Monografia Ciências Sociais

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

REMODELAÇÃO URBANO-SOCIAL NA FORTALEZA DA BELLE ÉPOQUE: O IMPACTO SOCIOANTROPOLÓGICO DO DISCURSO SANITARISTA NA TRANSFORMAÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES MORTUÁRIAS

Luciana Lima Vasconcelos

Fortaleza – CE 2006 1


LUCIANA LIMA VASCONCELOS

REMODELAÇÃO URBANO-SOCIAL NA FORTALEZA DA BELLE ÉPOQUE: O IMPACTO SOCIOANTROPOLÓGICO DO DISCURSO SANITARISTA NA TRANSFORMAÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES MORTUÁRIAS

Monografia apresentada ao corpo docente do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos necessários à obtenção da Graduação em Ciências Sociais.

Orientadora: Profª. Dra. Lea Carvalho Rodrigues

Fortaleza – CE 2006 2


UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

REMODELAÇÃO URBANO-SOCIAL NA FORTALEZA DA BELLE ÉPOQUE: O IMPACTO SOCIOANTROPOLÓGICO DO DISCURSO SANITARISTA NA TRANSFORMAÇÃO DAS REPRESENTAÇÕES MORTUÁRIAS

Luciana Lima Vasconcelos

Monografia apresentada ao corpo docente do Departamento de Ciências Sociais, da Universidade Federal do Ceará, como parte dos requisitos necessários à obtenção da Graduação em Ciências Sociais.

BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Lea Carvalho Rodrigues Orientadora

Profª. Me. Clélia Lustosa Costa

Prof. Dr. Domingos Abreu Fortaleza, ______ de __________ de 2006. 3


“Se cheguei mais longe do que os outros foi porque estava sobre os ombros de gigantes�. Isaac Newton

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DEDICATÓRIA

Não é preciso estar biologicamente grávido para gerar vida. Sonhos, projetos, planos, ambições, desejos... Acreditar basta. Apoio nem sempre é necessário. Se houver um fertilizador, ótimo! Se não, o nascimento é um mérito todo seu. O importante é gestar. Caso contrário, prepare suas exéquias, pois, como diz o sábio Veríssimo, “embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive já morreu”. É assim que encaro esta pesquisa, que despendeu alguns meses de angústia, cansaço, preocupação, e como todo nascimento, dor, mas que vem ao mundo trazendo muita alegria. Como todo filho, possui os seus defeitos, mas nem por isso deixa de ser amado.

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AGRADECIMENTOS

À pessoa que eu conheci ainda dentro do ônibus, a caminho do primeiro dia de aula na faculdade, e que logo permearia toda a minha vida acadêmica, como professora, como fonte de enriquecimento em monitoria, como orientadora e, acima de tudo, como companheira nessa jornada, Lea Rodrigues. Ao professor Domingos Abreu que desde o meu ingresso no curso acreditou no meu potencial quando nem eu mesma acreditava e que, por isso, deve estar torcendo por mim. Ao professor Ismael Pordeus que demonstrou interesse em orientar-me quando o enfoque da pesquisa ainda era outro, mas que ainda se dispôs a me ajudar no que fosse preciso. À professora Simone Simões que praticamente me obrigou à temida entrada em campo, para que eu pudesse esboçar as primeiras questões acerca do meu objeto de estudo. À professora Linda Gondim que me fez as primeiras críticas e deu uma injeção de ânimo para retomar o projeto que por longo período permaneceu parado. Aos demais professores com quem tive contato e que de alguma forma intermediaram o meu conhecimento das fabulosas teorias sociais: Estevão, Sulamita, Peregrina, Carlos Versiani, entre outros. À Marx, Weber, Durkheim, Elias, Bourdieu, Campbell, Laplantine e inúmeros outros, que me concederam um novo olhar para o mundo e que, de alguma forma, cooperaram para o meu crescimento como pessoa. Agradeço também aos meus pais, que talvez nunca tenham visto muito “futuro” na profissão de cientista social, mas que ainda assim me deram total liberdade para escolher os caminhos a serem percorridos. Aos amigos que acompanharam a minha angústia, mas principalmente aos queridos Gleiciani, Manuella, Rebeca e Rodrigo, que me atentaram para novas questões e contribuíram com algumas sugestões, livros, mas fundamentalmente, com palavras de incentivo e coragem. Ao melhor amigo e namorado, grande incentivador da conclusão de mais essa etapa de minha vida, por se revelar tão paciente, compreensivo e companheiro em minha trajetória de pesquisa, Aldo Bessa. A todos aqueles que não gostam da morte, mas gostam de mim e acabaram por contribuir com indicações, empréstimos e questionamentos: meu sincero agradecimento.

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ÍNDICE INTRODUÇÃO.......................................................................................................................09 As Circunstâncias da Pesquisa..........................................................................................12

CAPÍTULO 1 – Reforma Urbana e Social na Fortaleza da Belle Époque.......................16 1.1 O surgimento da ciência médico-sanitária na Europa e sua chegada ao Brasil......................................................................................................................................... 16 1.2 Belle Époque: os mecanismos de implantação da reforma sanitarista na Fortaleza de 1860...........................................................................................................................................22 1.3 Os pilares da construção da “Paris Cearense”...................................................................28

CAPÍTULO 2 – O Impacto Socioantropológico do Discurso Sanitarista na Transformação dos Costumes Fúnebres...............................................................................33 2.1 A Proibição das Inumações nas Igrejas e o Surgimento dos cemitérios...........................33 2.2 Salubridade Pública e a Construção do São Casimiro.......................................................37 2.3 Discurso Higienizador e Reforma Cemiterial: Construção do Cemitério São João Batista........................................................................................................................................40 2.4 Atitudes de Contestação Popular: resistência à proibição das inumações.........................42 2.5 A mudança de estilo das novas necrópoles e a eufemização do morrer. Dos Cemitérios e dos Hábitos em Fortaleza: uma Nova Configuração.................................................................44

CAPÍTULO

3 – Sobre a Morte...........................................................................................48

3.1 O morrer “tradicional”........................................................................................................48 3.2 Sobre a Morte no Mundo Contemporâneo. O Evitamento da Morte: Medo e Interdição...................................................................................................................................50 3.3 A transformação do ethos mortuário e a instauração de um novo habitus frente à morte: sensibilidade e economia dos afetos..........................................................................................55 3.4 A Eficácia Simbólica dos Ritos Mortuários.......................................................................60

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CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................................67 ANEXOS..................................................................................................................................69

BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................74

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INTRODUÇÃO

Este trabalho origina-se da pretensão em articular o processo de higienização, advindo com a emergência do discurso médico-social em Fortaleza, com as mudanças ocorridas no âmbito das representações da morte, seguindo um processo aparentemente cada vez mais perceptível de carência ritual. Para tanto, especial destaque será conferido à influência do discurso sanitarista que emerge na Europa durante o século XVIII, mas que chega ao Brasil com muita força e, conseqüentemente em Fortaleza, em meados do século XIX, principalmente no período de 1860 a 1930, instituindo todo um sistema de controle e disciplina social através da higienização das cidades e medicalização das populações. Almejo ressaltar aqui o papel e a força dessas iniciativas não apenas no esmero com a saúde pública e com o desenvolvimento urbano, em Fortaleza, mas também com a transformação de idéias, hábitos e costumes citadinos, culminando inclusive na mudança das concepções e atitudes frente à morte e, conseqüentemente, dos rituais a ela referentes. A ciência, a técnica e o progresso, evidenciados na medicina, especialmente a que se pauta no discurso europeu de higiene, se instaura em Fortaleza especialmente após 1860, quando se constrói para a cidade um projeto modernizador, podendo ser considerado como fator preponderante na mutação de nossa relação com a morte, atualmente menos pública, transformada quase em um tabu. A ênfase analítica será dada a um contexto específico: as mudanças estabelecidas na cidade de Fortaleza durante o período de 1860 a 1930 e como essas transformações podem ser significativas para a compreensão das nossas maneiras contemporâneas de pensar e sentir. Embora as concepções e atitudes frente à morte possam aqui acabar sendo abordadas de forma mais genérica, para fins didáticos, a diversidade não deve ser jamais esquecida. Considero o estabelecimento do discurso sanitarista, no período analisado, de suprema importância para compreender o que denomino de “falência ritualística”, ou seja, a diminuição em número e força da prática de ritos fúnebres, mas é preciso atentar-se para o cuidado em não cair no reducionismo causal. A problematização que apresento ao longo deste trabalho foge à questão emocional, incidindo-se sobre a possível emergência de uma nova concepção da morte oriunda especialmente com a chegada do discurso prático médico-sanitarista. Viso abordar se existe, de fato, forte poder nesse discurso a ponto de conduzir a transformação das representações mortuárias, sendo parte fundamental nesse processo. Se é que essa mudança procede, cabe 9


como questão subsidiária à primeira, investigar como esse processo ocorre e, havendo, traz à tona novas atitudes diante da morte. O tema das representações da morte é muito complexo, pois envolve desde teorias do conhecimento e reflexões provenientes desde a Antiguidade até teorias de estudiosos contemporâneos como Norbert Elias ou filósofos como Edgar Morin, por exemplo. Por este motivo, nem de longe tenho a pretensão de esgotar o assunto, mas viso apenas tecer considerações sobre ele, a fim de que as transformações sofridas pelas representações sociais da morte, bem como das cerimônias fúnebres sejam vislumbradas. Antes muito mais presente na vida social, a morte atualmente passa a ser vista como algo sujo e, tratada como tabu, repleto de interdições e regras. Partindo desse pressuposto, observa-se em nossos dias que qualquer referência a ela passa a ser afastada do nosso cotidiano, por isso falo da constituição de uma nova sensibilidade 1 . Além disso, essa nova sensibilidade pode ainda ser entendida como o resultado do desenvolvimento de um maior comprazimento com a dor alheia da perda. A ênfase dada recai sobre a chegada e adoção do discurso do asseio médico-social como um princípio idealizado de “civilidade” associado à higiene e sua relação com o modo como afastamos o tanto quanto possível noções acerca do fim da vida, o que acaba por enfraquecer as antes elaboradas cerimônias fúnebres e provocar uma sensível redução, seja ela quantitativa e qualitativa, do processo de ritualização da morte.

Desde há vários séculos pode-se acompanhar a perda em onipresença e força plástica que o pensamento de morte sofreu na consciência comum. Em suas últimas fases este processo se desenrola em ritmo acelerado. E no decorrer do século XIX a sociedade burguesa produziu, com ritos higiênicos e sociais, privados e públicos, um efeito secundário que talvez tenha sido seu objetivo principal, embora inconsciente: oferecer às pessoas a possibilidade de se furtarem à visão dos moribundos. Morrer, outrora um processo público e altamente exemplar (pense-se nas imagens da Idade Média, nas quais o leito de morte se metamorfoseava num trono, de encontro ao qual, através das portas escancaradas da casa mortuária o povo ia-se apinhando) – morrer, durante a Era Moderna, é cada vez mais repelido do mundo perceptível dos vivos. (BENJAMIN, 1983: 64)

O objetivo dessa análise incide, portanto, no estudo das transformações do que Walter Benjamin (1996) denomina “rosto da morte”, de modo que se possa aludir às incontestáveis mutações das atitudes diante desta, bem como das próprias maneiras de morrer, num processo

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Faço aqui referência ao termo utilizado por Norbert Elias, nos dois volumes de O Processo Civilizador, em alusão ao processo histórico de “civilização” por que passou a sociedade ocidental, estudada pelo teórico a partir de manuais de etiqueta e boas maneiras do século XIII ao século XX para mostrar que nossos hábitos foram se transformando num sentido de suprimir cada vez mais a espontaneidade para dar lugar à regra e ao controle das pulsões individuais.

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que denomino vulgarmente de “medicalização da morte”, num sentido cada vez maior de “falência ritualística”. É imprescindível destacar que esta não se refere a uma supressão dos ritos, mas o que poderíamos chamar de “carência ritual”, na medida em que se observa cada vez mais uma diminuição dos ritos fúnebres e uma re-significação dos mesmos. Sabe-se que a “supressão” de ritos fúnebres pomposos tende a ser cada vez mais freqüente nos grandes centros, enquanto que em diferentes regiões interioranas do Brasil, como mostra Reis (1991), a tendência é a conservação de tradições, com a observação muito mais rígida de práticas ritualísticas. No entanto, vale considerar também que a cisão entre as representações mais “tradicionais” da morte e as representações consideradas “modernas” não pode nem deve ser avaliada sob tal rigidez, visto que muitos costumes tradicionais permanecem mantidos, ainda que com uma freqüência consideravelmente menor. Além disso, a experiência da morte é social e, como tal, varia de acordo com cada agrupamento, o que invoca-nos a atentar para a pluralidade de possibilidades nesse mundo multifacetado, distribuída entre os diferentes tempos, diversas regiões, religiões ou mesmo dentre as diferentes classes sociais. Como assinala Rachel Menezes 2 : Como outros fenômenos da vida social, o processo do morrer pode ser vivido de distintas formas, segundo os significados compartilhados desta experiência, o que varia segundo o momento histórico e os contextos sociais e culturais nos quais os indivíduos estão inseridos. Neste sentido a morte não se distingue das outras dimensões do universo das relações sociais e, em cada momento histórico, há uma produção de práticas e de retóricas condizentes com o contexto social. 3

É importante ainda atentar para a emergência de novas formas de lembrar os mortos, a exemplo das tatuagens que são práticas de inscrição no corpo que, ao aludirem a algum ente querido, seja através de nomes ou fotos, são dispositivos de memória. Como nos afirma Connerton (1993:48), imagens do passado e recordações são transmitidos e conservados através de práticas corporais, sendo o corpo também um lugar de memória. Clastres 4 (2003) também mostra como os rituais de iniciação, fortemente marcados por intervenções no corpo, tais como reclusões, escarificações, perfurações nos lábios e orelhas,

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Rachel Aisengart Menezes é Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e doutoranda na mesma instituição. 3 Citação consultada em 19/04/2006, no sítio: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/campos/article/viewPDFInterstitial/1590/1338. Um Modelo para Morrer: última etapa na construção social contemporânea da pessoa? Trabalho apresentado no Fórum de Pesquisa nº16, “Antropologia da Pessoa: Processos de Individualização na Cultura Contemporânea”. 4 Em "Da tortura nas sociedades primitivas", capítulo 10 de CLASTRES, Pierre. A sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

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entre outras, são também mecanismos de inscrição da lei, portanto, de memória social nos indivíduos. As Circunstâncias da Pesquisa

A odisséia deste trabalho teve seu início dado na própria definição do recorte empírico, pois, ao que parece, pelo menos para mim, trata-se da etapa mais complicada da pesquisa. Cabe aqui, portanto, a explanação sobre o porquê do tema. Quero salientar que a idéia inicial da pesquisa dizia respeito às carpideiras, antigas profissionais que eram pagas para chorar, entoar cantos e orações nos velórios. Contudo, a complexidade da proposta e a falta de recursos financeiros indispensáveis ao desenvolvimento da pesquisa, já que a presença dessas mulheres é mais comum no interior, fez com que eu adiasse a temática para um momento posterior, quem sabe em uma pós-graduação, dedicando a elas apenas uma menção neste trabalho. A escolha da temática da morte talvez esteja relacionada a um comportamento comumente denominado pelos psicólogos como “atitude contrafóbica” 5 , já que frente a um fenômeno que provoca um medo muito intenso, a reação defensiva de alguns indivíduos é a aproximação do mesmo com uma curiosidade mórbida. Com certeza, um dos motivos que facilitaram o desenvolvimento da pesquisa está ligado à extensa bibliografia disponível sobre o assunto tratado. A abundância de fontes de pesquisa, no entanto, não diminui, a meu ver, a relevância nem tampouco as dificuldades desta pesquisa, na medida em que, como sempre afirma, nas aulas, a professora Peregrina Capelo, “se está dito, é preciso redizer”. 6 Além disso, mesmo que a pesquisa apresente uma visão mais generalizada sobre a morte na sociedade brasileira, viso dar especial enfoque a tal representatividade na sociedade fortalezense. A primeira ida ao campo ocorreu em 17 de outubro de 2004, na ocasião do falecimento de um familiar. A observação de campo, em tal momento, contribuiu imensamente para o esboço das primeiras questões a serem pesquisadas. O acompanhamento da missa de sétimo dia revelou igual importância. Na ocasião, 2 de novembro de 2004, dia de Finados, aproveitei para visitar o Cemitério São João Batista 7 , oficialmente abençoado em 14 de abril de 1866, onde pude obter as 5

Como alude MARANHÃO (1986:41). A frase era constantemente pronunciada pela professora doutora em Comunicação Oral, na disciplina de Metodologia de Pesquisa em Ciências Sociais, ministrada na Universidade Federal do Ceará. 7 O São João Batista fica localizado à Rua Pe. Mororó s/n Centro, Fortaleza-Ce, Fone: (85) 3212 –8415. 6

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primeiras entrevistas. A multidão de visitantes disputava o mínimo de espaço com vendedores ambulantes dos mais variados produtos (velas, coroas, fósforos, água, flores, entre outros), inclusive de planos funerários, além de pedintes. Numa faixa estava escrito: “O Silêncio é sensação de calma depois que todas as lágrimas foram derramadas.” Ainda no mesmo dia, fui ao Jardim Metropolitano 8 . Logo na primeira entrevista, senti o desconforto em tratar de questões tão pessoais sem qualquer “comprometimento”, quando, antes de tudo, antes mesmo de ser “um objeto de pesquisa”, estavam à minha frente seres humanos, muitos dos quais demonstravam algum tipo de necessidade, fosse ela material ou afetiva. A primeira entrevistada, por exemplo, parece não ter sido escolhida, mas, ao contrário, parece ter me eleito. Quando vi aquela mulher extremamente consternada, entre as milhares de pessoas que transitavam no cemitério São João Batista, algumas inclusive rindo e falando alto, hesitei em abordá-la. No entanto, ela olhava para mim como quem implorava por uma simples conversa. Foi então que tomei coragem e fui com ela falar. Ao longo de mais de uma hora de conversa, onde a minha “informante” expunha todas as suas dores, angústias e ressentimentos, não pude deixar de refletir acerca de um certo “cinismo antropológico” que envolve o nosso trabalho, já que em meio a uma troca absolutamente interessada por informações, eu ofertava ali o meu ombro “amigo”. Esse incômodo foi maior ainda quando a mesma demonstrava abertamente a sua gratidão por eu tê-la escutado. A partir de então, as oportunidades de observação de enterros ou missas de sétimo dia foram sendo aproveitadas para a análise, a fim de que eu pudesse apreender, ainda que minimamente, a visão que as pessoas têm da morte na contemporaneidade. A respeito de tempos mais remotos utilizarei no decorrer do texto, como embasamento, os registros históricos que discorrem sobre Fortaleza e os costumes da época. Outra peculiaridade, se é que assim podemos afirmar, é a minha emoção em muitos dos momentos. Nem o mais experiente médico deixa de ser pego de surpresa por suas próprias emoções em determinadas situações. Assim eu me vi, muitas vezes, chorando por alguém que eu sequer conhecia. A dor alheia muitas vezes me comoveu, mesmo quando a minha presença se dava fundamentalmente por fins científicos. Como já foi dito, a proposta de pesquisar sobre as carpideiras para um trabalho de conclusão da graduação revelou-se a mim um tanto quanto complexa, por isso optei pela

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O Cemitério Jardim Metropolitano fica localizado no 6º Anel viário da BR 116 – Euzébio-Ce, fone: (85) 32744092

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mudança de enfoque da pesquisa, embora a temática permanecesse em torno da esfera da morte. Iniciei a pesquisa com as leituras exploratórias sobre a temática da morte. Já sabia que o meu interesse se dirigia a entender como as práticas, costumes e visões referentes à morte foram sendo transformados em Fortaleza, de modo que hábitos como o uso do luto, por exemplo, foram se tornando obsoletos. O tema permanecia abrangente. Fazia-se necessária uma maior segmentação, de modo que o meu recorte empírico pudesse ser mais objetivo. Lendo sobre o período da Belle Époque em Fortaleza, no livro de Sebastião Rogério Ponte (2001) , percebi que nesse período a cidade passou por revoluções nas mais variadas esferas e que as modificações dos ideais e dos costumes urbanos, muitos deles modificados através de procedimentos legitimados pela chegada do discurso médico social, que incluíam a interdição da construção de cemitérios próximos ao centro da capital e a defesa da construção destes fora do perímetro urbano, não excluíam o domínio da morte. Modificando hábitos transforma-se a partir de então as representações sociais da morte e vice-versa. Decidi então eleger o período da Belle Époque como período crucial para entender como as transformações trazidas pelo discurso sanitarista contribuíram para a elaboração de novos costumes e concepções, e como esse processo culminou na atual visão de morte difundida em Fortaleza. É imprescindível reforçar que não pretendo de modo algum afirmar que o período que compreendeu a Belle Époque, de 1860 a 1930, foi o período em que ocorreram as transformações em torno da morte. Do mesmo modo, não ouso dizer que o discurso defensor da assepsia e da moral foi o único fator que fez emergir as mudanças. No entanto, considero a chegada da medicina social no período mencionado como importante veículo condutor para a compreensão de nossa interpretação contemporânea da morte. No que se refere à morte, é enorme a variedade de interpretações e conclusões que buscam o seu domínio, divergindo de cultura para cultura, não existindo um consenso numa mesma sociedade ou mesmo agrupamento social. Mas viso trabalhar aqui a concepção comum, em nossa sociedade, de morte como elemento negativo, como esse ato de negação e interdição, foi sendo paulatinamente construído. Como afirma Drumond (2004:11), “uma série de medos, receios e angústias envolvem a morte em nossa civilização ocidental, tornando-a, assim, um verdadeiro tabu.” É extremamente difícil propor-se à tentativa de reconstituição das dimensões simbólicas mais remotas de ação social ante a morte. Para tal, ainda que a apreensão seja 14


mínima, em face da realidade à época, apropriei-me o tanto quanto possível dos ensaios onde são descritos os rituais fúnebres e a chegada da medicina social na capital do Ceará nos fins do século XIX. Não vejo diminuta a validade do trabalho por não ter havido uma pesquisa empírica, visto que esta seria complicada, quando não impossível a sua realização. Para isso, o extenso levantamento bibliográfico foi fundamental. Contando com a seriedade e a relevância dos relatos que remontam principalmente ao período da Belle Époque, de 1860 a 1930, por cronistas ou estudiosos, considero alcançado o objetivo de retratação do período. Parafraseando o teórico de comunicação:

Envolvo-me e, muitas vezes, tomo a liberdade de escrever sobre tudo isso na primeira pessoa. Não vai aí nenhum atrevimento, nenhuma tentativa de querer ser mais importante que o assunto em pauta. Acontece que não dá para ser de outro (su)jeito. Recorrer ao índice de indeterminação do sujeito seria esconder um dos elementos importantes da análise que se faz, ou melhor, que faço: eu. (BUCCI, 2000:26)

Vejo o trabalho de campo como a condição necessária à formação de um cientista social, principalmente antropólogo, não desconsiderando, obviamente, a necessidade e relevância do embasamento teórico. Desta forma, para que se desse a realização efetiva da pesquisa, contei também com a observação em campo. Fez-se então indispensável a freqüente presença em sepultamentos, velórios e missas de sétimo dia. As histórias de vida são fundamentais, mas creio que a análise de filmes, documentários e imagens também podem ser bastante relevantes. Fiz uso ainda de panfletos publicitários de cemitérios e planos funerários, pois entendo que através destes é possível a abstração da representação cultural da morte. As entrevistas inicialmente concedidas acabaram por não ser utilizadas como material analítico principal, já que o enfoque da pesquisa, em vias de realização, foi se modificando, mas foram úteis ao esboçamento das primeiras questões a serem investigadas.

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CAPÍTULO 1 Reforma Urbana e Social na Fortaleza da Belle Époque

1.1 O surgimento da ciência médico-sanitária na Europa e sua chegada ao Brasil

Com o claro objetivo de estabelecer controle dos espaços e das populações, medicalizando-as preventivamente, que emergiu na Europa do século XVIII, de mãos dadas com o desenvolvimento do capitalismo no Ocidente, a medicina urbana. Na Alemanha, a também chamada medicina moderna assumiu um caráter estatal, já que foi o Estado que encabeçou e administrou o projeto regulador, enquanto que na França ela foi notadamente urbana, sendo a preocupação com a reformulação dos espaços físicos da cidade o ponto central. Na Inglaterra predominou o tipo de medicina social trabalhista, que se debruçou sobre o corpo dos trabalhadores. No seu estudo sobre o poder nos séculos XVII, XVIII e XIX, em Microfísica do Poder, Foucault mostra-nos como a medicina, antes individualista, passa à condição de coletiva, na medida em que, segundo ele, o exercício do poder capitalista teria incidido antes de tudo sobre o corpo. Por meio de procedimentos de poder sobre o corpo social, como a ampliação de aptidões e forças, o adestramento e docilidade do "corpo como máquina", este agora é “gerido” para estar integrado ao sistema capitalista de produção. Para o filósofo francês, essa “anátomo-política do corpo” juntamente com uma “bio-política da população”, a partir de mecanismos de controle sobre os seus níveis de saúde e a duração média de vida, constituem-se em procedimentos do poder que caracterizam a modernidade como uma época em que se exerce, positivamente, um poder desencadeador de forças que não mais agem tendo como referência a morte (a punição através do direito do soberano de condenar à morte), mas forças que se exercem em função da geração da vida. A modernidade, para Foucault, é a época em que o poder investe no "corpo" vivo. Até 1750 a França não obtinha unidade territorial, sendo o seu poder também compartimentado. Com o rápido crescimento das cidades francesas e com o adensamento da população, fez-se indispensável a constituição de um poder único, centralizado e disciplinador que fosse capaz de conter as inúmeras agitações e os conflitos decorrentes principalmente da multiplicação de miseráveis e as conseqüentes tensões entre as classes sociais. Destaquemos ainda a Revolução Francesa.

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Instituiu-se então uma medicina voltada fundamentalmente para a análise dos lugares que pudessem gerar a difusão de epidemias e doenças, para a precaução de qualquer contaminação, sobretudo da água e do ar. A garantia de distribuição de água potável para a população e a planificação dos esgotos, por exemplo, foram algumas das medidas consideradas emergenciais. Para precaver endemias foram removidos cemitérios, curtumes e matadouros para fora do perímetro urbano central. Esse tipo de ação médica calcou-se, portanto, na centralização da questão da higiene pública, privilegiando a análise dos meios físicos e de sua influência sobre a saúde do organismo humano. Já na Inglaterra, berço da Revolução Industrial durante o século XVIII, a medicina moderna se debruçou com vigor sobre os corpos das classes proletárias, constituintes como a força matriz do trabalho industrial. Nasce daí forte ofensiva para combater as más condições sanitárias e promover um operário forte, saudável e ajustado à nova sistemática do trabalho fabril. A medicina inglesa sobre o operariado e a medicina urbana francesa adquiriram grande importância para a constituição do saber médico social brasileiro, devido à influência que aqui exerceram, especialmente em meados do século XIX. Apesar de algumas intervenções do Estado, não podemos afirmar que tenha havido aqui forte atrelamento entre a medicina social e o poder estatal. É somente a partir de 1918 que o governo brasileiro age com mais intensidade nos estados, por meio de políticas nacionais de saúde pública. Embora aqui tivessem sido promovidas algumas tentativas de controle do comportamento e da saúde das classes trabalhadoras, foi o anseio pelo ordenamento do processo de urbanização que imperou. Por isso, não podemos afirmar que o saber médico-higienista tenha aqui se caracterizado essencialmente como medicalizador da força de trabalho. Foi, sobretudo, a medicina social de tipo urbano que preponderou no país. No período colonial não havia condições próprias para a promoção de movimentos político-institucionais no desenvolvimento de ações profiláticas sobre o social e o urbano. É, portanto, apenas em meados do século XIX que se “instala” a medicina social no Brasil e, com ela, discursos e esforços impregnados das noções de progresso e civilidade, que combatiam qualquer irregularidade natural que fosse considerada como potencialmente periculosa e quaisquer comportamentos sociais vistos como anti-higiênicos. As elites intelectuais intentaram sensibilizar os poderes públicos na instauração de um regime que garantisse a saúde e o bem-estar citadino. Para tanto, contava-se com a transformação de hábitos e valores tradicionais, considerados pilares fundamentais para a modernização do Brasil. 17


É posterior à criação de respeitadas faculdades 9 que o corpo brasileiro de médicos pôde, com a obtenção de sua formação acadêmica, alcançar o reconhecimento e status científico de sábios detentores da verdade. Juntamente com os produtos que eram trazidos por navios da Europa importavam-se também inúmeras teses e livros médicos, forte influência para os profissionais locais. Para intervir com eficácia, amplitude e profundidade, foi imprescindível que os grupos de médicos-higienistas incorporassem aos seus saberes conhecimentos das mais diversas áreas, fossem eles históricos, geográficos, estatísticos ou topográficos, possibilitando-lhes uma análise mais rigorosa de fatores como a vida social, o clima e o solo, por exemplo. Sebastião Rogério Ponte (2001) mostra-nos que a inspeção higiênica de escolas, hospitais, fábricas, bordéis, postos e praças também fazia parte do programa sanitarista. Além disso, o isolamento de doentes contagiosos, de loucos em hospícios, e mendigos em asilos, a obrigatoriedade de vacinações e campanhas pelo aleitamento materno foram outras das inúmeras iniciativas implantadas por todo o país. A separação entre sãos e doentes, com a criação de prisões, hospícios e hospitais, facilitou a incidência dos olhares objetivadores sobre os portadores de diferenças. Considerado um dos grandes ícones da história da medicina em nosso país, Raimundo Nina Rodrigues (1862- 1906) foi um intelectual de grande reconhecimento nacional e internacional na década de 1890. Seu prestígio culminou na adesão por adeptos de suas teses e a articulação da denominada Escola Nina Rodrigues. Exerceu grande influência e suas idéias evolucionistas de superioridade da raça branca e estudos sobre a loucura ligados à questão racial ganharam projeção e aceitação por grande parte da elite do país. Segundo Gonçalves & Rodrigues 10 , Raimundo Nina Rodrigues foi o principal personagem do grupo de intelectuais ligados à elite brasileira responsável pela elaboração do conjunto de reflexões que teriam como objeto a questão das desigualdades concretas entre os homens. Inspirados nos ideais evolucionistas, os teóricos membros da Escola Nina Rodrigues desenvolveram a teoria de que o “atraso econômico” do país seria conseqüência da mistura de raças, além de influências geográficas e climáticas sobre o povo brasileiro, elementos que justificariam as diferenças culturais e econômicas do Brasil em relação a países como Inglaterra e Estados Unidos. Baseada na genética, a Escola afirmava a incapacidade dos

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Como as academias de medicina na Bahia e no Rio de Janeiro, existentes desde 1832. O número dessas faculdades aumenta à medida que se aproxima o século XX. 10 GOLÇALVES, Alicia F. e RODRIGUES, Lea. C. Etnographia, Antrhopologia e Contemporanité: lê décor brésilien. Journal dês Antropologues, no prelo.

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negros em relação aos brancos. Para tais pensadores, não implicaria apenas uma degeneração racial advinda da miscigenação, mas também decadência psico-cultural da raça branca. Representante de uma elite intelectual brasileira, Nina Rodrigues desempenhou papel fundamental na classificação de diferenças qualitativas entre os seres humanos, bem como do louco em categorias sociais ambíguas como os negros, mestiços, velhos e homossexuais, associando a questão racial à inferioridade genética e cultural, bem como a elementos como a patologia, a loucura e por vezes à criminalidade. No artigo “Eletrochoques, pena e pincéis”, publicado na Revista História da Biblioteca Nacional, ano 1, nº 2, de agosto de 2005, Luciana Hidalgo 11 cita o trabalho de Michel Foucault, em História da Loucura na Idade Clássica, quando o filósofo mostra como a Europa do século XVII deu início à prática de internação como forma de isolamento dos indivíduos que a sociedade considerava personagens não absorvidos no cotidiano pela aristocracia e burguesia. Contando muitas vezes com a força policial, a elite intelectual e social isolava aqueles que representassem percalços à manutenção da ordem almejada como símbolo de desenvolvimento urbano e social. Lima Barreto, por exemplo, autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma, foi levado pela polícia ao manicômio Pedro II 12 , onde permaneceu internado por quase 50 dias. Lá, escreveu Diário do Hospício, registro de sua internação no que ele considerou o “cemitério dos vivos”. Nesta obra, reuniu impressões e uma visão crítica da instituição. Sua classificação como indigente revela o ponto de interseção em que se encontra o autor: pobre, mulato, alcoólatra... louco. (p.21) Em diversos períodos e em vários sentidos, a discriminação permeou toda a institucionalização da insanidade, estando, portanto, intrinsecamente ligadas. Segundo Hidalgo (2005), a medicina só se apropriou da insanidade a partir do século XIX, época em que os homens da ciência consolidaram a psiquiatria como responsável pelos alienados. Entre as décadas de 1910 e 1920, diz a estudiosa, o renomado psiquiatra Juliano Moreira reuniu-se com outros médicos, liderando a Liga Brasileira de Higiene Mental. A tese central era baseada na hereditariedade das doenças psíquicas. Valendo-se de tal preceito, o objetivo seria a segregação e esterilização dos pacientes, em particular dos não-brancos, dotados de “diabólicas tendências mentais”, supostamente lesivas a uma idealizada raça brasileira.

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Jornalista, doutoranda em Literatura Comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Localizado na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro. A 1ª instituição psiquiátrica do país, inaugurado em 1852, no atual prédio da Universidade Federal do Rio de Janeiro (URCA). 12

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Em artigo da mesma revista, “Um Palácio para guardar doidos”, Magali Gouveia Engel 13 afirma: Sem dúvida, a instituição republicana era muito eficiente no exercício do controle social. Os indivíduos cujas ações ou pensamentos fossem considerados de alguma forma perigosos à ordem estabelecida constituíam o principal alvo das internações14 .

Segundo ela, já em 1830 os médicos dedicaram-se à criação de um lugar especial para recolher os loucos, considerados como um perigo à ordem e à moralidade pública, até que em 18 de julho de 1841 o imperador assinou um decreto criando o Hospício Pedro II, marcado pela suntuosidade e elegância. O asilo era tido pelos seus idealizadores como símbolo do progresso da ciência e da modernização. A Casa de Loucos da praia da Saudade, local bastante isolado na época, foi inaugurada nos fins de 1852, habitando os miseráveis que assumiam comportamentos considerados inadequados, sendo a maior parte levados pela polícia e internada como indigente. A violência e os métodos de controle e tratamento eram visíveis, chegando a constar entre os mais repressivos autorizados: a privação de alimentos, “banhos de emborcação” e o uso de coletes de força. As queixas contra tais medidas ganharam força apenas em 1880, através do Dr. Teixeira Brandão, considerado o pai da psiquiatria no Brasil, que teve muitas de suas reivindicações atendidas após a Proclamação da República. O hospício da Santa Casa do Rio de Janeiro foi desta segregado e passou a ser conhecido como Hospício Nacional de Alienados (HNA). Além disso, foi criada a Assistência Médico-Legal aos Alienados. Outra conquista foi a aprovação da lei em 1903, que garantia ao psiquiatra o monopólio do conhecimento sobre a loucura. Houve considerável melhora na prestação dos serviços e dos tratamentos psiquiátricos, mas o exercício do controle social e a manutenção da ordem estabelecida ainda se configuravam como pano de fundo. Ainda na revista de História da Biblioteca Nacional, Maria Clementina Pereira Cunha 15 mostra no artigo “Hospício a Céu Aberto” que aqueles reconhecidos como loucos, quando de famílias nobres, eram trancafiados nos porões e sótãos dos casarões senhoriais. Quando não, os “dementes” eram livres, estando em permanente contato com a vizinhança.

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Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da (FFF) – Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) 14 Artigo lido na p. 35 da Revista de História da Biblioteca Nacional ano 1 n 2 agosto 2005. 15

Professora associada do Departamento de História e Pesquisa do Centro de Pesquisas em História Social da Cultura, da Universidade de Campinas (CECULT, UNICAMP)

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Segundo ela, muito comuns eram os “tipos de rua” encontrados no Brasil no século XIX. Sua presença nas ruas do Rio de Janeiro foi amplamente descrita por médicos e cronistas de costumes da corte imperial, a exemplo da obra de Mello Moraes Filho 16 , que realiza um verdadeiro inventário sobre esses curiosos habitantes. Na maioria das vezes, eram objeto de riso e admiração, mas não quer dizer que não significassem preocupação a determinadas parcelas da sociedade. Não obstante, eram marginalizados, definidos como “insanos” e “desclassificados sociais”. Cunha (2005) afirma que foi na segunda metade do século XIX que o alienismo, nome designado à medicina mental, começou a ser absorvido pela corporação médica brasileira, já consolidada na Europa, mas distante ainda da nossa realidade. A partir de então, a loucura passava a ser vista como uma doença, por isso precisava ser tratada através do confinamento terapêutico. Além disso, substituía-se a antiga prática “caritativa” aos necessitados. Ela defende ainda que a reestruturação da polícia, a organização da cidade, a higienização da pobreza e o isolamento dos loucos eram ações que corroboraram a internalização pelos alienistas de uma ideologia de Estado como saber onipotente que se pretende capaz de engessar a razão e a conduta humana, onde o conhecimento e a disciplina são instrumentos indispensáveis à manutenção da ordem e os hospícios se constituem em sistemas reguladores de gestos e sentidos. Mas as intervenções do poder iam muito além das empregadas pelos médicos no que concerne à loucura. Conforme Silva Filho (2001), os poderes públicos, através dos mais variados meios, atuaram na afirmação da ordem urbana e na perpetuação de heróis e valores dos grupos dominantes. A planta da cidade de Fortaleza, por exemplo, é um indício de poderes que buscam ostentação da efígie de progresso, beleza e civilidade, como também de legitimidade na própria constituição arquitetônica e em sua constituição no espaço urbano.

Na cidade, os mecanismos de controle se manifestam em diversos equipamentos públicos: planta topográfica (instrumento de divisão e planejamento espacial disciplinado), relógios públicos (registro matemático do tempo), placas de trânsito (ordenação dos fluxos urbanos), espaços de lazer (por exemplo, o Passeio Público, cujos diferentes níveis utilizavam a divisão espacial como forma de discriminação social), iluminação pública (emprego da luz artificial como metáfora do progresso). (SILVA FILHO, 2001:13-14)

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A obra de Mello Moraes Filho não foi consultada. A informação é dada por Maria Clementina Pereira Cunha no artigo “Hospício a Céu Aberto” da Revista História da Biblioteca Nacional, ano 1, nº 2, de agosto de 2005.

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Quanto ao registro do tempo, por exemplo, conforme afirmação de Silva Filho (2001), citando João Nogueira, a preocupação do núcleo urbano com a maior precisão no registro do tempo, exprimiu-se no aparecimento do primeiro relógio público de Fortaleza, surgido na segunda metade do século XIX, por volta do ano de 1854, na fachada da atual Igreja da Sé 17 . Segundo ele, o surgimento do relógio significaria o “poder da Igreja na mensuração do fluxo temporal”, já que o registro do tempo seria fundamental para o exercício do poder e para a manutenção da ordem social.

1.2 Belle Époque: os mecanismos de implantação da reforma sanitarista na Fortaleza de 1860

Em Fortaleza, especificamente, vigiava-se meticulosamente o espaço público, mas a inspeção autoritária se estendia por muitas vezes à privacidade da vida familiar, especialmente quando falamos das camadas de baixo poder aquisitivo. Esse processo atingiu o apogeu a partir do momento em que a cidade tornou-se o principal centro comercial, social e político do Ceará. Destaquemos o período compreendido entre os anos de 1850 e 1860, quando a capital cearense foi grande exportadora de algodão. Amparada nos argumentos de que a ausência de uma efetiva normalização dos espaços e dos hábitos sociais, especialmente das camadas menos abastadas, vistas como indolentes e propensas ao vício e à vadiagem, os higienistas buscavam legitimar seus escusos mecanismos de controle. As secas e epidemias que atraiam para a província milhares de sertanejos famintos e doentes eram algumas das principais adversidades confrontadas por essa leva de médicos e legitimava ainda mais a necessidade de procederem sobre a vida urbana. As epidemias de febre amarela, em 1815, e do cólera 18 , de 1862 a 1864, bem como ainda a seca de 1845, foram alguns dos problemas que levaram à construção da Santa Casa de Misericórdia 19 , concluída em parte no ano de 1857, mas inaugurada oficialmente somente em 1861; do Lazareto da Lagoa Funda 20 , criado fundamentalmente para abrigar, leia-se isolar, os possíveis atingidos pela epidemia do cólera, procedentes de portos infectados e que desembarcavam em Fortaleza. Foi o principal âmbito para cura e tratamento da população pobre (aqueles que não possuíam 17

Antiga Matriz que só é denominada Sé em1861, com a instalação do bispado. que matou cerca de 11 mil cearenses (PONTE, 2001:75) 19 que ainda permanece no local original, entre o Passeio Público e a antiga Cadeia Pública. 20 Localizado a cerca de 4 km do centro da cidade. 18

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moléstias contagiosas), principalmente por ser o único hospital público da capital até que se instalassem as Casas de Saúde e o Serviço de Assistência Municipal, no começo da década de 1930. A Inspetoria de Higiene Pública do Ceará, um dos principais órgãos do aparelho estatal, desenvolveu em Fortaleza, nas primeiras décadas do século XX, todo um conjunto de práticas de saúde e discursos que instauraram aqui, a exemplo do que já vinha acontecendo nas principais metrópoles do país, e desde o século XVIII na Europa, um movimento regulador do que se configurava como público, mas que também fiscalizou o espaço privado e o gosto familiar, produzindo um novo modelo de família, a partir de 1910. Foi a partir desse período que se intensificaram os investimentos médicos no tecido urbano, maiores ainda na década de 20, com acordos entre o governo federal e os estados e com a promoção de políticas de saúde pública nacional. Para Silva Filho (2001), a planta em xadrez de Adolfo Herbster (engenheiro da província e arquiteto da Câmara Municipal) denota o desejo de classificar e disciplinar os espaços da cidade. A “Planta da Cidade da Fortaleza Capital da Província do Ceará”, de 1888, revela a ambição dos poderes públicos no regulamento e disciplinarização da sociedade como um todo, que legitima a ordem social através das estratégias de intervenção em Fortaleza. Como aponta o autor, esse projeto apenas reforçava procedimentos já existentes na “Planta Topográfica da Cidade de Fortaleza e Subúrbios” (1875), como, por exemplo, o alinhamento de ruas e casas e a abertura de bulevares que possibilitassem a ampliação da circulação de pessoas, mercadorias e veículos, e funcionasse como verdadeiros “corredores urbanos”. Tal medida é retrato da “obsessão higienista” do século XIX, já que se acreditava que as grandes epidemias e a taxa de mortalidade eram causadas pela contaminação do ar proveniente dos aglomerados urbanos. Essa preocupação em manter medidas profiláticas à saúde pública aparece ainda na construção de praças arborizadas e no incentivo à prática de exercícios físicos. Além disso, os bulevares dificultavam a organização de manifestações e levantes populares, bem como facilitava o controle e a repressão do poder público. Favoreciase, desta forma, o “olhar do poder”, já que facilitava o rápido acesso de tropas militares ao foco das rebeliões. A apologia às linhas retas é anterior à planta de 1875, instaurada pelo engenheiro Silva Paulet nos primórdios do século XIX, como ato de ordenação urbana. Silva Filho (2001) afirma que, a despeito do traçado retilíneo e opressor da planta topográfica de Fortaleza, foram bastante limitados o controle das pestilências e a disciplinarização dos indivíduos. A implementação dos bulevares não impediu a emergência de inúmeras epidemias que 23


assolavam a cidade no século XIX, como as epidemias de febre amarela (1851), cólera morbus (1862-64) e varíola (1877). Segundo o estudioso, a ordenação do espaço urbano por Adolfo Herbster, iniciada antes por Silva Paulet, pouco contribuiu para a salubridade pública de Fortaleza. Importantes equipamentos de saneamento urbano, tais como a canalização de água em domicílio e rede de esgotos só apareceram em 1920. O trabalho das instituições médicas e sanitaristas alcançou êxito inexpressivo. Através de seu texto memorialístico, pleno de reminiscências pessoais, Rodolpho Teóphilo deixa-nos um legado de valor documental de grande importância para compreender fatos, costumes e da cultura cearense do final do século XIX. O autor fala sobre as ações que promoveu para combater a epidemia de varíola no Ceará e seu acompanhamento acerca das secas que se prolongavam de 1877 a 1880. Após concluir o curso de três anos de Farmácia na Escola de Medicina da Bahia, onde lecionou o médico Nina Rodrigues, retornou ao Ceará em 1876, tendo a oportunidade de atender os flagelados da estiagem, adquirindo assim grandes conhecimentos acerca das seqüelas desse período. Pode ser considerado um pioneiro do sanitarismo e da epidemiologia no Ceará, tendo criado, em sua própria residência, o Instituto Vacinogênico, durante a seca e a peste de varíola de 1900, criando ainda comissões de vacinação formadas por voluntários, na maioria médicos e farmacêuticos, que estendiam a ação imunizadora da população por todo o Estado, continuando suas ações até 1915. De acordo com Teóphilo (1997), foram enormes as devastações deixadas pela epidemia de 1878. Em pouco mais de dois meses, foram vitimadas 27.378 pessoas. Segundo ele, podia-se calcular cerca de 130 mil habitantes de Fortaleza, dentre os quais 110 mil eram retirantes fugidos da seca, e conseqüentemente da fome, que assolava o Ceará. Dentre estes, 95% não eram imunizados contra a varíola e viviam nos mais rudimentares preceitos de higiene. O Lazareto da Lagoa Funda era ideal para abrigar os variolosos, já que estava situado a três quilômetros de Fortaleza, a sotavento, mas só comportava 300 doentes. O alastramento pela área suburbana, entretanto, acometeu muito mais vítimas do que se previa e em pouco tempo o local estava repleto. O relato de Teóphilo (1997) serve-nos ainda para apreender como era o olhar, a partir do próprio autor, dos médicos higienistas sobre o fato e sobre o trato com o corpo dos cadáveres, visto como um perigo à saúde por serem transmissores de doenças. O escritor denuncia o descaso do governo público com a epidemia, mas também com os cadáveres dos variolosos, transportados pelas ruas públicas da cidade, o que o estudioso considerava um verdadeiro atentado à higiene pública e à moralidade. 24


Baseado em denúncia publicada no jornal O Cearense, de 16 de julho de 1871, Batista (2002) afirma que os doentes pobres que morriam nas enfermarias da Santa Casa de Misericórdia eram transportados em caixões sujos por apenas dois carregadores. Só havia, segundo ele, um caixão para a condução dos cadáveres. Um pedaço de morim era utilizado para cobrir, como mortalha, o corpo do indivíduo. Muitas vezes, quando se abria o esquife para sepultar o corpo este estava “em completo estado de nudez.” Depois de aparecidos os primeiros casos de varíola no centro da cidade, o governo ordenou que o transporte dos mortos fosse feito pela praia até o cemitério da Lagoa Funda.

Disse ser repugnante o espectaculo do transporte dos cadáveres dos variolosos. E de facto o era. Imagine-se um cadáver, meio putrefacto, vestido apenas de ligeiros trapos, amarrado de pés e mão a um pão, conduzido por dois homens, ordinariamente meio embriagados, e se terá visto o modo porque iam para a vala os retirantes mortos de varíola em Fortaleza. (TEOPHILO, 1997:13)

Representante do discurso médico que buscava atuar na transformação de hábitos e costumes no âmbito social, Teóphilo (1997) fala sobre o tratamento dado aos corpos, quando em 10 de dezembro de 1978 o cemitério da Lagoa Funda recebia 1004 cadáveres.

O administrador redobrou de esforços e actividade. Era impossível cincoenta e dois homens abrirem valas para tantos corpos. Embora o terreno de areia, e portanto de fácil perfuração, embora a diária augmentada e a ração de aguardente dobrada com o fim de animar os enterradores, ficaram, as 7 horas da noite quando os coveiros largaram por mais não poderem de cançados, duzentos e trinta cadáveres insepultos! Quando pela manhã voltaram os coveiros a continuar sua labuta, encontraram cães e urubus cevando-se na carniça humana!... (TEOPHILO, 1997:27)

Dos fins de setembro ao fim de dezembro foram sepultadas 24.849 pessoas. Vale ressaltar que esses foram os destinados ao cemitério da Lagoa Funda. Os números crescem se forem considerados ainda os cadáveres cremados nos abarracamentos dos subúrbios, os enterrados clandestinamente nos matos da cidade e ainda os que eram sepultados no São João Batista. Teóphilo (1997) lamenta-se de falta de ações do Instituto de Higiene Pública que não isolava os doentes e, curados, não mandavam desinfectar-lhes as casas, deixando assim, focos de contágio espalhados por toda a cidade.

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Um dos doentes de varíola confluente, foi retirado, já agonisando, e abandonado sobre uma das dunas a sotavento da cidade para lá se acabar bem longe dos desalmados visinhos que o conduziram. Avisada a policia e as auctoridades sanitárias, pouca importância deram ao caso. Se não fossem os particulares da rua próxima, por medo a fedentina do cadáver mais do que por obra de misericórdia, mandarem sepultar o morto, os urubús o comeriam, se mostrando assim activos agentes da Hygiene Publica do Ceará. Por este facto pode-se bem avaliar o grão de nossa civilisação e o valor que tinha entre nós a saúde publica. (TEOPHILO, 1997:58)

O descaso ainda iria além. O governo do Estado, representado pelo Dr. Pedro Augusto Borges, o mesmo que reforçou todas as atividades em prol da extinção da varíola em 1878, acabou por mandar fechar o Lazareto de Lagoa Funda em 1901. Teophilo (1997:7) ironiza: “A nossa higiene publica, no serviço da vacinação e revacinação, nos dava as mesmas imunidades que a Providência dá aos indígenas do Amazonas.” A partir de 1870, quando as tentativas de normatizar a cidade sob rígidas regras tomam vulto, a elite intelectual se contrapõe inclusive a manifestações sociais, como o Carnaval, considerado a partir de então como uma “orgia carnavalesca”, pelos excessos cometidos; e a moda feminina, criticando seus efeitos sobre os hábitos e o corpo. As críticas ao vestuário incidiam principalmente sobre os justos vestidos e espartilhos, como também aos sapatos de bico fino e saltos altos, que predominavam na década de 1910. Os dispositivos institucionais utilizados para reajustamento dos fortalezenses zelavam fundamentalmente pela construção de uma sociedade formada por indivíduos sãos, tanto em termos físicos como morais.

Subvencionadas pelo Estado (que só depois de 1930 organizaria as políticas públicas de assistência social), supervisionadas pela Igreja Católica Romana do Ceará e integradas por “senhoras de caridade”, médicos e grupos de intelectuais católicos da Capital, tais organizações, pela estreita aliança estabelecida entre sua ação beneficente e as práticas de assistência médica da medicina local, possibilitaram a transformação da filantropia de caráter caritativo (predominante nos meados do século XIX) em um novo modelo de assistencialismo: a filantropia higiênica. Retirando velhos, meninas e meninos pobres das ruas em nome da erradicação da mendicância, da delinqüência e da prostituição urbanas, e internando-os em asilos onde realizava a disciplinarização moral e social por meio da catequese e do trabalho adestrador do corpo e da mente, esta filantropia higiênica institucionalizada teve, sem dúvida, decisiva participação no processo de normalização social de Fortaleza. (PONTE, 2001:163)

A chegada do discurso sanitarista em Fortaleza trouxe à tona a produção de novos valores e normas, como um sinônimo de civilidade que atingiu o seu auge no final da década

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de 20 do século passado, quando esse processo de remodelação do espaço e das condutas, agora muito mais higiênico, que começou ainda no final do século XIX, se intensificou. Tratase de procedimentos estrategicamente implantados na tentativa de promover um forte controle social, que culmina na inauguração de uma nova ordem racional-capitalista na cidade. Não devemos esquecer, porém, que a imperiosidade das idéias reformistas nem sempre foram aceitas sem quaisquer contestações. As populações não foram imediatamente convencidas dos princípios que defendiam a “moderna” e “civilizada” urbanidade e a nova sensibilidade que se formava, sendo necessário grande esforço pedagógico nas grandes cidades. Para mudar os hábitos e as mentalidades, o trabalho era começado ainda na educação dada pelos pais e estendido às escolas e meios de comunicação. Para reforçar, a criação de leis e punições, contando inclusive com o estabelecimento de uma polícia especializada que vigiava e garantia as condições de limpeza urbana, bem como identificava e punia aqueles que intentavam contra ela. A sugestão de que todos aceitavam acriticamente as normas estabelecidas mascara os conflitos sociais e a própria capacidade de questionamento da população. Tal afirmativa acabaria por perpetuar a conservadora imagem do povo brasileiro como “cordial” 21 , pacífico, submisso e obediente. Para negar essa lúdica tradição, concorrem inúmeras práticas subversivas da população, especialmente as camadas populares que insistiam em resistir às concepções elitistas que lhes eram (im)postas. Alheios à hegemonia do poder, muitos eram os gestos de recusa e práticas que revelavam a contestação ao “império da lei e da reta.” A Revolta da Vacina, por exemplo, como nos mostra Carvalho (1987), ocorrida no ano de 1904 no Rio de Janeiro, quando a depredação e ateamento de fogo a bondes, saques a lojas e confrontos com a polícia revelavam a insatisfação popular com as medidas do governo, mas principalmente com a iniciativa de tornar obrigatória a vacina contra a varíola. Em 1902, o presidente Rodrigues Alves assume o governo com a proposta de sanear e reformar o Rio de Janeiro nos moldes das cidades européias. Para isso, cortiços são derrubados e proprietários são desalojados à força. Nomeado Diretor do Serviço de Saúde Pública, o médico sanitarista Oswaldo Cruz é encarregado de combater as epidemias. Inicia-se então a remoção do lixo e a pulverização de raticidas pela cidade. Apoiadas em uma lei federal, as brigadas sanitárias entravam nas casas e vacinavam pessoas à força. Setores de oposição rebelaram-se contra as medidas autoritárias do governo quando a explosão da revolta

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Alusão ao termo empregado por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, para definir o povo brasileiro.

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trouxe às ruas do Rio de Janeiro uma verdadeira guerra civil. A Escola Militar de Praia Vermelha, comandada por altos escalões do Exército, aliou-se aos revoltosos.

1.3 Os pilares da construção da “Paris Cearense”

Na denominada Belle Époque, conhecida como o “período de ouro” para a evolução urbanística de Fortaleza, que teve início nas últimas décadas do século XIX e se estendeu à década de 1930, foram adotados uma estética urbana e os padrões comportamentais que a elite importou principalmente dos modelos francês e inglês, o primeiro ainda com mais força. O memorialista Marciano Lopes (1989), guardando-se as devidas proporções do seu demasiado saudosismo em relação à decada de 1940, descreve-nos minuciosamente o cotidiano da capital do Ceará, com suas personagens, seus costumes e suas paisagens, conjunto hoje em muito destruído, pois segundo o autor (1989:60): “nem sempre a sensibilidade, o bom gosto e o amor ao passado são características da nossa gente”. Chegado de Beberibe ao Ceará em 27 de agosto de 1945, Lopes lembra com saudade do tempo em que Fortaleza contava com cerca de 200 mil habitantes, pequena, aristocrática e “francesa no seu aculturamento”.

A França, determinara a formação das senhorinhas de boa estirpe, assim como comandava a moda, o padrão das lojas e de suas artísticas vitrinas, a vida social que acontecia no Clube Iracema, no Clube dos Diários e no Ideal Clube. Por isso, era “chic”, na Fortaleza daqueles tempos idos, prendadas donzelas conversando em francês e tocando piano, nos fins de tarde, nas senhoriais moradias do centro da cidade. (LOPES, 1989:34)

Como discorre bem o autor, a cultura européia exercia quase soberana o fascínio sobre a província. A Praça do Ferreira, considerado o “coração da cidade”, como quase tudo naquele período, era também notadamente de influência francesa, simétrica na arrumação dos longos e anatômicos bancos de madeira, nos canteiros cortados, como afirma Lopes (1989), “à maneira Versailles e Tulleries”. As nobres residências construídas no aristocrático bairro de Jacarecanga tinham nas suas fachadas sacadas de ferro e arabescos fundidos, característicos do estilo “Art-Nouveau”, e as portas, com rótulas e postigos com vidraças coloridas, eram importadas da Bélgica, Holanda e França. No bairro Benfica, por exemplo, localizava-se o

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Palacete Gentil 22 , morada da família do banqueiro João Gentil, decorado com vasos e estátuas trazidos da Europa. 23 Do mesmo destino vieram também inúmeras peças como móveis, lustres e objetos finos para o Palacete do Barão de Camocim, Geminiano Maia, na antiga Praça da Bandeira 24 . A imponente residência de Thomas Pompeu Sobrinho, em Jacarecanga, foi copiada de uma moradia portuguesa e na sua construção foram utilizados os mais nobres materiais, todos trazidos do Velho Mundo. Pedro Philomeno Gomes, pioneiro da industrialização moderna no Ceará, incentivava a construção de suntuosas casas, inspiradas nas moradas nobres de Portugal ou em revistas européias.

Aderindo às reformas sociais e espaciais da “capital do século XIX, Fortaleza representava no plano material seu enquadramento simbólico na linha temporal e ascendente do progresso ocidental, de matriz indiscutivelmente européia. (SILVA FILHO, 2001: 108)

O advogado Raimundo Brasil Pinheiro de Mello construiu sua casa, em 1929, com base em uma revista alemã. O antigo prédio da Escola Normal 25 é cópia de um colégio suíço. São inúmeros os exemplos. A inspiração européia era notória na arquitetura da cidade, mas o uso de artigos europeus era também supervalorizado. A “Casa Sloper”, localizada na Praça do Ferreira, considerada à época o “templo sacrossanto da moda” (Lopes, 1989:50), privilegiava sofisticada linha de sapatos femininos de origem francesa, vestia suas manequins com criações de Jean Patou 26 e Jacques Fath 27 , importava também “lingeries” parisienses, “bijouteries” que imitavam jóias verdadeiras e as próprias “vendeuses” eram tão elegantes que podiam ser confundidas com clientes. Na “Sapataria Granito”, na Guilherme Rocha, onde eram vendidos sapatos de alta classe e grifes masculinos, predominavam os artigos em cromo alemão. Elementos europeus como a arborização, a configuração das praças, das ruas, a moda, início de saneamentos, entre outros, inspiravam a sociedade fortalezense, que seguiu um processo rápido de crescimento regional, culminando num verdadeiro “inchamento” da capital do Ceará. Gondim (2001) afirma que a população da cidade, entre 1940 e 1950, passa de 180 22

Atual prédio da Reitoria da Universidade Federal do Ceará, com algumas expansões, mas que mantém a configuração original. 23 A notável influência européia sobre a arquitetura e os costumes de Fortaleza. Vide páginas 69 a 71, nos anexos. Fotos retiradas do livro “Royal Briar: a Fortaleza dos anos 40”, de Marciano Lopes. 24 Atual Praça Clóvis Beviláqua. 25 Vide foto 02 nos anexos. (p.69) 26 Criador da seda com seu nome, era um famoso costureiro francês. 27 Um renomado costureiro francês das décadas de 40 e 50.

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mil para 270 mil habitantes, chegando a ultrapassar mais de meio milhão de pessoas em 1960. Fortaleza torna-se um dos principais centros urbanos do país, posto que ainda no século XIX, representa a 7ª capital brasileira em população. A cidade sofreu um processo de expansão rápido e desordenado e o progresso violento acabou por culminar no surgimento de “aglomerados paralelos”, tais como as favelas. Segundo Lopes (1989), os desordenados conglomerados de migrantes advindos do sertão, além de “enfeiar a cidade”, eram apontados como foco de doenças e de vadiagem.

... a cidade começou a perder seu encanto, seu refinamento, seu “chiquê”, conseqüência das violentas secas que se abateram sobre o sertão, despejando milhares de flagelados famintos em nossa Capital, originando as favelas, a profusão de mendigos, gerando, enfim, uma nova condição social que modificou, radicalmente, os costumes da nossa urbe. (LOPES, 1989: 113-114)

Mas a influência européia ia além. É no final do regime imperial que se inicia o processo de remodelação urbana e de disciplinarização social ao qual Fortaleza é submetida, estendendo-se até a Primeira República, quando o movimento toma vulto. Trata-se, sobretudo, da incorporação de ideologias então vigentes, inspiradas fundamentalmente no fascínio que Paris exercia sobre a elite. Tais idéias revelaram forte intenção em medicalizar as populações, incutindo nelas profunda necessidade de preocupação com a higiene e, conseqüentemente, com a saúde pública. Para isso, contribuíram, em muito, tanto a massiva presença de médicos entre os representantes do saber dominante, como também a existência real de inúmeros e graves problemas que se consideravam entraves que impediam o progresso da “civilização”. Dentre estes, podemos destacar a ausência de sistemas eficientes de água e esgotos, pequeno número de hospitais e epidemias freqüentes. O aumento expressivo e desordenado da população resultou em um crescimento inesperado de mendigos, o que por sua vez era considerado como sério risco à saúde e à segurança pública. O aumento das favelas era visto como ameaça à formosura da “Europa Cearense”. A força desse discurso médico-social ganhou então forte apoio da elite para o combate a tais problemas, que desenvolveu formas de isolamento sistemático de mendigos e doentes mentais. Nesse contexto foram construídos o Asilo de Alienados São Vicente de Paulo 28 , inaugurado em 1º de março de 1886, e o Asilo de Arronches 29 , na Parangaba.

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Atualmente conhecido como Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo permanece no local original, na entrada do distrito de Parangaba. 29 Projetado em 1874, mas concluído em 1886.

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Problematizando os perigos que comprometiam o desenvolvimento da cidade, ganhou força considerável esse movimento de falas e ações que visavam a regeneração urbana, por meio do ordenamento espacial e disciplinarização dos corpos, como diria Michel Foucault30 . Os grandes investimentos nesse processo couberam fundamentalmente aos grupos locais ligados ao setor comercial, bem como aos profissionais liberais e letrados. Para os fins deste estudo, vale destacar o setor constituído por farmacêuticos, médicos, sanitaristas e agentes do filantropismo higiênico, que coloca a questão da saúde pública como preceito básico para a realização do novo projeto civilizatório que se desenhava para Fortaleza. Marcada pela racionalidade cientificista européia, a elite intelectual, aliada às classes dominantes, assumiu então o papel fundamental na difusão de novas representações e medidas sobre a cidade, numa tentativa de tornar regra o anseio pela “civilidade européia”. Aproveitando-se do prestígio político e científico, essa elite uniu-se ao Estado no esforço de instaurar um poder disciplinar não somente sobre o meio físico como também o social. As esquinas do centro comercial de Fortaleza eram abarrotadas de cafés com toques parisienses, sendo redutos freqüentados exclusivamente por homens, já que moças e senhoras “de respeito” não freqüentavam tais âmbitos. O mais amplo deles, o Café Globo, localizado na rua Guilherme Rocha, era o mais badalado, sendo freqüentado constantemente pelos políticos e pela intelectualidade. Como afirma Lopes (1989), além dos cafés, as farmácias e barbearias eram também locais onde facilmente se formavam rodas de conversas, especialmente entre intelectuais e políticos, onde eram discutidos os últimos acontecimentos e as atividades políticas a serem instauradas. Vale lembrar que essas iniciativas, oriundas na Fortaleza de 1860, partiam tanto dos poderes públicos como particulares. Entretanto, essa aparente aliança não se deu de forma expressa, pois não houve um planejamento sistematizado. O que unia governo, setor comercial e médicos era, sobretudo, o interesse em civilizar a capital e seus habitantes. Com a aproximação do século XX, e especialmente com a República, esse processo de múltiplas reformas deu-se de forma cada vez mais intensa, no anseio de afastar da metrópole o atraso imposto pelo regime monárquico. Além da remodelação urbana, através da construção de monumentos e edificações, empenhava-se também pela higienização da população e pelo saneamento da capital. Neste contexto, foram adotadas medidas como inspeções sanitárias em domicílio, vacinação obrigatórias, criação do Instituto de Assistência e Proteção à Infância em 1913 e a implantação

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Em Microfísica do Poder.

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do serviço de abastecimento de água e esgoto, concluído em 1924. Além disso, considerada um risco à saúde, moralidade e segurança públicas, a mendicância urbana causada pelo aumento vertiginoso da população, foi vista como questão central. O esforço de erradicação caminhou na instalação de um sistema de policiamento específico, direcionado primordialmente para as camadas populares, e de instituições assistencialistas, elaborações de campanhas e criação de asilos. Atuando em várias instâncias da realidade urbana, o saber médico-social local concorreu para o surgimento do primeiro hospital da cidade (a Santa Casa de Misericórdia, em 1861); de um Lazareto contra as várias epidemias do período; de leis e normas de preservação de higiene pública e privada; da transferência de cortumes, matadouro e cemitério para além do perímetro urbano central (a partir de 1870), e do serviço de canalização d´água. O olhar clínico recomendou, também, a contrução de espaços arejados e iluminados para salvaguardar a salubridade de mercados, escolas e cadeias. Determinou, para os loucos e mendigos, considerados compatíveis com a racionalidade produtiva imposta pela nova ordem urbana, a criação do Asilo de Alienados (bem longe da cidade, no distrito de Parangaba) e do Asilo de Mendicidade, ambos em 1886. (PONTE, 2001: 15)

As inúmeras remodelações urbanas tiveram a colaboração da própria planta topográfica 31 de Fortaleza e seus subúrbios, elaborada em 1875 por Adolfo Hersbster, engenheiro da província do Ceará e da Câmara Municipal de Fortaleza. Sua grande contribuição residia no duplo objetivo de embelezar a cidade e, como afirma Ponte (2001:23), para fins de dominação, o ordenamento da expansão urbana. A instalação de vias longas, alinhadas e cruzadas em ângulo de 90º favorecia o “olhar do poder e do saber urbanos”. Além do projeto “elaborado” 32 por Herbster, outro marco importante para Fortaleza foi a ocorrência da uma epidemia de varíola, já citada anteriormente, que por três anos vitimou grande parte de cerca de 100 mil retirantes que se instalavam nos arredores da cidade, migrados por conta da seca de 1877 a 1879. A disseminação provocou ainda a morte de inúmeros moradores locais. É importante salientar que eram poucos os recursos 33 médicohospitalares. A seca foi chave-mestra para que fossem abertas as portas para uma maior legitimação e aceitação do discurso médico-político, propositor de leis e normas para uma efetiva política sanitária.

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Vide ilustração na p. 72 dos anexos. Pois, segundo Ponte (2001), o projeto não é tão original, já que ele apenas manteve o traçado da cidade em forma de xadrez, já idealizado por Silva Paulet em 1818. 33 Contava-se apenas com o Lazareto da Lagoa Funda e a Santa Casa de Misericórdia, primeiro hospital da cidade, criado em 1861. 32

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CAPÍTULO 2 O impacto Socioantropológico do Discurso Sanitarista na Transformação dos Costumes Fúnebres

2.1 A Proibição das Inumações nas Igrejas e o Surgimento dos cemitérios

O embelezamento e a assepsia da nova paisagem citadina tornavam necessária também uma transformação dos costumes e das formas de convívio social, que agora deveriam corresponder à aparente disciplina e civilidade da nova ordem. Da mudança da paisagem e da sociedade, das inúmeras técnicas de controle do tecido social que intentavam o exercício do poder sobre o extenso contingente de miseráveis da época, decorre ainda o surgimento de novas representações simbólicas. Como nos mostra Batista (2002), o processo de ordenação urbana iniciado na cidade com a construção de prédios públicos, chafarizes e iluminação pública mexeu mais do que apenas com a estrutura física de Fortaleza. Em prol de trazer para cá “raios de civilização européia” era necessário atrelar a esse processo de melhorias urbanas regras de civilidade, transformar os costumes da urbe. O autor diz existir nos inventários de Joaquim José Oliveira e Gualter R. Silva, dois dos principais livreiros da Fortaleza do século XIX, relações dos livros que faziam parte do acervo das livrarias. Dentre estes, podemos encontrar inúmeros títulos que tratam da normalização dos comportamentos e, por conseguinte, da regulação do convívio em sociedade. Nos manuais não se tratavam apenas das chamadas regras de etiqueta, mas também dos ensinamentos de higiene. Por isso, o historiador considera o discurso médico ser também um discurso civilizador. Entre os títulos:

Cartilha higiênica;Manual de Urbanidade e Boas Maneiras Para Uso das Escolas de Ambos os Sexos; Cosinheiro Imperial ou Nova Arte do Cosinheiro e do Copeiro em todos os seus ramos. Arte da Dansa; Bom Senso e Bom Gosto; Arte da Correspondência; Methodo para ajudar os Moribundos; Deveres do Homem; Deveres do Menino; Thesouro de Meninas; Código do Bom-Tom...(BATISTA, 2002:129)

O ordenamento dos comportamentos e costumes ocorreram nas mais diferentes esferas da sociedade. Como já foi dito, não só estruturalmente, mas, sobretudo, simbolicamente, a

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cidade passou por transformações inclusive no que diz respeito às representações de morte, já que o discurso higiênico e disciplinador dos médicos sanitaristas agiu também sobre os costumes tradicionais dos enterros. A partir de então, os corpos deveriam ser enterrados o mais rapidamente possível, o contato com o corpo morto deveria ser evitado o tanto quanto possível e a morte, antes presente na vida social, vai sendo cada vez mais excluída do cotidiano público, a exemplo das idéias já difundidas pela Europa. Em Paris, por volta de 1625, as irmandades zelavam com desvelo pelos funerais e missas fúnebres de seus associados. Os ricos, em especial, faziam de seus ritos um verdadeiro espetáculo. Esse tipo de funeral, denominado por Reis (1991) como “barroco”, caracterizavase pela pompa, expressa no luxo dos panos funerários, caixões, da decoração da igreja, quantidade de velas, participantes no cortejo, missas e prestígio do local escolhido por sepulturas, tudo meticulosamente detalhado em testamento. Tratava-se de uma morte marcada por enorme mobilização social e pela coerência com a manifestação de religiosidade pregada pelo catolicismo. Ele afirma que este tipo de mentalidade predominou no Brasil até as vésperas da Cemiterada, em Salvador, quando a população destruiu em 1836, no dia da inauguração, o que seria a sua primeira necrópole. Mas na França, por exemplo, as coisas já haviam se modificado, quando o Iluminismo, com seus ideais de racionalização do pensamento, laicização das relações sociais e da secularização da vida cotidiana, transforma as atitudes diante da morte e dos mortos ao longo do século XVIII. A partir de então, os enterros passaram a ser mais econômicos e os mortos começaram a ser encarados como tabu público, sendo velados e sepultados privadamente. A visualização do corpo passou a se restringir ao círculo íntimo da família, quando muito dos amigos mais próximos. Além disso, Reis (1991) cita a redefinição de noções de poluição ritual, quando a pureza e o perigo passam a ser determinados mais por critérios médicos do que por religiosos. A proximidade com o moribundo, justificada pela ameaça à saúde pública, é então condenada pelo corpo médico. Por conseguinte, a solução apontada foi a proibição dos enterros nas igrejas, a transferência dos cemitérios paroquiais além do perímetro urbano central e a criação de cemitérios extramuros. Na França, a proibição do tradicional costume só ocorreu de fato a partir da lei régia de 1776 e após vigorosa campanha médica, quando um cemitério conhecido popularmente como Les Innocents foi desmontado. Em 1801, a Academia de Arquitetura Francesa promoveu um concurso de projetos sobre organização de cemitérios e cerimônias funerárias, onde o consenso criticava as covas comuns e elogiava os túmulos individuais e jazigos de família. 34


Para Reis (1991), os projetistas imaginavam cemitérios gramados e arborizados, como lugares solenes de meditação onde os túmulos seriam vistosos, introduzindo-se nova forma de culto aos mortos. Como mostra-nos o autor, a relação entre vivos e mortos e as práticas referentes à morte e ao morrer não podem ser separadas dos processos históricos mais amplos, por isso cada região teria uma cronologia própria das mudanças. Atentemos ainda para a probabilidade de conflitos de pensamento e atitudes dentro de cada “comunidade cultural”, não havendo, portanto, uma homogeneidade das práticas fúnebres. Na Inglaterra, por exemplo, as transformações ocorreram de forma mais rápida, quando a Reforma Protestante acelerou, a partir do século XVI, a simplificação das formas do que se entendia como “bem morrer” na tradição católica, já que, especialmente os calvinistas, acreditavam na predestinação e aboliam a existência do purgatório. Para Reis (1991:79), “muito antes dos franceses, os ingleses definiram um modo privado de morrer, coerente com a voga individualista estabelecida pelo protestantismo.” A reforma cemiterial dos ingleses, no entanto, só ocorre depois das reformas francesas, com a construção do cemitério Highgate em 1830, no alto de uma colina, segundo os padrões determinados pelos higienistas da época. O retorno da importância de funerais luxuosos dos ingleses ocorre na era vitoriana, século XIX, mas não como reflexo de um benefício concedido para facilitar bom destino ao morto, mas como desejo de celebração da posição econômica e do prestígio social, importância adquirida mesmo por proletários comuns. No Brasil, particularmente em Fortaleza, também permaneceu por muito tempo o costume de ostentar nas sepulturas a posição social do indivíduo e sua família. Por isso, Silva Filho (2001) afirma que o cemitério era também um equipamento indispensável à ordem urbana e progressista da elite na virada do século XIX. O Passeio Público 34 , considerada a mais elegante área de lazer urbano da Belle Époque, era espaço detentor de normas que disciplinavam seus freqüentadores como, por exemplo, a exigência de boas maneiras e o uso de belos trajes. Além disso, sua constituição espacial era significativa expressão da hierarquia social da cidade, já que expunha a discriminação simbólica pela ocupação segregada de cada classe social nos diferentes planos do jardim. Assim como o Passeio Público, a organização espacial da cidade dos mortos apresentava também segregação social, expressa também na diferenciação das artes

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Situado no antigo Campo da Pólvora, onde era comum a ocorrência de fuzilamentos no século XIX.

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funerárias, na medida em que à frente destacam-se os mausoléus da elite, com suas rebuscadas edificações e esculturas, enquanto ao fundo são encontrados os túmulos mais humildes, onde os adereços praticamente inexistem.

A sofisticação tumular afirmava a riqueza e a influência política gozadas em vida, era um modo de perpetuar as glórias familiares no tempo, não permitindo que fossem esquecidas, mas celebradas através dos ritos e objetos fúnebres. (SILVA FILHO, 2001:93)

Através do estudo da arte funerária do cemitério São João Batista, no período compreendido entre 1866 e 1915, Batista (2002:12) mostra como o cemitério é uma espécie de extensão da vida social, já que é também espaço de exclusões e conflitos, uma verdadeira “arena de lutas”. Além das diferenciações sociais expressas na arte tumular, exprimem-se ainda diferenças de concepção da morte, visto que não existe um único modelo de representação. Se esse consenso inexiste entre membros de um mesmo grupo social, imagine entre distintas camadas sociais. É fundamental frisar que não se pode delimitar rígidas fronteiras cronológicas no que diz respeito às diferentes concepções e comportamentos diante da morte, pois o surgimento de um estilo não enterra o anterior. Para ele, as construções tumulares são construídas conforme valores e, sobretudo, interesses. A riqueza obtida em vida pelo indivíduo é muitas vezes ostentada quando morto. Não obstante, o investimento nos túmulos é às vezes feito também por camadas populares, na tentativa de obter, ainda que depois de morto, a magnitude de uma vida que não foi alcançada em vida.

Para o autor, o estudo dos monumentos, tais como os sepulcros, enquanto

perpetuadores de memória, possibilitam o estudo das tessituras sociais que permitiram sua criação e o investimento nos mausoléus é instrumento de reafirmação do poderio econômico e políticos das ricas famílias de nossa cidade, pois “o homem morto ainda é, de certo modo, homem social. E, no caso de jazigo ou monumento, o morto se torna expressão ou ostentação de poder, de prestígio, de riqueza dos sobreviventes, dos descendentes, dos parentes, dos filhos, da família.” (Freyre apud Batista, 2002:21) A proximidade física entre os cadáveres e os templos era, para Reis (1991), representação do desejo que se tinha de aproximação entre a alma e as divindades. Quanto maior a proximidade do altar, maior seria a segurança para o bom destino da alma. Forma também de não romper totalmente com o mundo dos vivos, inclusive para estes, que não

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deveriam esquecer dos que já haviam partido, dirigindo-lhes missas e preces tantas quanto possíveis. Embora cuidados fúnebres de pobres e escravos fossem bem mais econômicos, não dispensavam investimentos com seus enterros. Como mostra Reis (2002), na Bahia também havia uma geografia dos mortos. Ainda que negros e brancos pudessem ser sepultados nas igrejas, aqueles eram geralmente enviados para um cemitério de indigentes. Além disso, o enterro junto aos altares era destinado àqueles que podiam arcar com as dispendiosas quantias “cobradas” pelos confrades. Para obter sepultura na capela de uma irmandade, por exemplo, bem como enterro decente para si e para familiares, leia-se com a presença massiva de irmãos e irmãs de confraria, além de ter bom comportamento e devoção católica, participar das cerimônias civis e religiosas da irmandade, o indivíduo deveria pagar anuidades e destinar à irmandade soma considerável em testamento. Mas o discurso médico começava a condenar a prática tradicional de enterros dentro das igrejas. Esse processo de interdição, em Fortaleza, dá-se originalmente com a proibição das inumações no interior dos templos, inicialmente a contragosto da Igreja, sendo os cemitérios transmutados para campos a céu aberto. Para tal iniciativa, foi fundamental a forte ação discursiva dos peritos, que encontrou bastante rejeição por parte da população majoritária. A elite, que antes encontrava nas inumações dentro dos templos eclesiásticos mais uma forma de demonstrar o seu ostensivo poder, somente aos poucos vai aceitando as iniciativas trazidas pelo novo discurso, já que nele estava imbricada a noção de civilidade européia.

2.2 Salubridade Pública e a Construção do São Casimiro

A pompa dos funerais de outrora e enterro dos corpos nas igrejas revela a preocupação dos indivíduos com o destino do seu corpo. Os médicos também tinham o corpo como objeto de preocupação, mas por razões diferentes. Eles o viam como uma ameaça à saúde dos vivos, condenando, por isso, determinadas práticas fúnebres. Vinda da Europa, a concepção defendida pelos higienistas como testemunho de progresso e civilidade, seguida pelos legisladores para reordenamento dos espaços, culminaria na proibição dos enterramentos nas igrejas e na construção de cemitérios fora das cidades. Em meados do século XIX, o trato com a morte em Fortaleza sofreu transformações significativas. A partir de então, os cadáveres deviam ser enviados para fora do perímetro

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urbano, evitando assim infecções e epidemias que pudessem ser causadas por seu contato ou pelas emanações dos corpos em decomposição. Como afirma Silva Filho (2001), como medida de salubridade pública, a morte começava ligeiramente a ser afastada da vida cotidiana e os entes perdidos ganhavam lugar específico para o repouso eterno. Apesar de serem práticas arraigadas na cultura fortalezense, o discurso médico começava a romper com o domínio religioso e com o costume dos enterros no interior e nas proximidades das igrejas. Por uma questão de saúde pública, os cadáveres que se acreditava expelirem gases na decomposição deveriam ser sepultados em cemitérios que distassem do centro da cidade. Para definir a localização mais adequada foram determinadas comissões médicas, que logo indicariam a área vizinha ao morro do Croatá como mais indicada. Os médicos consideraram a região como mais propícia ao empreendimento, visto que, estando a sotavento da cidade, o que impediria o direcionamento das exalações prejudiciais à cidade, reunia as condições higiênicas necessárias. Para estas serem alcançadas, concorreram ainda estudos matemáticos e estatísticos que levaram em consideração o número de falecimentos dos anos anteriores à construção e a quantidade de sepulturas que o espaço comportaria, de modo que proporcionassem o período necessário para a total decomposição do corpo, três anos para que cada túmulo permanecesse fechado. Espaço era uma questão relevante, visto que, como diz Batista (2002), as igrejas de Fortaleza não dispunham de espaço suficiente para uma média de 200 enterramentos por ano. Segundo Batista (2002), já em 1828, práticas que tratassem do estabelecimento de enterros fora das igrejas eram recomendadas às câmaras municipais por uma lei imperial, mas somente em 1844 o poder público da província do Ceará estabelece a criação do São Casimiro, sendo o primeiro cemitério público. As medidas de controle por parte do setor médico não se limitavam à proibição dos sepultamentos no interior das igrejas, mas também estipulavam os horários dos cortejos fúnebres e mesmo da quantidade de baladas dos sinos que anunciavam a morte de um indivíduo. Citando Eduardo Campos 35 , Batista (2002) mostra que não deviam ser designadas mais do que nove baladas quando o defunto era do sexo masculino e mais do que seis quando do feminino. Como afirma Batista (2002), mesmo após a proibição das inumações nas igrejas os padres ainda continuavam exercendo domínio sobre os enterros. Para que estes fossem iniciados no primeiro cemitério público de Fortaleza, construído pelo presidente da província

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Renomado memorialista cearense.

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Casimiro José de Moraes Sarmento, foi necessário que fosse bento, primeiramente. Antes de sua edificação os sepultamentos eram realizados no interior ou nas proximidades das igrejas. Na igreja do Rosário, por exemplo, do século XVIII, ainda podem ser encontradas uma série de inscrições mortuárias dadas a homenagear personalidades políticas de Fortaleza. Mais de trinta anos após as proibições de enterros nos templos, a Igreja permanecia controlando os sepultamentos. Em 1888, por exemplo, foi realizado na catedral de Fortaleza o “Primeiro Synodo Diocesano Fortalexiense”, no qual se determinou que fosse reservada uma área para aqueles a quem, por direito canônico, eram negadas as sepulturas eclesiásticas, tais como judeus, pagãos, infiéis, excomungados e suicidas. A crescente presença de práticas não católicas foi um dos motivos que fragilizou o poder da Igreja no final dos anos 80 do século XIX e as determinações do sínodo foram uma forma de continuar o processo de romanização ultramontano do clero e, consequentemente, tentar recuperar o poder de controle sobre questões terrenas e celestes. A vigilância sobre o domínio da morte, situado na fronteira dos dois mundos, incidia desde o cuidado sobre os cultos aos jazigos, nos quais não poderiam ser inscritos preceitos que contrariassem os cristãos. A elite intelectual da cidade e a junta médica consideravam a construção do cemitério como sinal de civilização, já que a “Europa culta” já apontava a necessidade de afastamento dos vivos as perigosas emanações dos mortos. Além disso, a instauração da proibição do enterro nas igrejas acabaria com uma das possíveis causas do tradicional costume: a vaidade e busca de distinção, posto que, ao que parece, em Fortaleza somente as pessoas proeminentes eram sepultadas nos templos. A proximidade desse cemitério do centro da cidade e o avanço das areias sobre ele, iniciariam nos anos 60 do século XIX a proposta de criação de um novo recinto para os sepultamentos. Além das areias que cobriam parte do São Casimiro, os túmulos podiam ser violados pelos animais que ali adentravam. É aí que se inicia a prática de cercar os túmulos, tencionando evitar a profanação do corpo pelos animais, bem como a demarcação de propriedade, exibindo a busca de individualidade como atitude diante da morte que já existia antes mesmo nos espaços sacros. Como afirma Batista (2002:43): “é possível afirmar que a ‘vaidade’ irmanou-se com a ‘higiene’ para conduzir os mortos para nova morada a céu aberto – a necrópole.” O São Casemiro, também por procedimentos higienistas, começou a ser representado como sério risco de contaminação para os habitantes da cidade, em muito devido ao grande número de vítimas do cólera ali enterrados, bem como por já estar inserida no espaço urbano 39


(devido à expansão de Fortaleza). Assim, o antigo campo santo foi abandonado e substituído, em 1885, pelo São João Batista que, localizado a oeste da cidade (no arrabalde de Jacarecanga), impedia que os miasmas dos cadáveres fossem enviados pelo vento ao núcleo da cidade, agora também mais distante. O novo cemitério foi espaço privilegiado dos mortos fortalezenses por quase um século, até 1960, quando começou a perder destaque para o Parque da Paz 36 . Durante todo esse período foi ornamentado com os mais nobres materiais e com apurado requinte estético, fossem suas artes locais ou importadas da Europa. Os exagerados investimentos a que era destinado representavam a extensão do poder aquisitivo e social dos seus ocupantes enquanto vivos. A lei provincial de 1876 concedeu à Santa Casa de Fortaleza a tarefa de administrar o cemitério São João Batista. Os recursos obtidos pelo hospital foram empregados na construção da necrópole. Como nos mostra Melo (2004), a fundação da primeira necrópole do Ceará, na Fortaleza de 1848, foi significativa neste processo de modificação do olhar sobre a morte. Este foi intensificado ainda com a transmutação de local do primeiro cemitério que, para o discurso médico-social, representava uma ameaça à população fortalezense, já que era apontado por este como difusor dos miasmas que prejudicavam a saúde da população.

2.3 Discurso Higienizador e Reforma Cemiterial: Construção do Cemitério São João Batista

O contexto de construção do cemitério São João Batista remete ao período em que o repúdio às inumações dentro dos templos eclesiásticos, a edificação de cemitérios distantes do perímetro urbano central e a sanitarização da cidade vigoravam no discurso médico. A defesa dos argumentos baseava-se na idéia de que os gases produzidos pela decomposição de cadáveres poluíam o ar, representando ameaça à contaminação dos vivos, ao surgimento de doenças e epidemias. Como afirma Batista (2002:31), “aparentemente, o tão familiar odor exalado dos mortos tornou-se mais apavorante do que a própria morte.” Segundo ele, Adolpho Herbster sugeriu em relatório que fossem proibidos ainda os enterros nas proximidades da capela, mas as indicações não foram cumpridas. No entanto, o maior problema para o projetista estava no avanço das areias sobre o São Casimiro. A possibilidade de soterramento do cemitério já havia

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Localizado na Avenida Pres. Juscelino Kubitschek 4454, Passaré, Fortaleza-Ce, Fone: (85) 3295-2577.

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sido prevista mesmo antes de sua construção, mas a rapidez do avanço do morro vizinho foi surpreendente. Os custos para resolver o problema e ainda as dúvidas a respeito de uma solução eficaz foram suficientes para a sugestão de abandono da necrópole e construção de outra. Em 1856 foi acrescida ao São Casimiro uma área para o sepultamento das vítimas da epidemia de cólera, sendo esse espaço separado por grade de ferro do plano existente. O enterro dos coléricos teria sido apontado como mais um motivo para mudança do cemitério, mas Batista (2002) não confirma. O novo local, escolhido por uma comissão de médicos, foi inaugurado em 1866, ainda inacabado, com a bênção eclesiástica. O novo cemitério, São João Batista, seria administrado pela Santa Casa de Misericórdia. Esta, já responsável pelo São Casimiro desde 1860, por lei provincial nº 344 de 1º de agosto de 1844, requereu ao presidente da província que o cemitério dos ingleses, ao lado do São Casimiro, fosse também desativado, já que estava muito próximo ao centro da cidade e por ter sepultado inúmeras vítimas de cólera e febre amarela, podiam ser foco de transmissão das doenças, causando uma possível epidemia. Todavia, o pedido foi indeferido já que sendo de propriedade de particulares, o cemitério estava fora de jurisdição da província. Além de manter sua necrópole em funcionamento, a Singlehurst & Co, proprietária do cemitério dos protestantes, conseguiu também autorização para incorporar a área do São Casimiro, posto que, segundo a Companhia, os gastos para a construção de um outro ambiente para enterros superaria seus orçamentos. O conflito entre a Santa Casa de Misericórdia e a empresa inglesa parecia resumir-se ao fato daquela não admitir a divisão do domínio dos cemitérios, já que desde a criação do São Casimiro, em 1848, que a Santa Casa detinha a propriedade do cemitério público, ainda que ela tenha sido inaugurada somente em 1861. A Santa Casa de Misericórdia só alcançou seus objetivos quando em 1882 quando a estrada de ferro de Baturité iniciou no local a construção de um de seus armazéns. Enquanto o cemitério dos ingleses permaneceu em atividade, o São Casimiro foi abandonado por mais de dez anos, quando foi finalmente demolido nos primórdios dos anos 80 do século XIX. A transladação final dos ossos do São Casimiro para o São João Batista só foi realizada em 1880.

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2.4 Atitudes de Contestação Popular : resistência à proibição das inumações

Assim com na Europa, quando em Portugal, por exemplo, a população resiste à Lei de Saúde Pública promulgada em 1844, no Brasil também ocorreram atitudes de contestação contra a mudança das regras funerárias e reações às transformações do que se considerava um “bem morrer”. Como afirma Reis (1991), a Bahia e o Brasil eram parte de um Ocidente cristão que estava experimentando, ao longo dos séculos XVIII e XIX, transformações significativas na visão da morte. Em 25 de outubro de 1836, ocorreu na Bahia uma revolta popular contra a construção de um cemitério. Conhecido como Cemiterada, o episódio marcou uma atitude de contestação contra a lei que proibiria o costume tradicional de inumações no interior das igrejas. Além disso, a lei, que entraria em vigor no dia seguinte e teria duração de trinta anos, concederia o monopólio dos enterros a uma companhia privada. Convocada por organizações católicas leigas, tais como irmandades e ordens terceiras, que tinham como uma das funções o cuidado com o sepultamento de seus membros, a manifestação teve início com a chamada para o protesto coletivo através das baladas dos sinos de igrejas por toda a cidade, os mesmos que sinalizavam as missas, festas religiosas, funerais e procissões. Um abaixo-assinado com cerca de 280 assinaturas circulou, nos dias que antecederam o levante, contra a construção do novo cemitério, o Campo Santo. O uso da força contra os manifestantes foi deslegitimado, já que boa parte deles era formada por confrades, embora também tivessem participação inúmeros representantes da sociedade civil. Do adro da igreja da Ordem Terceira de São Domingos, espécie de lugar sagrado de Salvador, os manifestantes dirigiram-se à Praça do Palácio 37 , o centro político da cidade, onde estava situada a Câmara Municipal. À frente desta foram feitos vários discursos contra a empresa e várias petições foram entregues a Francisco de Sousa Paraíso, presidente da província, exigindo a anulação da lei que impedia o enterro nas igrejas e dava aos proprietários do Campo Santo o monopólio dos sepultamentos. A forte pressão sobre o presidente da província acabou culminando na suspensão da proibição até 7 de novembro, quando a Assembléia Provincial, em sessão extraordinária, discutiria novamente o assunto. Depois do protesto na Praça do Palácio, os manifestantes marcharam rumo ao novo cemitério e no caminho apedrejaram o escritório da empresa funerária. Segundo Reis (1991),

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Hoje conhecida como Praça Tomé de Sousa ou Praça Municipal.

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houve forte participação das mulheres, mas a violência foi também iniciada pelas próprias irmandades. Os policiais foram logo deslocados para proteger o cemitério, mas a multidão parece ter chegado mais rápido. Contando com mais de 3 mil pessoas, o novo lugar dos enterros, que apesar de inaugurado não estava pronto, foi rapidamente destruído, não escapando nem a sua capela. Segundo Reis (2002:49), a motivação central da Cemiterada foi a defesa de concepções religiosas sobre a morte, os mortos e os ritos fúnebres, parte importante do catolicismo barroco que tinha como forte característica a externação da fé através de missas celebradas por dezenas de padres, acompanhadas por corais e orquestras, em templos cuja abundante decoração era uma festa para os olhos, e sobretudo funerais grandiosos e procissões cheias de alegorias, de que participavam centenas de pessoas. Reis (1991) afirma que o pai do poeta Castro Alves, Antônio José Alves, testemunha do levante, teria sido o primeiro a abordar o assunto. Formado em Medicina, manifestaria em tese acadêmica seu repúdio ao movimento e sua visão higiênica contra os enterros nas igrejas e nos centros urbanos. Para Reis (1991), muitos foram os autores que trataram do levante como “expressão atrasada de religiosidade” e como uma defesa puramente de interesses econômicos, já que os enterros eram preciosa fonte de renda para os clérigos. No entanto, esse argumento não é suficiente para dar conta do fato. É importante considerar também a contestação contra um costume enraizado na cultura do povo baiano e uma tradicional atitude em relação à morte e aos mortos, já que a prática era tida como estratégia de salvação da alma, e num contexto especificamente católico, de condução do morto para um lugar divino. Levese ainda em consideração que às vésperas da Cemiterada a estrutura social da Bahia, à época o mais importante centro urbano do Brasil depois do Rio de Janeiro, num período de grande crescimento populacional, foi abalada por uma conjuntura de crise econômica (com o declínio da produção de fumo e algodão e a redução do preço do açúcar no mercado internacional) assim como movimentos sociais dos mais diversos. Conforme o autor, muito por suas raízes em Portugal e África, a Bahia do início do século XIX tinha uma cultura funerária segundo a qual o cuidado com os mortos e a observância minuciosa dos ritos significava tornar sua passagem mais segura, definitiva ou mesmo alegre, bem como protegia os vivos de seres atormentados por suas almas. Além disso, a garantia de uma morte plena pela grande elaboração dos funerais e pela presença solidária de inúmeros espectadores podia garantir a intercessão pelos vivos junto aos seres divinos.

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Batista (2002) afirma existirem indícios de resistência em Fortaleza à proibição das inumações nas igrejas, ainda que essa contestação não tenha se equiparado a movimentos como a Cemiterada.

2.5 A mudança de estilo das novas necrópoles e a eufemização do morrer Dos Cemitérios e dos Hábitos em Fortaleza: uma Nova Configuração Citando o estudo de Argos Vasconcelos 38 sobre a Santa Casa de Fortaleza, Melo 39 (2004) afirma haver nos seus escritos certo saudosismo em relação às novas configurações artístico-espaciais advindas com o surgimento das necrópoles gramadas, que seguem rígidos padrões, a exemplo da proibição de se colocarem monumentos ou quaisquer objetos tais como castiçais, placas, suportes ou vasos, que ameacem a padronização do local. Entretanto, esse novo estilo, de influência notadamente tecnicista norte-americana, não encerra apenas com a manifestação artística e religiosa de cemitérios como o São João Batista, mas também de determinadas práticas e costumes referentes à morte em Fortaleza. A desvalorização cada vez maior de sepulcrários no estilo do São João Batista se contrapõe com a apreciação, e conseqüente multiplicação do estilo parque (inaugurado aqui pelo Parque da Paz). Além da insegurança causada pela falta de visão panorâmica dos cemitérios no estilo do São João Batista (dificultada pelas inúmeras obras) e a dificuldade de localização dos jazigos entre a sobreposição de túmulos e obras, a sensação de morbidez, desconforto e assombro trazida pelas obras artísticas constitui-se como outro fator dessa desvalorização. Assim, nos novos ambientes é extinta a colocação de qualquer adorno que ameace o padrão estabelecido pelo regimento interno, mas principalmente, ainda que de forma não declarada ou mesmo percebida, lembre a própria morte, retirando dos vivos a sensação de paz e tranqüilidade imbuída no próprio escamoteamento que só os parques podem oferecer. Vê-se assim que a transposição de estilo arquitetônico dos cemitérios modifica não somente a configuração espacial e artística, mas ainda a configuração simbólica da morte. Se nos antigos cemitérios o lugar dos mortos era espaço de ostentação de poder através dos materiais e obras artísticas utilizados nos sepultamentos, nos novos esse espaço é produzido como um éden dos vivos, onde a sensação de tranqüilidade é o principal argumento de venda

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No livro Santa Casa de Fortaleza (1861-1992). Gráfica Batista. Fortaleza: 1994. Livro não consultado para esta pesquisa. 39 O estudo de Drumond (2004) trata sobre o funcionamento do serviço funerário em Fortaleza.

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dos lotes. Em folheto 40 publicitário do Jardim Metropolitano, por exemplo, está escrito: “O Crematório Metropolitano possui um harmonioso projeto paisagístico onde tudo revela a presença do Criador.” O que se nota da figuração espacial dos cemitérios, principalmente os planejados e destinados às classes com um maior poder aquisitivo, é que eles são projetados como parques para os vivos, onde os túmulos e funerais podem permanecer cercados de solenidade, paz e conforto para os participantes. Com o estabelecimento do cemitério Parque da Paz, no Passaré, inaugura-se, a partir de 1960, em Fortaleza, uma nova concepção de necrópole, estilo parque. A mudança no cenário aponta, sobretudo, para uma mudança na sociedade. A morte é indiretamente afastada pelo evitamento de sentimentos e práticas fúnebres, mas também pela adoção de ações consideradas cada vez mais higiênicas. A força e profundidade da influência européia trazida com o discurso sanitarista pode ser reconhecida ainda no mesmo folheto citado anteriormente, quando a cremação, prática que tem o Jardim Metropolitano como pioneiro, é, segundo o slogan da empresa, “uma opção ecológica, sanitária e inteligente”. O material bibliográfico consultado mostra que, a partir de meados de 1940, os Estados Unidos tomam da França a condição de sociedade exemplar e, desta forma, tornamse, de modo geral, forte influência sobre a sociedade brasileira e, por conseguinte, sobre a comunidade fortalezense. A partir de 45, após a Segunda Guerra Mundial, com os Estados Unidos crescendo em poder e influência, começavam aqui também a exercer o seu fascínio. Lopes (1989) mostra como a França, antes soberana e ditadora suprema dos costumes, perdeu, a partir de então, a hegemonia sobre a cultura do Ocidente. Enquanto a Europa, arrasada, tentava se recuperar, os americanos traziam ao mundo invenções como o plástico, o pyrex, a caneta esferográfica, as meias de nylon e a coca-cola.

Antes da Guerra, maravilhosa era a Alemanha com seus gênios inventores. De lá vinham as máquinas, os carros, tudo o que era alta tecnologia. A França mandava a frescura na forma de moda, tecidos finos, chapéus, vestidos, sapatos, perfumes. Agora, porém, a coisa estava mudando e “Tio-Sam”, com sua festiva cartola estrelada, começava a brincar com os tolos habitantes do Terceiro Mundo. Não eram só os produtos oriundos da borra do petróleo que faziam a sensação por aqui. Roosevelt, o Presidente que “vencera” a guerra, queria conquistar, na paz, os povos subdesenvolvidos e deu, em dose cavalar, tudo que índio gosta: além das 40

Vide o folheto na p. 73 dos anexos. Coletado em 2 novembro de 2004, em frente ao cemitério São João Batista.

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mencionadas quinquilharias, música latina, bem vibrante e alegre, danças sensuais e bebida – a “coca-cola”. (LOPES, 1989:166)

Os filmes, um de seus produtos culturais mais exportados, mostravam o charme e o esplendor de Hollywood. As estrelas hollywoodianas exibiam, nas películas do Cine Diogo 41 , sua beleza exuberante, servindo então como modelo de conduta e estética, e os galãs representavam os anseios femininos, com sua masculinidade, beleza e talento. Como em todo lugar, as moças de Fortaleza tentavam imitar as deusas da tela.

Na maneira de vestir, de pentear os cabelos e de pintar o rosto; no sentar, no andar, no comportamento, todas, procuravam ter alguma coisa que as identificassem com as maravilhosas divas da “meca do cinema”. As fontes de inspiração: além dos filmes que elas “devoravam” com sofreguidão, as cintilantes páginas da revista “A Scena Muda”, espécie de bíblia dos amantes da Sétima Arte. (LOPES, 1989:141)

Além de poses e posturas, com inspiração nas residências de estrelas de Hollywood e nas residências de Beverly Hills, era comum a construção de apoteóticos bangalôs, como o fez construir o milionário Chico Diogo, na Avenida do Imperador. A loja de fazendas finas “Broadway” exibia o charme nova-iorquino, dando aos freqüentadores a sensação de estar na autêntica Broadway. Para Sousa (2002), além do movimento de modernização da cidade, a influência cultural norte americana contribuiu para uma mudança nos papéis femininos e nos padrões de comportamento. A Igreja e outras pessoas atribuíam ao cinema americano a responsabilidade por atitudes moralmente condenáveis entre as fortalezenses. Os gestos, a maneira de se vestir, os padrões de beleza e de comportamento divulgados pelo cinema importado da América do Norte incidiam sobre a juventude fortalezense. A presença das Forças Armadas dos Estados Unidos, que aqui construíram bases americanas e permaneceram por breve período, também foi de considerável importância na mudança do comportamento das pessoas. Mas o glamour da cultura norte-americana não ficou restrito ao âmbito da moda, da culinária ou dos costumes. Ao contrário, estendeu-se às mais diversas esferas, atuando 41

Muitos eram os cinemas de Fortaleza na década de 40: Cine Moderno [vide foto 04, na p. 76 dos anexos] e Cine Majestic (ambos na Praça do Ferreira) , Cine Rex e Cine Luz (rua General Sampaio), Familiar e o Nazaré (bairro Otávio Bonfim), Mucuripe e São José (no bairro do Mucuripe), Messejana (no bairro de mesmo nome), Cine Excelsior (Parangaba), Cine América (Jardim América), Cine Joaquim Távora (Av. Visconde do Rio Branco), Ventura (Aldeota), Cine Santos Dumont e Cine Centro. Eram inúmeros os locais de exibição do “glamour” norte-americano, mas o Cine Diogo é destacado por ter sido símbolo de luxo e conforto, além de ser o mais freqüentado, especialmente por pessoas de maiores posses.

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inclusive no conhecimento científico e na construção das novas edificações, tais como os cemitérios. Segundo Melo (2004), o modelo tecnicista norte-americano passa então a ser privilegiado, servindo como molde inclusive para a edificação do, a partir de então, novo tipo de cemitério, o estilo parque, caracterizado essencialmente pela ecumenicidade, padronização e enaltecimento da natureza. O primeiro empreendimento deste tipo foi inaugurado, em Fortaleza, no início da década de 1960, sendo o Parque da Paz o primeiro cemitério privado da cidade. Os “novos empresários funerários” apropriam-se então de um discurso que promete oferecer paz e segurança, já que a planície das necrópoles asseguraria, segundo eles, um maior controle dos jazigos, permitindo a sua melhor localização e preservação, tal como o olhar panóptico a que se refere Philipe Wolf (1996) 42 . Além disso, a beleza e a tranqüilidade garantidas pelo afastamento de tudo que lembre a morte é condição para o maior conforto dos visitantes, que por vezes associam o “parque” ao paraíso bíblico. Como afirma Batista (2002:64), “Necrópole, apesar do nome, não é a cidade apenas dos mortos, mas também cidade dos vivos.” Outro elemento a ser considerado trata-se dos procedimentos mortuários, visto que, se comparados aos elaborados ritos fúnebres que se costumavam seguir na cidade, as honrarias foram sensivelmente reduzidas, tornando-se atos muito menos públicos, visíveis e muito mais impessoais, salvo quando se trata da perda de personalidades políticas, artísticas ou mesmo populares em suas comunidades, onde existe uma maior observância ritualística. De um modo mais geral, os tratos com o morto ficam cada vez mais a cargo de empresas funerárias e muito menos dos amigos e familiares. A medicina social desempenha papel fundamental na resignificação da morte, bem como dos comportamentos ante ela.

42

Em referência aos próprios escritos de Michel Foucault.

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CAPÍTULO 3 Sobre a Morte

3.1 O morrer “tradicional”

Como mostra o material bibliográfico consultado, a incidência do discurso médicosocial sobre a vida citadina transformou os costumes e idéias até então vigentes no Brasil. No domínio da morte, mais especificamente, as transformações trazidas por esse ideário oriundo da Europa são incontestáveis. Como mostra Reis (2002), embora o medo não estivesse ausente, as pessoas, ao pressentirem a chegada de seu fim, presidiam sua própria morte, bem como contavam com a ajuda e presença maciça de parentes, amigos, religiosos e mesmo de estranhos. Havia grande preocupação com o atendimento das recomendações feitas em testamentos, onde eram determinados o desejo do moribundo com relação à mortalha utilizada, a armação da casa para o velório, com o cortejo, com as missas e orações que lhe seriam feitas, entre diversos outros costumes.

Como é comum nas sociedades tradicionais, não havia separação radical, como hoje temos,entre a vida e a morte, entre o sagrado e o profano, entre a cidade dos vivos e a dos mortos. Não é que a morte e os mortos nunca inspirassem temor. Temia-se, e muito, a morte sem aviso, sem preparação, repentina, trágica e sobretudo sem funeral e sepultura adequados. Assim como se temiam os mortos que assim morriam. Mas desde que os vivos cuidassem bem de seus mortos, enterrando-os segundo ritos adequados, eles não representariam perigo espiritual ou físico especial. Tais ritos eram experimentados por vivos e mortos de maneira a marcar com ênfase a passagem para o outro mundo. (REIS, 1991: 74)

Nesse estilo de morte o indivíduo administrava seu próprio fim e o testamento era forma garantir a satisfação do desejo do moribundo.

No passado as pessoas se preparavam diligentemente para a morte. A boa morte significava que o fim não chegaria de surpresa para o indivíduo, sem que ele prestasse contas aos que ficavam e também os instruísse sobre como dispor de seu cadáver, de sua alma e de seus bens terrenos. Um dos meios de se preparar, principalmente,mas não exclusivamente entre as pessoas mais abastadas, era redigir um testamento. (REIS, 1991:92)

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A ministração da comunhão era dada ao agonizante caso sua condição física permitisse, quando não, dava-se a extrema unção. A primeira providência tomada era a preparação do defunto para o velório e tratamento do funeral, geralmente realizados por um parente masculino. Incensos aromavam e protegiam o ambiente. As mortalhas, roupas fúnebres mais comuns, eram geralmente instruídas em testamento. Quando não, eram confiadas às famílias ou aos testamenteiros. Embora a simbologia dessas vestimentas não possa ser completamente esclarecida, o seu uso indicava muito a respeito da condição sexual, sexo, idade e diferenças étnico-raciais dos mortos. A “armação da casa” era feita com a decoração do espaço com símbolos do luto: pano cortinado, frisado, armado com varas.

Na entrada da casa, capelas, ramos fúnebres ou panos cortinados avisavam os transeuntes sobre a presença da morte. No Rio se colocava um pano preto decorado em ouro se o defunto fosse casado, lilás e preto se solteiro, branco ou azul e dourado se criança. Havia outras formas de anunciar a morte, como os gritos das carpideiras. Muitas vezes a família mandava rezar uma “missa de notícia”, dobrar os sinos da igreja da paróquia e, em muitos casos, também os da Catedral. As famílias mais abastadas também avisavam por meio de “cartas-convites”, distribuídas por escravos, fâmulos ou pessoas especialmente contratadas. (REIS, 1991:128)

O corpo, saudado por água bento por quem o visitava, era velado noite adentro por parentes e conhecidos, para os quais eram providenciadas comida e bebida, costume ainda presente, segundo Reis (1991) no meio rural. Ele diz que de acordo com o relato dos folcloristas, a posição do cadáver, com os pés sempre voltados para a rua, asseguraria a passagem do defunto para o território da morte, e os rosários, crucifixos e velas presos às mãos iluminavam o caminho à bem-aventurança. Ainda no ambiente doméstico, realizava-se também a encomendação do corpo pelo pároco à saída do funeral, freqüentemente acompanhadas por preces. O luto variava de acordo com o grau de parentesco com o morto. Uma função importante dos habituais sinos das torres eclesiásticas, que agora dividiam espaço com os relógios, convidavam os presentes para os ofícios da Igreja, como ainda para o aviso, por meio do toque, acerca da agonia e morte de algum habitante. Tal costume teria permanecido até o último quartel do século XIX.

Avisado o cura da Sé [sobre a extrema unção de algum enfermo], logo os sinos da Matriz tocavam ao Santíssimo e a irmandade deste nome atendia ao apelo, fosse a hora que fosse. [...] Assim que se verificava o óbito, os sinos da Matriz tocavam a

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finados e a cidade inteira sabia, de pronto, quem era que já estava com Deus. – Nogueira, 1980:80-81 (Nogueira apud Silva Filho, 2001:69)

No mito grego de Antígona, cuja autoria é atribuída a Sófocles, vemos a importância conferida aos cortejos fúnebres quando a protagonista empenha-se até o próprio falecimento na luta pelo direito de Polinice aos zelos funestos. Polinice era um de seus irmãos, morto em duelo fratricida pelo poder com Etéocles, outro irmão de Antígona. Os ritos foram negados a Polinice pelo tio Creonte, rei de Tebas, por considerá-lo um traidor da pátria, enquanto que a Etéocles foram garantidas todas as honras fúnebres solenes. O castigo dado, e conseqüentemente a peleja da filha do incesto entre Édipo e Jocasta, depreende-se do fato do sepultamento ser considerado um dever sagrado, o qual, não cumprido, destituiria da alma do defunto o alcance ao reino dos mortos. Antígona, hoje muito tomada pelo Direito como símbolo da justiça, luta para que o irmão renegado por Creonte obtenha igual direito aos ritos. Deste modo, a necessidade de observância dos ritos mortuários é universal, mas, assim como outros tantos costumes, a experiência da morte varia de sociedade para sociedade, sendo variável e específica segundo os agrupamentos sociais, estando integrada à cultura de um povo. Os tratos com a morte constituem-se de costumes inculcados, repassados de geração para geração, mas que no processo da dinâmica cultural vai sofrendo modificações. As emoções, que em última instância, seriam fundamento do indivíduo são apropriadas pelo social, na medida em que este estabelece condutas morais esperadas do próprio indivíduo. Assim, a não observância destas condutas morais acarretará em uma reprovação social, sendo o sujeito taxado como um desajustado, ou “inadaptado”

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, para fazer uso do termo usado por

Margareth Mead para designar aqueles que não se conformam aos padrões pré-estabelecidos de comportamento.

3.2 Sobre a Morte no Mundo Contemporâneo O Evitamento da Morte: Medo e Interdição

O encobrimento da finitude da vida humana certamente não é uma reação nova nem restrita ao Ocidente do século XX, como afirma Elias (2001); é talvez tão antiga quanto a 43

O termo, usado por Mead, alude aos “desajustados culturais”, ou seja, àqueles que estão em desacordo com os valores da sociedade. (MEAD: 1969: 278)

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própria consciência desse fim. Ele considera que esse “mascaramento” mudou de modo específico, pois se antes as crenças coletivas de vida eterna em outro lugar eram predominantes no modo de lidar com a morte, e ainda hoje desempenham importante papel, as fantasias pessoais e relativamente privadas de imortalidade, desenvolvidas paralelamente à individualização, se destacam em primeiro plano. Assim, as “fantasias encobridoras” desse conhecimento indesejado são bastante antigas, mas as formas pelas quais elas se apresentam mudaram consideravelmente e de uma maneira muito específica ao longo dos anos. O medo de nossa própria transitoriedade era amenizado fundamentalmente através das crenças coletivas que ainda hoje desempenham um importante papel. A idéia conjunta de uma vida eterna em outro lugar ajuda na administração do medo humano frente à morte. Tal concepção é constantemente apropriada e expressa por instituições dentre as quais se destaca a Igreja. No entanto, o considerável desenvolvimento da personalidade no sentido de uma individualização encaminha-nos cada vez mais para uma criação particular acerca da “imortalidade”. A força da institucionalização e a crença coletiva que dão a tais idéias a primazia, quase não davam espaço para o reconhecimento destas idéias como elaborações intelectuais. A despeito de toda e qualquer especificidade das visões privadas do nosso “fim” terreno, as concepções coletivas religiosas permanecem ainda, com uma ligeira redução nas sociedades mais industrializadas. Tais sistemas de crença propõem a redenção da morte e a promessa de uma vida eterna. Entre os católicos, por exemplo, existe a crença inabalável que a morte é apenas uma passagem e que a presença ao lado de Deus exime qualquer inconformismo, como fica claro no texto bíblico de Apocalipse 21:4: “E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor.” Os sistemas religiosos de crença são fundamentais para atribuírem maior conforto àqueles que sofreram a perda de um ente querido, no entanto, a imprevisibilidade de controle sobre os destinos humanos não elimina o medo e o próprio receio do pensar sobre a morte.

Parece que a adesão a crenças no outro mundo que prometem proteção metafísica contra os golpes do destino, e acima de tudo contra a transitoriedade pessoal, é mais apaixonada naquelas classes e grupos cujas vidas são mais incertas e menos controláveis. Mas, em termos gerais, nas sociedades desenvolvidas os perigos que ameaçam as pessoas, particularmente o da morte, são mais previsíveis, ao mesmo tempo em que diminui a necessidade de poderes protetores supra-humanos. Não há dúvida de que, com o aumento da incerteza social e com a diminuição da capacidade de as pessoas anteciparem e – até certo ponto – controlarem seus próprios destinos por longos períodos, essas necessidades se tornariam outra vez mais fortes. (ELIAS, 2001)

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Assim, para se chegar a um entendimento razoável em relação às atitudes e concepções referentes à morte e à sua imagem na nossa sociedade, devemos considerar uma maior segurança relativa, bem como uma maior previsibilidade da vida do indivíduo. A expectativa de vida é também bem maior, em grande parte devido à melhoria das prevenções e dos tratamentos das doenças. Desta maneira, quanto mais longa a vida, mais a morte é adiada e quanto mais acelerada é a temporalidade 44 em que vivemos, ou seja, o modo de vida que levamos, mais difícil torna-se lembrarmos dela. Como afirma Elias (2001:15): “O espetáculo da morte não é mais corriqueiro. Ficou mais fácil esquecer a morte no curso normal da vida. Diz-se às vezes que a morte é ‘recalcada’.” No filme Cidade dos Anjos 45 , de 1998, há um diálogo entre um casal de médicos Maggie Rice (Meg Ryan) e Jordan Ferris (Colm Feore) que expressa bem essa dificuldade contemporânea em abordar a temática: Jordan - Sobre o quê você e o seu amigo conversaram? Maggie - Sobre a morte. Após receber um olhar de surpresa/espanto do namorado, a médica indaga: Maggie - Lidamos com a morte todos os dias. Por quê não podemos falar nela?” Apesar de considerar primordial que atentemos para a pluralidade de opções do leque de representações sociais da morte, não desconsidero a relevância do estudo de Phillipe Áries que privilegia a Europa como berço de uma prática que se anuncia como tendência, influenciando todo o Ocidente cristão. Já atentamos para a necessidade de evitarmos a homogeneização dessas práticas. A segunda metade do século XIX inaugura uma postura inédita ante a morte. Se antes era “domada”, segundo o historiador Áries, agora passa a ser interdita, tabu. A morte é excluída então do convívio social, não apenas pela negatividade que carrega com a sua tomada de consciência de interrupção da vida, mas agora também pela repulsão higiênica que se impõe no trato com o corpo e a limpeza do ambiente em que outrora fora posto. Para Batista (2002:70), “A morte, tendo sido expulsa da vida, tornou-se tema a ser evitado, escondido.” Elias (2001) critica a perspectiva histórica que Philippe Áries faz da morte, como “morte domesticada”, em A História da Morte no Ocidente, considerando-a como unilateral, 44

Aproprio-me aqui do conceito geográfico de Milton Santos, segundo o qual existem diferentes tempos, ou seja, diferentes tipos de ritmos para a experimentação dos espaços, já que os diversos âmbitos são percorridos diferentemente pelos indivíduos. (SANTOS, 1994:46) 45

O nome original do filme é City of Angels. Dirigido por Brad Silberling, foi exibido nos EUA em 1998.

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visto que a Idade Média teria sido um período excessivamente instável. A vida na sociedade medieval européia era muito menos previsível, a expectativa de vida mais curta, os perigos menos controláveis e a morte muitas vezes mais dolorosa. Somem-se ainda os sentimentos de culpa pelo pecado e medo da punição após a morte, presentes ainda hoje, mas com considerável perda de força. A idéia de morte como punição pode ser encontrada no mito bíblico de Adão e Eva, quando, ao violar um mandamento do pai divino, ambos recebem como uma das sansões a perda do direito à vida eterna. Do mesmo modo, a possibilidade de punição depois da morte torna-a ainda mais temida, já que todos passam a ser julgados pelo pai divino por seus pecados, o que também desempenha um importante papel no medo humano sobre a morte. Desta forma, para Elias não se poderia falar em morte “pacífica”, embora a participação alheia na morte de um indivíduo fosse incontestavelmente mais comum. Ele defende inclusive que as atitudes e comportamentos diante da morte não poderiam ser tratados com uniformidade, mas, ao contrário, variados de acordo com cada sociedade ou agrupamento social e cada indivíduo. Ainda sobre a experiência da morte, Elias afirma que (2001:11): “Ela é variável e específica segundo os grupos; não importa quão natural e imutável possa parecer aos membros de cada sociedade particular: foi aprendida”. Entretanto, a despeito do que eu considero um embate muito mais terminológico do que teórico, e se fizermos uma generalização, ambos concordam que a participação alheia na morte de um indivíduo era muito mais vigorosa e a questão da morte e do morrer tratava-se de uma questão muito mais pública no Ocidente. Como afirma Elias (2001), dentre as múltiplas maneiras existentes no enfrentamento humano do fim da vida de um ente próximo, destaquemos aqui a nossa tradição judaico-cristã, a mais comum e antiga é a mitologização em que se projeta uma nova vida após a morte, concretizando-a na idéia de um Paraíso ou Inferno. Ele afirma ainda que o evitamento da idéia de morte ou mesmo a adoção de uma “crença inabalável” de que “os outros morrem, eu não” é uma forte tendência seguida nas sociedades que o autor denomina como avançadas. De fato, mesmo com a crença inabalável de que a morte significa apenas uma passagem para um outro lugar, uma outra vida, muitas vezes reconhecida como melhor, tentase afastar ou adiar tal momento tanto quanto possível, seja reprimindo uma pessoa que fale ou deseje abertamente a chegada desse “fim”, seja encobrindo o assunto com eufemismos ou ainda acreditando que a possibilidade do acontecimento restringe-se sempre aos outros. Elias (2001) considera que podemos considerar como parte de nossa existência e, conseqüentemente como parte de nossa tarefa fazer com que a aceitação da finitude da vida 53


seja um acontecimento muito mais agradável quanto possível tanto para os outros como para nós mesmos. Entretanto, o fato é que o problema dificilmente é colocado como questão no debate mais geral da sociedade. Talvez essa dificuldade em encarar a morte como um fato inerente à própria existência, fato integrante da própria vida, como afirma Joseph Campbell em O Poder do Mito, esteja diretamente ligada a uma simplificação dos ritos fúnebres, o que acaba por tornar tal acontecimento mais abrupto e doloroso. Revela-se assim, uma incapacidade ou indisposição em externar fortes sentimentos, quer na vida pública, quer na intimidade da vida particular, bem como de participar ativamente nos cuidados com o corpo. Foi nessa transformação dos ritos antes realizados e da visão sobre a própria morte que o discurso sanitarista exerceu forte influência. Uma atitude bastante comum nas sociedades ditas avançadas é de segregar os mais idosos, pessoas identificadas como não mais ativas e úteis à estrutura capitalista, quando a fragilidade destes traz à consciência a noção da proximidade de seu próprio fim. A morte do outro significa a lembrança de uma imagem de nossa própria morte. Tal comportamento pode ser relacionado com o que Elias (2001) denomina “isolamento tácito dos velhos e moribundos da comunidade dos vivos”. Desta forma, podemos afirmar que se trata de uma morte social, em que velhos, doentes e moribundos são relegados ao esquecimento. Não devemos desconsiderar, entretanto, que atualmente existe um grau de identificação muito maior, posto que, como nos mostra Elias em O Processo Civilizador, fomos desenvolvendo uma sensibilidade cada vez maior no que se refere à morte, de modo que a identificação com os sofrimentos alheios aumentou consideravelmente. Assistir a enforcamentos, esquartejamentos, suplícios, leões e tigres devorando pessoas vivas, gladiadores em combate nas arenas, práticas antes bastante difundidas, dificilmente são tidas como atrações e entretenimento na atualidade. De igual modo, os programas policiais que freqüentemente não hesitam em mostrar o cadáver ou ainda as páginas de internet que publicam mutilamentos são considerados, especialmente pelos críticos midiáticos, como de extremo “mau-gosto” e definidas categoricamente como desagradáveis, numa chamada “espetacularização da morte” ou “sensasionalismo”, apesar de serem causa de grandes índices de audiência, principalmente nas classes mais populares. Até mesmo práticas seculares e culturais como as touradas na Espanha e as rinhas de galos, por exemplo, passaram a ser, de um modo geral, criticadas em nossa sociedade, provocando calorosas discussões no âmbito das ciências humanas.

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Como explicar então a sedução que a imagem da morte exerce nos telespectadores, expressas pelos elevadíssimos indicadores do “ibope”? Muito do contato com a morte é deslocado para o ambiente virtual, quando é pela televisão ou pelos jogos de vídeo-game, por exemplo, que as crianças visualizam a morte. A morte, ainda que seja real, conta na sua transmissão pelos telejornais, além da regra geral da espetacularização, com recursos melodramáticos, para prender a atenção do público. Na sociedade do espetáculo, a morte assume, por isso, um caráter quase ficcional. É a morte, mas sempre “distante”, o que talvez sirva para corroborar a noção de que ela se restringe sempre aos outros.

3.3 A transformação do ethos mortuário e a instauração de um novo habitus frente à morte: sensibilidade e economia dos afetos

A forma peculiar das cerimônias fúnebres na sociedade ocidental contemporânea só pode ser apreendida se comparada com épocas anteriores. A mudança social de comportamento no que diz respeito ao “recalque da morte” é um aspecto de impulso civilizador, do controle dos afetos, de que trata Elias (2001). O desconforto de estarmos na presença de um moribundo deve-se, para o autor, à dificuldade que temos ao nos depararmos com a lembrança de nossa própria morte. O “recalcamento” desta é, para ele, um aspecto do impulso civilizador, ao qual os elementos significadores de perigo, tanto para a vida da comunidade, quanto para a vida do próprio indivíduo, são agora mais controlados pela regra social e pela consciência. Estes aspectos ameaçadores são associados a sentimentos de vergonha, embaraço e repugnância, o que a faz ser excluída da vida social pública e transposta para os seus bastidores. Como já foi dito antes, o tratamento dado aos moribundos segue a mesma linha. Quer seja no seu processo, quer seja na sua imagem mnemônica, a morte foi sendo relegada ao ostracismo da vida social. De fato, a morte era um tema muito mais freqüente e tratado abertamente em comparação aos nossos dias, o que pode ser visto na literatura popular da época, como os poemas, por exemplo. A franqueza com que os poetas e escritores aludem ao corpo na sepultura contrasta claramente com a supressão higiênica de qualquer menção ao assunto. Qualquer associação ou referência é, no mínimo, chocante. Na obra de Assis (2001:6), por exemplo, deparamo-nos com o desconforto ou surpresa causados pelo verso

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inicial: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico com saudosa lembrança estas memórias póstumas.” Augusto dos Anjos, como afirma De Nicola (1998:258), é comumente conhecido pelos literatos como o poeta do “mau-gosto”, na medida em que evoca constantemente a temática da morte e da desintegração no seu único volume de poemas, Eu 46 , publicado em 1912: Agora, sim! Vamos morrer, reunidos, Tamarindo de minha desventura, Tu, com o envelhecimento da nervura, Eu, com o envelhecimento dos tecidos! Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos! E a podridão, meu velho! E essa futura Ultrafatalidade de ossatura, A que nos acharemos reduzidos! Não morrerão, porém, tuas sementes! E assim, para o Futuro, em diferentes Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos, Na multiplicidade dos teus ramos, Pelo muito que em vida nos amamos, Depois da morte inda teremos filhos! ( “Vozes da Morte”)

Outro elemento significativo para que se possa perceber o “recalque” ante a morte diz respeito à organização espacial. A maneira como eram estruturadas as moradias contribuía para uma exposição muito maior da vida privada, já que não existia uma separação dos cômodos, tornando os vários aspectos da vida humana, tais como o nascimento, as relações sexuais e a morte, muito mais socializados do que hoje. Com a antiga arquitetura das casas, a visualização da morte pelas crianças era muito mais comum. Elias (2001) atribui ao desenvolvimento cada vez maior do nosso limiar de embaraço e repugnância que encontram expressão no presente, o fato de considerarmos estranho o fato de poemas que abordassem a temática da morte, às vezes considerados atos de grosseria e “maugosto”. O tema, comum na poesia barroca européia era, para o pensador alemão bastante representativo de uma estrutura social em que a morte era lugar comum, inclusive para crianças,

não

havendo,

portanto,

uma

censura

social

estrita, diferentemente

da

contemporaneidade, quando é afastada de maneira asséptica. Os seculares rituais de morte foram sendo paulatinamente esvaziados de significado e sentimento. É fundamental, contudo, atentar-se para não cair no reducionismo. Assinale-se 46

Consulta realizada no sítio http://www.culturabrasil.pro.br/augustodosanjos.htm

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que não podemos esquecer da persistência de determinados ritos tradicionais na sociedade brasileira, embora estejamos aqui falando de uma forma mais generalizada. Para o autor, uma análise atenta sobre a transformação dos padrões de controle social e da consciência pessoal acerca das relações sexuais no decorrer do século XX permite-nos atentar para um afrouxamento das “barreiras civilizadoras”, de modo que tabus absolutos foram dando espaço a um discurso e a um comportamento bem mais aberto, chegando a serem discutidos sem que, necessariamente, provoquem constrangimento. A sexualidade envolvia até então uma esfera de segredo que, até o início do século XX, construía uma verdadeira muralha entre as pessoas que quisessem abordar o tema com uma “severidade da compulsão social à ocultação” (Elias, 2001). Se antes a temática da sexualidade era envolta por uma rígida censura social, sob tabu absoluto, atualmente pode ser tratada de maneira bem mais aberta e franca. Houve, durante o século XX, certo relaxamento das fronteiras quando a pesada pressão social sobre a ocultação e a esfera de segredo que envolvia o tema aparece agora com considerável clareza. O embaraço foi reduzido e o “segredo formalizado” deu lugar a comportamentos e discursos mais abertos. Vale lembrar, entretanto, que apesar do grande passo dado rumo à verbalização sexual, não podemos ainda afirmar que a temática é tratada sem qualquer restrição. O fato é que em relação aos assuntos fúnebres esse processo de abertura ocorre de forma inversa. Ao contrário, a partir do século XIX, teria possivelmente aumentado. Se em relação ao sexo o constrangimento social e individual não é mais tão rígido, a resistência em falar abertamente sobre a morte e o embaraço que a envolvem são bem mais fortes. A morte, que fazia parte do cotidiano das pessoas, passa a ser envolta por uma esfera de segredos e tabus, de modo que, ao longo dos anos, abordar tais assuntos acarretaria em um desconforto e, em certa medida, em repressão social. Fala-se abertamente sobre sexo com as crianças, não sendo mais necessário esquivar-se sobre as questões de nossa origem (utilizando o pretexto das cegonhas, por exemplo), enquanto que no que concerne à morte, expressões e termos, ou ainda subterfúgios acalentadores, são utilizados na eufemização ou mascaramento da mesma. Na análise da cultura européia, Elias (2001) afirma ainda estar firmemente arraigada a tendência à omissão da morte pelo uso de acalentadoras convenções coletivas em não fazer referências diretas a ela, especialmente quando o diálogo é destinado a crianças. A morte deve permanecer isolada do pensamento e das conversas educadas. Surgem assim termos explicativos muitas vezes referentes ao imaginário cristão, em acordo com os dogmas da religião católica: “o vovô está no céu”, “seu papai agora está olhando por você lá do céu” ou “sua irmãzinha virou um anjo”. 57


Os pais nessas sociedades são freqüentemente mais reticentes em falar com seus filhos sobre a morte e o morrer. As crianças podem crescer sem nunca terem visto um cadáver. Em estágios anteriores de desenvolvimento o espetáculo de cadáveres era muito mais comum. Desde então, o aumento da expectativa de vida tornou a morte muito mais distante dos jovens e dos vivos em geral. (ELIAS, 2001:97)

Para Elias (2001:26), antes, “onde quase tudo acontece diante dos olhos dos outros, a morte também tem lugar diante das crianças”. O autor continua: Referências à morte, à sepultura e a todos os detalhes do que acontece aos seres humanos nessa situação não eram sujeitas a uma censura social estrita. A visão de corpos humanos em decomposição era lugar-comum. Todos, inclusive as crianças, sabiam como eram esses corpos; e, porque todos sabiam, podiam falar disso com relativa liberdade, na sociedade e na poesia. (ELIAS, 2001:30)

Embora esteja tratando do contexto europeu, a análise de Elias esclarece uma atitude muito comum, de modo geral, na sociedade brasileira: o afastamento de crianças, o quanto possível, desse momento e a vigorosa relutância dos adultos contra a familiarização destas com os momentos póstumos. Ressaltemos que essa preocupação é particularmente maior em agrupamentos sociais mais abastados. Maranhão (1985) mostra como o morrer no Brasil é transformado em algo impessoal, ao passo em que os corpos são tratados como “coisas” e que os termos eufemizadores não são utilizados apenas para adentrar no universo infantil.

Assim, dentro do contexto hospitalar, o paciente não morre: “expira”, “se perde na mesa”, “vai a óbito”, é “SWAT negativo”, (“swat” – expressão utilizada para designar a equipe de reanimação cardíaca do hospital), ou, se está agonizando, é “paciente com síndrome de JEC” (Jesus está chamando). Mesmo nos comunicados de guerra não se fala em mortos, mas em desaparecidos; os soldados não morrem, “dão baixa”, “tombam no campo de batalha”. O morto, na linguagem policial, é um “presunto” e o assassinato um “liquidar”... (MARANHÃO, 1985:11)

A imagem da morte gera na consciência dos vivos certo temor ou pasmo, de maneira que ao se depararem com a agonia de um moribundo ou com um morto, atitudes defensivas e vergonha são algumas das reações mais comuns. Ambos, sexualidade e morte, são fatos biológicos moldados pela experiência e pelo comportamento, de maneira socialmente específica, ou seja, são delineados de acordo com as idiossincrasias de cada estrutura social, o

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que nos permite compreender melhor certas características e estruturas de personalidade ligadas a cada agrupamento social. Sendo construções sociais, excluem a rigidez e o acaso. O obstáculo em desmitologizá-la encontra-se no temor que é despertado por sua imagem antecipada. Essa imagem e, portanto, a natureza e o grau de seu recalmento em sociedades notadamente urbanas e industriais, estão associados a algumas características dessas comunidades como o aumento da expectativa de vida, por exemplo. Tanto maior a qualidade de vida dos indivíduos maior será a extensão de sua vida e também o afastamento da idéia de morte. Outra característica dessas sociedades apontada por Elias (2001) trata-se do reconhecimento da morte como estágio final de um processo natural, que ganha significação com o progresso dos conhecimentos científicos e das medidas que elevaram o padrão de higiene. A morte, apesar de inevitável, é adiada o quanto possível. Como afirma Elias (2001), o evitar a menção aos aspectos que lembrem a morte não se limita meramente ao comportamento diante do morto ou daqueles que o pranteiam, mas estende-se ainda no trato com o corpo dos cadáveres e no cuidado com as sepulturas, atividades antes exercidas por parentes e amigos e que agora estão cada vez mais nas mãos de especialistas remunerados. Segundo Benjamin (1983:64): “Em espaços que ficaram purificados de morte os cidadãos hoje são habitantes enxutos de eternidade e, quando seu fim se aproxima, eles são dispostos pelos herdeiros em sanatórios ou hospitais.” Na análise crítica acerca do surgimento da medicina moderna, a partir do século XVII, quando esta assume um caráter científico, em O Nascimento da Clínica, Michel Foucault faz uma abordagem sobre um movimento, oriundo do século XVIII, pela chamada medicina da espécie ou medicina baseada na espacialização livre da doença, segundo a qual o moribundo deveria permanecer até a morte no seu local de origem, geralmente em sua residência. Não haveria, portanto, a necessidade de se buscar um lugar privilegiado, o hospital, para a cura das doenças. O hospital, espaço clinicamente institucionalizado, seria deslocado para a casa do próprio paciente. Segundo os defensores do movimento, a maioria formada por nosologistas e dentre os quais se destacava o médico francês Vitat, na espacialização livre da doença, através do afeto familiar e a identificação do paciente com o seu entorno contribuiria sobremaneira para a cura das doenças. A chamada “medicina da espécie” não prosperou, ao contrário, o que encontrou terreno fértil para desenvolvimento, ainda no século XVIII, foi a espacialização institucionalizada da doença, sendo o hospital o local próprio para o equacionamento das doenças. O novo tipo de configuração que caracteriza a medicina moderna implica o surgimento de novas formas de conhecimento e novas práticas institucionais que modificam as práticas médicas, e com elas o poder sobre o processo de morte. 59


O desconforto peculiar sentido pelos vivos na presença dos moribundos ou mesmo diante daqueles que sofreram uma perda pode ser, em certa medida, representado pelo embaraço de não saber o que dizer, no bloqueio das palavras, que têm a própria disponibilidade relativamente exígua, ou mesmo pela falta de espontaneidade na expressão dos sentimentos especialmente nessas ocasiões que requerem uma forte carga de participação emocional. A convenção social fornece às pessoas umas poucas expressões estereotipadas ou formas padronizadas de comportamento que podem tornar mais fácil enfrentar as demandas emocionais de tal situação. Frases convencionais e rituais ainda estão em uso, porém mais pessoas do que antigamente se sentem constrangidas em usá-la, porque parecem superficiais e gastas. (ELIAS, 2001:32)

3.4 A Eficácia Simbólica dos Ritos Mortuários

A transformação das atitudes do homem ocidental perante a morte e o morrer foi considerável, culminando, segundo Drumond (2004), em certa “ruptura histórica”, logicamente conservando muitos traços que ainda lembram os antigos costumes, mas sendo esvaziado seu sentido original. O estudioso afirma que passou-se a desenvolver um contexto negativo sobre a morte em nossa sociedade, que vai passando de mãe para filho, influenciando negativamente o inconsciente que podem resultar em problemas futuros com a maneira de lidar com o assunto, especialmente em uma sociedade capitalista como a nossa, onde a morte é vista como uma interrupção à vida produtiva. Assim, a morte vai tornando-se tema cada vez menos mencionado. O assunto é temido e, por isso, evitado. Qualquer referência passa a ser motivo de constrangimento ou medo. E o fato é quase que inominável. Citando Rodrigues 47 (apud Jornal de Psicologia, per. cit.), Drumond fala que o preconceito com a morte vem sendo constituído no decorrer dos últimos oito séculos, principalmente a partir do Renascimento e da Revolução Industrial, quando a morte, como solenidade pública e coletiva, vai se transformando na morte privada, isolada nos CTI’s de hospitais. Mas o modo de morrer já foi bastante diferente. Pressentindo a proximidade de seu fim, uma cerimônia aberta às pessoas era presidida pelo próprio moribundo que, contando 47

JORNAL DE PSICOLOGIA. A negação da morte a preços de mercado. Ago/Dez 2001.

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com a massiva presença de amigos e parentes, pedia perdão e se despedia dos presentes, dava suas recomendações finais e expressava as suas últimas vontades. Os ritos fúnebres deveriam ser realizados com simplicidade, sem dramaticidade ou gestos de emoção excessivos. A morte era tida como parte da vida, ou melhor, era o processo de transição desta vida para outra “junto” a Deus; por isso, era vista com respeito e temor. Segundo Giorgi 48 ,a idéia de morte que possuímos atualmente é definida pela herança cultural legada pelas gerações anteriores. Ele afirma que a preocupação com os mortos foi identificada por antropólogos e arqueólogos já no homem de Neanderthal, o que revela que as interpretações referentes à morte são bastante antigas. Desde os tempos mais remotos o homem busca incessantemente a compreensão do domínio da morte, concorrendo para isso uma certa tentativa de controle mágico sobre ela, através dos ritos que visam a facilitação da integração psicológica do homem e da tentativa de evitar uma cisão abrupta entre vida e morte. Como afirma Giorgi no sítio funerariaonline:

Esse descontrole, traz à consciência do homem desta época, o temor da morte. A partir daí, uma série de conteúdos negativos começam a ser associados à morte: conteúdos perversos, macabros, bem como torturas e flagelos passam a se relacionar com a morte, provocando um total estranhamento do homem diante deste evento tão perturbador. A morte se personifica como forma do homem tentar entender com quem está lidando, e uma série de imagens artísticas se consagram como verdadeiros símbolos da morte, atravessando o tempo até os dias de hoje.

Para Morin (1997), não existe relato de praticamente nenhum grupo arcaico que abandone seus mortos ou que os abandone sem ritos. Desde a pré-história, as práticas fúnebres eram realizadas para proteger os cadáveres, bem como para evitar que retornassem ao mundo dos vivos. Segundo ele, o não abandono dos mortos implica a sobrevivência dos vivos. As diferentes visões da morte variam de acordo com as diversas concepções culturais dos inúmeros grupos sociais. As religiões, por exemplo, possuem, cada uma, uma interpretação particular acerca do fim da vida, mas, sem dúvida alguma, todas têm em comum a idéia de continuidade em relação à morte, não sendo a mesma, considerada como um fim em si. Desta forma, ambiciona-se a aproximação humana da esfera desconhecida da morte, portanto, do seu menor temor.

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GIORGI, Eduardo. Dados Históricos sobre a Morte - Parte I www.funerariaonline.com.br Edição publicada em 04/02/04. Sítio consultado em 14 de junho de 2006.

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As mudanças sociais, expressas pelos avanços tecnológicos, são cada vez mais intensas e velozes. O homem tem se tornado cada vez mais individualista, preocupando-se menos com os problemas da comunidade. Essas mudanças tem seu impacto na maneira com a qual o homem lida com a morte nos dias atuais. Até meados dos século XIX, as sepulturas ficavam em igrejas controladas por Irmandades, sendo a mais conhecida nos dias de hoje a Santa Casa de Misericórdia. Os rituais fúnebres eram praticados pelos seus sacerdotes e os custos eram diferenciados de acordo com a localização das sepulturas, onde as mais caras tinham a garantia de salvação, sendo próximas ao altar, perto dos santos e anjos. As igrejas faziam parte do centro da vida social brasileira. As igrejas eram a Casa de Deus, sob cujo teto, entre imagens de santos e anjos, deviam também se abrigar os mortos até a ressurreição prometida para os fins dos tempos (...) A igreja era uma das portas de entrada do Paraíso (...) Ali se celebravam os momentos maiores do ciclo da vida – batismo, casamento e morte. (REIS, 1991; pág. 171-2)

Os cemitérios eram administrados pelo poder público municipal, mas não possuíam nenhum destaque. Muitas vezes destinados aos sepultamentos de indigentes, criminosos, ateus e escravos pagãos. Com o florescimento do saber científico, e o desenvolvimento da medicina sanitarista, começava a condenar as inumações em igrejas e em alguns cemitérios públicos, com a justificativa de evitar enfermidades, epidemias e pestes que se acreditava poderiam ser oriundas do ar contaminado pelos cadáveres que eram enterrados nos pavimentos das igrejas e evitar o mais remoto risco de infiltração ou comunicação com as águas potáveis. Passou-se a estimular a construção de cemitérios fora do perímetro urbano como local ideal para a prática dos enterros. O aumento da expectativa de vida, proporcionado pelo avanço das tecnologias e pelas descobertas científicas, contribuiu bastante para o adiamento da morte. Segundo Drumond (2004), com o maior adiamento da morte criou-se no mundo ocidental contemporâneo uma cultura de negação da morte, onde esta não é tida como parte da vida, mas como castigo, punição ou tragédia. Numa cultura onde a morte é vista negativamente, o acontecimento da morte é temido, por isso evita-se ao máximo qualquer menção ao acontecimento. O fato é isolado e mantido na privacidade familiar. Na maior parte das vezes, sequer ocorre nos domicílios, mas nos hospitais. O corpo, que antes ficava a cargo dos amigos e familiares, fica à mercê dos profissionais do serviço funerário, longe dos “olhos não especializados”.

Com isso, 62


diminuem-se drasticamente os rituais de luto e sepultamento, com a justificativa de serem menos traumatizantes e assépticos àqueles que perderam os entes amados: Os rituais de luto estão sendo segregados às salas de velório com ar condicionado e música-ambiente, organizados de forma a tornar o contato com o morto o mais indolor possível. A sociedade de consumo tenta dar à morte uma nova embalagem, mais ascética e aceitável, procurando amenizar o impacto e reduzir os transtornos que possam acarretar. O segmento empresarial da morte, nos tempos atuais, vem se adaptando constantemente às exigências de seus clientes, tentando amenizar o pânico sobre o luto que a sociedade contemporânea adquiriu como medo coletivo (DRUMOND, 2004:27)

Apontando o totemismo como a religião em que se encontram os princípios mais elementares da vida religiosa, Durkheim (1996) afirma que os ritos não se restringem a serem expressão das crenças religiosas, mas também criam e recriam, reafirmam as representações coletivas. O autor faz uma diferenciação do que considera as principais atitudes rituais, embora afirme posteriormente que estas podem frequentemente se sobrepor e mesmo se substituírem mutuamente. Segundo ele, o conjunto de ritos denominado como negativos tem por função evitar que os domínios do sagrado e do profano entrem em contato, por isso proíbem determinadas maneiras de agir, sendo assim constituídos por interdições. No que se refere à morte, Durkheim (1996) cita como exemplo de rito negativo o resguardo do nome de um falecido no período de luto por seus parentes, especialmente pela viúva, já que considerado sagrado, o nome próprio é considerado elemento essencial da pessoa que o tem, por isso, sendo essa pessoa sagrada, seu nome assim o é, não devendo então ser pronunciado na rotina da vida profana. Durkheim (1996) afirma que essa interdição, muitas vezes perpétua à viúva e alguns parentes próximos, deve ser observada, exceto quando extremamente necessária a pronunciação do nome do defunto, ainda assim, neste caso, em voz baixa. Em algumas comunidades, esse tabu se estende inclusive a pessoas que possuem o mesmo nome, devendo trocá-lo temporariamente. Para o estudioso, a alma do morto, por exemplo, é um ser sagrado e essa propriedade é muitas vezes transmitida ao corpo que ela habitava, ao nome do morto, o local em que ele residia ou o âmbito em que foi sepultado, à esposa e aos parentes. Sendo investidos de certo caráter sagrado, devem, por isso, ser isolados, de modo que não se misturem com o que se configura como profano. Partindo para os ritos positivos, Durkheim (1996) os caracteriza como práticas que têm por finalidade a regulação e a organização, sobretudo a renovação da força social, tendendo a tomar formas periódicas. No entanto, podem se constituir ainda em ritos celebrados ocasionalmente, para enfrentar situações passageiras. Sua observação procede da expressão da força tradicional das representações coletivas. Assim, para Durkheim (1996), a determinação e 63


observância dos costumes rituais funerários revigoram, sobretudo, o grupo que compartilham a situação, os sentimentos e idéias do luto. “...a mitologia de um grupo é o conjunto das crenças comuns a esse grupo. O que exprimem as tradições cuja lembrança ela perpetua, é a maneira pela qual a sociedade concebe o homem e o mundo; trata-se de uma moral e de uma cosmologia, ao mesmo tempo que de uma história. O rito, portanto, só serve e só pode servir para manter a vitalidade dessas crenças, para impedir que elas se apaguem das memórias, ou seja, em suma, para revivificar os elementos mais essenciais da consciência coletiva.” (DURKHEIM, 1996:409)

Durkheim (1996) mostra como um mesmo rito pode ser utilizado para diferentes fins. A missa, por exemplo, redime a falta dos mortos, celebra o nascimento, o casamento e garante aos homens os favores da divindade. Mas, por outro lado, a generalidade útil que todos exercem é justamente essa reunião dos indivíduos, a comungação de sentimentos e experiências. Os ritos piaculares, assim denominados por Durkheim (1996) têm por objeto o enfrentamento de calamidades, ou simplesmente relembrá-las ou lamentá-las. O luto é apontado pelo autor como importante exemplo de rito piacular. O momento compartilhado de sofrimento do luto, por exemplo, proporciona uma “comunhão das consciências e reconforto mútuo em conseqüência dessa comunhão.” (1996:454) Segundo ele, o luto não seria uma expressão espontânea de emoções individuais, ao contrário, seria antes disso um dever imposto pelo grupo, uma atitude ritual que se deve adotar por respeito ao costume, e que muitas vezes independe do estado afetivo dos homens. Quando não cumprida, essa obrigação é sancionada por castigos míticos ou sociais. Não somente os próximos mais diretamente atingidos trazem ao encontro sua dor pessoal, como também a sociedade exerce sobre seus membros uma pressão moral para que harmonizem seus sentimentos com a situação. Permitir que eles permaneçam indiferentes ao golpe que a atinge e a diminui seria proclamar que ela não ocupa nos seus corações o lugar a que tem direito; seria negá-la. Uma família que tolera que um dos seus possa morrer ser pranteado testemunha com isso sua falta de unidade moral e de coesão: ela abdica, renuncia a existir. O indivíduo, por sua vez, quando firmemente ligado à sociedade de que faz parte, sente-se moralmente compelido a participar de suas tristezas e de suas alegrias; desinteressar-se delas seria romper os vínculos que o unem à coletividade, seria renunciar a querê-la e contradizer-se. (DURKHEIM, 1996:438)

Segundo ainda o autor, a origem do luto está na impressão que o grupo sente de estar enfraquecido após a perda de um de seus membros. Assim, o culto funerário aproxima os indivíduos e sua reunião dá uma sensação de reconforto. Essa comunhão de consciências, ainda que no momento de tristeza, eleva a vitalidade social. Para Rodrigues (1995), o que entendemos como “lixo”, “limpeza” e “higiene” não passam de pré-noções instituídas historicamente e, sendo convenções simbólicas, são

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reveladoras de um modo de vida. Ele afirma não existir um afastamento entre as questões do lixo, corpo e morte, mas ao contrário, parecem compartilhar uma mesma similaridade estrutural ou simbólica. Ambos foram “invenções” de mentalidades e sensibilidades, instituídas em determinado momento, quando da atribuição, acusação, etiquetação e localização de algo como inútil, perigoso, sujo e, portanto, evitado, passando então a exigir contra este atitudes especiais de proteção técnica ou simbólica. Rodrigues (1995) coloca a idéia de que embora toda vida social seja produtora de resíduos, nem sempre são destinados a eles os mesmo valores, atitudes e pensamentos.

O

ponto de partida para análise do autor sobre a questão cultural do lixo, considerado pelo mesmo como arbitrário, é a Idade Média, já que este seria um período em que as mentalidades e sensibilidades são aquilo contra o que a cultura industrial se definiu, quando não havia separação entre o que a sociedade capitalista encara como oposição. Nos tempos medievais não havia separação entre vivos e mortos, vida e morte, já que esta era como um sono, quando um despertar coletivo levaria à presença do Criador. As sepulturas eram geralmente coletivas e dentro das igrejas, ficando o “privilégio” das sepulturas individuais restritos aos nobres de alta estirpe, membros do alto clero e magistrados. Aos “comuns”, uma sepultura coletiva em terreno adjacente à igreja, permanecendo semi-abertas até terem sua capacidade atingida. Ainda neste período a igreja era o centro da vida social e comunitária, o que permite concluir que a presença entre sepulturas entreabertas era lugar-comum, onde realizava-se comércio, casamentos, batizados, comemorações, festas profanas, encontros amorosos, proclamações públicas, onde brincavam as crianças e se encontravam os adultos. Para Rodrigues (1995:30) “não há registros medievais de pessoas reclamando do maucheiro e da convivência inoportuna com cadáveres”. Tratava-se de um tempo em que o relacionamento corporal era bastante distinto do que conheceriam depois os tempos capitalistas, quando então o “corpo-ferramenta”, singularizado, individualizado e contido, é inventado e nos traz uma nova sensibilidade. Segundo Rodrigues (1995:12) “Na cultura industrial morrer é mais ou menos ir para o lixo”. Assim, o autor defende que o corpo medieval, indisciplinado e expansivo, constitui-se como importante referencial para entendermos esta nova sensibilidade aos cheiros e aos contatos tácteis. Para Rodrigues (1995:35): “Isso que causa nojo e temos aos nossos corpos de hoje, causava riso, familiaridade, intimidade, à sensibilidade medieval. Não se pode mesmo excluir a hipótese de que causasse prazer a convivência com o que hoje nos produz aversão.” Essa nova sensibilidade, advinda da “modernidade” teria então emergido do processo de fragmentação e autonomização de domínios vistos pela mentalidade medieval como 65


confluentes, aliado ainda a um processo de constituição de saberes específicos para cada uma dessas esferas, tais como os saberes médicos-higienistas, que culmina, por exemplo, na separação entre mundo natural e divino, público e privado. Desta forma, na cerimônia medieval do morrer a cena coletiva foi se transformando em evento isolado geralmente nos quartos de hospitais. A separação entre espírito e matéria, por exemplo, substituiu a crença na ressurreição pela idéia de corpo mortal, degradável, portanto, desejo, enquanto o espírito permanece eterno no “paraíso”. A ordem trazida pelo sistema capitalista às cidades, de modo embrionário no século XIV, mas cada vez mais intenso a partir de século XVIII, foi de segragar. É então quando hospitais, prisões e hospícios vem isolar os tipos diferenciados de vida. Paralelamente, iniciase o movimento de separação dos mortos (e do lixo), uma preocupação permanente dos higienistas e urbanistas, que agora destinam os corpos para fora do perímetro urbano. Para Rodrigues (1995), a separação de corpos é processo fundamental para o desenvolvimento da “individualidade” de um modo tal que a mera aproximação de corpos e intimidades alheios causam-nos mal-estar no interior de nossas sensibilidades individualistas. A definição de barreiras foi paulatinamente provocando a redução da suportabilidade dos odores exalados pelos outros e estabelecendo tabus. Não devemos desconsiderar que essas regras de poluição estão estreitamente ligadas à marcação de distâncias sociais entre pessoas, grupos, objetos e idéias. Assim, quanto maior a proximidade entre os indivíduos, maior o grau de suportabilidade que envolvem esses tabus. Para o autor, a sujeira é tudo aquilo rejeitado pela ordem e que ofende os sistemas de classificação. Eliminá-la pressupõe o desejo de organização. De modo geral, assim como o lixo, desejo inútil e perigoso, o corpo se constitui como algo que deve ser distanciado. A higiene é, segundo ele, e por que não consideramos também trato com os mortos, uma crença que cultivamos por fazermos parte de uma determinada sociedade, em um momento específico segundo sua trajetória histórica. E a própria História, aqui resumidamente tratada, mostra-nos o quanto a realidade de nossas representações sociais da morte já foram diversas do modo como elas se encontram na atualidade, contribuindo para isso, em grande parte, a difusão do discurso médico-social.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

É válido ressaltar que o objetivo deste trabalho não foi dirigir a atenção aos moribundos, mas sim à questão de como as pessoas lidam atualmente com a morte e com os cuidados que elas despendem com tal questão. Existe uma diferença que “salta aos olhos” no que concerne à posição dos mortos nas sociedades ocidentais em tempos mais remotos em comparação com o Ocidente contemporâneo. Os moribundos e mortos eram tratados pela própria família, contando inclusive com a participação de amigos e vizinhos. Os acontecimentos ligados à morte eram então muito mais publicizados do que nas sociedades altamente urbanizadas, onde as pessoas são encaminhadas para sanatórios e hospitais. A morte pública estava intimamente relacionada à própria configuração estrutural dos cômodos que não permitia o flagrante isolamento da vida comunitária, como o é nas sociedades industrializadas. Além disso, soma-se o fato do aparato higiênico de que dispomos atualmente. O isolamento emocional é então uma das características preeminentes dos procedimentos e atitudes em relação à morte e o conhecimento desta, bem como também das causas das doenças e do envelhecimento foram fatores que contribuíram em muito neste processo. Como nos afirma Norbert Elias (2001:96): “Morrer ficou mais informal em nossos dias”. Como busquei salientar ao longo do trabalho, a incidência do discurso médico-social, que chega com força em Fortaleza no período da Belle Époque, deu-se sobre as mais diversas esferas da vida social. Como vimos, além das práticas higienistas na transformação estrutural da cidade, o “saber civilizado e moderno” se expandiu, sobretudo, para o domínio da vida social, inclusive para o domínio da morte. Tentei avaliar e expor de que modo a chegada do discurso sanitarista influiu na elaboração de novas práticas e concepções referentes à morte, já que foi este saber/poder que determinou a extinção de costumes tradicionais como o sepultamentos no interior das igrejas, assim como instituiu a criação de espaços próprios para o destino dos mortos: os cemitérios, distantes o quanto possível do perímetro urbano. Novas maneiras de lidar com o corpo foram criadas. Práticas seculares nas quais o morto era velado por entes próximos e durante dias, são substituídas pela rapidez e pelo trabalho de profissionais especializados. A atividade científica, e dentro dela o saber médico-social, não pode ser encarada como mero espelho da realidade na qual está inserida, ao contrário deve ser vista como uma esfera dinâmica e atuante no cenário nacional.

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É nesse contexto que a morte vai adquirindo um caráter cada vez mais negativo, sendo excluída dos assuntos e da vida pública. Qualquer lembrança dela envolve medo e repugnância. Importante lembrar que não podermos atribuir às reformas sanitaristas status de único fator que concorreu para a transformação das representações de morte, mas revela-se, sem dúvida, importante elemento para a mudança. A própria institucionalização da morte, que concerne à prestação de serviços burocráticos prestados pelas funerárias, no preparo do corpo no caixão, o encaminhamento da documentação ao cartório, a comunicação com o cemitério para providenciar o sepultamento, entre outros, possibilitam variado comércio em torno da morte. Por outro lado, distanciam cada vez mais o morto de seus familiares e amigos. A rapidez das providências impera. A morte é indiretamente afastada pelo evitamento de sentimentos e práticas fúnebres, mas também pela adoção de ações consideradas cada vez mais higiênicas. A força e profundidade da influência européia trazida pelo o discurso sanitarista pode ser vislumbrada inclusive na configuração dos cemitérios que, agora em forma de parques, furtam-nos, além do contato mais “íntimo” com o corpo morto, a imagem de qualquer figura que lembre a morte, uma higiene visual. A importância dos ritos está implicada na tentativa de reordenamento social. Quando suprimidos, os ritos diminuem também a capacidade do homem de lidar com a própria finitude e terminalidade em todas as suas dimensões, tornando-nos capazes de lidar com o tão doloroso processo da morte e do morrer. Minha humilde proposta é que este trabalho venha contribuir para que compreendamos o complexo processo sofrido para que nossos sistemas de pensamentos, sentimentos e atitudes ligados à morte tenham se modificado tanto, de modo que hoje reajamos com horror contra o que nossa sensibilidade um dia considerou familiar. Espero contribuir também para negar a idéia de que nossas formas de encarar a morte e o morrer se apresentem como verdades absolutas. Ao contrário, almejo reforçar a idéia de que como todo fenômeno social, os costumes mortuários são regidos pela dinâmica histórica, como bem mostrou este pretensioso trabalho que nossa própria tradição já foi bem diversa do que ela é hoje apresentada. De conseqüências inestimáveis para o estudo das mentalidades e sensibilidades referentes à questão cultural da morte no período da Belle Époque, a difusão do discurso sanitarista se mostra também fundamental para a compreensão dos nossos modos higiênicos contemporâneos de pensar e sentir.

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ANEXOS A influência européia, sobretudo francesa, sobre a capital cearense. A notável influência européia, sobretudo francesa, sobre a arquitetura e os costumes de Fortaleza.

Foto 01 - Mansão 49 de Alfredo Salgado, a Itapuca Villa, na Rua Guilherme Rocha. Todos os materiais vieram do exterior, inclusive as madeiras. Periodicamente viajava à Europa para contratar novos jardineiros.

Foto 02 - Prédio da Escola Normal 50 , cópia de um colégio da Suíça.

49 50

Foto extraída de LOPES (1989:56) Foto extraída de LOPES (1989:84)

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Foto 03 - A Casa Plácido 51 , que vendia os mais variados produtos vindos da Europa. De propriedade do comerciante milionário Plácido de Carvalho, localizava-se na Rua Major Facundo, ao lado do Excelsior.

Foto 04 - O cine Moderno 52 . Sua sala-de-espera era um monumento “Art-Nouveau”, em madeiras lavradas e entalhadas, espelhos “bisotés” e sofás de couro negro.

51 52

Foto extraída de LOPES (1989:112) Foto extraída de LOPES (1989:140)

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Foto 05 - A Rua Major Facundo 53 , no quarteirão entre as ruas Guilherme Rocha e São Paulo, cheia de toques europeus nas nobres construções.

Foto 06 - O Palácio Plácido 54 , de Plácido de Carvalho, na Aldeota, antigo Outeiro.

53 54

Foto extraída de LOPES (1989:164) Foto extraída de LOPES (1989:214)

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Figura extraída de PONTE (2001:26). O traçado retilíneo das ruas, favorecendo a melhor circulação do ar e possibilitando também um maior controle e ordenamento da cidade.

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Frente do panfleto do Jardim Metropolitano. O método de cremação é visto como uma “opção ecológica, sanitária e inteligente”.

Verso do panfleto do cemitério Jardim Metropolitano, onde o atrativo explorado é a paz e a associação com o Paraíso.

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BIBLIOGRAFIA

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