Cruzeiro (2016)

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Luiz Fernando Bueno

CRUZEIRO





Luiz Fernando Bueno

CRUZEIRO

NazarĂŠ Paulista 2016



Todo

pedido

seguido

de

alcançado

demonstração

material

ou

Ato

objeto.

ou

momento,

é

imaterial.

aquilo

Neste

que

era

íntimo se torna público. Finda-se

um

contrato

transação simbólica.

de





Catei o rolimã e começou aqui o raciocínio do por que pegar. Eu tinha que imaginar a história desse objeto, aquele

criar simulações sólido

foi

parar

na minha cabeça de como ali

ou

que

ele

ativasse

alguma memória em mim. Guardei a rodinha de rolimã dentro de um saco.





É uma reta bem extensa, o que provoca um estado meditativo. Não passa quase nenhum carro. A cachaça

potencializa esse tipo de experiência que engloba tanto

a

percepção

quanto

um

deslocamento

de

seu

corpo para perceber seu entorno, a visão é ampliada e

todos

os

outros

sentidos.

Repito

um

movimento

sincronizado pelas batidas de meu cajado. Cajado de eucalipto, árvore que vejo desde que nasci, pois minha

família

lenheiro.

trabalha

com

isso.

Meu

pai

era




Cumprimentei os pais de Válter. Eles convidaram para entrar e sua mãe serviu-me pão com mortadela e café com leite. Preparou um pão com mortadela para comer mais tarde, uma marmita e também um cacho de banana.

“Melhor você levar essa marmita, que o caseiro é boliviano, não sei se ele janta, mas vai que você não gosta da comida. Você mora em Nazaré. De quem você é parente?” – Mãe do Válter.




Shynider Fazia

disse

pouco

que já tentaram

tempo

que

tinha

assaltar seu bar. adquirido,

mas

que

pretendia trazer shows para ali. Shynider tinha uma banda de forró, mostrou-me o pôster. Ele ofereceu macarrão e eu aceitei. Esquentou num fogão a lenha e também fritou um bife, convidou-me para entrar no bar e comemos.





“Haha! Quer que eu leve seu carrinho?” “Não, tenho que terminar com ele.”

Caminhamos e conversamos. Antonio Oliveira foi uma figura muito amável durante esses dias e o mediador para eu chegar bem até o final. Agora finalmente nos vimos.




“Opa meu amigo!” “Opa!”

“Sobrou um marmitex, você aceita... ta quentinho!” “Claro, muito obrigado!” Sorrindo eles seguem viagem, mas o maior sorriso é o meu.

Que

emoção,

meus

olhos

estão

molhados

de

alegria. Feião chega até mim e já sabe que ganhei algo. Mostro o marmitex e digo: “Não acredito, não como arroz com feijão desde que

sai de casa, vamos achar uma sombra e comer!”




Ainda desconfiado, ele arremessou a faca. Ela girou cerca de três vezes no ar em meio à escuridão. As luzes provinham apenas da fogueira. A faca passou sobre os azulejos e sumiu em meio ao capim alto. Não

a vi caindo, porém ouvi o som de quando fincou na terra. Uma cena muito bonita. “Agora

podemos

dormir sossegados que

tentar matar o outro a noite!” – Edvan.

ninguém vai




“Sabia que você foi o mais próximo que eu tive de uma família? Você podia ser meu sobrinho ou quem sabe um irmão mais novo...” – Edvan. Sorri. “Você chegou aqui que nem um anjo. Nem barulho fez. Nem

pena

derrubou.

você!” – Edvan.

Eu

nunca

vou

me

esquecer

de




“Como é seu nome?” – perguntei. “Jesus.”

“Tá falando sério?” “Que foi? achou que nunca ia encontrar Jesus? É Jesus sim!”




Cadú contou que teve um filho especial, já faleceu. Mostrou uma tatuagem no braço, PRIVILÉGIO. “Foi um privilégio ter um filho especial!” – Cadú. Cadú era um cara do bem.

“Você tem uns olhos... olhos que dizem a verdade. Olhos de uma pureza. Você já viu os olhos desse rapaz Claudete?” – Cadú. “Já vi. O Luiz é uma candura de menino!” – Claudete.




Volto Ă poeira. No alto de um barranco vejo uma capelinha.

Subo

a

escadinha

cavada

nos

calos

do

guatambu. Capela coberta de marrom do pĂł da estrada, santinhos

empoeirados

e

descascados.

No

lado

de

fora, casinhas de abelhas e abelhinhas do barro. Infância na mente.





Arrumo minhas coisas e como um pouco do pão que achei

no

Restaurante

Frango

Assado

em

Atibaia.

Recheei com o restante do salame que ganhei do meu amigo Edvan lá de Limeira. Que delícia! Junto com cachaça ainda! Agora estou calmo. Escuto rádio. A lua ainda está bem grande e cheia. Ouço no mato o som dos Jacus. Lembranças do sítio de quando eu era pequeno. Embora dê um pouco de medo estar tão perto do

mato.

Achei

essa

cobertura

na

beira

de

uma

chácara e o chão é de cimento. Espero que os donos não apareçam.





Acordo cedo e vou tomar banho. Da janela do banheiro vejo o rio, imagine para onde a água do chuveiro

vai. Pego minhas coisas e saio, vou até a frente do Hotel do Pico, mas o dono ainda não acordou. Volto e deixo

a

chave

na

porta

do

quarto

em

que

dormi

conforme o combinado. Vou

até

uma

padaria.

Carrego

as

baterias

dos

eletrônicos. Pego pingado e pão na chapa. Encontro Adão novamente. Ele fala de sua vida e eu

da minha. Vou até a igreja, o dia está nublado. Entro.





De casa levei um chaveiro e uma fita do Senhor Bom Jesus de Pirapora. Começa aqui a última viagem das

romarias

de

preocupado,

minha meu

infância.

avô

está

no

Saio

de

casa.

hospital.

Não

Estou é

a

primeira vez que isso ocorre. Desde de 2006 ele está doente, mas nesses últimos anos ele piorou. Parto pensando que posso mover algo no espaço além de meu próprio corpo. É meio-dia. Aceno para minha mãe. Ela está no portão

de baixo.




Acordo

com

coisas

e

torneira.

o

canto

vou usar o Os

dos

pássaros.

banheiro.

cachorros já

Arrumo

minhas

Tomo um banho de

estão fazendo barulho.

Converso com um cara que havia falado comigo ontem a noite. Está indo trabalhar. Pego a estrada. Lá de cima dá para ver o nevoeiro matinal cobrindo as montanhas. Chego na pista. O orvalho sobre o capim brilha como cristal com a luz

do sol. Lindas manhãs têm os andarilhos.




Eu estava em choque. Larguei o carrinho e o cajado no canto e corri até ele. Enrosquei meus braços em

suas axilas, como carregava meu avô. Arrastei com toda a força do mundo, rezando para não vir nenhum carro e acabar com nós dois. Ele não era um cara pesado, mas devido a inconsciência, estava. Depois de várias puxadas consegui trazê-lo até a guia da pista. Levantei seu corpo e coloquei na beira do gramado.




Passei a imagem e descendo a rampa havia uma caixa para deixar objetos de promessa. Coloquei do lado de

fora da caixa, bem ao lado. Saco branco e fita azul. Azul como o manto de Nossa Senhora Aparecida.








Cruzeiro (2014) é uma vídeo-performance-instalação constituída de quatro vídeos de ações que realizei. Projeto desenvolvido para minha conclusão no curso de Artes Visuais no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. O trabalho integrou 11ª Mostra de Performance Arte – VERBO na Galeria Vermelho (São Paulo-SP) em 2015.

Os vídeos apresentam imagens de minhas caminhadas de

Nazaré Paulista/SP, minha cidade, até quatro locais sagrados do estado de São Paulo coletando objetos que encontro pelo caminho. Ao final, entrego-os em um saco amarrado com fita, também proveniente do percurso, nos seguintes lugares: Bonsucesso (Bairro de

Guarulhos),

Tambaú,

Pirapora

do

Bom

Jesus

e

Aparecida do Norte.

Nesse ano tive a experiência de expor esse trabalho na Câmara Municipal de Atibaia com mais elementos além dos vídeos. Criei pranchas com fotos e trechos

do diário desse projeto. Revendo Cruzeiro, vi novas possibilidades de aproveitar o material que produzi a partir da performance. Assim surge esse livro de artista. Da vontade de mostrar um pouco mais da imersão que vivenciei na estrada.



Luiz Fernando Bueno (1988) é artista visual e vive

em

Formado

Nazaré em

Paulista,

Artes

sua

Visuais

cidade

natal.

pelo

Centro

Universitário Belas Artes de São Paulo, o artista é membro do Clube Atibaiense de Fotografia desde Dezembro de 2010.

E-mail Breve

buenoluizfernando@yahoo.com.br projetocouros.blogspot.com







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