trabalhos desde que começou a expor, ainda em Minas, em 2005. Como Sidney Amaral (1973), artista apresentado na revista O Menelick 2º Ato em março de 2012,

PARA LER Tecido Social. Texto de Alexandre Araújo Bispo. Disponível em: galeriavirgilio.com.br “Yêdamaria”. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo São Paulo, 2006. ENCICLOPÉDIA DE ARTES VISUAIS DO ITAÚ CULTURAL Itaucultural.org.br

Gualberto coloca sua própria experiência em jogo articulando-a de modo imaginativo e inteligente com a história do Brasil. Em seu site lemos: “Tiago Gualberto, em pesquisa sobre sua própria identidade, atravessa a memória do negro e o processo de miscigenação experimentado em nosso país”. Em sua obra figuram instalações e objetos e não parece haver predileções quanto aos materiais utilizados, a principio lhe interessam caixas de fósforo, coadores de café descartáveis, lâmpadas queimadas, reproduções de fotografias. Por sua vez uma técnica expressiva recorrente em sua produção é a gravura, meio pelo qual ele cria, ou reelabora diferentes interpretações de ícones da arte brasileira. É este o caso da obra O Mestiço (1934) de Candido Portinari (1903-1962). É precisamente esta obra que inspirou a ilustração da capa da edição ZER011. Nela a figura portinaresca torna-se um boneco de papel que pode usar diferentes tipos de roupas e acessórios: óculos escuros, boné, capacete de motoqueiro, blusa de moleton, celular. O leitor pode recortar a figura da capa e fazer sua composição, personalizando o seu próprio mestiço vestindo-o. Evidentemente a obra de Gualberto é mais extensa, mas tomamos esse exemplo facilmente visível que, inclusive, pode estar aí, agorinha mesmo na sua casa.

cobrir toda a produção existente, posto que no passado ela é relativamente grande e ainda bem desconhecida, e no presente tende a crescer dado o processo de qualificação democrática que permite aos artistas problematizarem suas experiências subjetivas e identidade sociais. Como efeito direto dessa atuação artística emerge a demanda por visibilidade do passado, e no presente. Já foi o tempo em que artistas negros eram recolhidos em hospícios e lá morriam como os irmãos Timóteo, ou se matavam como Emanuel Zamor. Outros tempos, velhos conflitos, novas condições sociais para lidar com os racismos que a todo tempo afloram e se atualizam, potentes sim, mas também há outras armas para atacar o império. Para responder aquela pergunta feita no inicio: Arte Afro-brasileira para quê? Diríamos que para ampliar a oferta de produtos multiculturais que levem em conta a diversidade da cultura brasileira que, mesmo no campo da arte contemporânea, ainda muito elitista, vem gerando novas produções, visões e experiências subjetivas e sociais diversas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste texto apresentamos um recorte da arte afro-brasileira, segmento da historia da arte nacional que vai do período barroco, colonial, até a arte contemporânea. Nosso objetivo não foi

ALEXANDRE ARAÚJO BISPO é doutorando em Antropologia Social e bacharel em Ciências Sociais, ambos pela USP. Atua como curador e crítico de arte. RENATA FELINTO é doutoranda em Artes Visuais pelo Instituto de Artes/ UNESP, mestre e bacharel pela mesma instituição. Atua como pesquisadora, artista plástica e educadora.

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Thereza N. dos Santos São José do Rio Pardo, SP 13 x 8cm 1953

Fotografia pertencente ao acervo da família Braga dos Santos Saiba mais sobre a imagem em omenelick2ato.com


Para onde vai a negra?


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