cisma 8: univoracidade

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cisma nĂşmero 8: univoracidade

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cisma ISSN 2238-7013 idealizadores da cisma Sofia Nestrovski Tiago Bentivoglio 2016, ano V, número 8 a cisma é Caroline Micaelia Caroline Policarpo Clarissa Bongiovanni Lopes Clarissa Xavier Gabriel Pelosi Guilherme Tardelli Henrique Amaral Isabel Ferreira Isabela Benassi Júlia Knaipp Karina Goto Laís Varizi Maria Duque Maria Teresa Mhereb Milena Varallo Natiê Amaral Rodrigo Tadeu Vinícius Hidemi projeto gráfico e diagramação Lucas Blat fotografias da capa Tainá Medeiros, Sem Título Sara de Santis, Paisagem Paulistana

Agradecemos a Nuno Ramos e Eduardo Ortega pela permissão de uso das imagens que acompanham o ensaio “Luto iluminado: a estética da dor em Nuno Ramos”, de Felipe Leite. Agradecemos à Editora Gallimard pela permissão de publicação do ensaio “A praia negra” [“La plage noire”], do livro Poétique de la relation, de Édouard Glissant © Editions Gallimard, 1990. Nós, editores da cisma, procuramos os detentores dos direitos autorais de Lawrence Ferlinghetti (tais como seus herdeiros e publishers), mas não conseguimos finalizar o contato para a obtenção legal do texto aqui publicado. Se acaso os possuidores dos direitos queiram entrar em contato conosco, nos mantemos dispostos a regularizar a nossa publicação. contato para submissões: textos@revistacisma.com para demais informações: revistacisma@gmail.com www.facebook.com/revistacisma www.revistacisma.com www.revistas.fflch.usp.br/cisma


editorial Podíamos partir de como o espírito que permeia as grandes cidades é a inércia da solidão. Do percurso das curvas arquitetônicas, das ruas, lugares, suas luzes e cores. De como o trabalho vence cotidianamente o corpo de quem vive e do gigantismo monumental da cidade. De como as pessoas disputam um único espaço e de que o desdobramento do tempo se torna quase uma instituição, mas existe a poesia: “A boca articulava em voz alta, servindo-se Dos seus outros instrumentos, o palato, a língua E os dentes. Do movimento, brotavam rumores, Insterstícios e uma grande órbita de nomeação. Diferente é o ponto fulcral do urbano. Sulcos E memórias confluem para uma iluminação Incipiente. No urbano, o aparelho fônico É excedente.” Partimos da linguagem poética para reescrever a cidade. Da univoracidade, de Augusto de Campos, tiramos o fôlego para construir esse número da cisma, que resultou num conjunto de textos que se pretende resistente... Ao caos urbano, do qual somos também um produto e, por isso, não podemos deixar de nos posicionar enquanto grupo envolvido com as questões políticas do espaço que vivemos. Excedemos em vozes, e aqui pensamos fazer confluir esses sons. Sempre nos posicionamos a favor da literatura de ruptura, da crítica que combate o apagamento das vivências individuais. Agora, então, o exercício é de unir essa nuance coletiva. Inauguramos este número com a tradução de “O mundo é um belo lugar”, poema de Lawrence Ferlinghetti que faz uma ode à vida, à materialidade das rotinas que se desmancha em seu fim – mortal. Caminho confluente ao tratado animalesco de “Galeria 5


mamífera”, de Michael McClure, que se utiliza da biologia como filosofia, nos limites da metamorfose. E, assim, a transformação mostra-se essencial, mas também como uma ferramenta do sofrimento e da resistência às modificações dolorosas do corpo: no texto sobre a obra “Minha fantasma”, de Nuno Ramos, vemos um mundo repleto de recaídas e sustentações emocionais, onde o amor busca resistir à repugnância da rejeição. No corpo e no amor, a tradução do conhecido ensaio “Che cos’è la poesia?”, de Jacques Derrida, busca, em suas próprias palavras, o “aprender de cor” – ou de coração. Reivindica uma força não só vocálica, mas também visual e corpórea da poesia: criar é ocupar espaços, é deixar o corpo da obra tomar forma. Assim, o fazer artístico nos leva a preencher lacunas – e por isso temos que nos arriscar e tomar posições para manter esses espaços ocupados. Nisso, a entrevista com a curadora Patricia Ciriani dá o depoimento de quem resiste a uma arte inflexível, impopular e elitista: se uma obra de arte não resiste a uma agressão, não é uma obra de arte. Outros textos também criam elos inesperados, evidenciando cada vez mais nosso caráter uníssono. A tradução de “A praia negra”, do filósofo martinicano Édouard Glissant, segue ao lado de “Entre nós e as palavras, o nosso dever falar”, textos que não apenas misturam o gênero narrativo com a crítica literária, como também reivindicam uma autonomia artística. Da temática urbana extraímos a resistência poética de se fazer uma publicação literária sob um governo golpista. A plasticidade e a potência simbólica desses textos criou uma revista que pulsa cores vivas e tonalidades que estão longe da monotonia urbana. Assim, continuamos desviando do caos: “No urbano, o aparelho fônico É excedente” E seguiremos resistindo, vibrantes.

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O mundo é um belo lugar de Lawrence Ferlinghetti, tradução de Caroline Micaelia

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Galeria mamífera de Michael McClure, tradução de Iago Passos

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Luto iluminado: a estética da dor em Nuno Ramos Felipe Leite

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Maktub, a ocultação do feminino em Lavoura arcaica Maria Petrucci

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Entre Adélia e Adília: duas poéticas, um mesmo peixe Marina Lazarim

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De Filósofos e construtores: João Cabral de Melo Neto e Orides Fontela Maria Teresa Mhereb

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A janela indiscreta do drama Mateus Albino

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“Se uma obra de arte não resiste a uma agressão, não é uma obra de arte”, entrevista com Patricia Ciriani por Henrique Amaral e Isabela Benassi

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Que coisa é traduzir “Che cos’è la poesia?” de Jacques Derrida? Rafael Silva

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Entre nós e as palavras, o nosso dever falar Isabela Benassi

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A praia negra de Édouard Glissant, tradução de Henrique Amaral


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tradução “O mundo é um belo lugar”, de Lawrence Ferlinghetti Caroline Micaelia Lawrence Ferlinghetti (1919, Bronxville, New York) é, ao lado de gente como Allen Ginsberg, William Burroughs e Jack Kerouac, um dos poetas americanos que sacudiram a produção dos anos 1950. Sua poesia, apesar das fortes – e inegáveis – ligações com os beatniks, liga-se antes à boemia de uma geração anterior do que à intensidade das aventuras on the road protagonizadas por esses autores. Tem por temáticas recorrentes o tragicômico da vida humana, o sonho e a traição da democracia, o problema do indivíduo em meio à sociedade de massa, & por influências Eliot, Pound, Cummings, Proust, Baudelaire, Prévert, Apollinaire. Seus poemas são constituídos por versos consistentes, de liga finíssima, bem como de um ouvido poderoso para a linguagem oral; são carregados também de um humor ácido e, em alguma medida, elegante, além de um ritmo ligeiríssimo e fluido, como fica claro no poema aqui traduzido, intitulado “The world is a beautiful place” e publicado originalmente no – pasmem – bestseller de poesia A Coney Island of mind (1968). Ferlinghetti defendeu mestrado na renomada Columbia University e doutorou-se na francesa Université Paris-Sorbonne. Dramaturgo, ativista, crítico, tradutor, prosador, roteirista e pintor, é também criador e editor da famosa livraria e casa editorial City Lights, de San Francisco, cidade na qual vive e trabalha até os dias de hoje. 9

“Agradeço a gentileza de Dirceu Villa, que amavelmente me acolheu nos ateliês da Guilherme de Almeida, além de ter me dado, em conjunto com os amigos da turma de 2014, pitacos e orientações importantes para a realização deste Ferlinghetti.” (N. da T.)


O mundo é um belo lugar O mundo é um belo lugar
 pra se nascer
 se você não liga que a felicidade
 
 nem sempre seja 
 assim tão divertida se você não liga pra um toque de inferno
 aqui e ali
 justo quando tudo vai bem
 porque nem no paraíso
 tem gente cantando
 todo o tempo O mundo é um belo lugar
 
 pra se nascer se você não liga pra gente morrendo
 
 todo o tempo ou talvez só morta de fome
 parte do tempo
 o que nem é tão ruim
 se não é com você Ah, o mundo é um belo lugar
 pra se nascer
 se você não liga muito
 
 pra alguns mortos-vivos nos mais altos postos
 uma bomba ou duas
 aqui e ali
 em seus rostos erguidos
 e outras tantas impropriedades
 de que nossa Logo Típica sociedade 
 é presa
 com seus homens de distinção
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e seus homens de extinção
 e seus padres
 e outros patrulheiros
 e suas várias segregações
 e o congresso, suas investigações 
e outras constipações
 de que nossa pobre pele
 é herdeira Sim, o mundo é o melhor lugar de todos
 pra um monte de coisas tipo
 fazer caras engraçadas
 e fazer caras apaixonadas
 e fazer caras emburradas
 e cantarolar canções e ter inspirações
 e dar bandas por aí
 
 olhando pra todo canto e sentir cheiro de flores
 e zoar de estátuas
 
 e mesmo pensar e beijar gente e
 fazer bebês e vestir calças
 e acenar chapéus e
 dançar
 e sair pra nadar em rios
 nos piqueniques
 
 em meio ao verão e de modo geral
 “curtir a vida”
 É
 mas então, bem no meio disso tudo vem o sorridente agente funerário 11


The world is a beautiful place The world is a beautiful place 
to be born into
 if you don't mind happiness
 
 not always being so very much fun
 if you don't mind a touch of hell
 now and then
 just when everything is fine
 because even in heaven
 they don't sing
 all the time

 The world is a beautiful place
 to be born into
 if you don't mind some people dying
 all the time
 or maybe only starving
 some of the time
 which isn't half so bad
 if it isn't you

 Oh the world is a beautiful place
 to be born into
 if you don't much mind
 a few dead minds
 in the higher places
or a bomb or two
 now and then
 in your upturned faces
 or such other improprieties
 as our Name Brand society
 is prey to
 with its men of distinction
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and its men of extinction
 and its priests
 and other patrolmen
 and its various segregations
 
 and congressional investigations and other constipations
 that our fool flesh
 
 is heir to
 Yes the world is the best place of all
 for a lot of such things as 
 making the fun scene
 and making the love scene
 and making the sad scene
 and singing low songs and having inspirations
 and walking around
 looking at everything
 and smelling flowers
 and goosing statues
 
 and even thinking and kissing people and
 making babies and wearing pants
 and waving hats and
 dancing
 and going swimming in rivers
 on picnics
 in the middle of the summer
 and just generally
 'living it up' 
 Yes

but then right in the middle of it comes the smiling

 mortician 13


tradução “Galeria mamífera”, de Michael McClure Iago Passos Michael McClure é um poeta norte-americano remanescente da geração beat, ainda ativo com 83 anos. Participou de performances junto a artistas como Allen Ginsberg (Six Gallery, 1955), Diani di Prima e Ray Manzarek, falecido tecladista do The Doors. Vive e trabalha em Oakland, California. Galeria mamífera O panda gigante, grande mamífero, peludo em preto e branco, descansa esticado entre as sombras do bosque de bambu. O panda às vezes senta-se como um homem, nas nádegas, com as pernas abertas, sobre um montículo de terra coberto de musgo. Talvez ele olhe para seus amados e família. Ele está rodeado por comida, pelos bambus que atingem muitas vezes a sua altura a partir da superfície da terra em direção ao sol. Filosofias estranhas, impensadas, talvez deslizem pelas placas de seu nervo sensório, criando e recriando a si mesmas em seus membros e órgãos. Todo o seu ser é uma acumulação de plasma e das atividades de seu corpo. Ele salta da terra energizada pela estrela vizinha que ele vê através dos espaços esparsos na clareira. Os bambus ao redor do panda são criaturas de ar. Eles extraem nitratos, alguma substância material, e água da terra através dos 14

O ensaio “A mammal gallery” foi publicado em seu livro Scratching the beat surfasse: Essays on new vision from Blake to Kerouac (1982). Traduzido a partir da versão original disponibilizada no endereço: http://www. thing.net/~grist/l&d/ mcclure/mcclure.htm. Lá você encontra uma antologia de poemas disponibilizados pelo próprio autor, editados por John Jacob e Karl Young.


poros das pontas de suas raízes que buscam mobilidade. Mas muito da substância do bambu é retirada do ar, a partir dos gases da atmosfera, que são modificados por um ciclo químico e pelos raios de sol em substância sólida. Gases da atmosfera se tornam o corpo do panda através do bambu. Os bambus são filamentos que crescem da terra em direção à estrela que os energiza. Um observador invisível está em uma sala com um homem e uma mulher que estão discutindo; são amantes, marido e esposa. Estão batendo boca sobre o acerto de um carro, ou sobre a perda de um bilhete de lavanderia. A discussão se torna muito intensa para um problema tão pequeno. Parece que o homem e a mulher estão performando um rito. Se o observador invisível deixa de escutar os significados das palavras e escuta a vocalização somente como sons, um pensamento lhe ocorre: Ele está escutando dois mamíferos. Podem ser dois leopardos, dois bisões, dois lobos. É uma conversa mamífera. O homem e a mulher estão rosnando, silvando, ganindo, piando, advogando, persuadindo, e ameaçando. O rito específico e o padrão biomelódico da conversa carnal sobe e desce em volume. Produz variações, repete-se, começa de novo, cresce, diminui. Há um chiado e um contrachiado. Há uma resposta e uma nova explosão. O jogo que o homem e a mulher estão performando, o ritual, é tão antigo quanto o seus plasmas. É capaz de extremos de modulação nervosa devido à sua complexidade neurônica, mas é mais do que antigo – é um (você está CE)RiTO. Se o homem e a mulher tiverem sorte, se têm as inteligências abertas, então um deles vai ouvir que é um rito mesmo o que eles estão rosnando e sibilando. Então ele, ou ela, vai rir do cômico e do ridículo da situação. O outro parceiro vai rir em resposta, intuindo a mesma percepção. O mais provável é que seja um ritual sexual. Eles estão famintos de contato um pelo outro. Seus processos intelectivos e emocionais foram congelados em simulações de indiferença por pressões do ambiente e acontecimentos ao redor. Se tiverem sorte, um deles vai estender a mão em direção ao outro e tocar, roçar, reconhecendo o outro 15


como o universo, a contrapartida de uma estrela, uma galáxia, um planeta, uma bactéria, um vírus, um leopardo. Desse modo, performaram e completaram um tantra de Shiva e Shakti. Tornaram-se mamíferos, e deuses, e deusas. Um homem está sentado de pernas cruzadas sob o brilho intenso do sol da tarde. Ele abre um livro com imagens de arte egípcia. Uma luz clara emana do papel. A estatuária em alto relevo é misteriosa. A mente intelectual preguiçosa examina a página oposta e encontra um texto que descreve a estatuária em uma língua estrangeira. Ele diz que, aparentemente, são um Faraó e duas deusas. A atenção do homem retorna à imagem – a percepção passageira toma a forma de um poema fragmentário: o mensageiro (RNA) desliza para o ribossomo (para a Constelação). Os colares se movem. O Faraó, Chacal, & Hator não têm pelos perfeitamente equilibrados de braços dados. O peso do Homem-Deus está sobre um pé / ou no outro. Eles criam o brilho desta dimensão, deste processo único, de perfeição. Mas quem é quem? e O QUÊ? As palavras mimetizam o equilíbrio das figuras em disposição – Deusa, Faraó, Deusa – lado a lado, tocando-se. O peso é imaculadamente equilibrado. Quem esculpiu as figuras arcaicas tinha um conhecimento difícil de ser retomado, embora fácil de reperceber milhares de anos mais tarde. O escultor percebeu que o homem-mamífero é criado de dentro para fora. Que o homem 16


começa no interior de suas células, e que do equilíbrio perfeito delas o corpo é criado. ((Dentro do corpo humano o rna desliza pelas paredes do núcleo da célula, através de tubos infinitesimais na estrutura, e encontra os corpos de ribossomos, que se assemelham a peras, no citoplasma. Os corpos se movem através das longas moléculas filiformes de rna e criam as substâncias da célula.)) As três figuras demonstram um desenvolvimento muscular excelente, generalizado, não excessivo. Os corpos descansam naturalmente ao estilo mamífero. Um lobo pode ser visto de pé, relaxando, olhando com interesse, envolvido e ainda assim indiferente. A pedra esculpida reproduz um tônus ​​muscular saudável e sem tensões contraditórias. As faces do Faraó e das deusas são tão interessantes, ou desinteressantes, quanto os rostos dos leopardos. Seus corpos são eretos, com a pelve ligeiramente para frente equilibrando o peso da cabeça. O Faraó fica com um pé um pouco à frente – é impossível dizer qual pé sustenta seu peso, ou se ambos o fazem. As deusas aparecem em variações dessa postura. Estou em frente à gaiola de arame ciclone que contém a fêmea de leopardo das neves. Meu amigo tem um gravador. Estamos gravando os sons dos animais antes do zoológico abrir. Eu passo sobre a grade de segurança de onde a leoparda das neves está nos observando. Ela é indiferente aos seres humanos contanto que mantenham uma certa distância. Sua tarefa é lutar contra a psicose física do enjaulamento e a loucura. A maior parte de sua vigília é gasta andando pelos cantos da gaiola. Mas agora é de manhã cedo e ela está descansando. Quando eu passo sobre a grade de segurança ela rosna com raiva sem se mover, exceto a cabeça, que vira para me encarar. Nenhuma parte dela pode alcançar através da malha de arame ciclone. Eu coloco meu rosto quase encostado no arame, rente ao seu rosto. Há apenas algumas polegadas entre sua boca e meu rosto. Ela está enfurecida, e seu rosto, que parece divino em tal proximidade, se contorce em linhas de raiva felina. A rai17


va e a violência são mais claras do que as expressões humanas em conflito no dia a dia das ruas. Ela sabe que é inútil mostrar as garras e tentar me alcançar com patadas. Ela então coloca seu rosto na grade e fala comigo. O rosnado começa imediatamente quase sem prelúdio musical. Começa gutural. Cresce em volume e se expande até que eu possa sentir o interior de seu corpo, de onde a energia do rosnado estende-se ganhando volume, cheio de fúria. Ele se estende, vibrando e modulando. Em seguida, ainda com a capacidade total de energia inexplorada, o volume do rosnado cai e se torna um silvo. As gotas de saliva respingam no meu rosto. Eu não me sinto sujo, mas sim purificado. Seus olhos estão fixos em mim. O rosnado começa novamente, entre uma respiração e outra. É uma linguagem que eu entendo mais claramente do que qualquer outra. Eu ouço violência, raiva, angústia, alarme, dor, até humor, fúria, juntos em um único comunicado. Estou cercado pela presença física de seu discurso. É uma coisa real no ar. Ela me absorve e eu não posso ouvir, sentir, nem ver mais nada. O rosto dela e as feições desaparecem, se tornam uma entidade com sua fala. Sua fala é a mais pura e perfeita música que já ouvi, e eu sei que sou tocado pelo divino, em minhas bochechas e nas minhas sobrancelhas, sobre meus tímpanos, e as vibrações no meu peito, e nos meus órgãos internos de percepção. É uma música-fala. É como a música que alguém ouve quando coloca a cabeça no estômago de seu amado. Os gorgolejos, os gotejos, os rumores, o coração e as pulsações no interior do corpo são a música perfeita. É a carne falando e se movendo – como os testículos se movem e torcem e contorcem dentro do saco realizando sua própria motilidade e perseguindo seus objetivos. Estou tomado pela universalidade da experiência. Espero que as gotas de saliva do leopardo nunca sequem em meu rosto. Nós reproduzimos os vários minutos desse rosnado e ele é mais bonito do que qualquer composição de Mozart. Passados três quartos da duração da fita, surge o canto claro e penetrante de um pequeno galo respondendo à mise-en-scène sobre si mes18


mo, às chamadas de suas senhoras, aos pardais, aos sons do tráfego, ao rosnado do leopardo, ao sol da manhã, à necessidade do seu próprio ser em demarcar vocalmente seu território. O canto do pequeno galo é menor, mas não menos perfeito ou monumental ou significativo do que a mensagem do leopardo – juntos formam uma gestalt. A gravação é uma obra de arte enquanto a escutamos. Mas nós não temos nenhum desejo de adicioná-la ao universo da mídia e dos artefatos plásticos. Nós vemos, ouvimos, sentimos através do véu. nós somos traduzidos. Viajando em um pequeno navio para as ilhas de Farallon, perto da costa de São Francisco, falei com um virologista que tinha acabado de voltar da Austrália. Ele estava viajando para as ilhas a fim de estudar os coelhos de lá. O filho de um faroleiro tinha um par de coelhos que escaparam na ilha. Os coelhos e sua prole devastaram a ilha de cada folha de vida vegetal. A ilha foi reduzida à rocha, sem qualquer vestígio de verde. O virologista acreditava que os coelhos – ainda populosos na ilha – comeram os cadáveres secos de gaivotas e aves marinhas. A sua teoria era a de que apenas um tipo de coelho tinha a capacidade de sobreviver sob essas condições. Eu andei pela ilha vendo um coelho e vestígios de coelhos, mas nenhum traço de grama ou arbusto. A ilha é rochosa, íngreme, como uma miniatura, a crista de seus cumes em erosão. Depois de subir um pequeno pico, eu desci para a praia, a areia dispersa entre pedregulhos. Me peguei olhando para baixo para uma manada de leões-marinhos, o mais próximo não mais do que trinta pés de distância. Eles estavam cochilando esticados debaixo do sol. Vendo algo de cômico na cena, eu levantei minha mão e comecei a falar como se estivesse pregando um sermão. Os leões-marinhos, surpresos, mergulham no oceano e se viraram para me ver. Eles começaram um coro de yowps, e enormes e irritados gritos carnívoros, densos em volume e de grande alcance. Eu continuei a minha performance e eles continuaram com seus gritos. Talvez trinta ou quarenta dos animais estivessem gritando de uma só vez. Eles estavam furiosos, irri19


tados, surpresos. Como o leopardo, as vozes foram impulsionadas por centenas de quilos de força carnal e energia. Eu estava com medo, temendo que eles pudessem se mover, subir e me perseguir. Eles permaneceram na água me amaldiçoando em uma língua clara e antiga, não restando dúvidas quanto ao significado do que diziam. E então eu percebi que as formas monstruosas de carne não estavam somente enfurecidas, elas estavam satisfeitas. estavam sorrindo, e também enfurecidas! Elas ficaram muito felizes em serem estimuladas à raiva por um novo – e claramente inofensivo – intruso. Sem dúvida, elas aproveitaram meu espanto e medo, bem como o prazer físico de estarem enfurecidas. Talvez elas tenham saboreado minha reação física a seus ataques sonoros. Elas começaram a gritar não só para mim, mas entre si mesmas. Meus ouvidos não aguentavam mais e comecei a caminhar para fora da praia. Eu dei quase uma volta inteira na ilha. Cinco membros do grupo me seguiram nas ondas. Eles assistiram, provocaram, incentivaram, ralharam e me divertiram ao máximo. Eu nunca estive em mais fina companhia.

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A Mammal Gallery

The giant panda, huge mammal, furred in black and white, basks and lolls in the shadiness of the bamboo grove. T'he panda sometimes sits like a man, on his rump with legs outspread, on an earthy mound covered with moss. Perhaps he looks at his beloved and family. He is surrounded by his nutriment, by the tips of bamboo plants that reach many times his height from the surface of the earth towards the sun. Perhaps strange, thoughtless philosophies drift across the platens of his sensorium and create and recreate themselves in his limbs and organs. All of his being is an accumulation of his plasm and the activities of his body. He sprang from the matter of the earth as it was energied by the nearby star that he sees through the sparse places in the glade. The bamboos about the panda are air creatures. They draw nitrates, some material substance, and water from the earth through the pores of their searching motile root tips. But much of the substance of the bamboo is drawn from thin air, from the gasses of the atmosphere, which are changed by a chemical cycle and the sun's rays into solid substance. Gasses become the body of the panda via the bamboo. The bamboos are threads that reach from the planet toward the star that energies them. An invisible watcher is in a room with a man and woman who are arguing - they are a lover and beloved, a man and wife. They are quarreling about the payment on a car, or about the loss of a laundry ticket. The argument becomes too intensive for so minor an issue. It appears that the man and woman are enacting a rite. If the invisible observer closes his ears to the meanings of the words and listens only to the vocalization as sounds, a thought occurs to him: He is listening to two mammals. It might be two snow leopards, two bison, two wolves. It is a mammal conversation. The man and woman are growling, hissing, whimpering, cooing, 21


pleading, cajoling, and threatening. The specific rite and biomelodic patterning of meat conversation rises and falls in volume. It makes variations, it repeats itself, it begins again, it grows, diminishes. There is a hiss and counterhiss. There is a reply and new outburst. The game that the man and woman are enacting, and the ritual, is as old as their plasm. It is capable of extremes of nervous modulation because of their neuronic complexity but it is more than ancient-it is an Ur-rite. If the man and woman are lucky, and if their intelligences are open, then one of them will hear that it is a rite-that they are growling and hissing. Then he, or she, will laugh at the comedy and the ridiculousness of the pretext. The other partner will laugh in response, intuiting the same perception. Most likely it is a sexual ritual. They are hungry for contact with each other. Their intellective and emotional processes have been frozen into simulations of indifference by pressures of the surroundings and events. If they are lucky enough, one of them will raise a hand to the other, and touch or stroke, recognizing the other as the universe, the counterpart of a star, a galaxy, a planet, a bacterium, a virus, a leopard. Then they have enacted and completed a tantra of Shiva and Shakti. They have become mammals and gods and goddesses. A man is sitting cross-legged in bright afternoon sunlight. He opens a book of reproductions of Egyptian art. Clear light gleams off the paper. The alto relievo statuary is uncanny. The lazy intellectual mind scans the opposite page and finds text describing the statuary in a foreign language. It says, apparently, that this is a Pharaoh and two goddesses. The man's attention returns to the reproduction - passing perception takes the shape of a fragmentary poem:

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the messenger (RNA) slides to the ribosome (to the Constellation). The beads move. The Pharaoh, Chacal, & Hathor are glabrous perfectly balanced arm in arm. The weight of the Man-God is on one foot / or the other. They create the gleam of this dimension, of this single process, of perfection. But who is who? and WHAT? The words mime the balance of the figures as they stand Goddess, Pharaoh, Goddess - side by side, touching one another. Their weight is immaculately balanced. The sculptor of the archaic figures had a knowledge difficult to regain, though easy to reperceive thousands of years later. The sculptor sensed that man-mammal is created from the inside outward. That man begins at the interior of his cells and from their perfect balance the body is created. ((Within the human body the rna slides through the walls of the cell's nucleus, through infinitesimal tubes in the structure, and finds the pear-like ribosome bodies in the cytoplasm. The bodies move across the long threadlike molecules of rna and create the substances of the cell.)) The three figures show muscular development that is excellent, generalized, not excessive. The bodies rest naturally in mammal fashion. A wolf can be seen standing in relaxation, peering with interest, involved and yet disinvolved. The carved stone reproduces muscle tone that is healthy and without contradictory strains. The faces of the Pharaoh and goddesses are 23


as interesting, or as uninteresting, as the faces of snow leopards. Their bodies are erect, with the pelvis slightly forward to balance the weight of the head. The Pharaoh stands with one foot a little forward-it is impossible to tell which foot bears his weight, or if both feet do. The goddesses stand in variations of this posture. I stand in front of the cyclone wire cage containing the female snow leopard. My friend has a tape recorder. We have been taping sounds of animals before the zoo opens. I step over the guardrail where the snow leopardess is watching us. She is indifferent to humans when they keep at a distance. Her task is to fight the physical psychosis of encagement and madness. Most of her waking is spent pacing the constricted outlines of her cage. But now it is early morning and she is resting. When I step over the guard rail she growls in anger without moving - except her head, which swivels to watch me. No part of her can reach through the mesh of the cyclone wire. I put my face almost to the wire and nearly to her face. There are only a few inches between her mouth and my face. She is enraged, and her face, which seems divine in such proximity, twists into feline lines of rage. The anger and rage are clearer than the conflicting human expressions on the daily streets. She knows the uselessness of pawing or clawing at me. She puts her face within an inch of the wire and speaks to me. The growl begins instantly and almost without musical attack. It begins gutturally. It grows in volume and it expands till I can feel the interior of her body from whence the energy of the growl extends itself as it gains full volume of fury. It extends itself, vibrating and looping. Then, still with the full capacity of untapped energy, the growl drops in volume and changes in pitch to a hiss. The flecks of her saliva spatter my face. I feel not smirched but cleansed. Her eyes are fixed on me. The growl, without a freshly drawn breath, begins again. It is a language that I understand more clearly than any other. I hear rage, anger, anguish, warning, pain, even humor, fury all bound into one statement. 24


I am surrounded by the physicality of her speech. It is a real thing in the air. It absorbs me and I can hear and feel and see nothing else. Her face and features disappear, becoming one entity with her speech. The speech is the purest, most perfect music I have ever heard, and I know that I am touched by the divine, on my cheeks, and on my brow, and on the tympanums of my ears, and the vibrations on my chest, and on the inner organs of perception. It is music-speech. It is like the music one hears when he places his head on the stomach of his beloved. The gurglings, the drips, the rumblings, the heart, and the pulsebeats in the interior of the body are perfect music. It is the meat speaking and moving - as the testicles move and twist and writhe within the sac making their own motility and pursuing their ends. I am overcome with the universality of the experience. I hope that the drops of leopard saliva will never dry on my face. We play back the several minutes of this growl and it is more beautiful than any composition of Mozart. Three-quarters of the way into the tape is the clear piercing crow of a bantam rooster making his reply to the mise-en-scène about him-to the calls of his ladies, to the sparrows, to the sounds of traffic, to the growling of the leopardess, to the morning sun, to the needs of his own being to vocally establish his territory. The crow of the tiny rooster is smaller but no less perfect or monumental or meaningful than the statement of the leopardess-they make a gestalt. The tape is a work of art as we listen. But we have no desire to add it to the universe of media and plastic artifacts. We see, hear, feel through the veil. we are translated. Traveling on a small ship to the Farallon Islands near the San Francisco coast, I spoke with a virologist who had just returned from Australia. He was traveling to the Farallons to study the rabbits there. A lighthouse keeper's son had a pair of rabbits that escaped on the island. The rabbits and their progeny devastated the island of every leaf of plant life. The island was left bare rock, without any vestige of higher plant life. The virologist believed 25


that the rabbits - still populous on the island - ate the desiccated corpses of gulls and seabirds. His idea was that only one type of rabbit had the capability of surviving under these conditions. I wandered on the island-seeing a rabbit and traces of rabbits - but not a blade of grass or a bush. The island is rocky, craggy, like a miniature, eroding crest of the Alps. After climbing the tiny peak, I descended to the beach, which was scattered with boulderlike rocks. I found myself looking down onto a herd of sea lions, the closest no more than thirty feet away. They were drowsing and lolling in the sun. Seeing something comic in the scene, I raised my hand and began speaking as if I were delivering a sermon. The astonished sea lions dived into the ocean. The ones in the ocean swung about to see me. They began a chorus of yowps, and huge angered meat cries, dense in volume and range. I continued my performance and they carried on their yowping. Perhaps thirty or forty of the animals were yowling at one time. They were furious, enraged, astonished. Like the leopardess, their voices were driven by hundreds of pounds of meat force and energy. I was frightened, worried that they might change about, clamber out, and pursue me. They remained in the water cursing me in a clear ancient language that left little doubt about meaning. And then i knew that not only were the monster shapes of meat enraged, they were pleased. they were smiling as well as enraged! They were overjoyed to be stimulated to anger by a novel-and clearly harmless-intruder. Undoubtedly they enjoyed my astonishment and fear as well as the physical pleasure of their rage. Perhaps they relished my physical reaction to their blitzkrieg of sound. They began to yowp not only at me but to each other. My ears could not take it any longer and I began walking up the beach. I walked halfway around the island. Five members of the tribe followed in the waves. They watched, taunted, encouraged, scolded, and enjoyed me to the fullest. I have not been in finer company. 26


Luto iluminado: a estética da dor em Nuno Ramos Felipe Leite Publicado em 2000, “Minha fantasma”1 pode ser lido, dentro da proposta que aqui apresentamos, como a reta coroação das principais linhas de força que atravessam – e enformam – a poética de Nuno Ramos. Nessa espécie de diário de luto, as tópicas mais constantes que a crítica vem observando na vasta produção do multiartista2 paulista surgem sem meias-medidas: o texto é a sutura e o próprio corte, uma vez que trata, sobretudo, de uma experiência enquadrada nos planos da destruição, da perda e da dor. E, assim sendo, por comportar três das locuções adjetivas que nos parecem mais extremas, há a inserção em um modelo muito específico de código, que, entre outras coisas, possibilita a persistência da memória – a sobrevivência do passado como concretude no presente. Significa dizer que forma e conteúdo no texto se harmonizam, como se, para que os mecanismos de produção artística então adotados cristalizassem no fluxo ininterrupto do tempo a lembrança como materialidade que desconhece o silêncio, pois diz de tudo e do outro, fosse preciso estabelecer a configuração indicada na nota autobiográfica que o inaugura – no mínimo, um desdobramento desta. Registrar uma vida que se perde é, na narrativa de Ramos, revelar a intimidade do corpo, levando-o para o centro da cena, expondo-o até as últimas consequências e sem qualquer limite. É, ainda, desfigurar a natureza rígida do real e transformá-lo em arquivo que não se sujeita ao movimento cruel de diferentes temporalidades, que não se sujeita, inclusive e principalmente, ao horror da morte, ao completo desaparecimento do indivíduo que quer 27

As fotografias que ilustram este ensaio foram gentilmente cedidas por Nuno Ramos e Eduardo Ortega. 1 RAMOS, Nuno. “Minha Fantasma”. In: Ensaio geral. Projetos, roteiros, ensaios, memória. São Paulo: Globo, 2007. 2 Nuno Ramos atua como pintor, desenhista, escultor, além de ter publicado livros de poesia e prosa.


voltar para a normalidade dos dias mas não consegue3. Encontramos, em uma consideração de G. Perec, as primeiras indicações de um protocolo de leitura. Para ele, Existem poucos acontecimentos que não deixam ao menos um vestígio escrito. Quase tudo, em algum momento, passa para um pedaço de papel, uma folha de bloco, uma página de agenda, ou não importa que outro suporte sobre o qual vem se inscrever, numa velocidade variável e segundo técnicas diferentes, de acordo com o lugar, a hora, o humor, um dos diversos elementos que compõe a vida de todo dia 4 . Tal formulação traz à tona uma questão bastante desafiadora. Se, para Artières, em seu comentário ao pensamento de Perec, “não conservamos senão uma parte ínfima de todos esses vestígios”5, é necessário determinar de que maneira as estratégias de arquivamento (do outro, de si, de uma vida) – ou, mais precisamente, como a reflexão pretendida articulará nos parágrafos subsequentes, de reelaboração escrita da memória – vinculam-se a uma tendência a pensar a escritura do vivido como tentativa de fixação da experiência e também da memória da carne, então redimensionadas, no presente. Antes, contudo, outra questão se faz mais urgente. Para rastrearmos as técnicas de registro ali demonstradas é preciso enfrentar primeiro a conformação da narrativa. Nesse sentido, se coloca a pergunta: o que é “Minha fantasma”? Se anteriormente pontuamos que forma e conteúdo se complementam, agora esclarecemos que, sintonizados à percepção da complexidade e multiplicidade de modos pelos quais a expressão literária é capaz de se constituir enquanto gênero, assumimos, de início, uma postura contestadora em relação ao direcionamento irrogado ao texto por Nuno Ramos na nota autobiográfica.6 Nela, se diz que “[Minha fantasma] é o diário de minha convivência com um quadro sério de depressão da minha mulher, Sandra Antunes Ramos”7, lhe atribuindo um gênero 28

3 RAMOS. Ensaio geral, 2007. p. 372. 4 PEREC apud ARTIÈRES, Arquivar a própria vida, 1998. p. 9. 5 ARTIÈRES, Arquivar a própria vida, 1998. p. 10. 6 RAMOS. Ensaio geral, 2007. p. 367. 7 Idem.


muito específico de escrita (auto)biográfica. Tradicionalmente, o diário-íntimo é considerado, a princípio, um gênero de natureza confessional, em que as modulações de escrita se revelam espontâneas, quase sem artifícios. No entanto, já em uma primeira leitura, não é o que se verifica em “Minha fantasma”, pois sua inegável dicção poética – os arranjos de linguagem atravessados por lirismo – lhe garante um caráter bastante particular, deixando transparecer a confissão como performance do sujeito que escreve (em outras palavras, a confissão pensada e estruturada para ser mostrada e lida), resultado de uma linguagem elaborada com sofisticação. Esses usos experimentais da linguagem fazem com que a narrativa de Ramos vá de encontro ao que as teorias contemporâneas dizem a respeito do gênero sobredito, colocando-a, dessa forma, em um espaço lacunar, inexato e de difícil classificação. Além disso, como assinalou Wander Melo Miranda, “o diarista data com precisão os diversos momentos da sua vida”8 e, em “Minha fantasma” o fluxo-temporal faz um movimento que é encenado pela e na própria linguagem, podendo, por isso, ser percebido apenas nela – na configuração dos fatos no texto, na ordenação dada a estes. Repetimos, agora, a pergunta: o que é “Minha fantasma”, afinal? Autobiografia (ainda segundo Wander Melo Miranda, a seletividade da memória filtra, hierarquiza e modifica a lembrança, reordenando o passado para lhe dar algum sentido)9 ou diário-íntimo (cujas páginas escritas para si, na clandestinidade, excluem o olhar alheio10 e funcionam como um mecanismo de retenção dos momentos fugazes de uma vida)11? Há inegável aproximação com a segunda possibilidade, embora estejam conservadas aí algumas aporias, haja vista que a narrativa não está submetida ao conjunto de normas instituído pela tradição. Porém, na introdução de seu monumental Conceitos fundamentais da poética, Staiger afirma que “[...] qualquer obra autêntica participa em diferentes graus e modos dos três gêneros fundamentais [...]”12, esclarecendo que não existe pureza nestes, porque se interpenetram. A pesquisa empreendida por ele 29

8 MIRANDA, Corpos escritos, 1992. p. 34. 9 Idem. 10 ROUSSET, Le journal intime, texte sans destinataire, 1983. p. 437. 11 MIRANDA, Corpos escritos, 1992, p. 35. 12 STAIGER, Conceitos fundamentais da poética, 1972. p. 15.


trabalha em cima das três formas literárias consagradas na história do conhecimento ocidental, mas importa precisar que, indubitavelmente, a teoria de hibridização e trânsito entre os modelos poéticos é de utilidade para se pensar um diário deslocado de sua estrutura original. Exemplificamos: ao considerar como diário o texto que exclui o pacto entre autor e leitor13, por conta de sua natureza privada, onde o sujeito dramatiza a sua persona e data fragmentos que dão forma aos momentos que se pretende registrar, lida-se, necessariamente, com um ideal de gênero que não pode ser alcançado por “Minha fantasma”. Há traços no texto, apesar disso, que seguem por uma trilha diametralmente oposta, pois abalizam certa tendência a tomá-lo como um diário-íntimo. A compartimentação da experiência ali observada, por exemplo, guarda mais aproximação com o gênero diário do que discrepância. Isso acontece porque, na narrativa de Ramos, possivelmente nos deparamos não com um diário dentro dos moldes tradicionais (o que seria impossível, devido aos fatores excludentes mencionados acima e pela espetacularização da intimidade, que contraria a conceptualização clássica do modelo), mas com uma forma-diário: um gênero contaminado por outras presenças e em diálogo com estas, transfigurado, possibilitando a ampliação da estrutura da narrativa. Essa forma-diário é apresentada em um formato muito bem definido: o de diário de luto – posto que a narração realizada tem a ver com uma experiência de perda. As degradações física e mental da personagem fantasma são os fios condutores do texto. Espalhados ao longo de três capítulos/seções (1. Minha fantasma; 2. Meu cansaço e 3. Meu mar), os eventos dolorosos que constroem o registro da ausência aparecem com incontestável sequencialidade, ainda que os deslocamentos de tempo não estejam claramente demarcados. É debaixo da neve de seu desespero14, espaço que ocupa e onde sente a maré de sua tristeza lhe arrastar15, que o sujeito grafa a morte como símbolo de uma crueldade que não poupa ninguém e se, para ele, como já 30

13 ROUSSET, Le journal intime, texte sans destinataire?, 1983. p. 437. 14 RAMOS, Ensaio geral, 2007. p. 372. 15 Idem.


foi indicado, o fantasma, em breve, se extinguirá, pois “ela está morrendo”16, a prefiguração do desaparecimento como evento incontornável faz com que a experiência do luto atravesse todo o processo de vivência. O diário-texto, portanto, seria a preparação para a morte daquela que é contemplada, porque, não podendo se ver por estar tão fraca, ela, o fantasma, reflete, como um espelho, um azulejo17, denunciando que a destruição no contexto desenhado é experiência compartilhada e que não se pode atravessar sozinho. O sujeito se enluta antes da perda e durante esta, o que faz com que, tendo consciência do apagamento do outro (o diário é escrito em nome daquela que vai morrer e segue em direção à morte), inicie um trabalho de luto que se encontra indissociável do trabalho de escrita. É através do último que se realiza e expurga o primeiro.

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16 RAMOS, Ensaio geral, 2007. p. 368. 17 Idem.


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2. A estética da dor que a escritura da morte constrói está relacionada ao impulso arquivístico que se pretende princípio de superação do luto. Registrar a experiência, mesmo que haja a sobrevivência do fantasma enquanto instância do real (e, no texto, a todo momento a inevitabilidade da morte é eixo ordenador), significa materializar essa figura através da palavra escrita. O processo de fixação que garante a reelaboração da experiência no presente não como afecção negativa (trauma e ressentimento), mas como memória que possibilita a travessia pelo difícil território da perda leva o sujeito a produzir um discurso que cabe, e é evidente, ao outro. Distanciado porque se esvaindo, o fantasma quase não diz e pouco se movimenta dentro das malhas textuais. “A sua voz, mais grave e gaga, diz o que nós queremos que diga”.18 À medida que a mulher se desfaz, se refaz e é refeita como massa verbal por esse indivíduo que se lembra e vai se lembrar19. É ele quem tece os contornos de sua existência – quem define até onde a degradação física nela chega; também o ponto máximo onde impera o horror. E por quê? Em Fragmentos de um discurso amoroso, no verbete “O ausente”, Barthes escreve que

18 RAMOS, Ensaio geral, 2007. p. 369. 19 Idem. 20 BARTHES, Fragmentos do discurso amoroso, 2001. p. 27.

Historicamente, o discurso da ausência é sustentado pela Mulher. A Mulher é sedentária, o Homem é caçador, viajante; a Mulher é fiel, o homem é conquistador (navega e aborda). É a mulher que dá forma à ausência: ela tece e ela canta [...] De onde resulta que todo homem que fala a ausência do outro feminino se declara: esse homem que espera e sofre está milagrosamente feminizado. Um homem não é feminizado por ser invertido sexualmente, mas por estar apaixonado20. fazendo ressoar alguns posicionamentos assumidos pelo narrador de Nuno Ramos que se projetam no próprio título do texto. A ideia de posse contida na palavra “minha” tem a ver com aqui34


lo que, em Barthes, se revela como sustentação de um discurso que é originado a partir do outro. Dentro da impossibilidade de dizer de si, o fantasma fala através desse que deseja os seus ossos porque se lembra da carne que havia antes neles21. A sua existência no panorama da memória é erguida e mantida pelo sujeito apaixonado. O silêncio do fantasma perdura. Os contornos de sua vida, essa que míngua, e de sua experiência de morte e de destruição são delimitados pelo homem que adota uma postura de posse e responsabilidade para com ele, refletindo o aforismo lacaniano de que a mulher não existe22. Em nossa leitura, entendemos que o pensamento de Lacan expõe o espaço vazio ocupado pela figura feminina na narrativa. Enquanto ausência que é presentificada através de determinadas estratégias de registro, a mulher sobre a qual o sujeito diz (ainda e sobremodo, a mulher que o sujeito diz, porque criação sua) tem o seu lugar assumido pelo homem que escreve. E essa grafia vertiginosa do luto dilata a experiência, dado que é através dela que o fantasma deixa de ser apenas uma imagem que transita entre dois mundos, o dos vivos e o dos mortos, e passa a habitar uma territorialidade outra, onde sempre estará salvaguardado, tornando-se materialidade fixa, indestrutível, afirmada por aquele que fez tudo o que podia23, até mesmo soldar a memória de seu corpo enfraquecido – “que não aguenta mais”24 – no corpo da memória, ou seja, no texto. 3. No primeiro capítulo, “Minha fantasma” encena a destruição do outro dentro do campo da certeza. O detalhamento do avançado estágio de deterioração do corpo da mulher não é gratuito – muito menos as repetições a esse respeito. Sabe-se que, “magra, ela ainda está quente, como um corpo vivo”25, mas a dificuldade de, na imagem formulada, retornar ao “tédio bem-vindo”26 (normalidade, cura) se anuncia como promessa de permanência em um quadro que acomoda o sofrimento como unidade principal. Na perspectiva do luto, a impossibilidade de transferência da 35

21 RAMOS, Ensaio geral, 2007. p. 370. 22 LACAN, Seminário XX, 1982 [1972-1973]. 23 RAMOS, Ensaio geral, 2007. p. 369. 24 PELBART, Vida capital: ensaios de biopolítica, 2003. p. 45. 25 RAMOS, Ensaio geral, 2007. p. 368. 26 Idem, p. 372.


carga libidinosa dispensada para o sujeito que está, lenta e desesperadamente, a desaparecer resulta no retorno eterno ao seu núcleo – que invade os dias. Para Freud, a principal distinção entre o luto e a melancolia é que ao primeiro não se pode atribuir a natureza de uma patologia, pois, ao se concretizar o trabalho deste, o sujeito é capaz de deslocara energia da libido para outro objeto27. Em “Minha fantasma” ocorre a recorrência da e na experiência, dado que a doença torna o indivíduo que “fenece, isso sim, lenta, não um bicho mas um caule murcho, tombado, quase a terra onde o tronco vai beber novamente”28 o centro de um universo que não assimila outras presenças, uma vez que só dela e que só terá fim com a sua morte. Embora aborde uma experiência compartilhada, a narrativa curiosamente sempre diz do fantasma e da relação entre os dois, tornando-o eixo catalisador das muitas forças que o texto acolhe. Interessa pontuar que, 36

27 FREUD, Luto e melancolia, 1996. pp. 243-263. 28 RAMOS, Ensaio geral, 2007. p. 368.


nesse capítulo e também nos próximos, não há qualquer referência ordenada aos eventos que precedem o momento da escrita, além das raras passagens em que o narrador revela alguma lembrança de sua vida pregressa, sem detalhá-la, movido talvez por um ressentimento que ele não parece saber exatamente para onde direcionar (como fica claro na segunda seção do texto, "Meu cansaço"), pois falam de um tempo que não volta. O texto, assim, não pretende esmiuçar uma história (não sabemos o porquê da doença, por exemplo), mas sim, e é mais crível, fixar os instantes passados ao lado de uma ausência que se torna cada vez maior (e só retorna como presença nítida em Meu mar, terceiro e último capítulo), em uma tentativa de presentificá-la, torná-la memória viva e pulsante. Em “Minha fantasma”, o texto assume conformações mais arquivísticas do que propriamente narrativas – porque, diante da implacabilidade da morte,

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arquivar uma vida expande as possibilidades da memória, lhe dando novo destino e mecanismos para persistir. A impossibilidade de tomar “Minha Fantasma” como autobiografia é mantida, majoritariamente, por uma característica sua: o distanciamento temporal, imprescindível para que se lance um novo olhar em direção ao passado – no esforço de lhe dar algum sentido – não se realiza, tornando a narrativa um arquivo do fantasma que prefere o tule fino dos lençóis29, a não-vida, o isolamento de tudo. Para o narrador, essa figura iria a um só tempo se extinguir por inteiro e a sua energia se volta para o objetivo de fazer ali, no espaço do texto, o registro dessa ausência através da escrita. Desse modo, escrever se constitui como processo de construção da memória do outro, do fantasma, de sua mulher. Isso acontece porque não há um impulso autobiográfico. É a biografia do outro que é tecida. Não uma biografia que se possa inserir dentro do modelo mais tradicional, uma vez que não se pretende dizer dessa vida biografada com clareza, especificando as minúcias que perfazem a sua trajetória. O trabalho de arquivamento realizado por esse narrador quer grafar unicamente a experiência de destruição por ela vivenciada (e por ele, como espectador no primeiro e no último capítulos, e como uma vítima também, no segundo) e o aterrador luto que faz com que todos os esforços de quem perde o seu objeto de libido se voltem para caminhos que possibilitem a fixação daquilo que está desaparecendo, esvaziando não só o sentido dos dias mas a crença de que, em algum momento, a repetição infinita que a dor determina chegará ao fim. Na doença,

29 Idem, p. 69.

Não há ventos fortes nem tufões, mas uma monotonia de laguna excessivamente salgada onde os peixes não conseguem sobreviver, apenas alguns sargaços rancorosos e caranguejos pré-históricos [...] Não há nada fora da sua melancolia, por mais que ela se esforce e diga as palavras que todos torcemos para que diga, e faça isso com extraordinário senso de medida, sem euforia, sem otimismo demais. A verdade é que não está indo a 38


lugar nenhum, não se movimenta propriamente entre um ponto cardinal e outro, marcos de fronteira que o mundo não inclui. Está sempre em sua laguna de água parada, em seu mar morto e escuro, sem a borda de uma praia30. E, por isso, a expressão esvaziada da vida que atravessa “Minha fantasma” é relacionável à consciência da morte como destino último – mas que tarda a vir – que mesmo nas primeiras páginas já se evidencia. O fantasma, englobando aspectos dos vivos (o corpo, a materialidade, o movimento quase imperceptível) e dos mortos (o silêncio, o distanciamento lento, a perpetuação em uma infância perversa31 que sintetiza a incapacidade de cuidar de si, a incapacidade, inclusive, de escolher entre viver e morrer), está preso em um ciclo de repetição que parece não ter fim. O único caminho possível para ele é o apagamento completo e definitivo, mas ao sujeito apaixonado, que a protege porque sabe “como a sua carne pede que a protejam, ao mesmo tempo que a deixem sozinha, e a minha carne ainda quer a sua, quer ainda mais por isso, a minha carne sozinha”32, não existem contingências afins. Mantendo os olhos sobre ela para afastá-los de si33, esse sujeito nem sempre tem bem claro o sentido de um dia24 e possui uma lista de atividades que procuram satisfazer as necessidades dela, pois

30 Idem, p. 378. 31 Idem, p. 377. 32 Idem, p. 368. 33 Idem, p. 368. 34 Idem, p. 369. 35 Idem, p. 370. 36 Idem, p. 369.

É um amor imenso e cansativo, que deve dizer bem alto: Eu quero você mesmo assim. Ou algo ainda antes disso, já que ela é a mesma pessoa, apenas confusa, como quem circula pela casa sem encontrar a porta do próprio quarto. [...] Eu sou a fonte de vida quando ela geme. Amar na doença é quase querer que a doença continue35. Ser a fonte de vida na doença corresponde a tomar como posse o outro – acarreta a responsabilidade de fazer ali, no cenário da destruição, o que aquele é incapaz de fazer por si mesmo. É criá-lo inteiro para si.36 No sujeito, todos os esforços desejam conver39


gir para o ponto calmo em que não ecoa a voz que acusa – “o que você fez por ela?”37 – e, por maiores que sejam, ele sabe que não são suficientes – não estabilizam o horror, não criam a planície branca onde enfim haverá paz. Daí o cansaço de que trata a segunda seção do texto de Nuno Ramos, pois, na condição de refém do luto, a esse sujeito não é permitido escapar do marasmo que colou-se a sua vida esvaziada, desprovida de vontade, que o impede de alimentar alguma expectativa de fuga a não ser em sonho. Daí, também, a pulsão do arquivo, o processo de construção de um espaço ficcional onde o fantasma deixa de ser potência em esgotamento e se torna lembrança que nunca se apaga. 4. As representações do vazio (vida esvaziada), em “Minha fantasma”, são substanciais. Enquanto signo de uma ausência que se pretende materializar, o projeto fotográfico de Eduardo Ortega que integra o texto-diário não se quer produto da narrativa nem consequência desta. O discurso apresentado pelas imagens dialoga com a narração fragmentada no sentido de que ambas tratam das relações entre memória, arquivo, silêncio e apagamento, de modo que haja sempre vazio – símbolo da condição fantasmática – presente (mesmo quando um corpo inerte ali se apresenta). Em seu livro A câmera clara, Barthes chama a atenção para dois elementos estruturais daquelas que ele considera fotos que são verdadeiramente fotos para si – o studium e o punctum. Para ele, o segundo corresponderia a algo que surge da fotografia como uma flecha e a atravessa. O punctum de uma fotografia é “um ‘detalhe’ [que] me atrai. Sinto que basta sua presença para mudar minha leitura, que se trata de uma nova foto que eu olho, marcada a meus olhos por um valor superior”,38 esclarece. Essa propriedade encarnaria em uma qualidade estética inespecífica as potencialidades da constituição fotográfica. Em “Minha fantasma”, texto que transforma a experiência em representação, o punctum barthesiano é produto 40

37 Idem, p. 369. 38 BARTHES, A câmera clara. 1984.


do vazio que ali ecoa como evidência da destruição e impulso primeiro que suscita os processos de arquivamento desenvolvidos pelo sujeito. Nessa perspectiva, o vazio é a substância que o texto busca traduzir em materialidade narrativa e fotográfica. No primeiro fragmento, o sujeito escreve, sobre a mulher-fantasma, que “seu peso, é mais um peso do que alguém”39. O caráter imaterial da figura que desaparece é continuamente explorado. Enquanto carnalidade ainda visível, a mulher continua a existir, “ainda é a mesma pessoa, apenas confusa, como quem circula pela casa sem encontrar a porta do próprio quarto”40. Enquanto fantasma, o desaparecimento figura-se como imposição incontornável. Mover-se entre duas obscuridades (a vida esvaziada e a morte) simboliza inscrever nos dias o sentimento de não pertencer a nenhum dos territórios – de ser vazio que oscila entre a materialidade dos vivos e a impalpabilidade dos mortos. O projeto arquivador que antes salientamos haver em “Minha fantasma” tenciona, assim, converter o vazio (como tópica do texto e lembrança do sujeito) em elemento que nunca se perde e não se extingue. Fotografá-lo equivale a aprisioná-lo em uma plataforma da qual não pode fugir e onde não acaba. O mesmo vale para escrever sobre o vazio-sujeito que no texto surge personificado na imagem fantasma. A materialização aí presente é da ordem de uma necessidade narcisista, relativa ao sujeito enlutado que não deseja esquecer. Afinal, se não se fixasse o vazio, como se poderia lembrá-lo? Como não desaprendê-lo? 5. Em Meu cansaço, segunda parte a compor o texto, o plano dos sonhos passa a integrar a realidade como meio de libertação. Se a promessa da morte ainda não se realizou, cabe ao sujeito escapar dos efeitos da doença na vida cotidiana através dos atos solitários de dormir e de sonhar. O universo que centra a totalidade das coisas nela não guarda brechas para o querer dele (cf. p. 373 do texto). Não há espaço para isso. Querer tomar um café é im41

39 RAMOS, Ensaio geral, 2007. p. 368. 40 Idem, p. 370.


possível para o sujeito, pois o hálito profundo da mulher, o seu fôlego de maratonista, o rumor inteiro da sua vida, tudo de uma vez, pode despertar41. A doença torna-se um hábito comum aos dias que se sucedem iguais. Há uma lista de tarefas a cumprir: separar remédios, ir ao médico, forçá-la a comer. É para isso que o sujeito serve agora 42. Ligado ao fantasma como que por um fio que enraíza a sua vontade ao centro de influência emanado por esta que está doente e pode tudo, ele espera a morte como uma espécie de merecimento e está cansado. Esse cansaço é expresso como consciência da persistência da doença em repetição. O sujeito escreve que não há nada que possa fazer agora 43 e que não há vida cotidiana mais, apenas desespero44 . O tempo corre em círculos sem nunca deixar o mesmo ponto. Apenas quando sonha, o seu corpo que pede propina 45 e salvação liberta-se da carapaça dura dos dias. Em um fragmento dessa seção, ele diz que

41 Idem, p. 370. 42 Idem, p. 369. 43 Idem, p. 377. 44 Idem, p. 377. 45 Idem, p. 384. 46 Idem, p. 387-389. 47 Idem, p. 387. 48 Idem, p. 389.

Ninguém sabe como estou cansado. Ela não sabe (eu sei). Olha pra mim como me olhava antes, me pede coisas, e acho estranho que me tome pelo que ainda consigo fazer. Não vê que é só minha carcaça? Que vou cair fulminado antes de chegar à cozinha? Ninguém vê, nem vou embora, nem me espatifo para sempre no chão. Para isto se tem um corpo, a lava congelada que ainda se parece conosco. É por ele que nos tomam 46. No entanto, apesar de se saber cansado, tudo então já lhe parece natural 47. O horror não é visto mais como horror e sim como normalidade. Preso no ciclo infinito do luto que não finda, o sujeito vê o esmaecimento da vida como consequência própria da experiência de destruição. A manhã, espaço que pode ocupar sozinho, simboliza a preparação para o dia que virá e é a interseção entre dois planos que se opõem. No plano da realidade, o cansaço se origina como consequência do esvaziamento do sujeito. No dos sonhos, o cansaço não se sustenta, pois há movimento dentro dele48. Para o sujeito, sonhar

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Alivia o cansaço, meu cansaço, mas perturba, com a possibilidade de migrações mais distantes, aquele voo rasteiro que faz passar as horas e ancora o dia. Alguma coisa acontece nestes minutos, um descuido do hábito (mas alguns conseguem até mesmo sonhar por hábito), e sinto que acordo mais deprimido, como quem pisou sem transpor a porta da cadeia (dia, cadeia) e voltou para a cela49. Estar acordado é fazer parte da comunidade de pessoas que logo o dia irá machucar50. É voltar ao tédio indesejado que organiza um mundo onde a mulher está doente e morrerá. Como esta, o sujeito começa a pertencer a duas territorialidades – a da realidade, onde há repetição e cansaço, e a dos sonhos, onde tudo se renova. A praia monótona (cura), signo de atualização da experiência, ainda não se anuncia. A mulher permanece em alto-mar (doença), embora queira regressar à areia. Ao sujeito resta aguardar “a chegada do dia, que me acorda afinal, a busca do próprio cansaço”51. Registrar o cansaço é atestar a consistência arquivística da memória e do luto. Também é dizer do outro – pois o fantasma, mesmo que lentamente mais distante, é a razão deste. A doença se reflete no sujeito como tédio e desânimo, como desalento e fixação na experiência que só pode ser freada através da mobilidade. Como repetição e ciclo, o cansaço exprime a persistência da dor. Grafar a dor é eternizá-la acima do tempo – é impedir a concretização da destruição como categoria máxima e total. 6. É em Meu mar, capítulo que finaliza o diário-texto, que a inclusão do elemento água traz novas conformações para a narrativa. O título da seção não é gratuito e concentra a ideia de renovação contida na palavra “mar”. O ir e vir da água, o movimento que reconfigura a experiência antes estagnada, a força oceânica que transborda e afoga – que submerge e faz emergir – surgem 43

49 Idem, p. 389-390. 50 Idem, p. 385. 51 Idem, p. 391.


como representações de “uma continuidade sem nome, como uma morte boa, não aquele lugar escuro e malcheiroso onde tudo apodrece mas uma sucessão de silêncios dentro da placenta clara.”52. É a promessa do fim, mesmo que seja a morte. Estar no mar significa poder dormir – viver no plano dos sonhos, onde tudo, para o sujeito, é melhor e menos cansativo. É ser algo diverso de um cansaço sem sono53. A memória da mulher já foi arquivada. No texto, ela resiste como presença que não desaparecerá por inteiro. Não importa precisar se há cura ou morte. A doença que a destrói despossui o poder de apagá-la na lembrança construída. O seu corpo exaurido habita o texto-arquivo como concretude que é vazio. Como o vazio alinhado no enquadramento da câmera nas imagens, o fantasma subsiste enquanto substância que ultrapassa as deformações do humano e do real. A materialidade que a escritura da destruição lhe atribui resulta na persistência de sua memória. Escapar à sequência naturalizada mas descontínua da vida em terra firme e durar sem pedaços54 é sobreviver como lembrança escrita e fantasmática que nunca se esgota, que não se permite termo.

52 Idem, p. 394. 53 Idem, p. 392. 54 Idem, p. 394.

ARTIÉRES, Philippe. Arquivar a própria vida. In: Arquivos pessoais, Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV), v. 11, n. 21, p. 9-34. 1998. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061/1200. Acesso em: 15 jan. 2015. BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. ______ . Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortência dos Santos. 16ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2001. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia, 1917 [1915]. In: A história do movimento psicanalítico. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 243-263. (Edição Standard brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 14). LACAN, Jacques. Seminário XX: mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982. MIR ANDA, Wander Melo. Corpos escritos. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1992. PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003. R AMOS, Nuno. Minha Fantasma. In: Ensaio geral. Projetos, roteiros, ensaios, memória. São Paulo: Globo, 2007. ROUSSET, Jean. Le journal intime, texte sans destinataire?.Poétique, n. 56, v. XI, 1983. STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1972.

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Maktub: a ocultação do feminino em Lavoura arcaica Maria Petrucci “a voz das mulheres estava sob a terra, vinha de caldeiras fundas onde só diabo e gente a arder tinham destino. a voz das mulheres, perigosa e burra, estava abaixo de mugido e atitude da nossa vaca, a sarga, como lhe chamávamos.” (MÃE, 2006) “Quando o burguês se revolta contra o rei, ou quando o colono se revolta contra o império, é apenas um chefe ou um governo que eles atacam, tudo o resto fica intacto, os seus negócios, as suas propriedades, as suas famílias, os seus lugares entre amigos e conhecidos, os seus prazeres. Quando a mulher se revolta contra o homem, nada fica intacto.” (BARRENO; COSTA; HORTA, 1972) Walter Benjamin no seu ensaio O narrador que, após a consolidação da burguesia e do alto capitalismo com a invenção da imprensa e da produção em massa, o surgimento de uma nova forma de conhecimento, a saber a informação, teve papel crucial no declínio da arte narrativa. Ambas são incompatíveis em espírito: enquanto a informação aspira uma verificabilidade imediata, compreensível em si e para si, existente apenas no dado momento em que é veiculada e explicada, a narrativa não se esgota jamais – e justamente porque evita explicações. É por negar a totalidade do esclarecimento, permitindo ambiguidades e coexistência de sentidos, que a narrativa permite a livre interpretação do leitor, e, com isso, o episódio narrado atinge a amplitude eterna que falta à informação. Do mesmo modo, há um aspecto que, dentro desse escopo da ambivalência, difere a narrativa do 45


romance: lá, “a moral da história”, aqui, “o sentido da vida”. “O sentido da vida é o centro em torno do qual se movimenta o romance. Mas essa questão não é outra coisa que a expressão da perplexidade (Ratlosigkeit) do leitor quando mergulha na descrição dessa vida […] Não há nenhuma narrativa em que a pergunta – e o que aconteceu depois? – não se justifique. O romance, ao contrário, não pode dar um único passo além daquele limite em que, escrevendo na parte inferior da página a palavra fim, convida o leitor a refletir sobre o sentido da vida”1.

1 BENJAMIN, Walter, O narrador, 1937. p. 75.

“Era Ana, era Ana, Pedro, era Ana a minha fome [...] era Ana a minha enfermidade, ela a minha loucura, ela o meu respiro, a minha lâmina, meu arrepio, meu sopro, o assédio impertinente dos meus testículos [...]”. (NASSAR, 1975. p. 109) Lavoura arcaica, de 1975, é o livro de estreia de Raduan Nassar. Narrada em primeira pessoa por André, o filho pródigo, a história revela suas memórias, seus pensamentos e suas angústias em relação à violência opressora de uma família patriarcal. A figura do pai, que constantemente regula o comportamento da prole com seus sermões diários, é apresentada como incorpórea, onipresente – a personificação da Lei. Essa rememoração ocorre a partir do reencontro do protagonista com seu irmão Pedro, o primogênito, que tem por dever justamente recuperar a ovelha desgarrada e trazê-la de volta pro seio da família. A linguagem é difusa: é com uma mescla entre expressões metafóricas rarefeitas e dados informativos triviais que é relatada a evocação do incesto entre André e sua irmã Ana. Há uma dupla dimensão de silêncio que envolve essa personagem: um que é dado da obra, sua falta de falas, de expressão verbal (é o silêncio dela que ocasiona a fuga do narrador) e um que é dado da crítica, sua falta de voz, de expressão representativa (é o silêncio em torno dela que abafa a sua performance final). Referentes variados perpassam a trama, desde o bíblico-alegórico (seja pela semelhança do fluxo narrativo atemporal aos relatos do Velho Testamento, seja 46


pela analogia entre Ana e Eva) até o psicanalítico, evidentemente ligado ao eros incestuoso, ao complexo edipiano, ao Nomedo-Pai, etc. A história termina com o retorno do protagonista ao lar e, finalmente, com o desmoronamento da instituição familiar, provocado pela ressignificação do que costumava ser uma prática ritualística costumeira: a dança dionisíaca de Ana. Há algo de novo nessa passagem capaz de enfurecer o pai o suficiente para fazê-lo descer de seu pedestal: ele avança sobre Ana com seu cinto em meio aos gritos patéticos da família que clama por um Pai com letra maiúscula que não existe mais. No capítulo seguinte, porém, não há nada: apenas a transcrição de um sermão, homenagem de André à memória do pai. Sermão, aliás, fatalista: é este o último excerto do livro: “[...] não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poço.” (NASSAR, 1975. p. 196) Reformulando Benjamin, a questão que me acompanhou após o fim não foi tanto “o que aconteceu depois?”, mas mais especificamente “o que aconteceu com Ana?”: a economia discursiva do luto após a sua morte – a falta de pranto e mesmo de explicação acerca do destino da personagem – foi o que motivou esta pesquisa. Se o narrador é o único ponto de vista que nos chega, se é a única voz que tudo organiza e orienta (inclusive a conotação erótica desse episódio final), qualquer análise positiva acerca da personagem, tanto da imprescindibilidade do seu silêncio quanto da possível proposição parresista contida em sua performance insolente, demanda uma análise questionadora acerca da figura de André e das relações de poder que enquadram o seu gerenciamento narrativo. Isso significa dizer que, para desvendar o elemento tão subversivo e incômodo da dança de Ana, para descobrir uma avaliação crítica que lhe seja apropriada, é 47


preciso mobilizar um estudo do funcionamento, invariavelmente intrínseco à esfera do discurso, da ocultação do feminino, ou melhor, da manutenção do apagamento e da sujeição da voz feminina e do porquê de ela ser essencial para a preservação da lógica masculinista, patriarcal e binária que rege não só a organização da esfera familiar da Lavoura arcaica, mas a nossa própria estrutura social. É importante frisar que este trabalho propõe nada mais do que uma possibilidade hermenêutica: a ideia é enfrentar o texto, investigar o seu modus operandi, desvendá-lo, desocultá-lo, para que se possa observar como a leitura é focalizada e, enfim, possibilitar outras chaves interpretativas. É da crítica à pretensão universalista da lei patriarcal que Judith Butler, valendo-se das noções de “poder jurídico” de Foucault e de “contrato heterossexual” de Wittig, cunha o conceito matriz heterossexual: um discurso hegemônico de normatização dos corpos enquanto dados biológicos e necessariamen-

Raquel Siphone, Anósnimos, 2016

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te binários que é enraizado e repetido compulsoriamente pelo maquinário cultural que nos produz. É em favor desse conceito, e da hipótese de que esse conceito regula a ambientação do romance de Nassar, que me proponho argumentar: maktub é a parábola do avô que dispensa a tarefa didática dos sermões e se basta pela justificativa de que “está escrito”. “Está escrito, logo é” é a política da história das origens, uma estratégia narrativa que, ao elaborar uma única e autoritária descrição de um passado irrecuperável, faz da constituição da lei algo historicamente inevitável, legitimando seu funcionamento. A matriz, ao asseverar o corpo como dado natural e manter um poder controlador pautado na heterossexualidade compulsória2, institui e propaga uma opressão milenar, opressão que se vale de uma diferença sexual baseada apenas no regime biológico para fazer do feminino o locus da apropriação, da reprodução, da resignação. Daí a preferência pela palavra “ocultação” e o sentido de feminino utilizado no título: não o epistemológico de uma propriedade exclusiva de uma categoria de sujeitos em oposição a outros, mas o discursivo de uma unidade linguística inteligível culturalmente, uma ficção que se institui norma através da encenação constante de práticas corporais que naturalizam a fantasia da identidade coerente. Assim, ser feminino e, consequentemente, significar feminino é um regulado – e regulador – processo de repetição. A posição feminina é, portanto, já um enquadramento em certas rotas discursivas (como ser maternal e doméstica, ter conduta polida e delicada, apresentar-se como um objeto sexual desejável, etc.). Esse processo de enquadramento é fundamental para a constituição de certas identidades hegemônicas, como a masculina, que justamente instituem um Outro, um excremento de si, através de operações de exclusão e dominância. A construção hermenêutica de André como o pária, o transgressor, o insurgente permanece em conformidade com os termos da economia falocêntrica: não é à configuração machista da sociedade patriarcal que o protagonista se opõe, muito 49

2 Essa noção diz respeito à regulamentação do sistema sexo-gênero-desejo como linear e coerente em sua decorrência política, a qual constringe o exercício da liberdade sexual e do desvio de gênero. Ou seja: é conferindo estatuto ontológico e psicanalítico a diferenças biológicas baseadas na genitália e no sistema reprodutivo que se faz da heterossexualidade uma prática compulsória e essencial, vendida como natural e lógica para “garantir a continuidade da espécie”. Portanto, nascer com uma vagina decorre em um enquadramento no papel social de mulher e, por sua vez, o papel social de mulher decorre em um desejo sexual pelo sujeito homem, seu oposto binário e constitutivo.


pelo contrário, tanto que ela o protege quando necessário. É talvez ao lugar difuso que ocupa enquanto ramo do galho defeituoso, condenado como o foi Caim: “Eram esses os nossos lugares à mesa na hora das refeições: o pai à cabeceira; à sua direita, por ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika, e Huda; à sua esquerda, vinha a mãe, em seguida eu, Ana e Lula, o caçula. O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto” (NASSAR, 1975. p. 157.) Ao fim, a ânsia de honrar a tradição para inserir-se na linhagem correta da herança paterna é o que vence; daí a importância de apagar tudo que de algum modo não se conforma à obediência cega. No livro intitulado Quadros de guerra (2015), Butler fala dos enquadramentos interpretativos que constituem as condições de reconhecimento de uma vida: uma vida inteligível é uma vida passível de luto, isto é, a qualidade de ser enlutada é um pressuposto para toda vida que importa. Ora, é justamente a comoção da perda, a qual torna possível a apreensão de algo vivo como vida, que não é concedida à personagem. O potencial político do luto público é carta marcada desde Antígona; o perigo de o pranto perturbar a ordem e a hierarquia da Lavoura é o que me remete à parrésia, o dizer-a-verdade que, prescindindo da vontade de convencer através de demonstração objetiva, revela as relações de poder que estruturam determinado contexto e as desestabiliza. É como se Ana, ao dançar munida dos penduricalhos profanos que André trouxe do mundo exterior, conferisse contexto ao que antes era mandamento bíblico ou alegórico, ao que se situava fora do tempo e do espaço capitalistas. A eficácia do enquadramento exige um molde de convenções, um 50


confinamento, que, no entanto, produz algo que lhe escapa, que permanece avulso à moldura. É essa evasão que é propensa à reversão, à subversão – é o que, ao romper com o contexto para reproduzir-se, denuncia a intenção discursiva por detrás da falsa imanência do enquadramento3. Ou seja: é o elemento que ficou de fora da moldura, ao que foi negado um lugar dentro dos termos de reconhecimento e representatividade, que é capaz de enquadrar o enquadramento, de expor a maneira como ele orienta e controla o que compreendemos como possível, como a única possibilidade, para evitar a própria destruição. — Falar em Judith Butler significa falar também em performance. Performativo sugere uma construção de sentido que é dramática, teatral, e contingente: o caráter performativo do gênero vem da consciência de que não há uma verdade natural, um sexo, a expressar – é a própria estilização constante do corpo, a estratégia de reencenação de significados já estabelecidos socialmente, que cria a ideia de gênero. A lei que institui esse acordo em executar, produzir e sustentar possibilidades binárias de gênero é, não por acaso, o tabu do incesto e o da homossexualidade que o antecede – é a partir daí que as fronteiras dos corpos inteligíveis, apropriados, coerentes, são traçadas. A apropriação lacaniana de Lévi-Strauss, que havia estabelecido um princípio universal, o da troca de mulheres, como característico de todos os parentescos, faz da exogamia uma regra do simbólico, a estrutura universal de linguagem e de significação que determina o que é ou não inteligível em relação a papéis sociais. O tabu do incesto gera uma exogamia que, apesar de primar por uma relação homossocial entre homens, é efetuada através do movimento heterossexual de distribuição de mulheres. Assim, de maneira pré-ontológica e em função da proibição do incesto, distinguem-se os espaços do masculino e do feminino. O curioso é que, no romance, esse tabu é transgredido: o ambiente familiar é tão 51

3 Butler, dialogando com A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin, fala do “vazamento” como o que escapa ao controle e, ao circular, ao reproduzir-se, possibilita um deslocamento crítico, questionando a suposta inevitabilidade do contexto imposto por determinado enquadramento: “O movimento da imagem ou do texto fora do confinamento é uma espécie de evasão, de modo que, embora nem a imagem nem a poesia possam libertar ninguém da prisão [...] podem, contudo, oferecer as condições necessárias para libertar-se da aceitação cotidiana da guerra e para provocar um horror e uma indignação mais generalizados, que apoiem e estimulem o clamor por justiça e pelo fim da violência.” (BUTLER, 2015, p. 27).


claustrofóbico que André não é bem sucedido na superação de seu trauma da castração e transfere seu objeto de desejo da mãe para a segunda figura feminina mais próxima, sua irmã. Talvez seja a própria denúncia do incesto, cujas circunstâncias não nos chegam, pelo movimento erótico de Ana que cause a revolta paterna – afinal, a transmissibilidade do tabu é exatamente o que faz dele ao mesmo tempo temível e expurgável; talvez seja a ruína da transcendência do pai, que se descobre corpo ao descobrir o corpo da própria filha 4; seja o que for, a culpa e a responsabilidade de vítima purificadora recaem invariavelmente sobre o gênero pecador. De todo modo, o que interessa neste momento é a maneira como a constituição discursiva de cada um é imposta e mascarada de verdade inegável, anterior ao próprio simbólico e, portanto, infalível. Se a reificação de normas de gênero é precisamente o que humaniza os sujeitos ao mesmo tempo em que oculta sua gênese fabricada e ficcional, naturalizando-a sob a aparência de uma essência – ou seja, se não há existência fora da domesticada repetição de atos de gênero, que tipo de repetição revelaria o caráter imitativo e contingente dessa atuação? A resposta parece ser a paródia, ou melhor, o pastiche, a paródia da reificação: a imitação que goza da própria noção de original. O episódio da dança de Ana é narrado de maneira praticamente idêntica duas vezes; mesmo assim, na segunda há uma ressignificação capaz de fazer ruir a ordem da instituição familiar. Sendo a performance uma repetição renovadora, podemos estar diante do tipo de construção performática que, ao questionar a estabilidade das categorias “masculino” e “feminino”, ao expor a manutenção da perspectiva normativa, faz colapsar a própria norma. Que o não-reconhecimento da posição masculina como distintiva causa um estrago à economia falocêntrica está claro; a questão é o caminho a seguir daqui. Deleuze classifica a produção de Foucault em um percurso teórico composto por três instâncias, o saber, o poder e a subjetivação, que poderia ser transposto para esta pesquisa e servir de maneira pertinen52

4 “[...] era o próprio patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora possuído de cólera divina (pobre pai!), era o guia, era a tábua solene, era a lei que se incendiava – essa matéria fibrosa, palpável, tão concreta, não era desencarnada como eu pensava, tinha substância, corria nela um vinho tinto, era sanguínea [...]” (NASSAR, 1975, p. 193). Vale lembrar Simone de Beauvoir e sua definição do sujeito masculino como o ser em si, o sujeito neutro da ciência, do direito, do razão, que justamente afirma sua significação universal, transcendente, através da oposição ao ser para o outro, o sujeito feminino, que é corpo, sexo, objeto, materialidade.


te como um passo a passo: para se chegar à subjetivação, à insurreição da voz ocultada, é preciso denunciar as premissas que instituíram esse silenciamento e a disciplina que o sustenta. O trajeto, então, se desenvolveria privilegiando a investigação do gerenciamento da “ocultação”, pensando a manutenção da economia discursiva do luto associada à noção do corpo abjeto, da vida precária, ungrievable 5, para, enfim, ser capaz de dimensionar o potencial político da “performance”, pensando no poder da vulnerabilidade quando liberta – vulnerabilidade no sentido queer 6 de aparecer, mostrar-se, evidenciar-se. Por enquanto, parece inegável a emergência de uma estratégia de sobrevivência, a qual imediatamente impele o narrador a incorporar o pai para manter viva a lei e restaurar o funcionamento da matriz.

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5 Inelutável, que não é passível de luto. 6 Literalmente “estranho” ou “peculiar”, o termo é um dos muitos na história da humanidade que foi utilizado de maneira pejorativa para perseguir e insultar minorias sociais, no caso pessoas que se relacionavam com outras do mesmo sexo, e que, depois, foi apropriado e ressignificado por essas mesmas minorias. Hoje, queer designa os estudos da vertente da teoria de gênero que propõe concepções identitárias não binárias e estratégias políticas não normativas. Também foi adotado por quem não se sentia contemplado no espectro LGBT e procurava uma alternativa ao movimento gay, uma que excedesse os limites do rótulo e contemplasse o corpo como algo ambíguo, fluído e mutável.


Entre Adélia e Adília: duas poéticas, um mesmo peixe Marina Lazarim Clarice Lispector, a senhora não devia ter se esquecido de dar de comer aos peixes andar entretida a escrever um texto não é desculpa entre um peixe vivo e um texto escolhe-se sempre o peixe vão-se os textos fiquem os peixes como disse Santo António aos textos Adília Lopes, “Clarice Lispector” Em outubro de 1975, o poeta Carlos Drummond de Andrade, anunciando a poesia ainda inédita de Adélia Prado ao público, escreve para o Jornal do Brasil uma crônica intitulada “De animais, santo e gente” em que demonstra de forma expressiva a sua admiração e espanto ao ler os versos produzidos pela nova escritora: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis. (ANDRADE, apud MARQUEZ, 2012) Impulsionada pela crítica de Drummond, a poesia de Adélia 54


Prado não tardou a chamar atenção e teve seu ano de estreia em 1976 através da obra Bagagem, que logo justificou o entusiasmo do renomado poeta sobre o trabalho da escritora. O conjunto dos poemas marcava temas e questões de grande relevância – ou mesmo, talvez, de centralidade – nas demais e posteriores obras da autora, como a religiosidade, a morte, o amor e o cotidiano, expressos por meio da voz de uma mulher já madura – Adélia Prado tinha, na ocasião, 41 anos – e vinda de um universo provinciano, fato que muito a limitou na classificação de “dona de casa mineira”, conforme reitera o pesquisador Adilson Citelli: Sendo o cotidiano da escritora simples, prosaico e caseiro, sua poesia espelha esse universo, fato que produziu o estereótipo da dona de casa provincialmente mineira. Entretanto, a obra de Adélia, ainda que apresente uma superfície de fácil assimilação, é densa de significação. (CITELLI, Adilson, 2009). Dez anos após a publicação da crônica de Carlos Drummond de Andrade que prenunciava o lançamento da poesia de Adélia Prado, foi lançada, em Portugal, a obra de estreia da então jovem poetisa Adília Lopes: Um jogo bastante perigoso (1985). Assim como Bagagem, de Adélia Prado, os poemas da lisboeta também já compreendiam uma série de questões que seriam trabalhadas ao longo do seu percurso como escritora. Na obra, é perceptível o seu interesse pela elaboração de versos metaliterários e que tratam do tema do fazer poético, a sua linguagem prosaica que aborda passagens do cotidiano contemporâneo, o seu suposto ingênuo jogo linguístico em que reside uma notável complexidade que, por conter um alto teor de ironia e mesmo de comicidade, provoca reações adversas: É certo que perplexidade, fascínio e curiosidade dividem os leitores dessa “poetisa pop”, mas o que é mais interessante – porque mais raro –, é que, ao mesmo tempo que os dividem, também os reúnem em conversas que evoluem em torno de questões como 55


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TainĂĄ Medeiros, Sem tĂ­tulo

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a de saber se o que escreve Adília Lopes é ou não é poesia, se deve ou não ser levado a sério, se tem uma matriz erudita, se é irrelevante ou simplesmente genial, e por aí adiante, num desfiar de interrogações que passam facilmente de um extremo a outro extremo. (MARTELO, 2004). Ocupando posições bem conceituadas no plano da literatura atual, respectivamente brasileira e portuguesa, Adélia e Adília são contemporâneas, mas com certos desencontros temporais e com poéticas relativamente dialogantes. Essa espécie de diálogo se refere a elementos notados na poesia de ambas que destoam de forma significativa entre si e que, ao mesmo tempo, revelam características muito marcantes de cada uma das poetisas. Um dos pontos de distanciamento é logo aparente nas obras de estreia das escritoras. Adélia Prado surge por meio de Bagagem, obra inaugural que já expõe sua compreensão de poesia: “Está ali depositada toda a experiência de uma autora sem experiência [...] O título revela a própria concepção de poesia para Adélia: poesia não é experiência literária, mas sim experiência do vivido.” (MARQUEZ, 2012). Já Adília Lopes, também pelo título do seu livro de estreia Um jogo bastante perigoso apresenta igualmente sua concepção de poesia: escrever pode ser um jogo muito perigoso, em que é necessário conciliar a herança literária do que foi produzido anteriormente com algo supostamente novo, sem deixar, é claro, de repensar esse passado literário ainda no mesmo ato de escrita, conforme revela um dos mais emblemáticos poemas da obra conhecido como “Os poemas que escrevo”. Enquanto para Adélia Prado o ato da produção e elaboração poética parte do universo extraliterário – do mundo cotidiano, em outras palavras – para Adília Lopes o fazer poético, apesar de também utilizar muitos recursos desse mesmo espaço extraliterário, apresenta uma preocupação evidente em refletir sobre o que já foi produzido antes e dialogar com demais obras, afinal, Adília Lopes não apenas se coloca como alguém 58


que escreve, mas também como alguém que muito lê1. Apesar de demonstrarem concepções muito diferenciadas em relação à poesia, ainda assim Adélia Prado e Adília Lopes possuem pontos em comum. Ambas mulheres, fato difícil de ignorar diante do contexto literário em que pertencem as duas escritoras, expressam interesses em abordar assuntos que diz respeito ao universo feminino. E mais: são, também, duas escritoras assumidamente católicas. Nesse sentido, é possível verificar em ambas uma espécie de expressão da sexualidade feminina por meio de elementos pertencentes ao universo religioso. Para ilustrar melhor a afirmação acima, recorda-se os versos iniciais do poema “Mulher querendo ser boa”, de Adélia Prado, presente na obra Terra de Santa Cruz (1981): “Me toldam horas de cinza/ Rachadas de imprecação./ Ó Deus, não me humilhe mais/ com esta coceira no púbis”. Semelhante movimento, de relacionar temas da sexualidade feminina com religiosidade, realiza Adília Lopes, como evidenciado nos versos finais do poema “Meterológica”, em Clube da poetisa morta (1997): “Choro/ chove/ mas isto é/ Verlaine/ Ou:/ um dia tão bonito/ e eu/ não fornico”. Essa característica presente na poética de Adélia Prado e de Adília Lopes é elemento de aproximação entre a escritora brasileira e a portuguesa. A partir desse elo, é possível também notar uma série de imagens que aparecem com frequência na poesia de ambas e que adquirem valores similares, como percebeu a crítica Maria Lúcia dal Farra quando desenvolveu um artigo intitulado “Os frutos sazonais do feminino: Adélia, Adília e Paula Tavares”2. Assim como as frutas presentes na poesia de ambas que parecem, cada uma à sua maneira, representar algo da ordem do feminino, como pontuado pelo artigo mencionado, outros elementos em comum na obra das duas escritoras aparentam também dialogar, como a imagem do peixe presente nos poemas “Casamento”, de Adélia Prado e “Arte poética” de Adília Lopes:

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1 Conforme afirma Rosa Maria Martelo (2004): “O nome Adília Lopes tanto designa uma poetisa profundamente interessada pela tradição poética erudita quanto a de uma “poetisa pop”. 2 O artigo de Maria Lucia dal Farra, publicado na Revista de Letras da Unesp em 2008, realiza uma análise comparativa a partir da observação da imagem de frutas na obra das três poetisas contemporâneas: Adélia Prado, Adília Lopes e Paula Tavares. Nele, a crítica procura refletir a respeito da representação dessas frutas e como seu sentido no interior dos poemas estaria relacionado de alguma forma ao universo feminino.


Casamento Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto, ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como “este foi difícil” “prateou no ar dando rabanadas” e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva. Retirado da obra Terra de Santa Cruz (1981), “Casamento” é um poema que trata, de maneira geral, sobre a resistência do encanto amoroso numa relação de longa duração. É possível notar isso logo nos cinco versos iniciais em que o eu-lírico, em oposição à reação das outras mulheres, não se recusa em colaborar no trabalho por vezes desagradável de limpar os peixes, e ainda enfatiza: “Eu não. A qualquer hora da noite me levanto/ ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar” (grifo meu). Essa disposição se justificaria através do sexto ao décimo verso, em que o silêncio encontrado pelo casal na cozinha tarde da noite provoca uma aproximação entre eles até mesmo física (“de vez em quando os cotovelos se esbarram”) por meio da tarefa – ou, talvez, pretexto – de retalhar o peixe. Silêncio ora suspendido pelas falas do marido que descrevem de maneira reduzida, para não interromper a serenidade em que estavam mergulhados, o momento da pesca: “este foi difícil”, “prateou 60


no ar dando rabanadas”, como se narrasse pequenas histórias de pescador que, conciliadas a esse agradável silêncio que envolvia o casal, originam uma espécie de encantamento no eu-lírico que afirma em seguida: “O silêncio de quando nos vimos a primeira vez/ atravessa a cozinha como um rio profundo”. A comparação entre a densidade e serenidade do silêncio com a mansidão de um o rio profundo certamente não foi aleatória. Ao realizar essa comparação, o eu-lírico assemelha o casal aos próprios peixes, imersos no rio. Nesse sentido, compreende-se que os peixes, além de serem apenas o objeto que provoca a aproximação do casal, os servem também de metáfora. Segundo o Diccionário de los símbolos3 de Jean Chevalier & Gheerbrant (1986), a figura do peixe está associada

3 Edição traduzida para o castelhano por Manuel Silvar e Arturo Rodríguez, publicada pela Herder S.A Barcelona, em 1986.

al nacimiento o a la restauración cíclica [...]. Por otra parte el pez es también símbolo de la vida y de fecundidad, en razón de su prodigiosa facultad de reprodución y del número indefinido de sus huevos. [...] Y, en fin, como el pez vive en el agua, se proseguirá a veces el simbolismo viendo em ello una alusión al bautismo: nacido del agua del bautismo, el Cristiano es comparable a um pececito, a imagen del Cristo. El pez ha inspirado una rica iconografia entro los artistas cristianos: si lleva um buque sobre su dorso simboliza a Cristo y su Iglesia; si lleva uma canastilla de pan, o si está él mismo sobre um plato, representa la eucaristía [...]. Nesse sentido, é justificável a rememoração da voz poética do “silêncio de quando nos vimos a primeira vez”, ainda no décimo primeiro verso. Através da figura do peixe, que faz alusão à fertilidade e ao mesmo tempo à eucaristia (remetendo à ressureição), a voz poética consegue conciliar ao seu casamento uma ideia cíclica, em que o encantamento amoroso já brando renasce com a fertilidade e vivacidade semelhante ao início do relacionamento. O final do poema ressalta ainda mais essa comparação do casal com os peixes. Logo depois de apresentar a imagem deles 61


na travessa no décimo terceiro verso, acrescenta: “vamos dormir”, como se o próprio casal, na cama deitados, estivesse também numa espécie de travessa. E prossegue: “coisas prateadas espocam”, remetendo ao nono verso, em que o marido, ao descrever a resistência do peixe em ser capturado, diz que ele “prateou no ar dando rabanadas”. A cor prateada, presente no verbo “prateou” na ação do peixe em se debater, e o adjetivo “prateadas” em conjunto com o verbo “espocam” do penúltimo verso, dão ao poema um sentido de resistência, tanto do peixe no ato da pesca, quanto do casal que resiste à força do tempo na relação do casamento, voltando a tornarem-se, noite ou outra, “noivo e noiva”. O peixe, como figura que representa uma espécie de resistência, aparece também em “Arte poética” (Um jogo bastante perigoso, 1985) de Adília Lopes, embora a forma em que ele é apresentado se diferencie significativamente do poema de Adélia Prado: enquanto a escritora mineira utiliza o processo de limpeza dos peixes, a poetisa portuguesa recorre à etapa anterior, da pesca propriamente dita, para elaborar os seus versos: Arte poética Escrever um poema é como apanhar um peixe com as mãos nunca pesquei assim um peixe mas posso falar assim sei que nem tudo o que vem às mãos é peixe o peixe debate-se tenta escapar-se eu persisto luto corpo a corpo com o peixe ou morremos os dois ou nos salvamos os dois 62


tenho de estar atenta tenho medo de não chegar ao fim é uma questão de vida ou de morte quando chego ao fim descubro que precisei apanhar o peixe para me livrar do peixe livro-me do peixe com o alívio que não sei dizer Comparado ao poema de Adélia Prado, “Arte poética” possui muito mais movimento e agitação por tratar do momento decisivo da pesca: apanhar o peixe. Se em “Casamento” a escritora transparece por meio do silêncio e meditação do casal na cozinha o ato delicado e quase cirúrgico de manusear a carne na hora de salgar e retalhar, no poema da Adília Lopes o que está em questão é o instante ápice da prática da pesca. Ao descrever esse ato, o eu-lírico, através do primeiro ao terceiro verso (“Escrever um poema/ é como apanhar um peixe/ com as mãos”) e do título do poema – “Arte poética” – demonstra abordar, na realidade, o processo de elaboração poética e não da pesca, propriamente. Para a voz poética, escrever é como apanhar um peixe não pelo intermédio da vara, mas de modo direto com as mãos, ressaltando um envolvimento corporal que implica um esforço e atenção maior. O sexto e sétimo verso, “sei que nem tudo o que vem às mãos/ é peixe” demonstra o cuidado necessário para encontrar as palavras, as ideias e a forma mais precisa de expressá-las. Do oitavo ao décimo sétimo verso é narrado o momento de encontro do pescador com o peixe e o embate entre ambos: “o peixe debate-se/ tenta escapar-se/ eu persisto/ luto corpo a corpo/ com o peixe/ ou morremos os dois/ ou nos salvamos os dois/ tenho de estar atenta/ tenho medo de não chegar ao fim/ é uma questão de vida ou de morte” (grifo meu). Aqui, o confronto entre o pescador que captura o escorregadio peixe ou, de maneira ex63


plícita, entre quem elabora um poema e captura a escorregadia “Poesia” que paira sob o mundo para torná-la “poesia”, como diria Sophia de Mello Breyner Andresen 4, se manifesta como uma experiência impetuosa que coloca em risco tanto a vida do pescador/poeta quanto a do peixe/poesia. A resistência de ambos, que instaura o embate direto e corporal, acaba por terminar no momento em que apanhado o peixe, percebe-se que deve ser necessariamente realizado o seu retorno às aguas: “quando chego ao fim/ descubro que precisei apanhar o peixe/ para me livrar do peixe”. A libertação do peixe, animal que, aliás, não foi escolhido de maneira aleatória para representar o ato poético, conforme indicam as análises extraídas do Diccionário de los símbolos Jean Chavlier e Gheerbrant, apontam o caráter fértil e incontível do produto – poema – em relação ao seu próprio produtor que ao lançá-lo de volta às águas – mundo –, descobre-se ele mesmo também libertado: “livro-me do peixe com o alívio/ que não sei dizer”. Essa característica simbólica do peixe, relacionada à fertilidade e à ressurreição, são atribuídas também à poesia que, por ser incontrolável, torna-se constantemente fértil ao libertar-se do poeta e cair no mundo, originando de si uma quantidade numerosa de leituras, interpretações, intertextualidades e inspirações que conduzem o surgimento de mais textos, tornando-a permanentemente em estado de renovação e renascimento, o que tanto justifica a resistência do eu-lírico em apanhar o “peixe”, quanto depois de livrar-se dele. A imagem do peixe nos poemas de Adélia Prado e Adília Lopes, assim, apesar de ser utilizada de maneiras diferentes para tratar de temas também distintos, possui um significado muito próximo que evoca através da ideia de ressurreição e fertilidade um sentido de resistência. E, assim, vale ressaltar a importância dessa palavra em contraposição com “persistência”, que poderia ser atribuída ao movimento realizado pelas poetisas. O significado de resistência se adequa de forma muito mais completa, afinal, resistir seria uma espécie de luta contra uma força exter64


na, enquanto persistir seria, simplesmente, uma insistência. No caso de “Casamento” a resistência do encantamento amoroso que luta contra o tempo, e em “Arte poética” a resistência do eu-lírico que luta com a própria poesia para escrever. São duas poéticas distintas, mas que compartilham de um mesmo peixe, signo que aponta indícios de um campo rico de intersecção entre Adélia Prado e Adília Lopes.

4 Referência ao texto “Poesia e realidade”, de Sophia de Mello Breyner Andresen, publicado em 1960 no Colóquio/ Letras, em que a escritora faz a distinção entre o que ela consideraria Poesia, poesia e poema; a primeira, escrita com “p” maiúsculo, em nome próprio, teria sua existência na realidade independente do homem, enquanto que a poesia de “p” minúsculo seria o encontro e a captação ainda insuficiente do poeta da Poesia.

CITELLI, Adilson. O cotidiano revelado na poesia de Adélia Prado. Revista de Comunicação e Educação. São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br> . Acessado em: 20 jan. 2016 CHEVALIER, Jean, GHEEBRANT, Alan. Diccionário de los símbolos. Versão castelhana de Manuel Silvar e Artuno Rodríguez. Barcelona: Editorial Herder, 1986 DAL FARRA, Maria Lucia. Os frutos sazonais do feminino: Adélia, Adília e Paula Tavares. Revista de Letras, 2008. Disponível em: <http://seer.fclar.unesp.br> . Acessado em: 20 jan. 2016. LOPES, Adília. Caras baratas – Antologia. Lisboa: Relógio d’água, 2004 MARQUEZ, Maira Carmo. A poesia de Bagagem, de Adélia Prado. 2012. Dissertação (mestrado em Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/> MARTELO, Rosa Maria. Adília Lopes - ironista. Scripta. Belo Horizonte, 2004 PR ADO, Adélia. Bagagem. Rio de Janeiro: Record, 2009 ______ . Terra de Santa Cruz. Rio de Janeiro, Record, 2006 SOUSA, Phabulo Mendes de. A tessitura poética de Adília Lopes. 2014. Dissertação (mestrado em Letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/>. Acessado em: 20 jan. 2016.

65


De Filósofos e construtores: João Cabral de Melo Neto e Orides Fontela Maria Teresa Mhereb A respeito de O engenheiro (1945), terceiro livro de João Cabral de Melo Neto (1920-1999), Haroldo de Campos escreveu: “É a instauração, na poesia brasileira, de uma poesia de construção, racionalista e objetiva, contra a poesia da expressão, subjetiva e irracionalista” (1992, p. 80). Na contramão do lirismo inspirado, predominante na poesia nacional, o poeta pernambucano teria realizado o que ele mesmo intitulou trabalho de arte. Essa oposição, familiar aos seus leitores, foi desenvolvida por Cabral em seu conhecido, e talvez mais importante, trabalho teórico, “A inspiração e o trabalho de arte”1. Resultado de suas reflexões a respeito da poesia nacional, como também de sua própria poesia2, o trabalho de arte corresponderia ao fazer poético que se dá fora do domínio do espontâneo, do inconsciente e, evidentemente, do divino; é fruto do trabalho humano, da inteligência e da técnica e, poderíamos dizer, do esforço tantas vezes inconfesso pelos poetas, tal qual diz Cabral, como se tal esforço dissolvesse o aspecto sagrado da poesia. A figura mesma do engenheiro, que dá título ao livro comentado por Haroldo, e a emblemática epígrafe – “La machine à émouvoir” – de Le Corbusier (arquiteto moderno a quem, curiosa e logicamente, Cabral debita aprendizados filosóficos) sintetizam e ilustram bem essa concepção, segundo a qual a poesia pertence ao campo terreno do labor. Em “Inspiração e trabalho de arte”, João Cabral situa historicamente essas duas formas “extremas” segundo as quais 66

1 O texto foi elaborado para conferência realizada na Biblioteca de São Paulo em 1952. 2 É clara a mudança de concepção poética de seu primeiro livro “Pedra do sono” para “O engenheiro” e os trabalhos subsequentes. O salto da estética surrealista para uma poesia objetiva, reconhece o autor, foi impulsionado pela crítica de Antonio Candido.


os poetas concebem o “ato do poema”: precisamente, a inspiração e o trabalho de arte. Indissociáveis, segundo o poeta, nos tempos em que há “padrões universais de julgamento” (poderíamos pensar aí na arte greco-romana, na arte renascentista, ou até mesmo no teatro clássico francês), as duas posturas se separariam no período moderno. Com efeito, como resposta a uma transformação lenta e profunda de ordem econômica e social – que é o advento do capitalismo – o Romantismo questionou as normas poéticas (e estéticas, de modo geral) da tradição a partir da centralidade do sujeito (princípio constitutivo das teorias liberais): a concepção positiva das normas estéticas engendrava o valor também intrinsicamente positivo da emulação. Diferentemente, em nome do desenvolvimento de um estilo baseado em normas individuais, na genialidade e inspiração de cada artista, com o Romantismo dá-se o “deslocamento do autor para o centro de interesse da obra” (MELO NETO, 1995, p. 731. Itálicos meus). Cabral é avesso a tal concepção romântica de obra que “parece haver substituído a preocupação de comunicar pela preocupação de exprimir-se, anulando, do momento da composição, a contraparte do autor na relação literária, que é o leitor e sua necessidade” (MELO NETO, 1995, p. 734). O princípio da originalidade é perseguido a tal ponto que o poeta crê dever “realizar sua obra não com o que nele é comum a todos os homens […] mas com o que nele é mais íntimo e pessoal, privado, diverso de todos” (MELO NETO, 1995, p. 724), em outras palavras: com o que tange o incomunicável. Cabral preza pela autonomia da obra em relação a seu autor, de forma que ela possua sua objetividade própria e possa ser lida e interpretada como objeto independente, ou seja, comunicar. Para o poeta cuja arte decorre do esforço de construção, seu trabalho “vai lhe permitir desligar-se do objeto criado. Este será um organismo acabado, capaz de vida própria. É um filho, com vida independente, e não um membro que se amputa, incompleto e incapaz de viver por si mesmo” (MELO NETO, 1995, p. 734). 67


O primado da expressão subjetiva sobre a comunicação é o fundamento da noção de inspiração de que fala Cabral, e contra a qual se ergue a outra noção, a de trabalho de arte, e se realiza todo o seu trabalho desde O engenheiro. Para o poeta inspirado, diz o pernambucano, a composição “é o ato de aprisionar a poesia no poema”, “é o momento de um inexplicável achado” (MELO NETO, 1995, p. 723) que, vinculado à experiência imediata, pode também escapar-lhe no mesmo instante; sendo fruto de uma experiência imediata subjetiva e espontânea, a racionalização e o planejamento do poema devem, para os poetas inspirados, conferir-lhe feição artificial, inautêntica. Seja mais ou menos fundada na concepção de inspiração, essa seria a tendência majoritária, segundo Cabral, na poesia brasileira. Assim, tais princípios regeriam as poéticas de autores como Mário de Andrade, Manuel Bandeira (seu primo) e mesmo Carlos Drummond de Andrade (por quem tinha, todavia, grande admiração e a quem dedicou O engenheiro). Com efeito, lembremo-nos, por exemplo, do “Prefácio interessantíssimo” de Mário de Andrade à Pauliceia desvairada. A psicologia freudiana que, desde 1900, trazia à tona com suas pesquisas o avesso do sujeito iluminista, o universo onírico (a interpretação dos sonhos data de 1920) e a instância do subconsciente, foi absorvida produtivamente pelas vanguardas artísticas do começo do século XX, vide, por exemplo, o Movimento Surrealista que despontava na França e espalhava-se por todos os cantos do mundo ocidental (incluindo aí suas manifestações na América Latina – México, Brasil, Argentina…). Embebido dessas tendências, o “Prefácio” de Mário estruturava-se sobre o conceito de subconsciente e, embora o cálculo que dava em poesia fosse resultado de uma soma de lirismo mais arte3 – sendo a arte o trabalho de dar acabamento ao lirismo –, o eixo de valorização recaía sobre a espontaneidade criadora, entendida como a forma autêntica do registro poético: “Acredito que o lirismo, nascido no/ subconsciente, acrisolado num pensamento claro/ ou confuso, cria frases que são versos inteiros,/ sem pre68

3 Mário de Andrade escreve no “Prefácio interessantíssimo”: “Arte, que, somada a Lirismo, dá Poesia, não consiste em prejudicar a doida carreira do estado lírico para avisálo das pedras e cercas de arame do caminho”, retomando a fórmula de P. Dermée. In. De Pauliceia desvairada a café. São Paulo: Círculo do Livro, s/d; p.23.


juízo de medir tantas sílabas, com/ acentuação determinada” (ANDRADE, s/d, p. 22). É como antípoda dessa concepção que a poética de João Cabral se desenvolve desde O engenheiro e cuja expressão teórica máxima se dá em “Inspiração e trabalho de arte”, embora o poeta esteja igualmente distante de um fetichismo da forma, da hipervalorização formal parnasiana contra a qual Mário de Andrade se posicionava neste mesmo “Prefácio”. Sendo racional, o trabalho de arte implicaria um enxugamento dos excessos, ancorado no cálculo preciso da funcionalidade do poema e das estratégias a serem empregadas para obtenção do efeito esperado. Tudo isso não significa, escreve João Alexandre Barbosa (1996), que a expressão lírica da subjetividade desapareça; ocorre apenas que ela se dá num quadro de representação objetiva. Assim, a origem pernambucana e a visão de mundo (crítica) de Cabral, vão ser parte integrante de sua obra. Por outro lado, é Cabral mesmo quem explica que a poesia, que é resultado de um trabalho de arte, traz a experiência do poeta organizada em blocos mais amplos do que o lampejo que ilumina o poeta inspirado na escrita de seus fragmentos de percepção. Organizada em conjuntos mais concisos de experiência vivida, a tendência é que o trabalho de arte resulte também em uma representação mais objetiva da realidade. Em 1947, João Cabral publicou seu terceiro livro, Psicologia da composição. É consenso entre os críticos que o livro depura muitas das premissas do anterior (O engenheiro, de dois anos antes). Já o título remete à vertente dos poetas filosóficos, de que Edgar Allan Poe é o primeiro grande representante. Em Filosofia da composição (1846), Poe dispôs-se explicar o processo de construção de seu poema “O corvo”, os efeitos que buscava e os resultados a que chegou. O poeta americano mostrava então que razão e beleza não são inconciliáveis em arte, que a primeira pode conduzir à segunda e que o trabalho de discorrer sobre o processo de produção de uma obra não faz com que esta perca em beleza, tão pouco em comoção ou interesse. De fato, os versos de “O corvo” são ainda hoje exemplo de acuidade estética 4 . 69


Os poemas de Psicologia da composição são reflexivos, metalinguísticos, como indica já o título escolhido. Mas se a reflexão sobre a própria poesia é característica da obra deste poeta, notemos, no entanto, a ironia já contida no título do livro: se, por um lado, “psicologia” refere-se ao estudo subjetivo realizado pelo poeta sobre seu trabalho, por outro, poderíamos também ler aí uma espécie de “anti-psicologia da composição”, se a psicologia for entendida como o investigar exclusivo do profundo e oculto da subjetividade, dimensão humana que o poeta despreza como material poético. Diz João Cabral em entrevista: “O mundo interior pra mim é fonte de tormento, acho uma chatice”5. As partes I e II do poema homônimo de abertura do livro de João Cabral concentram alguns elementos que ilustram a ideia de trabalho de arte de Cabral6: Psicologia da composição

4 A forte impressão que este poema é capaz de provocar pode ser vislumbrada no fato de ter sido objeto de tradução de inúmeros poetas de grande porte, como Charles Baudelaire (“o maior poeta que o mundo já deu”, segundo Cabral), Mallarmé (que também muito contribuiu com sua poética) e Fernando Pessoa, todos eles poetas que Cabral reivindica: considerava Fernando Pessoa um poeta inspirado que trouxera grandes prejuízos para a poesia em língua portuguesa – opinião de que, evidentemente, podemos discordar – e tinha imensa e confessa admiração pelos outros dois. 5 Entrevista, op. cit., p. 29.

1.
 Saio de meu poema
 como quem lava as mãos.

 Algumas conchas tornaram-se,
 que o sol da atenção
 cristalizou; alguma palavra
 que desabrochei, como a um pássaro.

 Talvez alguma concha
 dessas (ou pássaro) lembre, 
côncava, o corpo do gesto
 extinto que o ar já preencheu;

 talvez, como a camisa
 vazia, que despi.

2.
 70

6 Não pretendo fazer descrição e análise exaustiva dos poemas que apresento. Mobilizo apenas alguns poucos aspectos que se relacionam mais imediatamente com o que venho discorrendo ao longo do texto. Ainda assim, sei que minhas considerações tem inúmeras limitações.


Esta folha branca
 me proscreve o sonho, 
me incita ao verso 
nítido e preciso.

 Eu me refugio
 nesta praia pura
 onde nada existe
 em que a noite pouse.

 Como não há noite
 cessa toda fonte;
 como não há fonte
 cessa toda fuga;
 como não há fuga
 nada lembra o fluir
 de meu tempo, ao vento que nele sopra o tempo. Para usar as expressões de Haroldo de Campos (1992), Cabral é um poeta construtor e um geômetra, de grande gosto pelas simetrias e assimetrias. Nesse poema predominam as simetrias: a primeira parte, por exemplo, é composta de quatro estrofes, um dístico inicial e um final preenchidos por duas quadras; a segunda parte possui quatro quadras. A quadra, com sua organização, geometria e cadência características, será recurso bastante recorrente em sua poesia. No dístico inicial – “saio de meu poema/ como quem lava as mãos” – é justamente a dimensão material, humana do fazer poético que vem à tona; é o fazer poético como trabalho de arte realizado pelas mãos do homem. Não há aí nada de espontâneo, ou de miraculoso. O dístico que fecha a parte I do poema traz outra imagem de cotidianidade terrena: “talvez como a camisa / vazia, que despi”. Nessas duas estrofes, as ações (de lavar 71


as mãos e, depois, de despir-se da camisa) são imagens objetivas, como fotografias. O primeiro dístico nos remete igualmente àquela autonomia do objeto artístico de que falávamos anteriormente: o poeta “sai de seu poema”, deixando-o livre e vivo em sua independência. É interessante notar que esta ideia se dá efetivamente como um princípio ao abrir o poema e submeter a si a continuidade deste. Na primeira quadra da segunda parte, vemos ainda a busca e o exercício de uma poesia objetiva, não internalizada (“esta folha branca/ me proscreve o sonho”), não onírica7, mas racional, calculada: “me incita ao verso/ nítido e preciso”. Na terceira quadra, novamente o diálogo e recusa da tradição poética nacional: nesta poesia, de que fala e faz o eu lírico, “não há noite”, ela é solar, clara. Também “não há fonte”: ela não brota, é o poeta que a constrói. E “como não há fonte/ cessa toda fuga”, toda fuga em direção à abstração subjetiva – e se não há fuga, há o encontro: entre a sensibilidade atenta e o mundo. Muito embora tenha declarado: “Sou uma poeta inspira8 da” , em nítida oposição à concepção cabralina de trabalho de arte, e a despeito de que sua poesia se afaste em mais de um aspecto da deste poeta, no prefácio a Alba, de 1983, Antonio Candido escreve que isto Orides Fontela (1940-1998) tem em comum com Cabral: “o rigor construtivo dos poetas engenheiros” (1983, p.4). Nesse sentido, segundo o crítico, ela teria dado continuidade à poética objetiva do pernambucano. A controvérsia entre a visão da poeta sobre seu processo criativo e a consideração feita por tão atento leitor e crítico de sua obra dá-se claramente dentro da chave cabralina, e mostra como uma leitura da poesia de Orides a partir de um dos dois extremos pensados pelo autor de “Inspiração e trabalho de arte” tem suas limitações. A obra de Orides Fontela comporta e ultrapassa, ao mesmo tempo, ambas as noções, e termina mesmo por colocar em xeque a própria oposição. A inspiração, disposição espiritual que toma de assalto o sujeito, é, para Orides, elemento fundamental do ato de escrever um poema. Ela irá, no entanto, tra72

7 Nisso dialoga e supera as concepções de seu primeiro livro, Pedra do sono (1942), de estética surrealista, muito influenciado pela estética de Murilo Mendes. 8 Em documentário sobre a poeta concebido pela TV Cultura, sob direção de Ivan Marques.


balhar as ideias e depurar a forma de seus poemas de tal modo que estes terão muitos pontos de contato com obras de poetas que Cabral considerava resultado de um trabalho de arte, assim como com a obra dele mesmo. Assim, Orides dá, sim, continuidade à tradição poética de Cabral, mas de uma maneira muito particular, cujas diferenças com a poesia do poeta nordestino são também marcantes. Alba, terceiro livro de Orides, foi o vencedor do Prêmio Jabuti e aproximou, como consequência, um maior público leitor de sua obra. Ainda assim, ela nunca chegou a ter o público de João Cabral de Melo Neto. Paralelamente, é interessante notar que poucos poetas gozam em vida de acompanhamento e reconhecimento da crítica literária como a poeta paulista. Na década de sessenta, Davi Arrigucci, nascido como ela em São João da Boa Vista (interior de São Paulo), leu no Município (jornal da cidade) seu poema “Elegia I” (posteriormente inserido em Helianto, 1973), que muito o impressionou. A partir daí, Arrigucci procurou a poeta, velha colega de colégio, e travou-se amizade entre os dois; foi o crítico quem a estimulou a mudar-se para São Paulo e estudar filosofia9. Em sua poesia, como na de Cabral, as marcas pessoais são poucos aparentes. Há uma espécie de apagamento do eu lírico, ligado à construção de um poema mais mental e menos emotivo, ao que poderíamos chamar de “engenharia”. Assim como sobre a poesia de Cabral, João Alexandre Barbosa alertava para o fato de que a experiência subjetiva do poeta aparecia configurada objetivamente, Davi Arrigucci esclarece que, a despeito da aparente ausência de biografia da autora paulista em sua poesia, ela está fortemente presente como experiência vivida. Essa presença, entretanto, dá-se via um alto “grau de abstração” e aparece “transfigurada em termos abstratos, numa meditação sobre grandes temas” (2005, p.116), entre eles: o branco, o meio-dia, o silêncio, o pássaro, a água, a rosa. Esses símbolos, em sua poesia, são, todavia, despidos das marcas que possuem no imaginário geral, eles são reconfigurados a partir de uma nova rede 73

9 Orides formou-se pela Universidade de São Paulo em 1972 e durante toda a vida manteve relações pessoais com diversos intelectuais de dentro (e fora) desta univerdade, como Olgária Matos e Antonio Candido, além do próprio Davi Arrugucci. Orides, no entanto, tinha temperamento um tanto difícil e suas relações com os amigos – e críticos – são repletas de anedotas dramáticas. Muitas delas são narradas pelos próprios envolvidos no já referido documentário.


de correspondências elaborada pela inteligência sensível de Orides. Como Cabral, ela lança mão de uma poética de concisão, sem excessos, mas, à diferença da poesia dele, possui uma “inclinação ao metafísico” (ARRIGUCCI, 2005, p. 116), à busca filosófica pela essência das coisas, ao abstrato, fazendo, não raro, emprego da conotação, sem que isso deixe, em momento algum, de fazer parte de um projeto de poesia lúcida, reflexiva. Orides insere-se também, como Cabral, na “tradição da lírica auto-reflexiva” (ARRIGUCCI, 2005, p. 116), ou, em outras palavras, na tradição dos poetas filósofos, os quais executam também o trabalho de reflexão a respeito de seu próprio ato criador. O poema “João” (de Teia, 1996) é exemplo disso. Vejamos: João 1. De barro
 o operário
 e a casa
 (de barro
 o nome
 e a obra).

 2.
 O pássaro-operário madruga:

 construir a
 casa
 construir
 o canto

 ganhar – construir –
 o dia.

 74


3.
 O pássaro
 faz o seu
 trabalho
 e o trabalho faz
 o pássaro.

 4.
 O duro
 impuro
 labor: construir-se.

 5.
 O canto é anterior
 ao pássaro

 a casa é anterior
 ao barro

 o nome é anterior à vida. O pássaro, símbolo tantas vezes retomado e explorado por Orides Fontela10, é aqui o João de Barro, pássaro construtor. Isso descobrimos na conjugação do título do poema, que, no entanto, é um nome próprio humano, “João”, para o primeiro verso, “De barro”. O poema estrutura-se no campo semântico da engenharia/construção: os verbos “madrugar”; “construir”; “ganhar”; “fazer” mostram que homem e pássaro estão unidos pelo “trabalho”. Essa relação, já indicada por meio do título e da primeira na primeira parte do poema, fica ainda mais clara na segunda: ela é aberta por um substantivo composto por justaposição, “pássaro-operário”. Soma-se a isso que sua segunda estrofe é formada pelo paralelismo sintático contruir+substan75

10 Vide, por exemplo, os poemas “Elegia I” (Helianto, 1973) e “Coruja” (Rosácea, 1986), dentre outros.


tivo (“construir / a casa / construir / o canto”), em que o primeiro substantivo pertence ao homem e o segundo ao pássaro. Há, ao mesmo tempo, uma quebra de paralelismo semântico entre “casa” e “canto”, a qual não só é responsável por entrecruzar traços de objetos aparentemente díspares, como também pelo efeito poético que esse texto provoca. Apenas um parêntese: não se pode nunca inferir sobre as intenções de um autor; uma análise do texto permite que descrevamos e analisemos apenas efeitos produzidos. Orides nunca fez declarações de que este poema faria alguma referência a João Cabral, mas é bastante curiosa a rede de sentidos produzida pelo cruzamento do nome próprio “João” com o campo semântico da engenharia/construção, donde transborda um sentido possível vinculado ao nosso outro poeta em questão. Nesse poema, a expressão lírica assume de início forma bastante objetiva. O primeiro verso do poema – “de barro” – é um predicativo do sujeito; os dois núcleos a que este se refere, “o operário/ e a casa”, vêm a seguir; o verbo “ser” é eclipsado na inversão da ordem, supostamente natural, da frase (sujeito-verbo-predicativo > predicativo-vazio-sujeito). Na segunda estrofe, o mesmo se sucede, de modo que se configura uma apresentação fotográfica do objeto. Na parte 2, temos uma sucessão lógica de ações que leva a uma conclusão que quase “fala por si só”, uma conclusão que é como a síntese do sentido da vida: “madrugar”, “construir a casa”, “ganhar” > “construir o dia”. Na terceira parte, essa conclusão depura-se e se torna como que uma máxima filosófica: “o pássaro/ faz o seu/ trabalho/ e o trabalho faz/ o pássaro”. Isoladamente, funcionaria também como um hai-kai: instantes de poesia que guardam sabedoria popular, observações e constatações sobre fatos prosaicos da vida. Na quarta parte, essa mesma conclusão, que veio modificando-se, é agora puramente lírica, carregada de adjetivos e, portanto, de valoração subjetiva: “o duro/ impuro/ labor: construir-se”. O rigor construtivo de Orides é bastante diverso do de Cabral. Em seus poemas, o jogo entre simetrias e assimetrias tem 76


sempre função particular e assume sentido específico em cada poema. O que notamos nesse poema, por exemplo, é um rigor em outro plano: na construção de um percurso que parte do objetivo, ou épico, passa pelo subjetivo, ou lírico, rumo ao absoluto. Explico o que quero dizer com “elevar-se ao absoluto”. Na última parte do poema temos algumas aparentes contradições: como pode o canto anteceder o pássaro que canta? E como pode a casa existir antes do barro com o qual se a ergue? E na última estrofe lê-se: “o nome é anterior/ à vida”. Aqui é retomada a palavra “nome” que aparecera na primeira parte do poema; há aí uma simetria, que nos faz encarar “nome” agora com alguma inquietação. Sob qual ponto de vista os nomes das coisas podem ser anteriores à sua existência? Sob alguns, entre eles: o do artista e o de Deus. Deus e artista são grandes arquitetos, criadores de universos inteiros, dos seres que os habitam, da forma e do conteúdo desses seres: em sua mente tudo existe antes de ser criado. Entre os artistas, são os escritores, especialmente os poetas, que trabalham com o nome das coisas, são eles que criam e estabelecem correspondências entre as coisas do mundo por meio de seus nomes. Essa nova figura, o poeta, salta da última 77

Raquel Siphone, Anósnimos, 2016


estrofe em vem posicionar-se como mais um trabalhador ao lado dos outros, pássaro e operário, mas lidando com sua matéria específica – a palavra –, por meio da qual engenha e constrói sua obra. O barro é matéria a ser modelada, matéria inerte que ganha forma e vida por meio das mãos do artista. Mas todos conhecemos, igualmente, a mitologia bíblica segundo a qual, do barro, Deus criou o homem: é a imagem de Deus engenheiro. É nesse sentido que o poema de Orides caminha para um “absoluto”: a relação entre pássaro, operário, artista e Deus é feita em busca da essência da vida humana, da atividade fundamental que a move: a atividade criadora. Orides teve formação católica e, por mais que tenha deixado de lado a religiosidade, sobretudo ao cursar filosofia, sua lírica sempre foi permeada de temas espirituais. Exemplo paradigmático disso é a epígrafe de seu primeiro livro, Transposição (1969): A um passo do meu próprio espírito A um passo impossível de Deus. Atenta ao real: aqui. Aqui aconteço. Uma permanente inquietação religiosa anima o seu senso de transcendência, “assim como a reflexão sobre o ser, a busca da essência das coisas”, escreve Arrigucci (2005. p.116), de modo que a obra de Orides Fontela, diz ainda o mesmo crítico, poderia ser metafísica se não fosse profundamente poética. São as marcas da experiência vivida da poeta em sua poesia: marcas da vida de uma poeta e filósofa que, sem dominar o instrumental da vida econômica e nunca adequada aos padrões vigentes de feminilidade, não pôde querer expressar o imediatismo da esfera prática do cotidiano e não trabalhou, em sua poesia, com temas exclusivos nem propriamente femininos, embora eles perpassem inevitavelmente sua obra. Orides parte rumo ao abstrato para retornar objetiva e dialeticamente ao real. Voltando ao nosso poema, o Gênesis nos conta que foi nomean78


do que Deus criou todo o universo, a Terra e todos os animais, antes do homem. Na mente do criador, a obra é calculada tendo em vista sua perfeição: o poeta nomeia e, ao fazê-lo, cria outro mundo possível, mas não um mundo qualquer, é o mundo da perfeição estética da ideia. Semelhanças com a concepção profana de um Edgar Allan Poe e um João Cabral não são meramente fortuitas. Se Deus, o grande engenheiro do universo, foi criado à imagem e semelhança dos homens, é porque somos todos construtores.

ANDR ADE, Mário de. Prefácio interessantíssimo. In: De Pauliceia desvairada a Café. São Paulo: Círculo do Livro, s/d. ARRIGUCCI JR., Davi. Orides Fontela. O pássaro, o sangue, o espelho. In: Jandira, n. 2, Juiz de Fora, outono de 2005; pp. 112-123. BARBOSA, João Alexandre. A lição de João Cabral. In: Cadernos de Literatura Brasileira. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 1996. CAMPOS, Haroldo de. O geômetra engajado. In: Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992. CANDIDO, Antonio. Prefácio. In: FONTELA, Orides. Alba. São Paulo: Roswitha Kempf, 1983. FONTELA, Orides. Alba. São Paulo: Roswitha Kempf, 1983. ______ . Poesia completa. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. MELO NETO, João Cabral. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995.

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A janela indiscreta do drama Mateus Albino “O teatro é o primeiro soro que o homem inventou para se proteger do mal da angústia.”
 Jean-Louis Barrault Janela indiscreta1 é com certeza um filme ousado, mesmo para Hitchcock. Ele se passa em um lugar apenas, um quarto fechado e quente, no qual Jeff, um fotografo com a perna quebrada, é obrigado a passar semanas confinado. Porém, apesar do filme se passar nesse ambiente ele acontece de fato em todos os lugares que podem ser vistos do lado de fora. O protagonista entediado até a morte por não poder sair observa as casas da vizinhança pelas janelas dos apartamentos, como se assistisse a vários filmes, um em especial, no qual há supostamente (o que no fim do filme se descobre não ser apenas uma suposição) um assassinato. O protagonista é como o próprio espectador, sentado impotente diante de uma tela, no caso, uma janela de fato, que se abre para o mundo. Em A estética do filme, Jaques Aumont, acerca das ideias de Bazin sobre o quadro cinematográfico, comenta: “É essa ideia que é traduzida de maneira extrema pela famosa fórmula de André Bazin[...], que qualifica o quadro de ‘janela aberta para o mundo”(A estética do filme. p. 24). Pode-se dizer que a impotência de Jeff como mero espectador é ilustrada no fim do filme, quando ele encontra o suposto assassino desprotegido da distância, desprotegido do escuro, desarmado de suas lentes, tudo o que pode fazer é olhar; Jeff só tem a vigilância do espectador sobre o personagem, tanto que o fotógrafo se salva graças à luz do flash disparada sobre o vilão. Porém, essa transposição narrativa do personagem para o 80

1 Título original, RearWindow, filme de 1954, escrito por John Michael Hayes, baseado no conto de Cornell Woolrich, dirigido por Alfred Hitchcock e estrelado por James Stewart e Grace Kelly.


local de espectador pode aproximá-lo tanto quanto, ou até mais, de alguém que assiste a um drama do que de alguém que assiste a um filme. O primeiro plano, enquanto aparece o título do filme, é o das cortinas subindo, como o começo de um espetáculo teatral. Esse espectador acompanha uma obra dramática clássica, por mais que o cinema, especialmente o de Hitchcock, esteja predominantemente no gênero narrativo. Neste texto serão observados elementos e características do drama clássico que também são vistos no filme em questão, e algumas considerações que Barthes faz sobre a estrutura do teatro de Racine que também aparecem em certa medida no filme de Hitchcock. Antes de tudo é preciso dizer que essa semelhança do protagonista de Janela indiscreta com um espectador de um drama não faz, de maneira alguma, com que o filme se aproxime formalmente do gênero dramático. A obra de Hitchcock é extremamente narrativa e utiliza com primor a técnica da montagem. Não é o filme em si que se assemelha a uma dramatização, é apenas o protagonista que é colocado numa posição semelhante à de um mero espectador. O drama clássico, conforme Anatol Rosenfeld o descreve, é o gênero no qual o mundo se expõe a si mesmo, sem intermédios narrativos, os personagens dramáticos são conhecidos pelo público a partir de suas próprias ações e não por meio das impressões de um narrador, “Estando o ‘autor’ ausente, exige-se do drama o desenvolvimento autônomo dos acontecimentos, sem intervenção de qualquer mediador, já que o ‘autor’ confiou o desenrolar da ação a personagens colocados em determinada situação”(O teatro épico, p. 30). O drama clássico é composto também pela estrutura das três unidades: de tempo, de espaço e de ação. A de tempo corresponde à premissa grega de que a tragédia clássica deveria durar um dia apenas (tempo que é distendido um pouco no caso do filme). A unidade de espaço é necessária pois o drama não pode acontecer em locais distantes sem a intervenção de elementos narrativos. A de ação, é relativa a uma ação maior, uma finalidade única, que é focada pelos persona81


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gens; segundo John Dryden no Ensaio sobre a poesia dramática, Quanto à terceira unidade, que é a da Ação, os antigos queriam dizer o mesmo que os lógicos com relação ao seu finis, a finalidade ou alvo de qualquer ação; aquilo que está em primeiro lugar na intenção e por último na execução: o poeta objetiva uma grande e completa ação…(CLARK, 1965, p. 133. Tradução nossa) Tudo o que foi comentado acima acerca da obra dramática pode ser observado no caso do protagonista do filme. Não há ninguém contando a história do assassinato, do compositor que não consegue terminar sua música, nem da mulher solitária que sonha com um amante (alguns dos vizinhos de Jeff). As vidas dessas pessoas são expostas a partir delas próprias, espiadas através da janela do apartamento do fotógrafo, elas acontecem de fato naquele momento, assim como a vida do protagonista. Pode-se dizer que estão todos numa mesma camada diegética, acontece tudo ali, concomitantemente, no filme, a vida de James Stewart interpretando Jeff tem as mesmas porção e força de realidade que a dos outros moradores da vizinhança. Essa é a proposta da arte dramática pura, que o universo ficcional aconteça no mesmo momento que o espectador o vê, e seja tão verdadeiro a ponto que o espectador não saiba que está em um espetáculo. É claro que no filme o fotógrafo não está assistindo a uma obra artística, mas isso apenas acentua as semelhanças do protagonista com o espectador do drama. Quanto às três unidades dramáticas, elas estão evidentemente presentes no caso de Jeff. O espaço é o da sua vizinhança, o que acontece fora de lá precisa ser contado ao fotógrafo, pois não pode ser apresentado sem a quebra da unidade espacial. A unidade de tempo pode ser observada apesar dos cortes e elipses temporais. No filme, acompanha-se a história a partir da visão do fotógrafo, e seriam necessários rolos de negativos demais para mostrar cada segundo dos dias que se passaram em sua realidade diegética. Porém, a unidade temporal acompanhada pelo pro84

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tagonista não é perdida, pois a trama, do assassinato ou mesmo do quase suicídio da mulher solitária, se desenrola com ou sem o acompanhamento ativo do espectador-protagonista. Por exemplo, quando o suposto assassino sai de casa com uma mulher, Jeff dorme e não vê o que acontece, mesmo assim, tudo acontece: a máquina do drama continua funcionando. A unidade de ação acompanhada por Jeff existe, pois os personagens, por exemplo, o compositor, a mulher solitária, o assassino têm claramente um objetivo, e tudo o que eles fazem é a fim de conquistá-lo. Nas vidas de alguns dos vizinhos observados, percebe-se ainda, a existência de certa progressão dramática, existente nos personagens próprios a esse gênero, progressão que é gerada, primeiramente, por uma vontade do personagem e posteriormente por um conflito; em Brunetière na Lei do drama (presente em European theories of the drama de Barrett H. Clark, citado em Introdução à dramaturgia, de Renata Pallottini) afirma-se, “No drama ou na farsa, o que nós pedimos ao teatro é o espetáculo de uma vontade que se dirige a um objetivo, consciente dos meios que emprega”(Introdução à dramaturgia, p. 20). Hegel, em sua Estética, citada por Pallotini, afirma que: “O interesse dramático só nasce da colisão entre os objetivos dos personagens. O que realmente produz efeito é a ação como ação, e não a exposição dos caracteres em si”(Ibidem, p. 13). Alguns destes personagens vistos pelo fotógrafo passam por esses conflitos que surgem a partir das e interferem nas vontades de cada um. A mulher solitária, “Mrs. Lonely Heart”, por exemplo, deseja encontrar um marido. Ela chega a simular um jantar e acaba desolada e sozinha com a mesa posta para dois; noutra noite, a personagem chega com um homem em sua casa, eles parecem ter vindo de um encontro romântico e tudo vai bem até o homem tentar agarrá-la à força, situação na qual ela reage dando um tapa, fazendo o homem ir embora, enquanto a mulher cai em prantos no sofá. Em outra noite a senhora solitária pretende cometer suicídio pela impossibilidade de conseguir um amante, mas a música do compositor a impede de tomar os 85


remédios que a matariam e no final do filme os dois aparecem juntos, sugerindo um romance. O músico vive sozinho e não consegue terminar uma composição. Jeff comenta que ele provavelmente teve um casamento infeliz. O compositor passa quase o filme todo trabalhando em sua obra, no final ele consegue terminá-la, e a mostra finalizada e orquestrada à mulher solitária. Os dois têm como que um final feliz juntos, escutando o disco. Acabar com a solidão, compor uma música e assassinar a esposa em segredo são as vontades, ou interesses de cada um destes personagens. E eles os perseguem apesar das adversidades e conflitos. Assim são geradas ações dramáticas que movem estas vidas, como a tentativa ou a desistência do suicídio, o assassinato do cachorrinho e o ataque a Jeff. Entremos agora em algumas questões que Barthes comenta acerca de elementos e características do drama clássico de Racine e que podem ser observadas no caso do protagonista do filme. Em seu livro Sur Racine, ele afirma que nas peças desse autor existem três espaços, la chambre (chamaremos de sala), l'antichambre (a antessala), e l’extérieur (o exterior)2. Nesses lugares acontecem ações de tipos diferentes, que “pertencem” a cada um deles. A sala é o local fechado, escondido, o local do segredo. É como o mesmo local em que Jocasta suicida-se e Édipo arranca os olhos na peça de Sófocles, o interior do palácio. É um local não visto pelo público. No caso do filme, é o local onde acontece o assassinato, ou onde o casal recém-casado tem suas núpcias. Nesses momentos a janela está fechada, Jeff não vê os acontecimentos que tradicionalmente não são interpretados no drama, a morte e o sexo não são mostrados no teatro clássico. O assassinato não é visto e, de certa forma, é revelado no filme a partir da massagista, personagem sobre a qual falaremos mais adiante. Para Barthes, a antessala é a cena propriamente dita, é onde ocorrem os diálogos. No caso do filme, onde as ações po86

2 BARTHES, Roland. Sur Racine. Paris: Seuil, 1963.


dem ser vistas e onde o protagonista-espectador vem a conhecer os personagens da vizinhança, as casas e quartos de cada um deles. O exterior é o local onde não há o drama, Barthes comenta que é o local da morte, da fuga e dos acontecimentos que são trazidos para o drama na forma de narração por algum personagem. Na peça Fedra, de Racine, o exterior é onde Teseu está foragido e supostamente morto; é também onde Hipólito morre, assim que sai. No filme, é onde o assassino diz que a esposa morta está, viajando, longe da vizinhança. É também para onde ele pretende fugir para escapar da punição do assassinato. O que acontece fora do local dramático, no exterior, por exemplo, na estação de trem, é contado pelo detetive Doyle. Quanto à massagista, Stella, e ao personagem do detetive Doyle, percebe-se que eles realizam, algumas vezes, a função de narrarem os fatos não mostrados, como Terâmeno, personagem na peça Fedra, de Racine. Doyle conta o que se passou na estação de trem onde supostamente a esposa do assassino embarcou para sua viagem. Stella, duas vezes durante o filme, comenta os detalhes sanguinolentos de como ela imagina ter sido todo o processo de morte da mulher. Barthes comenta que narrar é uma das funções de alguns personagens em Racine, como é o caso de Terâmeno, que conta a morte trágica de Hipólito e revela que há um rumor de que Teseu, o rei, está vivo. Em suma, todas estas semelhanças que podem ser observadas entre Jeff e um espectador do drama existem, principalmente, devido à presença de todos numa mesma camada diegética, colocando, assim, todos no mesmo universo, na mesma realidade, que é, como já dito, a proposta do drama clássico. É importante, no entanto, relembrar que o filme de Hitchcock é absolutamente narrativo e cinematográfico, sustentando-se completamente na montagem. Na entrevista que Truffaut faz com Hitchcock, o diretor diz:

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Alfred Hitchcock: Inteiramente, pois aqui você tinha uma possibilidade de fazer um filme puramente cinematográfico. Você tem o homem imóvel que olha para fora. Esse é um primeiro trecho de filme. O segundo trecho faz aparecer aquilo que ele vê e o terceiro mostra a sua reação. Isso representa aquilo que conhecemos como a mais pura expressão da ideia cinematográfica. (...) Da mesma maneira (que o efeito Koulechov3), tomamos um plano próximo de James Stewart. Ele olha pela janela e vê, por exemplo, um cachorrinho que é baixado até o pátio em um cesto; voltamos a Stewart, ele sorri. Agora, no lugar do cachorrinho que desce no cesto, mostra-se uma moça em pelo que se contorce diante de sua janela aberta; recoloca-se o mesmo plano próximo de James Stewart sorrindo e, agora, ele é um velho salafrário! (Hitchcock/Truffaut: Entrevistas, p. 129) Essa montagem constrói como que um plano contra plano entre Jeff e os “dramas” que ele acompanha. Penso que esse seja o grande mérito e fator especial do filme, aquilo que o torna inesquecível: essa dupla identificação que temos com o protagonista, parte como espectadores do filme, do mistério e do romance entre James Stewart e Grace Kelly, e parte como acompanhantes de Jeff, sendo espectadores dos dramas de sua vizinhança.

AUMONT, Jacques. et al. A estética do filme. 9 ed. São Paulo: Papirus, 2012. BARTHES, Roland. Sur Racine. Paris: Seuil, 1963. CLARK, Barrett. H. European theories of the drama. Nova Iorque: Crown Publishers, 1965. HITCHCOCK, Alfred. Janela indiscreta. Universal Studios. DVD, 2012. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 1990. PALLOTTINI, Renata. Introdução à dramaturgia. São Paulo: Editora Ática, 1988. R ACINE, Jean. Phèdre. Paris: Galimard, 1995. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 1994. SÓFOCLES. Édipo Rei. Porto Alegre: L&PM, 2012. TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: entrevistas. São Paulo: Brasiliense, 1986.

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3 Experimento feito através da combinação de planos por Liev Koulechov. Mostra-se um primeiro plano do ator Ivan Mosjoukine e em seguida o plano de um bebê morto, a feição do homem parece ser de tristeza ou compaixão. Depois há o mesmo plano de Mosjoukine, mas dessa vez comparado a um prato de sopa, então ele parece ter fome. Uma terceira comparação é feita entre o plano do ator e o plano de uma mulher, agora o homem parece ter desejo.


entrevista Patricia Ciriani: “Se uma obra de arte não resiste a uma agressão, não é uma obra de arte” por Henrique Amaral e Isabela Benassi A cisma conversou com Patricia Ciriani (francesa/peruana) historiadora da arte e da arquitetura, e curadora de exposições e publicações artísticas.

A diferença é o público. Uma exposição é

acordo com a importância do seu museu ou instituição, você vai ou não ser visto. Então, como em Paris há esse excesso de oferta, há mais possibilidade para as pessoas compararem e, então, criticar. E isso é fundamental: existir uma grande atividade cultural que lhe permita ter critério para comparar e poder, no melhor dos casos, entender onde há falhas [na arte]. Gerar, então, um tipo de critério em que podemos reconhecer o que é melhor ou pior que a média,

como um livro: não se escreve da mesma maneira num contexto em que você sabe que vão te ler ou não. Em Paris, por exemplo, há tanta oferta cultural que, de

esta que se calcula em termos estéticos (se as obras são interessantes), mas também em termos de mediação, haja visto que na França há a preocupação

A partir de sua experiência, você pode comentar as diferenças de organizar exposições em cidades como Paris, Barcelona e Lima?

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com a comunicação do artista ou da curadoria ou, digamos, do tema da exposição frente ao público. Ou seja, na França há a preocupação pedagógica com a arte, em oferecer mediadores nas exposições, uma equipe para auxiliar na leitura das obras. Em Barcelona, vivi durante cinco anos. Trabalhei no Museu de Arte Contemporânea, no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona e também dirigi um festival de arte num espaço público [o Festival Lilliput]. Barcelona é uma cidade relativamente pequena, em comparação com Paris, mas também um lugar que tem uma oferta cultural incrível. Levando em consideração a população das duas cidades, Barcelona apresenta um número restrito de pessoas que frequentam o circuito artístico: todo mundo se conhece, e por isso a relação com a arte não é anônima, e sim de amizade ou de família, o que torna esse cenário bem menos crítico também – nesse sentido, é bem parecido com Lima. Assim, a crítica não é tão vasta, mas por outro lado, em Barcelona as pessoas são muito entusiastas em relação a qualquer proposta: por exemplo, quando eu criei minha revista online de cinema ou o Festival Lilliput, tive uma página inteira num dos jornais mais importantes de lá, algo impensável na França. Então vemos em Barcelona uma ideia de contracultura – não necessariamente 90

“Me parece que, mais que lugares, as pessoas tomaram a pele da cidade” uma cultura mais contestatória ou anarquista (já existente), mas também de jovens que criam uma revista ou um centro cultural – que pode apostar nos meios de comunicação como apoio. Assim, é uma cidade bastante amável nesse sentido, criadora de toda uma infraestrutura de gestão cultural. Mas ainda continua sendo um núcleo e, por ser muito concentrado (e, inclusive, no centro histórico da cidade), apresenta na relação com o público um certo buenismo (“— ah, que bom que você veio, genial!”), porém sem muita crítica, ou muita profundidade e que acaba não tendo muita transcendência. Em Lima, porém, há uma maior oferta cultural surgindo de uns cinco ou seis anos pra cá, muito relacionada ao boom econômico que em 2006 e 2007 começou a se sentir. Mas é tudo muito efêmero, são muitas coisas que vêm e vão, e que não formam nada muito sólido. Nos anos 1990, em meio à ditadura, houve duas Bienais de arte, uma peruana e outra ibero-americana, mas tudo isso desapareceu nos anos 00. Infelizmente, não conseguimos


recuperar esse nível para confrontar os problemas contemporâneos e agora só criamos arte em consonância com o mercado. Hoje em dia tudo está vinculado ao mercado, houve em abril duas feiras que têm como objetivo aproximar o público da arte contemporânea, mas que, na verdade, só aproximam através do colecionismo. Isso se torna, digamos, pouco “ético”, já que não tem a ver com expor a arte em si, mas sim divulgar galerias e sustentar o pequeno mercado econômico. Então isso contribui com a apropriação no sentido de propriedade, e não de apropriação intelectual – o que me parece nefasto. Assim, em Lima, essa questão não tem um caráter democrático, quem vai lidar com a arte são pessoas que têm tempo para lidar com ela e quem vai aos museus também são as que dispõem desse ócio. Quando organizo uma exposição em Lima, é sempre muito difícil criar um conteúdo curatorial e pessoal, pois o que o público daqui acaba pedindo é uma visão global da arte, principalmente porque ele não tem ideias e bases históricas do cenário daqui. Para que isso não aconteça, o ideal seria primeiro formar o público para que ele depois tenha uma ideia de

onde há maior efervescência artística e política. Há uma falta de crítica e de autocritica no meio da arte em Lima. A maior concentração dos meios está na mão dos ricos e é, principalmente, direcionada à publicidade. Então não há ninguém para orientar o público sobre o que é bom ou ruim, definindo tudo o que é divulgado como “bom”, mas que na verdade é medíocre.

onde se situa cada artista, e por isso eu considero as exposições de Lima pouco críticas, em comparação com a Colômbia ou até mesmo São Paulo –

esse assunto (risos). Na Europa, os anos 1970 e 1980 foram os tempos da ideia de educação popular da arte. Apesar de reunir menos pessoas naqueles

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Essa condição que você caracterizou sobre Barcelona, a respeito do acolhimento da cidade, não é o caso de São Paulo. É muito difícil para gente conseguir dinheiro, visibilidade e espaço aqui. Mas realmente, a gente possui um impulso, essa vontade de expor e de fazer as coisas... Quanto aos espaços de exposição que você tem visto ao redor do mundo, ou mais especificamente em São Paulo e em Lima, você enxerga que tipo de tendência? Elas estão voltadas ao fechamento da instituição artística, ou à abertura para a cidade e seu entorno? Sou um pouco pessimista em relação a



“Em um mundo tão desigual, é necessário que existam ações brutais, porque na verdade a brutalidade e a violência são contínuas no sistema capitalista que vivemos”

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tempos, todo o meio artístico tinha a mesma ótica de que o centro de arte deveria ser aberto, público, gratuito e não ter hierarquias intelectuais. Hoje em dia, em compensação, há uma hipocrisia do grande meio [da arte], que faz com que essa relação de participação do público, na verdade, o exclua completamente. Me parece que essa onda de “participacionismo” dos anos 1990 e 2000 agora está se restringindo a oficinas de qualquer coisa, como fotografias, escrita dinâmica e atividades que te permitam apenas desabafar sobre qualquer coisa. Vi em muros de São Paulo e de Lima coisas como “Ponha aqui tua opinião sobre teu bairro”, “O que pensa do seu bairro”, e você vai lá e coloca “Meu bairro é uma merda” ou “Eu gosto”. A questão é que nesse caos, parece que a massa de gente é estúpida e não é capaz de gerar uma inteligência coletiva, apenas manifestações individuais. Não conheço muito bem SP, mas pelo que vi, essas organizações se manifestam como uma reciclagem de fórmulas que não necessariamente funcionam para qualquer lugar. Por outro lado, há uma grande cena de resistência ao mercado imobiliário, como é o caso do

de poder centrais, mas é difícil que eles se concretizem em grupos de arte. Há uma falta de solidariedade muito grande em Lima, talvez esse seja um resquício da ditadura e que faz com que ninguém confie em ninguém e todo mundo seja muito individualista e hipercapitalista. Mas em São Paulo ainda se vê um certo movimento que se parece com o punk: que perdura, é extremo e radical...

Parque Augusta, e nisso sim vejo um movimento bastante interessante. Em Lima isso não existe, há uma constante pressão das periferias frente aos grupos

fez com que as pichações se tornassem a publicidade da cidade. Obviamente, como em toda arte, há a boa e a ruim: há pichações que sabem organizar muito

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Então, em diálogo com esse universo de resistência, como você vê as intervenções urbanas em São Paulo, como os grafites e as pichações? Esse é meu grande ponto de interesse com relação a São Paulo. Me parece que, mais que lugares, as pessoas tomaram a pele da cidade. E essa é uma ação muito potente, embora não organizada e que ainda não possa calçar uma revolução talvez a longo prazo. Mas é uma revolução visual fantástica, porque tomou um espaço que ninguém tinha lhes dado e que mudou realmente a visão da cidade. Isso, coincidindo com a proibição da publicidade, por outro lado


bem suas linhas geométricas em função das camadas arquitetônicas ou criticam a política atual, e outras que não. Mas seguramente todas são arte, e as que não possuem permissão para agir são mais potentes, sempre; e também sem que um museu tenha que dizer se está boa ou ruim. E por não receber nenhum incentivo financeiro, me parece que durará mais, já que se organiza de forma independente. Assim, essas pichações são variações do movimento do grafite, mas que se reapropriaram de um alfabeto das runas escandinavas1 para dar uma característica mais pessoal aos edifícios e à verticalidade de São Paulo. E isso cria uma combinação incrível entre a cultura urbana mundial e a arte de rua paulista de característica mais rígida, que de fato não encontrei em outros lugares, como no Rio de Janeiro, onde vi grafites mais coloridos. Em um mundo tão desigual, é necessário que existam ações brutais, porque na verdade a brutalidade e a violência são contínuas no sistema capitalista que vivemos, e muitas vezes passam despercebidas por nós.

Como você enxerga o feminismo em relação à arte e à política, quais são as dificuldades e as possibilidades enfrentadas por você nesse domínio? 95

Me interesso muito pela teoria descolonial: Anibal Quijano, Walter Mignolo, Néstor García Canclini2... teóricos que desde 1998 e 1999 retomaram o que Deleuze e Foucault haviam deixado na Europa, a fim de repensar uma teoria para a América Latina e, sobretudo, embasar uma teoria da biopolítica3 que partisse da América Latina. A ideia fundamental é que a modernidade não se expandiu pelo mundo, mas sim nasceu da ideia de colonialidade. Com o descobrimento da América (o que na verdade é uma

“Quem tem que ditar agora as noções de diferença são as mulheres, os gays, os negros, transexuais e os índios. E por isso o feminismo está na base do pensar, porque pensar é exercer a capacidade de reconhecer o diferente e de contestar a injustiça”


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invenção, já que o seu povo já existia), é fundada a ideia de uma Europa diferente, civilizada, organizada e que conquistaria o mundo, o que formou uma hierarquia, uma visão totalmente eurocêntrica da situação. Então, a questão é que estamos todos envoltos por esse prisma, por isso precisamos nos “descolonizar”, já que a colonização perdura até hoje. As nações já não têm tanto poder, mas sim as empresas, que são transnacionais. Da mesma maneira, a feminilidade (assim como a negritude) também deve ser repensada. Para isso, quem tem que ditar agora as noções de diferença são as mulheres, os gays, os

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negros, transexuais e os índios. E por isso o feminismo está na base do pensar, porque pensar é exercer a capacidade de reconhecer o diferente e de contestar a injustiça. Então, para repensarmos esse sistema atual, o feminismo é tão fundamental quanto descolonizar-se. Ir contra o sistema dominante, para eliminar a ideia de dominação e exclusão. O pensamento existe para todos ou para ninguém, o mesmo serve para a arte. A França perdeu muito de sua defesa da educação popular dos anos 1960 e 1970, ao ponto de estar hoje bem próxima do sistema peruano todo baseado em museus privados, onde o


espectador deve se manter passivo e não incomodar. Não há ideia mais de acordo geral que “a arte tem que ser comum a todos”, pois pensar que só alguns vão apreciá-la e entendê-la é reproduzir esse passado elitista colonial. Esse tipo de pensamento também é reproduzido pelo meio colecionista, pelo mundo restrito da arte, e isso é justamente tudo com que não concordo… Uma obra deve ser capaz de confrontar qualquer público, mesmo aqueles que atacam a arte (Munch, Newman que foram cortados em pleno museu 4). Se uma obra de arte não resiste a uma agressão, não é uma obra de arte. Se a arte é realmente sólida, boa, não há agressão que a faça cair – assim como a democracia. Hoje a democracia na França está bem debilitada e, após os atentados, se encontra em estado de emergência há meses, como uma ditadura. O mundo da arte também está muito debilitado.

Parece que não vai resistir. Por isso São Paulo me parece uma cidade muito forte, porque sem publicidade, com pichações, continua sendo reconhecível como cidade. Tem personalidade. O que algumas teorias feministas dizem é que a sua personalidade vai além do seu gênero, transcende o dominante e o dominado e possui a chance de tomar a palavra. Assim, é obvio que ele é fundamental para que a nossa sociedade elabore novos paradigmas e, então, mude. Me mantenho pessimista em relação à arte, porque a curto prazo nada vai mudar, mas a longo prazo penso que os movimentos de resistência, artística e política, são essenciais e podem mudar muita coisa.

1 O alfabeto rúnico era utilizado pelos povos nórdicos como sistema linguístico anterior ao alfabeto latino. Apresenta uma caligrafia tribal e predominantemente quadrangular. Carl-Gustav Werner catalogou algumas dessas fontes no estudo detalhado The allrunes font and package, que pode ser acessado em <ftp://tug.ctan.org/pub/tex-archive/fonts/allrunes/allrunes.pdf>. 2 Aníbal Quijano, sociólogo peruano e pesquisador da Colonidad del poder, teoria que busca desconstruir a hegemonia europeia sob a América Latina; Walter Mignolo, semiólogo argentino criador do Grupo modernidad/colonialidad, principal coletivo crítico aos sistemas educacionais coloniais da América Latina; Néstor García Canclini é escritor, antropólogo e crítico cultural argentino. 3 A teoria biopolítica de Foucault analisa as estruturas de poder existentes na sociedade, apresentando o que faz com que elas sejam aceitas e construídas, principalmente em relação àquelas exercidas pelo Estado sobre os corpos e as mentes. 4 As obras em questão – O grito, de Edward Munch e Quem tem medo de vermelho, amarelo e azul III, de Barnett Newman – sofreram atentados do público: a primeira sofreu uma série de roubos, em 1994 e depois em 2004; já a segunda foi cortada em plena exposição, em 1986. Créditos das fotografias: Sara de Santis, Paisagem paulistana, 2013/2015

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tradução Que coisa é traduzir “Che cos’è la poesia?” de Jacques Derrida? Rafael Silva No título traduzante desta epígrafe (ou antes, epitáfio?) à minha tentativa de tradução do artigo de Jacques Derrida, “Che cos’è la poesia?”, inscreve-se a aporia de um incontornável tour de force (valendo-me de uma expressão que remete aqui, obliquamente, a “Des tours de Babel”2). Tornos e torres, voltas e revoltas, ao fim do primeiro contorno – como em ritornello – eu retorno ao princípio e venho à reviravolta. À reviravolta de Babel que vem como princípio e já não volta. E nos cruzamentos – que se dão no leito ou nas trilhas – das mais diversas e voluptuosas línguas, disseminam-se delírios de versos: brasileiros, italianos e franceses, entre tantos gregos e troianos. Diria, num esboço de resposta à questão – à minha, colocada a mim ainda há pouco – que é coisa impossível. Ou seja, que se dá (es gibt) em possibilidade. Naquela que surge a partir da diferença3 que se inscreve numa letra – ou na “repetição” da mesma –, ainda que imperceptível ao soar do lógos, e que faz toda a diferença: se dá em possibilidade, não impossibilidade. Coisa impossível, portanto. O texto de Derrida foi motivado pela demanda “Che cos’è la poesia?”, colocada pelos editores da revista Poesia, a fim de que fosse traduzido em italiano e publicado nesse idioma. Derrida, contudo, não poderia ter facilitado a via de Maurizio Ferraris 100

1 Gostaria de agradecer à leitura atenta de Caroline Micaelia, pelas sugestões, apontamentos e por sua abertura à interlocução. 2 Cf. o texto contido em: Derrida, “Des tours de Babel”. Ou a tradução de Júnia Barreto: Torres de Babel. 3 Remeto aqui à “différance” (cf. as palavras do filósofo sobre tal tema, em “La différance”, ou sua tradução, “A diferença”). Embora tradutores anteriores tenham optado traduzir essa palavra por “diferência” (Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro, em Gramatologia) e “diferança” (Joaquim T. Costa e Antônio M. Magalhães, em “A diferença”), acredito que a adoção do neografismo “differença”, com uma mudança silenciosa remetendo ao radical do termo em francês, se inscreva bem no contexto do pensamento derridiano.


(o tradutor italiano) e por isso escolheu a inscrição da aporia: a tradução do francês ao italiano – transportada aqui, por sua vez, para a tradução do francês ao brasileiro – a partir de certa irredutibilidade idiomática, ou seja, de uma impossibilidade que a tornava em possível. Como se todas essas constrições não bastassem para desencorajar o élan de um pretenso tradutor, vim a descobrir – depois de terminar um primeiro esboço de tradução – a existência de dois textos junto aos quais eu deveria inevitavelmente ter me amparado antes de cogitar qualquer tentativa por mim mesmo. 4 Trata-se de uma tradução brasileira, a de Marcos Siscar e Tatiana Rios,5 e outra portuguesa, a de Osvaldo Manuel Silvestre.6 Se o atraso com que vim a descobrir tais textos por um lado privou-me de importantes esclarecimentos que teriam tornado minha travessia mais consciente, por outro, concedeu-me o espaço mínimo de que necessitava para eleger meu próprio caminho. Acredito que se os tivesse lido anteriormente, teria me sentido desencorajado demais para (ar)riscar outra linha nessa já espessa tessitura. Nesse caso, minha (quase) ignorância foi antes uma graça. Reconheço na operação de cotejo dessa complexa rede uma incomensurável dívida para com aqueles que se lançaram às águas deliciosamente turbulentas do texto derridiano enquanto anotavam passo a passo o seu próprio itinerário. Muitas foram suas orientações que me salvaram de um sempre iminente naufrágio (se é que chego ao cabo de tal empresa verdadeiramente a salvo). Ao longo deste breve texto que proponho como “prólogo”, bem como na tradução propriamente dita, será possível reconhecer toda a extensão da minha dívida e gratidão para com eles. O que alguém poderia se perguntar, contudo, e não sem alguma razão, é a pertinência de uma nova tradução brasileira pouco mais de dez anos depois da publicação de sua primeira tradução. Eu próprio me coloquei essa mesma questão e só por meio do aludido cotejo de alguns dos textos que hoje compõem o tecido do “Che cos’è la poesia?” pude respondê-la. Acredito que 101

4 E demonstro aqui a minha gratidão pelas indicações ofertadas pelos professores Alice Serra (UFMG), Carla Rodrigues (UFRJ) e Nabil Araújo (UERJ). 5 Cf. “Che cos’è la poesia?”, na tradução de Tatiana Rios e Marcos Siscar publicada na revista Inimigo rumor, n. 10. 6 Cf. Che cos’è la poesia? na tradução portuguesa de Osvaldo Manuel Silvestre.


a partir da breve análise que avançarei nos próximos parágrafos, o leitor poderá decidir por si mesmo acerca da pertinência dessa nova tentativa – ou da sua insuficiência. Derrida joga ao longo desse texto com a expressão francesa “apprendre par cœur” (“aprender de cor”), na qual está contida a palavra “cœur” (“coração”), e se vale de certa indecidibilidade, criada a partir dessa palavra, para desenvolver uma série de reflexões sobre o poético (ou antes, o poemático) entre a economia da memória e o coração. O jogo verbal pode ser apenas parcialmente mantido em português, uma vez que “aprender de cor” tem de fato ligação etimológica com a palavra “coração”, embora essa ligação talvez já não apareça tão claramente para um leitor contemporâneo (a certa altura da minha tradução, inclusive, não pude evitar uma nota para explicitar uma aporia tradutória e explicar a opção adotada). Assim como os tradutores brasileiros e portugueses já o tinham o feito, faço uso da expressão “aprender de cor” e de seu correlato verbal – “decorar” –, mas, à diferença deles, valho-me de ambas simultaneamente (para salientar o coração desse idiomático). O texto de Derrida se vale de recursos da linguagem coloquial que parecem remeter a uma situação fática de diálogo (uso da segunda pessoal do singular, interjeições, dêiticos), e todos os tradutores parecem ter atentado para isso. É justamente nesse ponto que a tradução brasileira mais se afasta da portuguesa: não só em certa escolha vocabular, mas principalmente na opção pelo uso do pronome de terceira pessoa, “você”, ao invés do de segunda, “tu”, o que acarreta modificações na conjugação verbal. Optei por radicalizar a brasilidade da língua, uma vez adotado o uso do pronome de terceira pessoa, “você” (com os possessivos “seu(s)” e “sua(s)”, valendo-me de “dele(s)” e “dela(s)” para me referir ao possessivo da 3ª pessoa do discurso propriamente dita) e o combinei ao pronome oblíquo de segunda pessoa, “te”. Em que pese a aparente falta de sistematicidade de tal escolha, justifico-me com o estágio de mudança por que passa a língua (escrita, inclusive) no sudeste do Brasil hoje em dia. 102


O que acabo de descrever poderia vir a ser encarado como contraditório em relação aos principais argumentos defendidos por Derrida em seu livro sobre a Gramatologia.7 Mas tal impressão seria enganosa, uma vez que tais argumentos – disseminados ao longo de toda a obra derridiana – foram os princípios segundo os quais orientei a maior parte das soluções quando desconfiava que a problemática da escritura (bem como a da marca, a do suplemento e a de outros afins) se encontrava sugerida pelo próprio texto em francês. Nesse sentido, embora tenha sido tentado a traduzir a palavra “hérisson” pela opção mais corrente hoje em dia (pelo menos no Brasil) de “porco-espinho”, resisti à tentação e optei pela palavra tradicionalmente escolhida pelos tradutores brasileiros e portugueses, “ouriço”.8 Ainda que tal escolha se preste à confusão com outro ouriço (o do mar), acredito que a manutenção do radical etimológico partilhado pelas duas línguas (do latim, ēricĭus, -ĭī) esteja de acordo com o projeto derridiano de resgatar certos arcaísmos (ainda que no “glossário de Derrida” eles voltem suplementados por novas camadas de sentido, como no caso da própria palavra “desconstrução”9), num movimento de renovação vocabular etimologizante e, sem dúvida, aporético.10 Essa mesma preocupação “etimológica” esteve presente quando traduzi os verbos imperativos do francês, “garde-moi, regarde-moi”11 por “conserve-me, observe-me”, com a manutenção de um mesmo radical nos dois verbos (tal como no francês, ainda que sem manter o mesmo prefixo). A opção dos tradutores brasileiros foi “guarde-me, olhe-me”12 e a do português, “guarda-me, olha-me”.13 Da mesma forma como na construção mais complexa em que Derrida escreve: “C’est la détresse du hérisson. Que veut la détresse, le stress même? stricto sensu mettre en garde”.14 Nessas frases há um jogo etimológico interlingual que tentei reproduzir assim: “É o constrangimento do ouriço. E o que quer o constrangimento, o próprio stress? stricto sensu colocar en garde”. A tradução brasileira adotara “desgraça” para traduzir “détresse”, enquanto a portuguesa optara por “afli103

7 Cf. De la grammatologie. Ou a tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro, de 1973. 8 Nesse sentido, cf. Derrida, O animal que logo sou (A seguir), p. 22. O livro a que me refiro, L’animal que donc je suis, inserese na “guinada ética” do pensamento de Derrida, vislumbrando na problemática da animalidade uma série de questionamentos relevantes acerca do “humano” (e já prenunciados, sem dúvida, pela figura do ouriço de “Che cos’è la poesia?”). 9 Derrida trata da “cunhagem” dessa palavra em “Lettre à un ami japonais”. Na tradução de Érica Lima para o português, “Carta a um amigo japonês”. 10 Para mais detalhes desse estratagema derridiano, cf. Derrida e a literatura: “Notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução, de Evando Nascimento, p. 257. 11 Cf. “Che cos’è la poesia?”, 1992, p. 304.


ção”.15 Existem outros casos em que jogos etimológicos guiaram minhas decisões de tradução, embora o princípio já esteja suficientemente demonstrado. Existe ainda certa preocupação poética do texto de Derrida, preocupação que, aliás, é anunciada literalmente pelo próprio texto no princípio do terceiro parágrafo: “Ela se vê ditada, a resposta, a ser poética”. Foi exatamente esse aspecto que motivou, por exemplo, minha tradução da frase “Ainsi se lève en toi le rêve d’apprendre par coeur”,16 que verti como: “Assim assoma a você o sonho de aprender de cor”. Nessa frase, o par verbo-substantivo em português (assoma-sonho) reproduz o jogo sonoro do francês (lève-rêve), amplificando-o por meio da aliteração entre “assim” e “assoma”. As outras traduções, brasileira e portuguesa, sugerem respectivamente: “Assim surge em você o sonho de decorar” e “Assim desperta em ti o sonho de aprender de cor”.17 A maior diferença, contudo, entre a tradução que ora proponho e as já existentes é relativa a certa compreensão de verbos ligados às funções comunicativas. De modo geral, onde Derrida emprega o verbo “entendre”, preferi traduzir – de maneira mais ambígua – por “perceber”. As outras traduções optaram geralmente pelo verbo “ouvir”. Nesse sentido, por exemplo, a oração “et tu entendras sous ce mot”18 foi traduzida por mim como “e você perceberá sob esta palavra”, enquanto as opções das outras traduções foram: “e nessa palavra você ouvirá” ou “e ouvirás nessa palavra”.19 O mesmo se dá em outros momentos do texto. Além disso, algo análogo se passa com relação ao verbo “rappeler”, no qual pretendi enxergar uma etimologia ligada à ação vocal (appel), e que traduzi por “evocar” (ao invés de “lembrar”, como no caso das outras traduções).20 Não acredito poder afirmar ter seguido efetivamente à risca o que quer que Derrida tenha desejado exprimir com suas escolhas sintático-semânticas nesse texto. Certamente não o fiz e acredito que ninguém poderia fazê-lo, sequer o próprio Derrida. Suas intenções não dizem respeito ao que está inscrito na página e talvez a única coisa que caiba ao tradutor é ler de fato o texto 104

12 Cf. “Che cos’è la poesia?”, Trad. Tatiana Rios e Marcos Siscar. p. 113. 13 Cf. Che cos’è la poesia? Trad. Osvaldo Manuel Silvestre, p. 5. 14 Cf. “Che cos’è la poesia?”, 1992, p. 306. 15 Cf. respectivamente “Che cos’è la poesia?”, trad. Tatiana Rios e Marcos Siscar, p. 114; e tradução de Osvaldo Manuel Silvestre, p. 8. 16 Cf. “Che cos’è la poesia?”, 1992, p. 306. 17 Cf. respectivamente: “Che cos’è la poesia?”, trad. Tatiana Rios e Marcos Siscar, p. 114; e tradução de Osvaldo Manuel Silvestre, p. 8. 18 Cf. “Che cos’è la poesia?”, p. 305. 19 Cf. respectivamente: “Che cos’è la poesia?”, trad. Tatiana Rios e Marcos Siscar, p. 114; e tradução de Osvaldo Manuel Silvestre, p. 7. 20 Como se lê em francês em “Che cos’è la poesia?”, p. 305. Nas traduções tal passagem se encontra em: Tatiana Rios e Marcos Siscar, p. 114; e tradução de Osvaldo Manuel Silvestre, p. 8.


que escolheu traduzir. Nesse sentido, depois de uma breve retomada de algumas das questões mais caras ao autor do texto que ora se traduz, posso retomar o título intrainterrogativo deste texto que ora se encerra: “Que coisa é traduzir “Che cos’è la poesia?” de Jacques Derrida?”. Invertendo a fórmula de Evando Nascimento – autor cuja obra me acompanhou de perto ao longo desse percurso e ao qual sou profundamente grato –, acredito poder afirmar que traduzir um texto de Derrida é, de certa maneira, traduzir o próprio Derrida e traduzi-lo é ler (com) Derrida.21 Che cos’è la poesia?22 Jacques Derrida Para responder a tal questão – em duas palavrinhas, né? – é preciso saber renunciar ao saber. E sabê-lo bem, sem nunca esquecê-lo: desmobilize a cultura, mas o que você sacrifica na estrada, atravessando a estrada, jamais o esqueça em sua douta ignorância. Quem ousa me perguntar tal coisa? Mesmo que não pareça nada disto, pois desaparecer é sua lei, a resposta se vê ditada. Eu sou um ditado, pronuncia a poesia, aprenda-me de cor – decore-me –, recopie, vele e conserve-me, observe-me, ditada, sob os olhos: trilha sonora, wake, traço de luz, fotografia da festa em luto. Ela se vê ditada, a resposta, a ser poética. E, para isso, obrigada a dirigir-se a alguém, singularmente a você, mas como ao ser perdido no anonimato, entre cidade e natureza, um segredo partilhado, ao mesmo tempo público e privado, absolutamente um e outro, absolvido de fora e de dentro, nem um nem outro, animal jogado na estrada, absoluto, solitário, enrola-se em bola para junto de si. Ele pode acabar esmagado, justamente, por isso mesmo, o ouriço, istrice. E se você responder de outro modo, conforme o caso, levando em conta o espaço e o tempo que te são dados com essa demanda (para começar, você fala italiano), por ela mesma, segundo essa economia, mas também na iminência de alguma tra105

21 Conforme Evando Nascimento (p. 37): “O jogo citacional, ao tempo em que garante o rigor da pesquisa, acaba por constituir uma espécie de tábua tradutória. O procedimento ajuda a sustentar uma das hipóteses básicas, a saber, que ler (com) Derrida é traduzir Derrida. E não apenas pelo fato de se tratar de um autor estrangeiro, mas porque faz parte de uma teoria da leitura nesse autor a noção de que o ato de ler é fundamentalmente um ato tradutório”. 22 Publicado primeiramente em Poesia, I, 11, novembro de 1988, e depois em Po&sie, 50, outono de 1989, no qual foi precedido pela seguinte nota:“A revista italiana Poesia, na qual este texto apareceu em novembro de 1988 (traduzido por Maurizio Ferraris), abre cada um dos seus números pela tentativa ou pelo simulacro de uma resposta, em algumas linhas, à questão Che cos’è la poesia?. Ela é colocada a um autor vivo, enquanto a questão che cos’era la poesia? retorna a um autor defunto – neste caso ao Odradek de Kafka. No momento em que escreve, o autor vivo ignora a resposta do defunto: ela vem no final da revista e é escolha dos editores. Destinada a aparecer em italiano, esta “resposta” aqui se expõe à passagem, às vezes literalmente, nas letras ou sílabas, na palavra e coisa istrice (que se deve pronunciar istrítche), o que terá dado, numa


vessia fora de casa, arriscada na direção da língua do outro em vista de uma tradução impossível ou recusada – necessária, mas desejada como uma morte – o que é que tudo isso, isso mesmo em que você acaba de se delirar, teria então a ver com a poesia? Ou antes, com o poético, pois você pretende falar de uma experiência, outra palavra para viagem, aqui a excursão aleatória de um trajeto, a estrofe que volteia, mas que jamais reconduz ao discurso, nem para casa e que muito menos se reduz à poesia – escrita, falada ou mesmo cantada. Eis então, direto, em duas palavrinhas, para não se esquecer. 1. A economia da memória: um poema tem que ser breve, elíptico por vocação, qualquer que seja a extensão objetiva ou aparente. Douto inconsciente da Verdichtung e da retirada. 2. O coração. Não o coração em meio a frases que circulam sem risco entre os cruzamentos e se deixam traduzir em todas as línguas. Não apenas o coração dos arquivos cardiográficos, objeto dos saberes ou das técnicas, das filosofias e dos discursos bio-ético-jurídicos. Talvez sequer o coração das Escrituras ou de Pascal, nem mesmo – o que é menos certo – aquele que Heidegger prefere a esses. Não, uma história de “coração” poeticamente embalada no idioma “aprender de cor”, o de minha língua ou de outra, a inglesa (to learn by heart), ou de outra ainda, a árabe (hafiza a’n zahri kalb) – um só trajeto em meio à algaravia.23 Dois em um: o segundo axioma enrola-se no primeiro. O poético, digamos, seria o que você deseja aprender, mas do outro, graças ao outro e sob ditado, aprender de cor: imparare a memoria. Já não é isso, o poema, assim que a penhora é dada, o advento de um evento, no instante em que a travessia da estrada nomeada tradução permanece tão improvável quanto um acidente, intensamente sonhada contudo, requisitada aí mesmo onde o que ela promete sempre deixa a desejar? Um reconhecimento se dirige a isso mesmo e previne aqui o conhecimento: sua benção antes do saber. Fábula que você poderia contar como o dom do poema, é uma história emblemática: alguém te escreve, para você, de 106

correspondência francesa, o hérisson”. (N.A.) Ao que seria levado a comentar: E numa correspondência brasileira, o ouriço. (N.T.) 23 Em francês a expressão escrita, “plusieurs voies” (várias vias), é homófona de “plusieurs voix” (várias vozes). Parece haver um jogo com essa duplicidade, o qual pretendo resgatar por meio da palavra “algaravia”: além de inscrever a “via” e de significar uma confusão de vozes, ele remete ainda ao árabe que acabara de ser mencionado. (N.T.)


você, sobre você. Não, uma marca dirigida a você, deixada, confiada, acompanha-se de uma injunção, em verdade institui-se na própria ordem que por sua vez te constitui, assinalando a sua origem ou te dando lugar: destrua-me, ou antes, torne meu suporte invisível do lado de fora, no mundo (eis aí o traço de todas as dissociações, a história das transcendências), faça de modo que, em todo caso, a proveniência da marca permaneça a partir de então inencontrável e irreconhecível. Prometa-o: que ela

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Eduardo Vasconcellos, Inoportunas, 2013/2015


se desfigure, transfigure ou indetermine no porto dela, e você perceberá sob essa palavra tanto a riba da partida quanto o referente em direção ao qual aporta uma transladação. Coma, beba, engula minha letra, porte-a, transporte-a em você, como a lei de uma escritura tornada seu corpo: escritura em si. A artimanha da injunção pode a princípio deixar-se inspirar pela simples possibilidade da morte, pelo perigo que um veículo aporta a todo ser finito. Você percebe vir a catástrofe. A partir de então impresso diretamente sobre o traço, vindo do coração – do core – o desejo do mortal desperta em você o movimento (contraditório, você está me acompanhando, dupla adstrição, constrição aporética) de guardar do esquecimento esta coisa que ao mesmo tempo se expõe à morte e se protege – numa palavra, a conduta, a retirada do ouriço, como na autoestrada um animal que se enrola em bola. Quem não gostaria de tomá-lo nas mãos, aprendê-lo e compreendê-lo, conservá-lo para si, junto de si? Você ama – guardar isso em sua forma singular, poderíamos dizer na insubstituível literalidade do vocábulo se falássemos da poesia e não do poético em geral. Mas nosso poema não assenta em nomes, nem mesmo em palavras. Ele está a princípio jogado nas estradas e nos campos, coisa para além das línguas, mesmo se lhe acontece de evocá-las quando se recolhe, enrolado em bola para junto de si, mais ameaçado do que nunca em seu retiro: crendo defender-se, ele se perde. Literalmente: você gostaria de reter de cor uma forma absolutamente única, um evento cuja singularidade intangível já não mais separe a idealidade (como se diz) do corpo da letra. O desejo dessa inseparação absoluta, o não absoluto absoluto, você respira aí a origem do poético. Daí a resistência infinita à transferência da letra que o animal, em seu nome, contudo, reclama. É o constrangimento do ouriço. E o que quer o constrangimento, o próprio stress? Stricto sensu colocar en garde. Daí a profecia: traduza-me, vele, conserve-me um pouco mais, salve-se, saiamos da autoestrada. Assim assoma a você o sonho de aprender de cor. De deixar108


-se atravessar o coração pelo ditado. De um só traço, e isso é o impossível, e isso é a experiência poemática. Você não sabia ainda o coração – e assim o aprende. Dessa experiência e dessa expressão. Eu chamo poema àquilo que ensina o coração, àquilo que inventa o coração, enfim àquilo que a palavra de cor parece querer dizer e que em minha língua já quase não concerne a palavra coração.24 Coração, no poema “aprender de cor” (para se aprender de cor), já não nomeia apenas a pura interioridade, a espontaneidade independente, a liberdade de se afetar ativamente reproduzindo o rastro amado. A memória do “de cor” fia-se como uma oração – é mais seguro –, a certa exterioridade do autômato, às leis da mnemotécnica, a essa liturgia que imita superficialmente a mecânica, ao automóvel que surpreende sua paixão e vem sobre você como se de fora: auswendig, “de cor” em alemão. Então: o coração bate para você, nascimento do ritmo, para além das oposições, de dentro e de fora, da representação consciente e do arquivo abandonado. Um coração lá, entre as veredas ou as autoestradas, fora da sua presença, humilde, colado à terra, bem baixo. Reitere murmurando: nunca repita... Numa única cifra, o poema (aprendê-lo de cor) sela juntamente o sentido e a letra, como um ritmo espaçando o tempo. Para responder com duas palavrinhas, elipse, por exemplo, ou eleição, coração ou ouriço, terá sido necessário a você desamparar a memória, desarmar a cultura, saber esquecer o saber, incendiar a biblioteca das poéticas. A unicidade do poema existe com essa condição. Você deve celebrar, comemorar a amnésia, a selvageria, até mesmo a burrice do “de cor”: o ouriço. Ele se cega. Enrolado em bola, eriçado de espinhos, vulnerável e perigoso, calculista e inadaptado (uma vez que ele se enrola em bola, sentindo o perigo na autoestrada, acaba por expor-se ao acidente). Não há poema sem acidente, não há poema que não se abra como corte, ainda que também seja cortante. Você chamará de poema a uma encantação silenciosa, ao corte áfono que de você desejo aprender de cor. Ele tem lugar, quanto ao essencial, sem que se tenha que fazê-lo: ele se deixa 109

24 Nesse passo, devido à dificuldade linguística criada pelo jogo entre “apprendre par cœur” (“aprender de cor”) e a palavra “cœur” (“coração”), tive que modificar a redação do original, visto que essa se referia à língua francesa, enquanto a minha se refere à brasileira. Se traduzíssemos “diretamente” teríamos: “[...] enfim àquilo que a palavra de cor [literalmente: de coração] parece querer dizer e que em minha língua já discirno mal da palavra coração”. No francês: “J’appelle poème cela même qui apprend le cœur, ce qui invente le cœur, enfin ce que le mot de cœur semble vouloir dire et que dans ma langue je discerne mal du mot cœur” (“Che cos’è la poesia?”, p. 306). (N.T.)


fazer, sem atividade, sem trabalho, no mais sóbrio páthos, estrangeiro a toda produção, sobretudo à criação. O poema sucede, benção, vinda do outro. Ritmo, mas dissimetria. Nunca há mais do que o poema, antes de toda poíēsis. Quando, em vez de “poesia”, dissermos “poético”, deveríamos ter precisado: “poemático”. Sobretudo, não deixe que reconduzam o ouriço ao circo ou ao manejo da poíēsis: nada a fazer (poieîn), nem “poesia pura”, nem retórica pura, nem reine Sprache, nem “implementação-da-verdade”. Somente uma contaminação, tal, e tal encruzilhada, este acidente. Esta volta, a reviravolta desta catástrofe. O dom do poema não cita nada, não tem nenhum título, já não histriona, e sobrevém sem que você o espere, cortando o sopro, cortando com a poesia discursiva e, sobretudo, literária. Nas próprias cinzas dessa genealogia. Não a fênix, não a águia, o ouriço, bem baixo, baixinho, perto da terra. Nem sublime, nem incorpóreo, talvez angélico, e por um tempo. Você chamará a partir de agora poema a uma certa paixão da marca singular, à assinatura que repete sua dispersão, a cada vez para além do lógos, ahumana, dificilmente doméstica e não reapropriável na família do sujeito: um animal convertido, enrolado em bola, voltado para o outro e para si, uma coisa, em suma, e modesta, discreta, junto à terra, a humildade que você cognomina, levando-te assim ao nome para além do nome, um ouriço catacrético, todas as flechas para fora, quando este cego sem idade percebe, mas não vê que vem a morte. O poema pode enrolar-se em bola, mas é ainda assim para voltar seus signos agudos para fora. Ele pode certamente refletir a língua ou dizer a poesia, mas jamais se refere a si mesmo, jamais se move por si mesmo como esses engenhos portadores de morte. Seu evento sempre interrompe ou desvia o saber absoluto, o ser junto de si na autotelia. Esse “demônio do coração” nunca se reúne, ao contrário, afasta-se (delírio ou mania), expõe-se à sorte – ele se deixaria antes estraçalhar pelo que vem sobre ele. Sem sujeito: talvez existam poemas e que se permitam, mas eu nunca os escrevo. Um poema, eu nunca o assino. O outro as110


sina. O eu existe apenas na vinda deste desejo: aprender de cor. Tensionado para se limitar a seu próprio suporte, portanto sem suporte exterior, sem substância, sem sujeito, absoluto da escritura em si, o “de cor” se deixa eleger para além do corpo, do sexo, da boca e dos olhos, ele apaga as bordas, escapa às mãos, você mal o percebe, mas ele nos ensina o coração. Filiação, penhora de eleição confiada em herança, ele pode achegar-se a qualquer palavra, à coisa, viva ou não, ao nome de ouriço, por exemplo, entre vida e morte, no cair da noite ou no nascer do dia, apocalipse distraído, próprio e comum, público e secreto. — Mas o poema de que está falando, você se afasta, jamais ninguém o nomeou assim, nem de modo tão arbitrário. — Você acaba de dizê-lo. O que era preciso demonstrar. Evoque a questão: “O que é...?” (ti estí, was ist..., historía, epistḗmē, philosophía). “O que é...?” chora a desaparição do poema – uma outra catástrofe. Anunciando o que é tal como é, uma questão saúda o nascimento da prosa.

DERRIDA, Jacques. A diferença. In: Margens da filosofia. Joaquim T. Costa e Antônio M. Magalhães. Campinas: Papirus, 1991. ______ . Carta a um amigo japonês. In: OTTONI, P. (Org.) Tradução: a prática da diferença. Tradução de Érica Lima. Campinas: Ed. da Unicamp: Fapesp, 1998. ______ . Che cos’è la poesia?. In: Points de suspension: Entretiens. Paris: Galilée, 1992. ______ . Che cos’è la poesia? Tradução de Osvaldo Manuel Silvestre. Coimbra: Ângelus Novus, Coleção Marfim, 2003a. ______ . Che cos'è la poesia? Tradução de Tatiana Rios e Marcos Siscar. Inimigo rumor, Rio de Janeiro, n. 10, p. 113-116, 2001. ______ . De la grammatologie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1967. ______ . Des tours de Babel. In: Psychés: Inventions de l’autre. Paris: Éditions Galilée, 1987. ______ . Gramatologia. Tradução de Miriam Schnaiderman e Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Perspectiva, Edusp, 1973. ______ . La différance. In: Marges de la philosophie. Paris: Les Éditions de Minuit, 1972. ______ . Lettre à un ami japonais. In: Psyché: Inventions de l’autre II. Nouvelle édition revue et augmentée. Paris: Galilée, 2003b. ______ . O animal que logo sou (A seguir). Tradução de Fábio Landa. São Paulo: Editora Unesp, 2002a. ______ . Torres de Babel. Tradução de Júnia Barreto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002b. NASCIMENTO, Evando. Derrida e a literatura: “Notas” de literatura e filosofia nos textos da desconstrução. 2ª. ed. Niterói: EdUFF, 2001.

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Entre nós e as palavras, o nosso dever falar Isabela Benassi

1. Minha existência é minha arte

Aos cinco anos de idade eu tinha certeza que queria ser artista, e mesmo não concretizando esse desejo, mantenho o meu ímpeto até hoje. Provavelmente todos nós seríamos artistas se continuássemos no mesmo ritmo criativo da infância. Nunca antes conheci meu corpo e meus limites, respeitei meus desejos e meus sentimentos como naqueles tempos. A potência artística é também uma capacidade que se descobre no início da vida, naquele percurso em que conhecemos a nós mesmos. Por isso, quando eu <crio>, me compreendo mais. Quando faço parte do processo criativo, usando o corpo como uma extensão da cor e da linha, e, com ele, criando um conjunto de ideias de linguagem: reconheço maior sentido na minha existência. Sigo então a preferir o processo de criação à ciência, pois o fazer artístico pode ser menos obsoleto que o analítico – e obsoleta é a separação das linguagens; a preferência de um sistema pelo outro, quando a sua intersecção é capaz de formar um espaço de tensão com múltiplas saídas. Sigo também acreditando que o direito à criação pode ser, sobretudo, mais acessível e orgânico, e por isso a ideia de Merleau-Ponty sobre o espírito científico é uma daquelas que me contemplam. Esta que nos convida a romper com o pensamento vicioso da crítica (a própria que “manipula as coisas e renuncia a habitá-las”1), a partir de uma visão onto112

1 Merleau-Ponty. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p. 275.


lógica e menos utilitarista. Nela, o indivíduo existe como sujeito ativo de suas criações e não apenas como objeto impostamente analítico: há a presença do universo sensível e o espelho entre identidade/alteridade se aproxima mais de um plano translúcido. Vejo o ato de criar como uma forma de viver o nosso corpo e de ocupar um espaço. Ao nos utilizarmos para pintar, ler, escrever: amadurecemos; e é uma pena que o processo de amadurecimento intelectual pressuponha que a crítica seja a finalidade da arte. Cecília Meireles escreveu numa de suas notas sobre as cartas de Rainer Maria Rilke que “um poema quase nunca há nada a dizer, deseja-se apenas que ele seja amado”.2 Pois sim, nem sempre quero ser um objeto de análise. Queria trocar cartas, pintar uma paisagem, manipular fotografias, ir a um museu sem pensar na sua função sacra. Na verdade, tudo que eu gostaria era dessacralizar o processo artístico em absoluto. Quando percebi que estava entrando em colapso com a crítica, passei a abolir certos hábitos. Senti que precisava retornar à minha relação primária com o mundo e, de certa forma, retornar à infância. Tive que ir às memórias da aquisição, dos aprendizados – lembrar do que me dói – desaprender a ordem das coisas, passar o tempo com a minha própria companhia – atravessar o oceano –, criar outro sistema para o meu corpo. Assim procurei voltar ao processo de criação instintiva, ao universo sensível da abstração que reconheça a demiurgia humana:

2 Rainer Maria Rilke. Cartas a um jovem poeta. São Paulo: Biblioteca Azul, 2013, p. 20.

“A resposta é mais facilmente sentida do que expressada [...]. Entretanto, se uma explicação for imprescindível, suponho que a verdadeira resposta a essa interrogação é esta: o artista moderno quer criar coisas. A ênfase está em criar e em coisas. Ele quer sentir que realizou algo que não existia antes. Não apenas uma cópia de um objeto real, por mais habilidosa que seja, não apenas uma peça de decoração, por mais engenhosa que seja, mas algo mais importante e duradouro do que ambas[...]. Se quisermos entender essa disposição de espírito, devemos reverter à nossa própria infância, a uma época em que ainda somos capa113


zes de fazer coisas de tijolo e areia, quando transformamos uma vassoura num veículo mágico e um punhado de pedras num castelo encantado.” (GOMBRICH, 1993. p. 466) O ímpeto que se desmancha com o passar dos anos e que deveria ser retomado de imediato é esse. Criar pode ser dolorido, solitário, e falar de si é sempre um entroncamento, porém é uma experiência necessária. Muitas vezes, frustrante: por não se fazer entender, mas é preciso retornar ao impulso inicial para que as linguagens não se esgotem e também para que elas não reproduzam os mesmo códigos de antes. Logo a minha intenção de descientificar o fazer artístico se mostrou apenas uma superfície. Notei que a consequência desses processos era, na verdade, a tentativa de humanizar a ciência e assim extrair humanidade da criação artística. É possível exercer a análise da <arte>, mas não sem antes confrontar a imposição do apagamento do sujeito. O ser existe e ele é arte, possui domínio das suas atividades corporais e sabe fruir sozinho sem ser guiado. Esse percurso nos iguala enquanto observadores e criadores, e então o juízo de qualidade que a crítica impositiva estabeleceu seria superado para pensarmos que contemplar arte é, acima de tudo, exercer a memória e a compaixão: “Na realidade, não penso que existam quaisquer razões erradas para se gostar de um quadro ou de uma escultura. Todos nós, quando vemos um quadro, estamos fadados a recordar mil e uma coisas que influenciam o nosso agrado ou desagrado. Na medida em que essas lembranças nos ajudam a fruir do que vemos, não temos por que nos preocupar. Somente quando alguma recordação irrelevante nos torna parciais e preconceituosos, quando instintivamente voltamos as costas a um quadro magnífico de uma cena alpina porque não gostamos de praticar o alpinismo, é que devemos perscrutar o nosso íntimo para desvendar as razões da aversão que estraga um prazer que de outro modo poderíamos ter.” (GOMBRICH, 1993. p. 20) 114


O criar e o contemplar andam juntos e podem inclusive se transformar num só <corpo>. Ouso dizer que não há nenhum artifício científico no criar – no escrever, na experiência plástica – a meu ver, criamos para combater a miséria pessoal: assim damos vida ao universo sensível para mostrar a durabilidade das relações humanas, e também para compartilhar um campo emocional que transcenda a linguagem mapeada. Essa relação intersecciona os processos de criação e de contemplação, fazendo com que esse único corpo produza a arte e também se alimente dela. É estabelecida então uma simbiose não sustentada por hierarquias estéticas ou processuais: não há afastamento entre a arte e o observador, há apenas reconhecimento e o estudo do fenômeno <arte>. E é esse o fundamento que procuro, se colocar com o corpo na obra criando outro tipo de linguagem sensível, me fazer obra e me tornar receptiva ao outro. E eu queria criar, confrontar a separação das linguagens. E criar é se fazer existir: Agora vamos duas a duas, ordeiramente marchamos em procissão, debaixo desta leve penumbra que nos envolve, vestidas com os nossos fatos mutáveis. Deslizamos suavemente, só por um momento, antes que a cadeia se rompa e a desordem regresse, contemplemos esta imobilidade, esta ordem de quem está preso. Suspiramos de alívio por sabermos que chegou o tempo em que os nossos monólogos serão partilhados. Não ficaremos para sempre de nucas encostadas a emitir sons incompreensíveis, sequências infindáveis de palavras. Falaremos uma linguagem infantil, sem a preocupação de terminar as frases. Recuperaremos a nossa continuidade. Vamos dum lado para o outro como as aves migratórias. 115


Sentimos, ao longe, incontáveis hordas que passam e retomam os antigos lugares numa sequência majestosa. Queremos captar este momento, este ciclo como uma imagem de eternidade. Desapareceu a noção de fim e de princípio. Tomamos as nossas imagens como testemunhas da nossa perfeita integração nesta nova ordem de coisas. Recuperamos a nossa permanência. Ouvimos passos apressados de inumeráveis matilhas, errando dum lado para o outro entre a madrugada e a noite. O círculo fecha-se. Os caminhos afastam-se num movimento insensível. Iremos duas a duas imóveis e cheias de vida, até perdermos a memória do nosso próprio encontro. Num supremo esforço de vontade queremos saber interpretar os nossos papéis.3 E eu crio para evitar o apagamento do sujeito e então me fazer existir. 2. Meu corpo é minha obra Criar para legitimar a existência. E a da arte é indissociável da existência do <artista>. O meu próprio objeto de escrita torna-se exemplo desse processo – escrever sobre o não nomeado e que não sofreu o afastamento da análise. Eu sou a análise, eu sou a obra. Assim como a criação pode ser múltipla em sua expressão, o <artista> é um múltiplo indivíduo que se torna aquilo que enuncia. Helena Almeida, portuguesa de Lisboa, é essa artista empenhada em desconstruir a separação do corpo e da criação. Na verdade, Helena A. se empenha muito no processo de cons116

3 ALMEIDA, H. Frisos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1987. p. 12 (A quebra de leitura foi feita por mim).


Imagem: Helena Almeida, Pintura habitada, 1975.

truir e destruir coisas. Desde 1960, a sua produção mostra um grande interesse pelo corpo, performando e ressignificando o conceito pictórico do quadro (estudo também feito por outras e outros artistas anteriores e contemporâneos a ela). Da sua grande produção – que se utiliza tanto da performance, quanto da pintura sonora – destaco a série chamada Pintura habitada/ Desenho habitado, em que H.A. utiliza a fotografia como base de uma intervenção estrutural, imagética e, consequentemente, corporal da arte. Sua criação apresenta grandes sobreposições de planos, com múltipla temporalidade, textura e comoção. E esse aspecto comoção é de fato muito importante. Estar diante de uma obra de H.A. desencadeia, ao mesmo tempo, sentimentos de pertencimento e deslocamento em relação à arte – principalmente quando se habita o feminino. O esforço físico realizado em suas obras e a utilização da violência visual (no corpo) é um recurso constantemente explorado: rasgos, cortes e interrupções são algumas de suas técnicas. E assim é o seu sistema, que se baseia na real investigação4 do sujeito: 117

4 O conceito ontológico do ser é um debate antigo. Heidegger retoma a universalidade do sujeito e a contextualiza com a ideia mitológica clássica da γιγαντομαχία (gigantomachia): o confronto do macro. Aqui, a real investigação do ser seria o confronto do indivíduo com a sua própria criação; e o processo da batalha resultaria no fenômeno <arte>. Não pretendo me aprofundar com a fenomenologia, queria me apropriar apenas da imagem da batalha que é travada por e para nós – gigantes trancafiados dentro de si.


“Tentar abrir um espaço, sair custe o que custar, é um sentimento muito forte nos meus trabalhos. Passou a ser uma questão de condenação e de sobrevivência. Sinto-me quási sempre no limiar onde esses dois espaços se encontram, esperam, hesitam e vibram. É uma tentativa aí ficar e assistir o meu próprio processo, vivendo um sonho com duas direções. Mas isso é intolerável e com urgência, qualquer coisa se liberta em mim como se quisesse sair para a frente de mim própria. De toda a maneira já consegui sair pela ponta dos meus dedos.” (ALMEIDA, 1978. p. 44) Helena Almeida, Pintura habitada, 1975

O confronto travado com a obra se transforma na finalidade da criação. O produto, o criador e a ideia não se sustentam sozinhos por muito tempo após o final da batalha. Assim consiste a intersecção do corpo com a obra: manter-se o confronto, a desconstrução das barreiras. Para isso, H.A. se mostra uma artista criadora de dois recursos importantes para se confrontar a <arte>. Primeiro, a exploração do ateliê, e segundo, o registro. Se criar é exercer a investigação do indivíduo, o ateliê se apresentaria como um laboratório do artista, onde H.A. exercita constantemente o Estudo para um enriquecimento interior.5 Através dos registros (fotográfico e sonoro) se mantêm os elementos para a continuação desses estudos, que resultarão no processo de maturação da identidade, o lapidar do artista que 118

5 Série de fotografias-habitadas de H.A. criadas na década de 70.


passa pelas metamorfoses da repetição. E, esse processo não há fim: é a sua <existência>. Esse ressignificar, reconstruir, re/ coisas, se mostra constante como o amadurecimento da criação – no mesmo ritmo do envelhecimento do corpo. Dentro do sistema do estudo é que se transforma a sua imagem, que segue única, mas agora em diálogo com o outro. As capacidades humanas de existir-produzir se manifestam na existência plural – só existimos na pluralidade. E assim, a importância da criação seria a de manter a variedade do indivíduo dentro do coletivo. Nesse sentido, o artista estreitaria as relações entre a vida contemplativa e a vida ativa6, tornando heterogêneo o universo linguístico e sensível da expressão, porém dentro da unidade humana. Da mesma forma que H.A. pratica a investigação do seu corpo-obra, isso está em Adília Lopes, na poesia: Louvor do lixo (quem não viu Sevilha não viu maravilha) É preciso desentropiar a casa todos os dias para adiar o Kaos a poetisa é a mulher-a-dias 119

Imagens: Helena Almeida, Saída negra, 1995 6 Hannah Arendt mostra em A condição humana imagens da imortalidade da criação – não da arte –, embora a matéria humana seja efêmera. Me aproprio do seu discurso e penso que, em relação à formação humana, não há outra análise que contemple o desenvolver artístico de forma tão efetiva e sensível quanto essa. Assim: “Nada como a obra de arte demonstra com tamanha clareza e pureza a simples durabilidade deste mundo de coisas; nada revela de forma tão espetacular que este mundo feito de coisas é o lar não mortal de seres mortais. É como se a estabilidade humana transparecesse na permanência da arte [...] não a imortalidade da alma ou da vida, mas de algo imortal feito por mãos mortais.” (ARENDT, 2009. p. 181).


arruma o poema como arruma a casa que o terramoto ameaça a entropia de cada dia nos dai hoje o pó e o amor como o poema são feitos no dia a dia o pão come-se ou deita-se fora embrulhado (uma pomba pode visitar o lixo) o poema desentropia o pó deposita-se no poema o poema cantava o amor graças ao amor e ao poema o puzzle que eu era resolveu-se mas é preciso agradecer o pó o pó que torna o livro ilegível como o tigre o amor não se gasta os livros sim a mesa cai à passagem do cão e o puzzle fica por fazer no chão A entropia/desentropia é um fator recorrente da ordem social. O colocar-as-coisas-em-seu-lugar torna-se uma tarefa diária e, infelizmente, incessante. Lutar contra o caos é uma batalha destrutiva e que já se sabe perdida, mas apesar do fenômeno da 120


arte ser desencadeado pelo exercício da desentropia (o constante encaixar-se e desencaixar-se às estruturas vigentes), o resultado <arte> torna-se apenas um registro do fenômeno caótico. O universo sensível do artista pode também se fragilizar por essas intervenções destrutivas. Por isso, não é possível exercer <arte> sem antes exercer a humanidade: sem antes manter o combate, essa seria a nossa ação às destruições. A mulher-a-dias é a síntese do processo da entropia cotidiana, organizamos o que o exterior nos desestabiliza e a <criação> é a forma de dizer que estamos vivos – e resistentes. Ao confrontar a desordem, criamos um sistema de equilíbrio das coisas, onde elas são constantemente trocadas de lugar e também renovadas. O encaixe – o puzzle – é o movimento da criação, a oxigenação das coisas; e manter-se o criador é assumir que a monotonia deve ser quebrada para então se intervir na entropia cotidiana. Em tempos de constante batalha é preciso estreitar os laços entre o criar e o contemplar, aproximar o outro da criação, fazer com que ele sobreviva diante do percurso caótico. E assim: é preciso desentropiar a casa todos os dias para adiar o Kaos E adiar o caos é se fazer existir.

ALMEIDA, Helena. A minha obra é o meu corpo, 2009. p. 181, Museu de Arte Contemporânea: Serralves, Porto & Jeu de Paume, Paris, 2015. ______ . Frisos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa: Centro de Arte Moderna, março de 1987. ARENDT, Hannah. A condição humana, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. GOMBRICH, Ernst. A historia da arte, Rio de Janeiro: Zahar, 1981. LOPES, Adília. Dobra, Lisboa: Assírio e Alvim, 2015. MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito, São Paulo: Cosac Naify, 2013.

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tradução “A praia negra”, de Édouard Glissant1 Henrique Amaral A praia do Diamante, no sul da Martinica, vive duma maneira subterrânea e cíclica. Nos meses de invernagem, ela se reduz a um corredor de areias negras, vindas a gente diria das encostas do alto, lá onde a Pelée farfalha suas folhagens de lavas quebradas. Como se o mar entretivesse um comércio subterrâneo com o fogo oculto do vulcão. E eu imagino esses lençóis escuros em corrente sobre o fundo marinho, escoltando até o espaço arejado daqui o que a intensidade do norte amadureceu de noite e cinzas impassíveis. Então a praia é golpeada por um vento que não se sente sobre o corpo, é um vento secreto. As ondas vêm alto perto da arrebentação, elas se formam a menos de dez metros, verde campeche, e a uma distância tão pequena elas desencadeiam suas galáxias incalculáveis. Os ramos das mancenilheiras e das parreiras de mar desenham uma pilhagem que, sob o mais tranquilo sol, traz à memória a obra do mar noturno. Algas marrons cobrem a linha entre a areia e a terra, amontoadas ali pelo assalto invisível. Coqueiros desenraizados caem de través, como corpos desamparados. Em seu rastro, até o cume das rochas que baliza o morro Larcher ao longe, sente-se a força de um ciclone que a gente sabe que virá. Como se sabe que, nos meses de seca, essa grandeza caó122

1 Édouard Glissant (1928-2011) é um escritor martinicano que publicou poemas, romances e peças de teatro, bem como ensaios críticos e filosóficos. “A praia negra” é um capítulo do livro Poétique de la relation. Aproveito para agradecer a leitura e as sugestões de alguns amigos, particularmente da Profa. Dra. Diva B. Damato, a qual me introduziu ao pensamento e à poesia de Glissant. (N.T.)


tica será erguida na evanescência que a reinstalação da areia branca e do mar estável enforma. Assim, essa borda de mar figura a alternância (no entanto não decifrável) da ordem e do caos. As prefeituras vigentes gerenciam como podem a contínua passagem, da desmesura que ameaça à fragilidade que aplaina. O movimento da praia, essa retórica cadenciada duma margem, não me parecem gratuitos. Eles tramam uma circularidade que me convoca. Foi lá que vi pela primeira vez passar um rapaz fantasmático, cuja deambulação traçava infatigável uma fronteira, invisível como o fluxo noturno, entre a água e a terra. Chamam-no de não sei que nome, pois ele não responde a nenhum nome dado. Uma manhã ele se pôs em movimento, começou a palmilhar esse litoral. Recusa-se a falar, não se reconhecendo mais nenhuma língua possível. Sua mãe está desesperada, seus amigos tentam em vão forçar a barreira dum tal mutismo. Ele não se irrita, não sorri; apenas esboça algum gesto quando um carro toca nele ou ameaça atropelá-lo. Caminha, levantando sobre seus rins a cintura duma calça que ele enrola à medida que seu corpo emagrece. Renuncio a descrevê-lo, achando inconveniente ter que pôr em cena uma tal deriva, tão implacável. O que eu queria marcar é a natureza dessa mudez. Todas as línguas do mundo vieram morrer aqui, na recusa tranquila e atormentada do que se passa ao redor, no país: uma outra constante deriva, mas na satisfação inquieta; o ruído por demais ostensivo duma efervescência que não estaria segura dela mesma, a perseguição duma felicidade que se limita a prerrogativas frágeis, o sonegar imperceptível nas disputas que a gente acredita constituir um combate decisivo. Ele recusou tudo isso, nos lançando à margem de seu silêncio. Eu decidi me comunicar com essa ausência. Respeitando a inquebrantável mudez, quis no entanto (com a ressalva de não ter me feito “compreender” ou aceitar) inaugurar com o caminhante um sistema de relação que não fosse baseado em palavras. Como ele passasse e repassasse, com uma regularidade mecânica, à frente do pequeno jardim que abre nossa casa para 123


a praia, fiz-lhe um dia um apelo mudo, um gesto do qual não sabia verdadeiramente calcular o movimento: sem afetação nem condescendência, mas sem crítica nem altura? Não me respondeu dessa vez, mas na segunda ou terceira volta de sua ronda, como eu insistisse sem insistir, ele me devolveu um signo imperceptível, ao menos a meus olhos, pois esse gesto era quem sabe o máximo que podia exprimir: “Eu compreendo o que você está tentando fazer. Você está querendo saber por que eu caminho assim na não-presença. Eu aceito que você tente. Mas olhe em seu redor, e veja se serve de explicação. A você mesmo, vale que eu te explique isso? Então, fiquemos aí. Nós fomos juntos o mais longe que é possível”. Eu fui tomado de vaidade, de ter podido obter essa resposta. Era realmente um sinal imperceptível, um tipo de balançar da mão apenas erguida, que se tornou (pois eu o adotei por minha vez) nosso signo de conivência. Me pareceu que nós aperfeiçoávamos essa mímica, nuançando-a na medida de todos os significados adventícios possíveis. Partilhamos assim, até a minha partida, alguns cacos dessa linguagem dos gestos que JeanJacques Rousseau diz ter precedido toda língua falada. Eu pensava naqueles que desse ponto do mundo lutam contra o silêncio e o apagamento. Naquilo que, na obstinação de sua luta, eles consentem de redução: no sectarismo, no discurso estereotipado, no ardor de guardar verdades definitivas, no apetite do poder. E ainda em tudo aquilo que Alain Gontrand diz tão bem serem nossas “mascaradas de humor”. Pensava naqueles que, no resto do mundo (o que resta é também o que se move), não tiveram a facilidade de se refugiar, como esse caminhante, na ausência – eliminados pela miséria bruta, pela extorsão, pelas fomes, pelos massacres. É um paradoxo, que tantas violências por toda parte se encerrem sobre a mesma elementaridade de linguagem, quando não sobre a extinção da fala. O Caos não teria uma linguagem que valha? Ou ainda não a produziria senão de um só tipo, redutora e aniquilante? Seu eco se reduziria a uma algaravia das algaravias, a nível de balbucio? 124


A praia entretanto tinha confirmado sua vulcanidade. A água força agora contra o dique de rochas que ali se acumularam, lembrança dum antigo desastre de ciclone, Beulah ou David. Sob a espuma, a areia negra faísca como uma pele que descasca. A linha da arrebentação se avizinha dos coqueiros, que estão plantados no mar e clamam com suas folhagens tão convenientes a energia das profundezas. Nós medimos esse encolhimento que se acentua à medida que a invernagem se pronuncia. Depois, bruscamente, ao menos para nós que estamos atentos a essas mudanças, a água baixa, lavando dia após dia uma faixa cada vez mais larga e cinzenta. Não queiram evocar uma maré. E, no entanto, ela desce! A praia, se alargando, corre ao encontro da seca futura. Me parecia que o caminhante taciturno acelerava a cadência de suas passagens. E que, no país ao redor, ganhava também o atordoamento. Por compilação, trepidação ou precipitação de tudo (o barulho, a fala, os objetos de consumo, o zouk, os carros), nós queríamos a toda força imitar o movimento que adivinhávamos no distante. A gente se esquece como pode na velocidade que dá. Eu me esforçava então para fazer equivaler, nessa circularidade que anseio, a ressaca da praia ao vazio turbilhonante do entorno, à ciranda deste que se tinha retirado em sua única força motriz. Para relacioná-los, eu também, a essa cadência do mundo à qual consentimos sem que possamos medi-la ou controlar seu curso. Pensava que por toda parte, de modos tão diferentes, a mesma necessidade se dá, de convir à pulsão caótica da totalidade, sofrendo porém as exaltações e as sonolências das existências particulares. Eu pensava nesses modos, que são igualmente lugares comuns: o susto, o estiolamento, a extinção torturada, as resistências infatigáveis, a crença ingênua, as fomes sem eco, o estupor, os aprendizados teimosos, os aprisionamentos, os combates sem esperança, a redobra e o isolamento, os poderes orgulhosos, a riqueza cega, o imobilismo, a paralisia, as ideologias disfarçadas, as ideologias estampadas, o crime, a 125


baderna, os racismos, os subúrbios, as técnicas sofisticadas, os jogos primários, os jogos refinados, os abandonos e as traições, as vidas sem recuo, as escolas que funcionam, as escolas em ruínas, os complôs de poder, os prêmios de excelência, as crianças que são fuziladas, as máquinas informáticas, as aulas sem papel nem giz, as fomes exacerbadas, as emboscadas, as alegrias, os guetos, as assimilações, as imigrações, as doenças da Terra, as religiões, as doenças do espírito, as músicas da paixão, os furores do que a gente chama tão simplesmente de libido, os prazeres pulsionais e esportivos e tantas outras infinitas variantes da vida e da morte. Que esses lugares comuns, em quantidades inumeráveis e definidas, produzissem com efeito esse Balbucio, onde ancoraríamos todavia o sotaque de cada língua do mundo. O caos não tem linguagem, ele a suscita por miríades quantificáveis. Nós deciframos o ciclo das confluências delas, a medida de suas velocidades, as similitudes de suas diversões. Agora, a praia está em muda atormentada. A cor da areia é desordem, nem cinza nem luz, adaptada porém à qualidade do ar e do vento. O mar espuma mais que de costume: a gente sente que ele logo acalmará os assaltos de suas ilhotas. Superfícies trêmulas o aureolam. Como se essa realidade (a areia, as árvores de mar, a água condutora de vulcão) organizasse sua economia segundo um plano cíclico. Me vieram à mente esses projetos mirabolantes executados a cada dois anos ou aproximadamente isso para salvar o país e que todos, decididos pelo pensamento da sujeição, afogam fatalmente no abismo do lucro pessoal. Eu me perguntava se, num pequeno país como o nosso (“eu acreditava no porvir dos pequenos países”), as perspectivas econômicas (a inspiração delas) não devessem ser à imagem da praia do Diamante; cíclicas, cambiantes, mutantes, percorrendo uma economia da desordem cujo detalhe fosse minuciosamente calculado, mas cujas visões de conjunto mudassem em grande velocidade, segundo as variações da conjuntura. Se elencássemos, assim, sem qualquer método em sua apresentação, alguns dos domínios nos quais se realiza, num 126


país como este, todo plano de desenvolvimento econômico (a infraestrutura e seu negócio, as condições dos investimentos, o budget do Estado (qual Estado?), a formação profissional, a busca pelas oportunidades, as fontes de energia (quais fontes?), o desemprego, a vontade de criar, a cobertura social, o fisco, a concertação sindical, o mercado interior, o importa-exporta, a acumulação de capital, a repartição do produto nacional (de qual nação?), nenhum desses campos que não estaria aqui em crise, inexistente ou impossível; nenhum que não clame a inspiração dum poder político independente; mas também, nenhum que não se deva a uma desordem estrutural herdada da colonização e que nenhum reajuste de paridade (entre antiga colônia e antiga metrópole), nem tampouco qualquer planificação de ordem ideológica saberia corrigir. É para lá que é preciso retornar: às fontes de nossas culturas, à mobilidade de seu conteúdo relacional, para melhor apreciar essa desordem e modular sobre ela toda ação. Adaptar a ação aos possíveis do que seria, uma de cada vez, economia de subsistência, como ela existia à margem das Plantations, economia de mercado, como o mundo atual nos impõe, economia regional, para integrar a realidade do entorno caraíba, economia planificada, tão logo os ensinamentos das ciências nos sugerissem as modalidades delas. Abandonar a perspectiva única duma economia mecanicamente erigida sobre maximalidades de subvenções, a obter de bom grado dum Outro. A obsessão dessas subvenções ano após ano enrijece o pensamento, paralisa a iniciativa, inclina a distribuir manás aos mais petulantes, negligenciando talvez os mais eficazes. Uma economia da desordem, da qual me lembrei então que Marc Guillaume havia feito uma teoria toda outra (Éloge du désordre, 1978), mas que endossaria talvez o que Samir Amin tinha dito das economias auto-centradas. Loucura!, pensei na hora. Loucura, gritam para mim. Mas loucura que comporta uma dose não negligenciável de possibilidades de reflexão para 127


o técnico da matéria. A principal qualidade se torna aqui a aceleração. Não aquela precipitação distraída que reina no entorno, mas a acuidade extrema do pensamento, pronta a variar sobre seu erro. Ser capaz a todo momento de mudar de velocidade e direção sem mudar entretanto de natureza nem de intenção nem de vontade: quem sabe estivesse aí o princípio ideal para um tal sistema de economia. As mudanças de itinerário dependeriam duma análise severa do real. A permanência da intenção e da vontade, nós a forjaríamos no conhecimento de nossas culturas. Essa aceleração, essa velocidade, correm a terra. “E no entanto, ela se move!”. A deixa de Galileu não havia somente decidido uma nova ordem no conhecimento dos astros; ela tinha profetizado a circularidade das linguagens, a velocidade convergente das culturas, a autonomia (com relação a todo dogma) da energia que daí resulta. Mas, como eu errasse assim, o silêncio subiu pouco a pouco da agitação do mar, tão vertiginoso quanto a velocidade e a desordem. O caminhante sem voz continua a carregar sua areia negra, dum vulcão longínquo, conhecido apenas por ele, até a praia que ele finge partilhar conosco. Como pode acelerar seu curso, se emagrece tão intensamente? Um de nós sussurra: “Ele vai cada vez mais rápido, porque se para, se diminui o passo – ele cai”. Nós não aceleramos, nós nos precipitamos, todos – por medo de cair.

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colaboradores Caroline Micaelia é tradutora, escritora, graduanda em Letras pela USP e pela Sorbonne (Paris IV), & editora da cisma desde 2014, ano que sucede o início de sua pesquisa sobre Stéphane Mallarmé, a qual segue até os dias de hoje. Além do Ferlinghetti desta edição, traduziu poetas argentinos e trabalha atualmente na tradução dos poemas de estreia da francesa Irène Gayraud. Eduardo Vasconcellos é graduando em História (licenciatura) pela PUC-SP. Fotógrafo errante. Felipe Leite é estudante de Letras Vernáculas (UFBA) e pesquisa sobre as representações do corpo e da violência no teatro de Hilda Hilst. Interessa-se pelos seguintes temas: literatura contemporânea, poéticas do grotesco, erotismo e memória. Henrique Amaral é graduado em Letras pela USP. Também é editor da cisma desde 2013. Iago Passos é bacharelando em Letras (UFMG). Desenvolve pesquisas e experimentos acerca das relações entre poesia, artes gráficas e performance oral. Participou de duas edições do “Terças Poéticas”, no Palácio das Artes, em BH 129

(2012/2013), também fez parte do Projeto Temos Palco, na Funarte BH (2014), do Festival Literário Internacional de Belo Horizonte (2015) e do 29º PSIU Poético em Montes Claros (2016). Produziu e publicou três livros artesanais e independentes: Mínimo (2013), Luzes em trânsito (2014) e Xirê (2015). Isabela Benassi é graduada em Letras pela USP e editora da cisma desde 2013. Estuda literatura portuguesa contemporânea e sua relação com as artes plásticas – também faz gravuras e desenhos. Maria Petrucci Sperb nasceu em Porto Alegre no dia 10 de janeiro de 1996. Cursa a graduação em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e é bolsista de iniciação iientífica desde 2013. Seu primeiro projeto de pesquisa, uma leitura das obras Othello e Macbeth, de William Shakespeare, a partir da teoria do desejo mimético de René Girard, foi finalizado com destaque no Salão da UFRGS de 2014. Atualmente, interessa-se pelos Estudos de Gênero, principalmente pelo trabalho da pensadora americana Judith Butler. Maria Teresa Mhereb é formada em Ciências Sociais pela Unesp Araraquara e graduanda em Letras pela USP. Realiza iniciação científica em


Estudos da Tradução com a pesquisa “Avaliação de qualidade em tradução: estudo comparativo de traduções de poemas em prosa de Charles Baudelaire”. Marina de Souza Lazarim é aluna de Letras da FFLCH-USP. Realizou uma pesquisa de iniciação científica sobre o poeta Mário de Sá-Carneiro durante a graduação e atualmente possui interesse em poesia contemporânea portuguesa. Mateus Albino é graduando em Letras (português/francês) pela USP, tem interesse em pesquisa e em produção de cinema e de teatro. Rafael Guimarães Silva estuda Literatura Antiga na Faculdade de Letras da UFMG. Interessa-se pela teoria da tradução – sobretudo a advinda de autores que pensam e questionam limites e fronteiras –, assim como pela prática de traduzir, tanto línguas antigas, quanto modernas. Sua pesquisa atual passa por uma tentativa de compreensão arqueológica da tragédia ática como fenômeno sociocultural, enquanto procura dar conta das primeiras teorias da mimese, a partir do esboço de uma poética platônica: teatro, filosofia e poesia em tradução.

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Raquel Siphone se formou em Fotografia pela Escola Panamericana de Arte (2014). Atualmente é discente de Língua e Literatura Russa na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Sara De Santis nasceu em Termoli, Itália, em 1987. É graduada em cenografia pela Accademia di Belle Arti di Brera, de Milão. Estudou fotografia na Université de Paris VIII e completou os seus estudos no Centro di Formazione Professionale Riccardo Bauer, em Milão, e na Fundação Armando Alvares Penteado, em São Paulo, onde vive e trabalha. Participou de diversas exposições na Itália e no Brasil, e colaborou com festivais de fotografia como o Paraty em Foco e o ECO – Encontro de Coletivos Fotográficos. Tainá Medeiros estudou Fotografia no Cobertura Photo, em Sevilla, e atualmente estuda Medicina na UFPE. Se interessa pelos diálogos da imagem e do corpo, pela fotografia analógica e por processos experimentais de criação de imagens.



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