a relva dita a cor das nuvens

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jeferson bandeira

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1 a edição - 2011

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copyright c jeferson bandeira, 2011

projeto gráfico e capa: samir mesquita contato: jeferson - bandeira @ hotmail.com

Bandeira, Jeferson. A relva dita a cor das nuvens: poemas e prosas poéticas Jeferson Bandeira - Curitiba: J. Bandeira, 2011. 70 p. ; 10,5x17 cm. 1.

Literatura brasileira - Paraná. I. Título.

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CDD (22 a Ed.) B869.15

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prefácio apesar de agora estarmos em uma relva, este livro de jeferson bandeira tem gosto de fruta madura, onde cada poema traduz esse amadurecimento do poeta em versos carregados de percepções, a vida matou meu olhar de menino, repletos de memória, aquele terreiro salpicado

de bolinhas foi o primeiro céu de estrelas que vi, sempre envoltos pela imprecisão do tempo, o dia se estende como rede de corais. apesar disso, sua visão de mundo é sempre pontual, o tempo aprende a esperar. mesmo quando o assunto é amor, quem aprendeu a amar prendeu-se à guerra, o que realmente importa é sentir o pulsar das palavras. ler é um ato solene, uma espécie de pseudo-morte, uma suspensão dos sentidos em busca de seu mais alto grau de intui-ção, e é o que o autor propõe. o atemporal sempre flertando com o tempo, tiquetaqueando a nostalgia com o intuito de aprisionar em versos o que há de mais precioso, puro, quando criança tinha cada

estrela como lampião, quando criança... era feliz, o mistério repousava sobre minhas pálpebras. de monósticos à releitura de um poema, de haicais à prosa poética, o livro transita através

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das estações do ano, o olhar do poeta é um flash captador de instantes únicos, foge o que

era presença, assenta-se o que é distância, a beleza está unicamente no olhar. onde reside essa beleza? no poeta, no poema ou no leitor? não há como separar. isso nos remete ao Sutra dos Mistérios Magníficos, é como a lua

e o brilho da lua, do princípio ao fim, ambos são indissociáveis. a faísca poética reside nos elementos quando se completam como um só. a poesia não nasce para ser explicada, mas para ser sentida, para estremecer o que há de mais puro em nós, este interior que nunca se decodifica, o nosso não-pensar, ou seja, é a relva quem dita a cor das nuvens em uma atmosfera povoada de poemas, os poemas de jeferson bandeira.

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alvaro posselt

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primavera é com satisfação que te abro para a vida, pequeno botão germinado e aquecido na semente, estrela que aos poucos incandesce. não desprezes a chance de respirar o novo, não temais as mãos indelicadas e os olhos insensíveis. basta buscar-te em seiva, quando pensar em podar-te prematuramente. pois vejo que o sol vem despontando, esse sol. passada a história de uma infância, será verão.

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“uma gota apenas curvou-se em arco-íris: fez-se primavera”

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voa quanto der: tuas asas, imagino, bumerangue s達o.

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um dedo de sol afastou minha cortina: aura que surgia.

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a febre noturna s贸 me fez olhar a tempo teu riso na lua.

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aquele terreiro salpicado de bolinhas foi o primeiro cĂŠu de estrelas que vi.

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no branco papel (dez)rebanhadas estrelas conduzem ao cĂŠu.

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pingos na vidraça. todo céu se deita em pranto: minha vista embaça.

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fera indomada sacode o poema. por que temê-la? erro, seria domá-la. deixem-na tecer, confluir a fala, varar o peito. vento só é, se solto. poesia é qualquer momento: (carga de infância) invento.

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tudo tinha sido escrito, mas veio tal vento... redecorou o infinito.

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meus dedos em prece, s贸 que a linha do desejo m茫os frias destecem.

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quando estrelas tomam as harpas, é lua em palco sobre límpido lago. atraem-se alternados passos a riscar: inusitado ondear de lábios.

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o sertanejo teima no cigarro de palha: sutil agonia de um vaga-lume ao luar.

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bem antes da escola, lembra a mãe ter falado da floresta de palavras. dizia-se uma mata fechada: coisas ainda exóticas. balbuciava, talvez sussurrasse um trato, uma cumplicidade: jogo entre palavras. e como um desenho de rios insinuava palavras, como chaves que levavam a outras palavras. fechada a lição, ia dormir e volta e meia se debruçava sobre densos jardins seduzindo quem os adentrava. como um altivo caçador de borboletas se imaginava: de redinha e tudo. no mundo dos seus sonhos, ou melhor, mundo das palavras, caçava letras. se palavreava no palavrão da floresta.

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naquelas pipas alçadas, em tardes de pura farra de viver, um lume novo rasgava nuvens soltas pelo hálito ressecado de quem deixou de se perceber como ser, um alguém, uma identidade. uma (in)certa leveza se precipitava frente ao precipício de contrariedades. a dedo eram escolhidos os bambus e quem se despisse das privações de um olhar tão saturado por essas fraudes procriadas [extensivamente notaria o fantástico da realidade, a realidade fantástica. não eram apenas bambus, um simples papel de seda. sim, algo mais palpável que entrava pelos olhos, transitava pelos poros. aquelas pipas eram verdadeiros pássaros escapulidos da cartola inocência.

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assentados sobre muros, aqueles pássaros. bandos alternados, inocentes postados em linha. se havia um líder, não sei. um canto abafado de bom dia... perdia-se além. pousados nos muros, me fitavam: pobres olhares admirados. não sei o porquê, aqueles pássaros, mesmo desintencionados, tiravam a magia das estórias contadas por minha mãe.

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pingou-se uma gota negra na alva geleira. como aquilo soasse bem, encheu-se a tela num vai e vem. da gota primeira perdeu-se o rumo. o véu da noite invejou-se do feito na terra e para evitar futuras guerras fez-se um combinado: como o céu era escuro, os pinguins estrelados se refletiram brancos. é assim até hoje: de dia os vemos de costas, à noite estufam o peito. por isso a razão do branco e preto. enquanto achamos que eles dormem... velam nosso leito.

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meu pai entornava uns tragos, foi embora. minha mãe era secretária - eu, com vergonha. irmão, eu não tinha. “Deus sabe o que faz”. sozinho, menino, andando na 9 de julho, via a história de joana (“uma menina, mais ou menos, da minha idade ia de carro em carro entregando um bilhetinho”) comprida história que talvez não acabe mais. no meio-dia branco de luz uma voz tentava me animar, era minha imaginação dando-me tudo o que a vida não quer. sonho lindo que nem camila, sonho gostoso, sonho bom. depois do expediente, claro, a mãe ficava sentada costurando (metáfora para quem devia criar uma composição). não reclamava, ao contrário de mim. lá longe meu pai talvez medicasse, tratando dos dentes de possíveis pacientes de muita renda. e eu aqui, invejando a vida de charles augusto (que até nome de príncipe já tinha). dizendo tudo isso sem saber que a minha história era mais bonita que a de joana.

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verão chegaste ao verão cheia de sonhos, e trazendo contigo o calor de ainda semente. agora, desabrochada flor, olhos sedentos se debruçam sobre o viço de tua seiva fina, viva, pulsante. é chegada a hora das escolhas, dos tropeços, da gama de utopias, do rosário de certezas. aproveita, como carpe diem, que se aproxima o filme estreando na despedida, despedida desse sol. lusco-fusco em ascensão, é outono.

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“a janela contorneia quadro vivo cometa aflito:

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suspiro”

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se em veludo verso hรก nos olhos fria pedra: desejo em sangrar.

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do poema a busca: noite escura. persegue, some, soma lutas. tenta encurralar: normas impuras. dilema sacro-erótico, encana, surta. jogo lúdico-nevrálgico, destranca, avulta. poema em contra, chama pura. dilema que encanta, enquanto amarga e (lou)cura.

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escorre a calma do sentimento, enquanto lábios buscam o beijo: o resto é segredo indecifrável.

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ardem poros, nuvens chilenas. espigas, lagos, frutos exóticos. beijo de janela calentado em falso sol, metade demarcada friamente em dó. que não pode um ser, lá além do amor, costurar cortinas pluviais, alpendres [desérticos. aquoso na equação dissolvida em esperas, golondrina alvejada em fulgor: rasante mortal.

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captura-se quando é primavera. ao riscar estrelas em pólen, inflama-se como anéis de saturno. supera-se num breve sorriso puro, tocando ao ser tocada, como a cítara impecavelmente afinada das cigarras. navegando manhãs de relva intocada, arranhando o dia com mãos de fada.

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seria entre a areia um ser de seiva. sedentos tentรกculos, vias serenas. de areia um ser sereia seria um bote na veia ser de areia. sereia e meia lua entre estrelas sereneia sobre frรกgil teia.

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ela quer que deixe de moda e case. mas a moda é deixá-la na saudade.

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meu grito vira gato, vai pelos telhados roçando sua ausência. a lua, em todo seu esplendor de brancura, se apaga ao tocar a geada polvilhando [os olhos. viro gelo seco ao toque das estrelas, perfume de alfazema indo de encontro, evaporo entres as rosas murchas. viro sapo e inflo o peito, um efeito sonoro sai meio sem jeito, rebate na lua, dá na estrada insegura. e toda a arquitetura traz evidências de que a rota escura é única clareza.

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em jasmins o delírio pede pouso. respira outra essência. sabe da fragilidade do olhar. quando se desata do concreto, algo muda como um todo. diálogo novo sobre a ríspida mudez desenrola linha. traduz-se entre pétalas e cílios: carnosa sintonia. um fogo novo transforma em cristais o pasmo abrigado nas retinas. em jardins de lírios tudo se recria.

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por detrás da lua, sinto a procura abdicar o tom de lúcida. subornar nuvens, captar reminiscências de loucura, desterrar castelos de algodão e seda crua. por detrás da lua, fantasia de sol em noite obscura. deitando drinques, alicerçando fraturas no cristal colírio de novas descomposturas. entre o efêmero e o ébrio, quem sabe uma noite mal-dormida. um dia amargo sem partida a recordar.

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falso amor curado a lรกgrimas (e)terno escravo de banhosmaria.

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falta amor falta calor falta a própria falta. desejos sem preliminares, rabiscados pelo próprio hálito são levados. falta dor falta frio falta a própria falta de sentir vazio. beijos vêm rotulados, ausente dono, comem poeira assentada. falta olhar para as coisas e contê-las risadas.

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foi em noites lilases de conchas e algas flutuando em mares ecos de sereias e de harpas em sinfonia de nuvens [cordas soltas que te disse: espera-me. ainda eu tinha um pouso, indeterminada insônia, era natural que minhas setas já tivessem alvejado o lóbulo de corações [inexperientes em mares. e fui, como astuto marinheiro, arrastando as plagas de territórios beijos vaporizados, carícias mínimas. eis que o grande lobo do mar rugiu [no peito-mor. hoje apenas me resta dizer: esqueça-me. o feitiço jogou as velas contra o rochedo.

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trepidam os trilhos em sentido inverso, não há sol, por ou porto. as malas se colocam alinhadas, a mão vacila, o olhar se projeta: um filme estreia na despedida.

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outono de nada adianta orvalhar-te, já quase extinta flor. as indagações só aceleram o processo. foste o que te possibilitaram teus anseios reprimidos ou não - e o curso do rio por onde a vida foi levada. o viço que era exuberante internamente, agora vai descolorindo na ponta das pétalas. mas tudo valeu, não foste cristal jamais usado. conservaste lembranças, mesmo que pouco as recorde. e esse arrefecimento, assim em dispersos acordes, anuncia-se inverno.

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“ao sabor da brisa céptica, lambo as feridas, cicatrizo imperfeitos”

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desรกguam meus olhos: rio que nรฃo quer calar perdido em cรณrregos.

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caducaram o fruto, a mão e o olhar. o fruto se julgava altivo; a mão, livre; o olhar, pleno. mas no princípio era o adjetivo: efêmero. tudo estava escrito no barro que prendeu o mosquito. depois o fóssil acobertou o verbo. o envelhecer fugiu de mansinho, carregava um embrulho: relógio. naquele tempo ainda biológico.

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é tarde, eu sinto, o pulso das nuvens descora, a cartilagem do adeus enrijece. não tinha como, contas de desejo espalhadas, claridade obscura nas gavetas [do presente. (uma religião desfeita entre as mãos) foi arder quando o inverso se fez carne de amante primaveril, trajetória de projéteis dispersos no olhar. o trem alertou o ausente, os galhos se camuflaram entre os pingos, a chama da hora cuspiu os excessos. é tarde eu sinto o tamboril de um canto fúnebre ritmado nos nervos de cada verso.

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sorriso pálido entre folhas cariadas. beija-flores em mutirão socorrem o sonho. cactos capturam lágrimas pela adaga [do destino evocadas. (ferrugem) presente contrabandeado caduca, [em flagrante autuado. a natureza tenta absolvição, o coração delata recorrência no ato. sem outra escolha, o corpo lastima: [espinhos, cacos. (ferrugem) engrenagens de suas forças, para espanto, travam simultaneamente. a esperança é detida, os desejos [recusam defesa. incapaz do extraordinário, vai ao chão

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[colossal prisioneiro.

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pouco amor ainda resta no copo. feito de amor pouco resta ainda. poucas sílabas os olhos serenos. sereno da vida o outono aprimora. pouca cinza para tanta lágrima: aurora fria. copo e corpo contemplam o mármore. pouco frio, algum resquício. pouca ilusão ainda resta no corpo. copo cheio de rancor e pouca vida. formas híbridas os focos de argila. terreno da partida, assombro se vangloria. pouca pressa para tanta agonia: demora insípida.

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por que querer da lua um rosto, um aroma, uma identidade? fazem juras eternas, empunham sentimentos etéreos, e para quê? quem cobrou o quê? é apenas alguém [que se afoba, come segundos com tamanho ímpeto. na desordem dos sonhos, caça escritos em papel carbono para estampar um amor, mais puro suborno, entre almas ausentes de adorno. no branco da lua não há o que vê - nem se vê nada é apenas uma ilusão sequer escapulida [do casulo.

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no cavalo da vida aventurar-se. rasgar rios; descortinar horizontes. pedir um copo de insônia quando do momento decisivo. este lombo projetado, carrega o peso que lhe cabe. colecione seus pobres amores, impossibilidades tidas como indiferenças do destino amor. cavalgue; arranhe a relva: flores cultivou a provar a falta de zelo. ao notar a palidez nas veias do animal, assente ao chão como fibrosa folha [ressecada. a terra sempre sabe acolher.

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desvirtue o pretexto, aspereza de ausência, fenda na riqueza, plenos olhos imaturos. olhe no espelho, se convença, todo gesto sutil é pouca luz contida na cripta do passageiro. não! seu gosto, se pronto não evapora, estampa no ar reminiscências. - deleite labial entorpecente ilude tato, amanhece cinza. segue-se carência, espaço

ralo

ínfima

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nostalgia.

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sobre rústico caixão chora a gaita do velho: colono desconsolado.

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só queria aquecê-la naquela noite, confortá-la, aquela noite, mas ela preferiu beijar a minha fronte, descer até meus pés e arrastar-me até o nada daquela ponte.

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a fala da flor, um tanto cortada, suprime assim possa expressar o todo. evita-se excesso, tempo pouco, rói-se o osso, hospeda despedida. pétalas sílabas desabrocham ilícitas, abrem-se em mistério, quebram expectativas. o vocábulo da flor poda conquistas, pega ao avesso, desliza pela vista. porto de espera, confluência marítima, em silêncio tanto mais comunica.

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teve medo de arriscar. seu corpo ficou intacto, preservado. Ê como um cristal, jamais usado, que se guarda com tanto carinho. belo nos seus tantos anos, mas vazio de lembranças.

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inverno o que sobrou de ti, desabrochada flor? para onde foi teu perfume? a terra guardou tua memรณria. outra semente gesta os poros dessa fina camada desprendida na hora do adeus. chegou o tempo de costurar as fendas, a relva comeรงa a desgelar. hรก um novo aroma no ar, uma nova tentativa de descobertas. abre o peito para capturar borboletas; e que a relva ditea cor das nuvens. venha, primavera, abraรงo-te.

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“mas sempre pensamos que sentimos o que há de mais”

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quando for embora, n茫o feche a porta, que 茅 para ver se as mem贸rias optam por manterem-se vivas ou ins贸litas.

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passada a chuva, a relva dita a cor das nuvens.

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vasculhei as cinzas, significados em brasa ainda delatavam resquícios de carícia. da fricção: renascido fogo, ardidos olhos; lágrimas alcoólicas, ilícitas. combustão ao revés, ferida a latejar. abriu-se a cicatriz: emanava ausência.

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como pesa. estrada esburacada, ranger de rodas: carro de boi, charrua em marcha. o tempo aprende a esperar. fruta matura, canto ecoa. a neblina baila, a fumaça se arrasta. e olhos...descansam: frenética máquina.

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tão crua condena olhos enamorados, inábeis, cobertos por camadas herdadas em dias de completo degredo, distante como nunca pensado do instinto primeiro. abre meus olhos para além lua, edifica com seus lábios sílabas sussurradas em plantas da noite submersas na química do luar. é assim grande, quanto menor aparenta ser. é suave, impactante, quando contém o impulso de derramar-se em relva úmida. é solta nos olhos penetrantes. é nua como jamais alguém foi.

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quando venta fininho, olhos dela se espalham: colibris sem ninho. seta, em memória a mãos que já descoram, inventa história. quando venta fininho, desejos se embaralham: canibal marinho. seta, sem piedade, aos “nãos” que já devoram, traz liberdade.

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no conta-gotas da minha alma baixou a calma atĂŠ a pon ta .

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palavras líquidas, condutoras de luz fria: gélida matéria gris. da boca de amantes escorrem cabisbaixas em ações descabidas. entre árvores fragmentam folhas, ferem troncos. perigosas balas cíclicas, reviram bocas, retorcem sonhos. como líquido esfarelam aos olhos, descentralizam carícias.

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na matéria gasosa minha voz re-pousa. luzes investigam a rosa. na relva o orvalho se interroga. a cada pingo da manhã uma canção voa. a cada raio da manhã uma borboleta soa. toda uma atmosfera em ritmo e prosa. toda uma vida avante na proa. desconhece-se o feito do tempo que nos interroga.

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morre em mim teu silêncio, embrutece o que era lapidado. foge o que era presença, assenta-se o que é distância. nostalgia, palavra intervalar, separa, através de vales, meus sonhos de meus desejos, meus lábios de tua pele inteira. morre no nada meu pedido, escurece o que era límpido. escorre o que é amor em esperas infindas.

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não acuse o desmando do desejo. a flor se abre em beijo. o sol, enciumado com o ensejo, manda chuva a espantar o pássaro. amar é uma dor impaciente, seja da falta, medo da perda. quando se cai na teia do amor, o alimento é como o próprio definhar. quanto mais se prende, mais se encerra. quem aprendeu a amar prendeu-se à guerra.

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beija-flor ousado, ressentido ao cravar-se no infinito a rosa lhe fitou, olhar das últimas: - doce beija-flor, que perdure, desmaterializou-se a afinidade entre nós. a flor feneceu ao toque do bico em riste: herói triste arrependido. na tarde de outono ... lágrimas do pássaro, a terra resignou-se.

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ficar é romper desejos. se álcool de mágoas restar, garoar ressentimentos. contra o destino ser a penas um vento retido nas retinas.

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não fuja da noite anseio sufocante. o dia se estende como rede de corais. nada além disso. nada. é preciso ser forte para recolher a rede. o anúncio de escassez não vem de hoje. não é prematuro. prematura é nossa vida calibrada pelo intransponível. mas é preciso ser forte. e nos sabemos fracos. é preciso de muito. somos pouco. nossa luz nos olhos não ajuda nas trevas. nossa luz pirateada. contrabando. e como por tudo um dia se paga, apaga-se a chama. nos apagamos. mediante a que propinas queremos anistia? nosso ouro é de tolo. somos desprovidos do que possa agradar. não fuja da noite anseio sufocante. como perduraria tão assim avesso às leis do mar?

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sentados no meio-fio da vida, não observam o rio de fatos. num olhar cúmplice, estreitam-se mais, apenas isso. nada de riscar na poeira assentada os sonhos rarefeitos. a beleza está unicamente no olhar. o casal de pombos não entende de futuros e destinos.

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deve brindar o crepúsculo. arrastar um arco-íris. furtar a fragilidade das nuvens. levantar cores para delinear nossos anseios volúveis, nossas certezas cúmplices. a volatilidade do vinho não ultrapassa nosso costume de parecermos inteiros, verdadeiros heróis gregos na mística do longevo. deve brindar o crepúsculo com as estrelas das oito, entre os véus do efêmero colecionar doces desesperos. no esvoaçar das horas, trancafiar promessas alheias. abrir o peito para capturar borboletas.

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