Enquadramento #19: Lina Wertmuller

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LINA WERTMÜLLER


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LINA WERTMÜLLER


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Primeira mulher de sempre a ser nomeada para o Oscar de Melhor Realização, com a comédia dramática Pasqualino das Sete Beldades (1975), e primeira mulher de sempre a ser nomeada para a Palma de Ouro, com Ferido na Honra (1972), Lina Wertmüller é hoje um nome praticamente desconhecido para a maioria dos cinéfilos. Esta publicação pretende dar a conhecer um pouco da carreira da cineasta italiana e servir de mote para descobrir o seu universo cinematográfico.

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Em 2019, a Academia norte-americana atribuiu um dos seus Oscar honorários desse ano a Arcangela Felice Assunta Wertmüller von Elgg Spanol von Braucich (nascida em 1928, em Roma), cineasta italiana de ascendência suíça mais conhecida no mundo do cinema como Lina Wertmüller, a segunda mulher de sempre, depois de Agnès Varda (2017), a receber um Oscar honorário da academia norte-americana. Quatro décadas antes, Wertmüller ficara já na história do cinema como a primeira mulher de sempre a ser nomeada para o Oscar de Melhor Realização, com a comédia dramática Pasqualino Settebellezze (Pasqualino das Sete Beldades, 1975). Perderia o Oscar para John G. Avildsen (Rocky), mas teria de esperar até 1994 para que o seu feito fosse igualado pela neo-zelandesa Jane Campion, nomeada para Melhor Realizadora com The Piano (O Piano, 1993). Em 1972, já tinha sido a primeira mulher de sempre a ser nomeada para a Palma de Ouro, com Mimì metallurgico ferito nell’onore (Ferido na Honra, 1972), nomeação repetida no ano seguinte com Film d’amore e d’anarchia, ovvero ‘stamattina alle 10 in via dei Fiori nella nota casa di tolleranza...’ (Filme de Amor e Anarquia, 1973). Também foi, sob o pseudónimo Nathan Witch, a única mulher a realizar um western spaghetti: Il mio corpo per un poker (1968), protagonizado pela atriz italiana Elsa Martinelli no papel de Belle Starr, uma implacável jogadora de cartas e exímia pistoleira num Oeste dominado por homens. Também co-assinou o argumento, sob o pseudónimo George Brown. Outro curioso recorde que ostenta é o de título de filme mais longo de sempre: Un fatto di sangue nel comune di Siculiana fra due uomini per causa di una vedova. Si sospettano moventi politici. Amore-Morte-Shimmy. Lugano belle. Tarantelle. Tarallucci e vino (1978), que em Portugal seria resumido apenas para Pacto de Sangue. 5


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“Ele é a encarnação perfeita dos personagens subproletários, rudes, violentos, ineptos, mas magnéticos e fundamentalmente amáveis das comédias políticas e sociais de Wertmüller, que transformam a sobrevivência numa forma de arte”, como escreveria Luciana d’Arcangeli, professora de Estudos Italianos na Flinders University (Austrália).

Protegida de Federico Fellini, que conhecera através de uma amiga de infância (Flora Carabella, casada em 1961 com Marcello Mastroianni), Wertmüller foi assistente de realização em 8 ½ (1963), e também reconheceu a influência do mestre no seu filme de estreia, I basilischi (Os Inativos, 1963), um mordaz retrato de três jovens rapazes numa pequena cidade do sul de Itália, que lhe valeria o prémio de Melhor Realizadora no Festival de Locarno desse ano. Alguns críticos defendem que Os Inativos seria uma cópia de I Vitelloni (1953), de Fellini.

A primeira colaboração entre ambos data de 1966, quando Giannini protagonizou Rita no colégio, estendendo-se até 1978, com Pacto de Sangue, totalizando oito longas-metragens. Apesar de ter trabalhado com Edward Dmytryck (A Batalha de Anzio, 1968), Stanley Kramer (The Secret of Santa Vittoria, 1969), Ettore Scola (Ciúme, ciúmes e ciumentos, 1970), Valerio Zurlini (La prima notte di quiete, 1972), Dino Risi (Sexo Louco, 1973), Luchino Visconti (L’innocente, 1976), Mario Monicelli (Viaggio con Anita, 1979) ou Rainer Werner Fassbinder (Lili Marleen, 1981), a carreira de Giannini ficaria para sempre associada ao universo cinematográfico de Lina Wertmüller.

Outro autor com quem colaborou foi Franco Zeffirelli, com quem escreveu o argumento de Fratello sole, sorella luna/São Francisco de Assis (1972), uma dramatização de episódios da vida de Francesco de Bernardone, as suas visões, a relação com o Papa Inocêncio III e a sua amizade com Clara de Assis. O actor Giancarlo Giannini – uma espécie de alter-ego – foi uma das presenças mais emblemáticas nos seus filmes:

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Giancarlo Giannini, Franco Zeffirelli, Dominique Boschero e Lina Wertmüller

Lina Wertmüller e Federico Fellini




Ferido na Honra

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(1972)

Grace Russo Bullaro, professora no Lehman College The City University of New York, escreveu o livro Man in Disorder (2007) sobre estas quatro longas-metragens produzidas durante os anos 70, as mesmas que lhe valeram enorme popularidade na cena cinematográfica mundial. A par dessa popularidade, essa tetralogia de filmes em particular também criou enorme polémica, com acessos debates e impiedosos ataques por parte da crítica, particularmente a italiana. O livro de Bullaro estuda sobretudo a recepção crítica desses filmes, procurando contextualizá-la também com a afirmação dos estudos feministas.

Mimi (Giancarlo Giannini) é um trabalhador siciliano que, farto do sistema político dominado por caciques locais ligados à máfia, vota no Partido Comunista. Por causa disso, é despedido e não consegue encontrar emprego na sua cidade natal como represália por ter votado contra o candidato da máfia. Decide deixar a mulher e rumar a Turim, no norte de Itália, onde consegue um emprego ilegal na construção civil. Através de uma mentira, torna-se um protegido da máfia e acaba por conseguir um bom emprego. Envolve-se com o Partido Comunista e apaixona-se por Fiore (Mariangela Melato), com quem se casa e tem um filho. A mando da máfia, regressa à Sicília, mas tenta esconder as suas famílias uma da outra. Como não consegue cumprir todos os deveres conjugais, corre o rumor de que Mimi será homossexual, e a sua primeira mulher acaba por engravidar de um vizinho, Amilcare (Gianfranco Barra). Para recuperar a sua honra, Mimi viola a mulher de Amilcare, a quem convence que a melhor vingança para afrontar o marido seria engravidar dele. Quando descobre, Amilcare tentar matar Mimi, mas acaba assassinado pela máfia. Mimi acaba condenado pelo crime. Quando sai da cadeia, será recompensado pela máfia, abandonando os seus ideais comunistas e acaba abandonado por Fiore.

Se, por um lado, Paul Zimmerman, crítico da Newsweek, e Peter Biskind, na revista Film Quarterly, aplaudiam a “realizadora mais excitante do contexto internacional”, por outro, Pauline Kael, a célebre e influente crítica de cinema do The New Yorker, acusou Wertmüller de ser “misógina” e “misantropa”. São este tipo de opiniões que tornam a obra desta cineasta italiana tão interessante e estimulante, justificando uma incursão pelos filmes que sugerimos de seguida.

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Ambientado na Itália dominada pelo fascismo na década de 1930, Filme de Amor e Anarquia apresenta Antonio Soffiantini (Giancarlo Giannini), um agricultor idealista da Lombadia que se vê envolvido num movimento clandestino antifascista cuja primeira tarefa seria tentar assassinar o ditador Benito Mussolini. Para isso, Antonio ruma para Roma, onde fixa residência num bordel dirigido por Madame Aida (Pina Cei), onde trabalham as prostitutas Tripolina (Lina Polito), com quem se envolve num apaixonado romance, e Salomé (Mariangela Melato), outra conspiradora antifascista que é amante de Giacinto Spatoletti (Eros Pagni), chefe da segurança de Mussolini, e que será um elemento fundamental na conspiração. No dia planeado para o atentado, por amor, Tripolina não acorda Antonio, frustrando a tentativa de assassinato ao líder fascista. Ao acordar, Antonio sente-se enganado e, transtornado, sai de casa a disparar contra a polícia, pelo que acaba preso, torturado e morto na prisão. 12


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Num elegante iate que cruza a costa da Sardenha, Raffaella Pavone Lanzetti (Mariangela Melato), uma capitalista rica, diverte-se atormentando a vida de Gennarino Carunchio (Giancarlo Giannini), um siciliano comunista que trabalha na embarcação. Quando os dois ficam presos numa ilha deserta, os papéis invertem-se e Raffaella, para assegurar a sua sobrevivência, fica totalmente submissa e dependente dos caprichos de Gennarino. Quando são salvos e regressam à civilização, as posições sociais são restabelecidas e o romance termina. Em 2002, Guy Ritchie realizaria Swept Away (Ao Sabor das Ondas), um remake protagonizado por Madonna e Adriano Giannini, filho de Giancarlo Giannini. Wertmüller só aceitou ceder os direitos com a expectativa de que o sucesso comercial do filme lhe possibilitasse fazer uma sequela do original. Mas o resultado não foi, de todo, o esperado: a italiana detestou o remake, declarando: “Eu não entendo por que razão o filme é tão horrível. Por que razão Madonna e o seu marido o estrearam? É muito louco. Eles viram o filme. Então, por que estreá-lo assim? Eu não entendo. Eles perderam dinheiro. Para Madonna, é o nome e o rosto. Isso é terrível para ela.” O filme seria um fiasco comercial, sem estreia comercial em diversos países (incluindo o Reino Unido, país natal de Ritchie). Sem surpresa, o filme arrecadou 5 das 7 nomeações para os prémios Razzie de 2003, incluindo Pior Filme, Pior Realizador (Guy Ritchie) e Pior Atriz (Madonna). Nos anos seguintes, arrecadaria ainda o Razzie para Pior Drama dos primeiros 25 anos da Fundação Razzie (2005) e para Pior Imagem da Década (2010). 14


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Filme “Jeanne Dielman”, 1991


Pasqualino Frafuso (Giancarlo Giannini) é um pequeno vigarista de Nápoles que vive de explorar e intimidar as suas sete feias irmãs e uma mãe viúva, enquanto afirma proteger a honra delas a qualquer custo. Pasqualino é condenado por assassinar acidentalmente o amante de uma das suas sete irmãs, que a tornou prostituta e envergonhou a família. Com a ajuda de um advogado, faz-se passar por louco e consegue ser transferido para ala psiquiátrica, onde acaba por violar uma paciente. Para sair da prisão, acaba por se alistar no exército italiano para combater na Segunda Guerra Mundial. Enviado para a frente russa, acaba por desertar do exército italiano, mas é capturado pelos alemães e enviado para um campo de concentração, onde tentará seduzir a sádica e obesa diretora do campo (Shirley Stoler). Pasqualino torna-se kapo do campo e acaba por executar o seu melhor amigo. 16


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“Adoro poesia grotesca e acho que meus filmes têm esse estilo, que combina humor e drama, ironia e cinismo, comédia e tragédia. Isso permite brincar com diferentes tons e ritmos narrativos. É mais do que um estilo – a narrativa grotesca reflete minha própria personalidade.”

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come un brigante da strada (1983) e para o prestigiado Leão de Ouro em Veneza, com In una notte di chiaro di luna (1989). Foi começando a realizar diversos trabalhos para televisão, e o seu último trabalho para cinema, aos 86 anos, seria Peperoni ripieni e pesci in faccia (2014), com Sophia Loren e F. Murray Abraham no elenco.

No auge de seu sucesso, Wertmüller assinou um contrato com a Warner Bros. para fazer quatro longas-metragens. O primeiro projeto seria The End of the World in Our Usual Bed in a Night Full of Rain, um drama sobre a relação conjugal entre um jornalista italiano (Giannini) e uma fotógrafa norte-americana (Candice Bergen). No entanto, o facto da realizadora não falar inglês terá sido determinante para o fracasso do filme. Logo depois, o contrato foi cancelado.

Em 2015, Valerio Ruiz realizou Dietro gli occhiali Bianchi (Behind the White Glasses), um documentário ainda inédito em Portugal sobre a vida e obra da realizadora italiana. Com depoimentos de Giancarlo Giannini, Martin Scorsese, Sophia Loren, Harvey Keitel, Rutger Hauer e Nastassja Kinski, entre outros, este documentário mostra o percurso polémico da irreverente realizadora, destacando sobretudo os anos 70, período em que ela recebeu muita atenção mediática.

De volta à Europa, e à Itália natal, a cineasta prosseguiria a sua carreira, mas sem a atenção mediática de outros tempos. Ainda aim, em 1986, venceria o Prémio Interfilm (Otto Dibelius Film Award) em Berlim com Un complicato intrigo di donne, vicoli e delitti (1985). Estaria ainda nomeada para o prémio máximo do Fetival de Mocovo, com Scherzo del destino in agguato dietro l’angolo

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I basilischi/ Os Inactivos (1963) Il giornalino di Gian Burrasca (1964-65; série para televisão) Questa volta parliamo di uomini (1965) Rita la zanzara/ Rita no colégio (1966; sob pseudónimo George H. Brown) Non stuzzicate la zanzara/ Não Provoquem a Rita (1967) Il mio corpo per un poker (1968; sob pseudónimo Nathan Wich) Mimì metallurgico ferito nell’onore/ Ferido na honra (1972) Film d’amore e d’anarchia, ovvero ‘stamattina alle 10 in via dei Fiori nella nota casa di tolleranza...’/ Filme de Amor e Anarquia (1973) Tutto a posto e niente in ordine/ Tudo a Postos, Nada em Ordem (1974) Travolti da un insolito destino nell’azzurro mare d’agosto/ Insólito Destino (1974) Pasqualino Settebellezze/ Pasqualino das Sete Beldades (1975) La fine del mondo nel nostro solito letto in una notte piena di pioggia/ O fim do mundo na nossa cama habitual numa noite de chuva (1978) Fatto di sangue fra due uomini per causa di una vedova. Si sospettano moventi politici/ Pacto de Sangue (1978) E una domenica sera di novembre (1981) Scherzo del destino in agguato dietro l’angolo come un brigante da strada (1983)


Sotto... sotto... strapazzato da anomala passione/ Delírios de Um Marido (1984) Un complicato intrigo di donne, vicoli e delitti/Camorra (1985) Notte d’estate con profilo greco, occhi a mandorla e odore di basilico (1986) Imago urbis (1987) Il decimo clandestino (1989) In una notte di chiaro di luna/Morte Silenciosa (1989) 12 registi per 12 città (1989; segmento sobre a cidade de Bari) Sabato, domenica e lunedì (1990) Io speriamo che me la cavo (1992) Ninfa plebea (1996) Metalmeccanico e parrucchiera in un turbine di sesso e di politica (1996) Ferdinando e Carolina (1999) Francesca e Nunziata (2001) Peperoni ripieni e pesci in faccia (2004) Mannaggia alla miseria! (2009) Carmen (2010) Roma, Napoli, Venezia... in un crescendo rossiniano (2014)


FICHA TÉCNICA

28 de Outubro de 2021


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