cisma 3: quem de dentro de si não sai

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cisma nĂşmero 3: quem de dentro de si nĂŁo sai

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cisma ISSN 2238-7013

fotografias Vitor Serrano

idealizadores da cisma Sofia Nestrovski Tiago Bentivoglio

Esta versão foi adaptada para leitura online. Os seguintes textos, publicados na versão impressa, tiveram que ser removidos, por questões de direitos autorais:

2013, ano II, número 3 reedição 2016 editores Carolina Giacomo Greta Coutinho Guilherme Tauil Juliano Salustiano Mariana Holms Sofia Nestrovski Thiago Teixeira Lopes revisão Carolina Giacomo Greta Coutinho Guilherme Tauil Juliano Salustiano Mariana Holms Rodrigo Tadeu Sofia Nestrovski Thiago Teixeira Lopes projeto gráfico e diagramação Lucas Blat ilustração da capa Selene Alge, 2010

Tradução de "Signos e símbolos", de Vladimir Nabokov, por Juliana Cunha Tradução de "Uma mesa é uma mesa", de Peter Bichsel, por Pedro de Abreu Meyer Pires Tradução de "Errata", de Charles Simic, por Sofia Nestrovski Governo do Estado, Secretaria da Cultura, apresentam a revista cisma contato revistacisma@gmail.com www.facebook.com/revistacisma www.revistacisma.com www.revistas.fflch.usp.br/cisma


editorial Chegar à terceira edição é motivo para comemorar. Não é só pelo simbolismo do número três, místico, santo, meio inabalável. O que acaba, de fato, afetando a nós, da cisma, é muito mais o estarrecimento de “como é que isso deu certo?”, aliado à pergunta que continua a nos instigar: “para onde podemos ir agora?”. Percebemos que, nesses três números, fizemos um caminho, talvez inconsciente, curiosamente marcado pela negatividade: da impossibilidade do “Tudo já foi dito”, nosso primeiro tema, à proposta de enfrentar a literatura (e a crítica) tal como a concebemos em “Literatura contra literatura”, chegamos aos versos de Vinicius e Baden Powell, desafiadores, luminosos e certeiros: “Quem de dentro de si não sai/ vai morrer sem amar ninguém”. Isso tudo partindo do nome um pouco dramático que escolhemos para a revista. Cismar, separar, se contrapor, negar, partir do impossível para, enfim, sair de si em direção ao outro: parece haver um sentido em tudo isso. Vamos por partes. Sair de si vale, para nós, em muitos aspectos. Não só pela experiência de alteridade que a literatura proporciona. É também a saída necessária das bolhas acadêmicas, é o desafio ao cânone, da determinação dos modos e dos objetos de leitura. A homenagem a Vinicius vai um pouco por esse lado – adorado e detestado, ele é uma espécie de síntese disso tudo, no mínimo, por ser muito lido e cantarolado, porém tão pouco estudado e debatido. Com o tema, surge, felizmente, a música. A leitura dos textos desta edição vai do samba de Noel Rosa ao violoncelo de um conto de Machado de Assis: a canção se mostra sempre como maneira de sair de si, de alcançar o outro. Aliás, vemos, em outro artigo, a música popular de Vinicius como prova disso, ainda que sob o protesto de alguns de seus amigos, como o cronista Rubem Braga, seu colega também de centenário. O mar, que nos transporta, fascina e apavora, ligou a Bahia de Dorival Caymmi ao Cabo Verde de Manuel Lopes, um dos fundadores da moderna literatura cabo-verdiana. Para completar a seção de artigos, as artes plásticas 5


ganham presença em outro conto de Machado de Assis. Na seção Novíssimos, uma resenha de Sentimental, de Eucanaã Ferraz, chama atenção ao ritmo sincopado do poeta, tão influenciado por Vinicius e pela canção. Por fim, contamos com três traduções: do suíço Peter Bischel, do russo-americano Vladimir Nabokov e do sérvio-americano Charles Simic – todos que já se arriscaram na tradução entendem como a tarefa pode ser uma forma difícil, mas gratificante, de sair de si e ouvir o outro. E, no entanto, se falamos em ouvir o outro, é impossível ignorar os acontecimentos, do Brasil à Turquia, dos meses de junho e julho desse ano − os mesmos meses em que editamos este número da cisma (ainda que o tema da edição tivesse sido escolhido no início do ano). Esses movimentos profundamente necessários de oposição à ordem cristalizada e caduca, deram de cara, em muitos momentos, com autoridades que se recusavam categoricamente a escutar. Ou ainda, em muitos outros momentos, o que se viu por aqui foi a falsa escuta sobretudo por parte da grande mídia, que se aliava ao que lhes convinha, neutralizando (ou estigmatizando) o que não queriam ou não poderiam compreender e transmitir. Nessas épocas em que a turbulência torna-se aparente e inegável, faz-se essencial, para uma revista como a nossa, ter em mente que crítica e crise partilham da mesma raiz etimológica. O que queremos é isso: é crise e crítica juntas. No mínimo porque como alunos de graduação, não podemos − nem queremos − escapar dessa dupla. Quanto à pergunta “para onde podemos ir”, respondemos – não sem alegria – que ainda não sabemos. A cada número, novos integrantes vêm fazer parte da cisma (aliás, todos os alunos são bem-vindos − quem quiser participar, é só entrar em contato: revistacisma@gmail.com), o que nos salva do aborrecimento de quem fica muito tempo ensimesmado. Como só publicamos textos de alunos da graduação (ou de recém-formados, ou ainda, de alunos que estejam cursando o primeiro ano da pós), sabemos também que os autores e tradutores estarão sempre se reno6


vando. E daqui, se pudermos apontar um princípio de caminho por onde começar, indicamos o tema já escolhido da cisma 4: “Enquanto tudo acontece”. No ano da Copa e do centenário da Primeira Guerra Mundial, convidamos tudo o que tem acontecido para entrar na crítica, e, quando à crítica, que continue se manifestando: desde a “baderna” mais completa (como diriam alguns) até uma pequena cisma.

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Os cães engarrafados: a amizade de Rubem Braga e Vinicius de Moraes, Guilherme Tauil

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Notas sobre malandragem, utopia, e canção popular Marcos Vinícius Ferrari

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A leitura machadiana para além da literatura Mariana Chirico Machado Holms

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Herói e anti-herói na roda dos ventos: Os flagelados do vento leste, Lílian Honda

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Na beira do mar: uma leitura de Canções praieiras, de Dorival Caymmi Juliana Ramos Gonçalves

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O violoncelo fora do lugar: arte e sociedade em um conto de Machado de Assis Gabriel Cordeiro dos Santos Lima

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Resenha de Sentimental, de Eucanaã Ferraz Isabela de Vilhena Gaglianone

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colaboradores

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Os cães engarrafados: a amizade de Rubem Braga e Vinicius de Moraes Guilherme Nogueira Tauil

“Nunca vi boa amizade nascer em leiteria – o uísque é o melhor amigo do homem. Uísque é o cachorro engarrafado.” Vinicius de Moraes Rubem Braga e Vinicius de Moraes, cujos centenários agora se comemoram, compartilham mais que o ano de nascimento. Rubem, um de nossos maiores cronistas, foi também poeta. Vinicius, um de nossos maiores poetas, foi também cronista. Ambos exerceram postos diplomáticos, e, durante muitos anos, cultivaram uma amizade que respingou na literatura em forma de mútuas homenagens. Entre as duas obras, existem muitos pontos convergentes. Talvez o mais notável seja o apreço às coisas efêmeras e pequenas, pelo que já foi e pelo inalcançável, pelo interior e pela simplicidade. Além da literatura, a afinidade entre os dois se evidencia também através das personalidades, que podem sugerir algum esclarecimento de questões referentes às obras: foram homens de uma generosidade atípica, que encaravam a vida de uma perspectiva humilde, numa atitude de certa leniência diante de alguns dos mistérios do mundo – mas de constante questionamento e inquietação a respeito da condição humana, seja pelo indivíduo ou pela coletividade. 11


Bom exemplo dessa cordialidade é o fato de que tanto Vinicius quanto Rubem foram renomados anfitriões. A casa de Vinicius de Moraes permanecia sempre aberta, sobretudo nas décadas de 50 e 60. Eram frequentes as reuniões de amigos, artistas e intelectuais, que se juntavam em saraus regados a uísque e violão. Os versos de “Água de beber”, parceria do poeta com Antonio Carlos Jobim em 1961, parecem dar conta desse espírito generoso: “a minha casa vive aberta/ abri todas as portas do coração”. E mais do que abrir a própria casa, Vinicius parece ter sido o responsável por desencadear um destrancamento geral de portas entre muitos artistas da cidade, que passaram a promover em suas casas reuniões musicais muito propícias àquele Rio de Janeiro que respirava uma bossa nova. Rubem Braga, por sua vez, jamais trancava a porta de sua famosa cobertura em Ipanema, de onde se tem uma vista privilegiada do mar. Qualquer amigo que quisesse desfrutar de seu jardim suspenso sem aviso prévio, bastava pegar a escada do décimo segundo andar, empurrar a porta e servir-se de uísque. Inclusive quando o próprio cronista não estava em casa – ou, então, quando ele nem se levantava de sua rede diante da presença dos amigos. Mas, diferente da morada de Vinicius, os encontros na cobertura de Braga não eram tão festivos. Reservado e tido como mal humorado, Rubem preferia a calma das conversas, e, não raro, dos monólogos: contam que muitas vezes ele só ouvia o que os outros tinham a dizer. E muitos dos convidados para as festas de Vinicius eram, também, frequentadores da cobertura, pois ambos participavam da mesma turma de boêmios e intelectuais que se encontrava nos bares do Rio – entre eles, o Amarelinho, o Vermelhinho, o Lidador e o Westphalia. Vinicius chegou a incluí-los em uma descontraída balada que serve como ilustração do clima: Meu amigo Pedro Nava1 Em que navio embarcou: A bordo do Westphalia 12

1 Pedro Nava (1903 – 1984), médico e escritor brasileiro, conhecido por seus livros de memórias. Suicidou-se aos oitenta anos com um tiro na cabeça, numa praça do bairro da Glória, no Rio de Janeiro.


Ou a bordo do Lidador? Em que antárticas espumas Navega o navegador? Em que brahmas, em que brumas Pedro Nava se afogou? [...] (“Balada de Pedro Nava”) Eles faziam parte da “turma do uísque”, talvez a mais sedenta das categorias alcóolicas dos amigos. Ferreira Gullar, por exemplo, era do pessoal do chope, e por isso não esbarrava muito com Braga, mas com Vinicius sim, que transitava por todas as categorias, sem preconceito etílico. Eles foram, de fato, bons bebedores. De Vinicius, em seus shows, tem-se a clara imagem do poeta escoltado por uma garrafa de uísque, que secava no decorrer da noite. Braga, por sua vez, protagonizou uma história inusitada: em seu tempo de cronista da revista Manchete, pediu aos leitores que enviassem garrafas de uísque à redação como presente de Natal. Em um ano, recebeu trinta garrafas. No outro, apenas dez. O pedido ia impresso na própria revista, ainda que seus colegas de crônica se recusassem a assinar a brincadeira: “1960!/ Não sei se minh’alma aguenta!/ Se o Sabino2 fez promessa/ Pongetti não se interessa/ E Paulinho tem mau fígado/ Ligue ao barman e diga: do/ Melhor uísque me traga/ Para o Braga!”. De modo que a epígrafe deste texto, que é uma junção de frases que Vinicius costumava dizer entre amigos, poderia perfeitamente ter sido escrita por Rubem, embora sua vida não tenha sido sempre tocada nesse ritmo. Em 1944, alguns anos antes, Rubem Braga acompanhou a Força Expedicionária Brasileira à Itália, para cobrir, como repórter, a Segunda Guerra Mundial. Só dois anos depois, ao retornar para o Brasil, pôde ler o longo poema que Vinicius, saudoso, escrevera em sua homenagem:

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2 Fernando Sabino (1923 – 2004), Henrique Pongetti (1898 – 1979) e Paulo Mendes Campos (1922 – 1991), colegas de revista que também assinavam uma coluna de crônicas.


A meu amigo Rubem Braga Digam que vou, que vamos bem: só não tenho é coragem de escrever Mas digam-lhe. Digam-lhe que é Natal, que os sinos Estão batendo, e estamos no Cavalão: o Menino vai nascer Entre as lágrimas do tempo. Digam-lhe que os tempos estão duros Falta água, falta carne, falta às vezes o ar: há uma angústia Mas fora isso vai-se vivendo. Digam-lhe que é verão no Rio E apesar de hoje estar chovendo, amanhã certamente o céu se abrirá de azul Sobre as meninas de maiô. Digam-lhe que Cachoeiro continua no mapa E há meninas de maiô, altas e baixas, louras e morochas E mesmo negras, muito engraçadinhas. Digam-lhe, entretanto Que a falta de dignidade é considerável, e as perspectivas pobres Mas sempre há algumas, poucas. Tirante isso, vai tudo bem [...] (“Mensagem a Rubem Braga”) Há, nessa carta-poema, todos os elementos de simplicidade cotidiana que Braga costumava retratar em suas crônicas. Vinicius brindou o amigo, “Correspondente de guerra, 250 FEB, atualmente em algum lugar da Itália”, com uma coletânea de assuntos caros ao cronista, distante do mar de Ipanema e privado de ver as moças de maiô. Em “Mensagem a Rubem Braga”, a valorização das coisas desimportantes e banais aparece como uma forma de resistir à brutalidade da guerra. Assim, quase nada há de relevante nas notícias, o que revela o espírito dessa amizade que zelava pelos detalhes da vida simples: fulana está linda, compadre está doente, Drummond tem escrito ótimos poemas, um amigo continua apaixonado, é tempo de caju e abacaxi. Até mesmo o cardápio do almoço é compartilhado. Além disso, a partir desse poema, é possível fazer o recor14


te de dois grandes tópicos da obra de Rubem Braga – o fascínio pela mulher e o engajamento social: [...] Que outro dia vi Elza-Simpatia-é-quase-Amor. Foi para os Estados Unidos E riu muito de eu lhe dizer que ela ia fazer falta à paisagem carioca Seu riso me deu vontade de beber: a tarde Ficou tensa e luminosa. Digam-lhe que outro dia, na Rua Larga Vi um menino em coma de fome (coma de fome soa esquisito, parece Que havendo coma não devia haver fome: mas havia). [...] (Ibid.) A temática feminina é recorrente na prosa de Braga. Frequentemente prostrado enquanto vítima ou aprendiz dos “mistérios insondáveis” da mulher, o velho Braga está sempre suspirando ou sofrendo com seus relacionamentos, desejos e frustrações. De fato, Rubem foi um homem entregue às paixões, mas de uma maneira muito diferente de Vinicius, que se casou nove vezes em uma insaciável busca pelo amor – o cupido de seu segundo casamento, aliás, foi o próprio Rubem, que, menos atirado, casou-se apenas uma vez. A melancolia de amores impossíveis parece ter o acompanhado ao longo de toda sua vida. Outro ponto latente nas crônicas de Braga é a consciência social. Logo após Vinicius ter sua tarde iluminada com o riso de uma moça, ele conta ao amigo de um menino esfomeado. Ora mais tímido, ora mais combativo, Braga nunca se esqueceu da pobreza, que assume um papel de destaque em seus textos – aliás, o tom de engajamento político dita grande parte de sua obra, ainda inédita no mercado editorial. A denúncia da miséria e a exposição da luta de classes, com a crítica ao sistema que explora os desvalidos e enriquece os patrões, contri15


bui para uma discussão pública acerca dos socialmente excluídos, uma vez que as crônicas de Braga circulavam por jornais e revistas populares. Sua oposição ao governo, sobretudo nos anos de Getúlio Vargas, culminou na fundação do semanário Comício, antigetulista em essência, para o qual colaboraram Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Clarice Lispector (sob o pseudônimo de Teresa Quadros), Antonio Maria e Millôr Fernandes, entre outros. Vale lembrar também que, em 1947, Braga foi um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro, ao lado de intelectuais como, por exemplo, Antonio Candido. A resposta literária de Braga ao poeta, no entanto, só viria mais tarde, quando Vinicius já morava em Los Angeles em seu primeiro posto diplomático. Rubem, poeta bissexto, escreveu-lhe “Bilhete para Los Angeles”. Mas diferente da saudação honrosa que recebeu do amigo, Braga deixou transparecer o carinho viril ao qual às vezes era dada a amizade: Tu, que te chamas Vinicius De Moraes, inda que mais Próprio fora que Imorais Quem te conhece chamara – Avis rara! Tens uns olhos de menino Doce, bonito e ladino E és um calhordaço fino: Só queres amor e ócio, Capadócio! Quando a viola ponteias As damas cantando enleias E as prendes em tuas teias – Tanto mal que já fizeste, Cafajeste! 16


Apesar do que, faz falta Tua presença, que a malta Do Rio pede em voz alta: Deus te dê vida e saúde Em Hollywood! Trata-se, notadamente, de uma brincadeira. O poema de escárnio tem dimensão humorística pela temática e pelo vocabulário, e acaba revelando, também, a pouca afinidade de Braga enquanto poeta. Seu único livro de poemas, Livro de versos, muito pouco contribuiu para sua obra. Nele, nota-se falta de originalidade e uma forte influência de Manuel Bandeira e do próprio Vinicius. O que há em Braga de poético, e há muito, melhor se desenvolve na prosa. Seu lirismo se tensiona com o texto corrido, suspendendo o ritmo que difere o verso da prosa, resultando numa crônica de cunho muito híbrido entre os gêneros. Não à toa, Braga prefere frases curtas, quase como se fossem versos, carregando-as com a intensidade de cada palavra. O desprezo pelos adjetivos fortalece essa construção lírica. Muitas das crônicas de Braga parecem ser poemas que transbordaram. O tom de cordial agressividade que se revela era recorrente entre os amigos. Certa vez, Vinicius pediu a Rubem que escrevesse o texto da contracapa de um de seus discos. Braga não escondia de ninguém o desprezo pelas letras do poeta e fazia coro, junto a João Cabral de Melo Neto, para que ele abandonasse o ofício de compositor popular e voltasse ao posto de habilidoso sonetista. Mas acabou cedendo e escreveu o texto. Assim que o recebeu, no entanto, Vinicius rasgou o papel. Com as contas acertadas, os dois saíram para beber. Quando Vinicius compôs a letra da clássica “Garota de Ipanema”, Braga fez uma paródia que costumava apresentar pelos bares: “Olha que coisa mais triste/ Coisa mais sem graça/ É esse velhote/ Que vem e que passa/ Num pesado balanço/ A caminho do bar”. Muito adiante, já com sessenta anos completos, Vinicius 17


voltou a homenagear o amigo, dessa vez com um soneto – do jeito que Braga gostava. “Soneto do sessentenário de Rubem Braga” é uma reflexão sobre a vida em decassílabos, de ritmo muito marcado pela aliteração do fonema /s/: Sessenta anos não são sessenta dias Nem sessenta minutos, nem segundos... Não são frações de tempo, são fecundos Zodíacos, em penas e alegrias. São sessenta cometas oriundos Da infinita galáxia, nas sombrias Paragens onde Deus resgata mundos Desse caos sideral de estrelas-guias. São sessenta caminhos resumidos Num só; sessenta saltos que se tenta Na direção de sóis desconhecidos Em que a busca a si mesma se contenta Sem saber que só encontra tempos idos... Não são seis, nem seiscentos: são sessenta! A ideia de vida que recorrentemente aparece na obra de Vinicius se faz notar logo na primeira estrofe: o decorrer da vida não é apenas uma marca no calendário, limitando-se a “frações de tempo” – ele traz consigo todas as marcas de sua trajetória, em “fecundos zodíacos” de tristezas e alegrias. As imagens empregadas em torno dessa concepção são todas astronômicas: zodíaco, cometas, galáxia, mundos, caos sideral, estrelas-guias, sóis. São noções que estão além do nosso próprio entendimento, que nos escapam pela distância e pela dimensão. E que, diferente dos sessentões, resistem à passagem do tempo. Aliás, nem o próprio tempo se aplica no espaço sideral com as mesmas leis que nos regem. Portanto, quando o poeta usa dessas imagens 18


para tratar da vida, a pequenez da condição humana diante desses astros parece ser neutralizada, e o homem se engrandece. Como se vê, a citação mútua era comum entre os amigos. Vinicius costumava fazê-la com mais frequência. Existem pelo menos mais duas de suas crônicas em que Braga recebe destaque. Em uma delas, “Dia de sábado”, o poeta retoma o tema da velhice e da fugacidade do tempo: [...] Porque hoje é Sábado, desejarei estar de novo num botequim do Leblon, com meu amigo Rubem Braga, ambos negros de sol e com os cabelos, ai, sem brancores; desejarei ser de novo moreno de sol e de amores, eu e meu amigo Rubem Braga, pelas calçadas luminosas da praia atlântica, a pele salgada de mar e de saliva de mulher, ai... Em outra, anterior, Vinicius conta a experiência engraçada que sua irmã teve com Rubem, quando este foi tapeado por um malandro, que lhe vendeu um canário supostamente treinado para sempre retornar à gaiola. Logo na primeira oportunidade, o bichinho voou para a mata. Braga, homem da roça, sabia reconhecer todos os passarinhos que habitavam sua cobertura. Vinicius diz que chegou a se interessar por ornitologia por sua influência, mas não levou os estudos para frente. Assim como, certa vez, eles decidiram aprender carpintaria, o que, diz Vinicius, “resultou em arrancarmos, ato contínuo, a porta da garagem da minha antiga casa, sairmos meia hora depois para matar o calor com uma cerveja gelada, e nunca mais voltarmos à dita porta, que se quedou jazente por dias a fio, vítima de nossa impostura” (“O conde e o passarinho”). Mas a grande homenagem de Rubem Braga ao amigo, Vinicius não pôde ler. A crônica “Recado de primavera”, de 1980, é uma reverência póstuma ao poeta, que morrera alguns meses antes, na banheira de sua própria casa:

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Meu caro Vinicius de Moraes, Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a Primavera chegou. Você partiu antes. É a primeira Primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação. Seu nome virou placa de rua; e nessa rua, que tem seu nome na placa, vi ontem três garotas de Ipanema que usavam minissaias. Parece que a moda voltou nesta Primavera – acho que você aprovaria. O mar anda virado; houve uma Lestada muito forte, depois veio um Sudoeste com chuva e frio. E daqui de minha casa vejo uma vaga de espuma galgar o costão sul da Ilha das Palmas. São violências primaveris [...]. À primeira vista, Rubem parece impassível diante da ausência de Vinicius, mas é sua postura de homem retraído numa rigidez viril que não lhe permite manifestar saudades nem lamentações. Sua maneira de fazê-lo, então, é recorrer novamente aos temas que partilhavam: a natureza, as mulheres e, sobretudo, a observação do cenário urbano. Há qualquer coisa de melancólico na afirmação de que viu, sozinho, as garotas por Ipanema, onde Rubem e Vinicius costumavam pedalar juntos. Depois, sentados em algum boteco para retomar o fôlego da volta, eles observavam o movimento da cidade, com especial atenção às ciclistas. Numa dessas, nasceu a “Balada das meninas de bicicleta”, de Vinicius: “Bicicletai, meninada [...]/ Solta a flâmula agitada/ Das cabeleiras em flor/ Uma correndo à gandaia/ Outra com jeito de séria/ Mostrando as pernas sem saia/ Feitas da mesma matéria”. Escrever ao amigo, então, é um modo de reaproximá-lo, como se vivo estivesse. Em seguida, Braga toma refúgio na descrição dos passarinhos. Aos olhos de um ornitólogo amador, os tico-ticos construindo ninho são um claro sinal da chegada da primavera, que, ao destronar o inverno, carrega em si o símbolo da transformação, ainda que esta, em particular, não seja tão alegre assim. No último parágrafo, ele se despede:

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O tempo vai passando, poeta. Chega a Primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui – a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor. Adeus. É curioso notar que, no desfecho, Braga até se reconcilia com a faceta de compositor do amigo. E, ao colocar-se como herdeiro de seu posto, o cronista refirma os valores humildes que os aproximavam. É como se, sem Vinicius, ele fosse o responsável por zelar pelas coisas singelas da vida, perpetuando o eco da delicadeza em suas crônicas. Rubem Braga desempenhou sua função de guardião das ondas, dos tico-ticos e das moças em flor por mais dez anos, até dezembro de 1990, quando, vítima de uma parada respiratória consequente de um tumor na laringe que optou por não tratar, morreu num quarto de hospital, sozinho, como pedira aos amigos. Cem anos depois, tendo sobrevivido à infalível peneira do tempo, a literatura de Rubem Braga e de Vinicius de Moraes estão presentes, porque necessárias. Mas me pergunto se, mais que isso, não seria preciso reviver certo otimismo cordial que nutriam, muitas vezes ingenuamente, para contrabalancear tantos valores opostos que imperam na sociedade – atualmente, muito mais do conde que do passarinho.

BR AGA, Rubem. “Recado de primavera”. In: Recado de primavera. Rio de Janeiro: Record, 1991. ______ . “Bilhete para Los Angeles”. In: Livro de versos. Recife: Edições Pirata, 1980. MOR AES, Vinicius de. “Mensagem a Rubem Braga”. In: O operário em construção. São Paulo: Nova Fronteira, 1979. ______ . “Balada de Pedro Nava (O anjo e o túmulo)”. In: op. cit. ______ .“Balada das meninas de bicicleta”. In: op. cit. ______ . “Soneto do sessentenário de Rubem Braga”. In: Livro de sonetos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ______ . “O conde e o passarinho”. In: Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980. ______ . “Dia de sábado”. In: Para uma menina com uma flor. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981. CASTELLO, José. Na cobertura de Rubem Braga. Rio de Janeiro: José Olympio, 1996. CARVALHO, Marco Antonio de. Rubem Braga: um cigano fazendeiro do ar. São Paulo: Globo, 2007.

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Notas sobre malandragem, utopia e canção popular Marcos Vinícius Ferrari

João Ninguém: uma filosofia malandra A história da música popular brasileira é indissociável da figura do malandro. Nascida e maturada no universo urbano, a canção popular, salvo quando obrigada por forças políticas alheias a ela, sempre preferiu o malandro, a faixa inconstante e sedutora de vadios e trapaceiros à realidade dura do trabalho, ao proletário. “A música popular brasileira”, afirmam Gilberto Vasconcellos e Matinas Suzuki Jr. (“A malandragem e a formação da música popular brasileira”, p. 505), “nasce neste berço folgado, à margem do trabalho pesado”. Figuras ambivalentes, os malandros transitam entre o estrato da pobreza de que são originários e as classes endinheiradas, podendo ser violentos e lúbricos, desonestos e simpáticos. Superados o peso aviltante do trabalho escravo e a fixidez do latifúndio, a vida citadina permite a esses malandros um respiro de liberdade, garantido por essa anomia generalizada, essa existência leve e despreocupada aferrada aos meneios do favor, que mais do que mero resultado de condições socioeconômicas desfavoráveis,1 converte-se um princípio e um valor constantemente euforizados (“eu tenho orgulho/ em ser tão vadio”, canta Wilson Batista). Na brilhante galeria dos tipos malandros eternizados pela canção popular, muitos podem ser creditados ao talento invulgar de Noel Rosa. “Filósofo do samba”, em sua vasta obra (re22

1 “A aversão do malandro ao trabalho não era socialmente abstrata: cicatrizado historicamente pela experiência cruenta da escravidão, o novo trabalhador ingressa no mundo da superexploração do trabalho, que a forma de acumulação capitalista determinou entre nós.” (Suzuki Jr., Vasconcelos, op. cit., p. 511)


lativamente ao seu curto tempo de vida) se encontrarão tanto a finura da visada do cronista, a agudeza do satírico implacável ou a delicadeza do cantor de amores frustrados e de grandes temas da existência. Os personagens que povoam seu imaginário podem resumir-se àquela arraia-miúda que vai daqui para lá em sua amada vila com nome de princesa e que, embora possa esticar até a Penha, Estácio ou Catumbi, sabe que “palmeira do mangue/ não vive na areia de Copacabana”. Em Noel, a figura do malandro ganha contornos definitivos e atemporais quanto mais se enfraquecem os laços que unem o homem ao universo do trabalho, no qual, aliás, o sambista raramente esbarra – bastará lembrar que, em “Três apitos”, enquanto a mulher amada ouve os apitos da fábrica de tecidos, o poeta compõe seus versos ao piano. Noutro samba, igualmente magistral, o botequim é o escritório do malandro. Para melhor compreender as modulações da figura “malandra” no universo de Noel Rosa, tomemos seu samba “João Ninguém”, de 1935. De acordo com João Antônio, esta canção situa-se num segundo momento da obra noelina, caracterizada pela exposição dos “tipos das ruas […] as gentes marginalizadas, os esquecidos e inconvenientes: pedintes, bêbados, expedienteiros, malandros, caloteiros, vigaristas, judeus, prestamistas, corridos da polícia e avaros” (Noel Rosa, p. 58). Confrontam-se nessas peças de rara mordacidade, a meio termo entre a caricatura e a crônica realista de costumes, “a grandeza quase épica” e “as personagens mais miúdas e aparentemente insignificantes: marias-fumaça, joões-ninguém”. De saída, somos apresentados a esse personagem de nome curioso: João Ninguém. Sua nulidade, sugerida pelo pronome indefinido, aponta antes para a nenhuma representatividade da figura malandra no círculo produtivo do trabalho: é um ninguém para as forças produtivas, em relação às quais assume uma função marginal. Sua sobrevivência garante-se graças ao favor: faz sua morada “num vão de escada” (a saborosa ironia de Noel não deixa escapar o barulho que vem do andar superior), “não trabalha e é custado”. Sua dependência em relação aos es23


quemas do favor molda-lhe profundamente o caráter: por ver-se obrigado a infiltrar-se onde pode e a obter tudo de mão alheia, é forçoso elidir a própria individualidade e abdicar de ter opinião, expôr-se ao perigo ou colecionar inimigos. Seus valores, como sugere o enjambement dos versos, resumem-se tão somente a “casa e comida”: João Ninguém Não tem ideal na vida Além de casa e comida, Tem seus amores também... Até aqui, temos a descrição do tipo malandro e de seus expedientes de cômoda adaptação às circunstâncias. Nos versos finais, entretanto, assoma um juízo sobre a conduta do personagem, em que a simplicidade, a leveza e a ausência de culpa com que leva a vida são confrontadas a uma existência vazia e fútil: E muita gente Que ostenta luxo e vaidade Não goza a felicidade Que goza João Ninguém! Ora, a canção estabelece uma dicotomia entre o modo de ser de João Ninguém e daqueles que ostentam “luxo e vaidade” – não se trata, evidentemente, de uma referência às classes médias ou proletárias, mas a uma certa elite presa a valores hipócritas que, embora prometam a felicidade, não podem proporcionar aquela que experimenta o malandro. Entre o “barão da ralé” e a projeção da “aristocracia” (para usar o termo de seu samba “Filosofia”), encontram-se suspensas as classes trabalhadoras – ou, noutras palavras, desaparecem, por um passe de mágica, aqueles que “descascam” por João Ninguém (o termo é do samba “O orvalho vem caindo”). Antonio Candido, no exame das Memórias de um sargento 24


de milícias, argumenta que a supressão da realidade do trabalho (no que se refere ao romance de Almeida, o trabalho escravo) legou a atmosfera natural e sem culpa de uma dança entre o lícito e o ilícito (ou: a ordem e a desordem), de que tomam parte os homens livres, a camada mediana da sociedade que vive ao sabor dos “arranjei-me”, dos sopros da sorte, dos sortilégios do destino e de truques e expedientes vários: Sociedade na qual uns poucos livres trabalhavam e os outros flauteavam ao Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificiências, da sorte ou do roubo miúdo. Suprimindo o escravo, Manuel Antônio suprimiu quase totalmente o trabalho; suprimindo as classes dirigentes, suprimiu os controles do mando. Ficou o ar de jogo dessa organização bruxuleante fissurada pela anomia, que se traduz na dança dos personagens entre lícito e ilícito, sem que possamos afinal dizer o que é um e o que é o outro, porque todos acabam circulando de um para outro com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX. (Candido, “Dialética da malandragem”, p. 38) O malandro, no romance e no samba, viveria uma espécie de “vida verdadeira”, pois, assinalando sua aversão ao trabalho, atualizaria um certo gesto brasileiro primordial cujo “desrecalque” é levado a cabo pelo samba: “O que nos exprime: a apologia do ócio, o princípio do prazer, o bicho preguiça. Nosso gesto mais íntimo seria avesso ao trabalho: o malandro colocar-se-ia ao lado do princípio do prazer em oposição ao trabalho – princípio da realidade” (Suzuki Jr., Vasconcellos, p. 513). O negaceio do universo produtivo, entendido como uma característica de alcance nacional, uma quintessência tropical e brasileira, adquire tal força no samba da década de 30 que o Departamento de Imprensa e Propaganda estado-novista não tardaria a ajustar a produção musical da época a uma nova ética do trabalho: “a malandragem 25


sambística, nesse contexto, aparece como um mal a ser erradicado, como ruído e dissonância destinados a serem resolvidos num acorde coral” (Wisnik, “Algumas questões de música e política no Brasil”, p. 120). A proibição da exaltação da malandragem, levada a cabo pela ditadura varguista, impeliu os grandes sambistas do tempo ao louvor do trabalho e da ordem. Wilson Batista, em fins dos anos 1930, por exemplo, tornou célebre o samba “O bonde de São Januário”, cujos primeiros versos sintomaticamente alertavam: “quem trabalha/ é que tem razão”. Entretanto, cabe ainda a pergunta: seria esta felicidade de João Ninguém efetivamente o brilho máximo de uma “vida verdadeira”? De um lado, o malandro, por deslizar entre duas pontas – a classe trabalhadora, que o sustenta e a esfera do dinheiro e do mando, a primeira ignorada, a segunda projetada como negativo do próprio sujeito –, não é explorado, nem vive preso a falsos valores, por isso tem sua relativa liberdade assegurada nesse jogo oscilante e incerto. Esse não-lugar, esse lugar tenso que o malandro (não) ocupa, todavia, não se reveste apenas de elementos positivos – há nele também um componente melancólico. Bastará lembrar “Filosofia”: Nesta prontidão sem fim Vou fingindo que sou rico Pra ninguém zombar de mim Não me incomoda que você me diga Que a sociedade é minha inimiga Pois cantando neste mundo Vivo escravo do meu samba O malandro, nesse samba, reconhece uma autoconsciência da necessidade do disfarce, do fingimento diante de uma “sociedade inimiga”: mais do que mera coqueteria, a dissimulação, a mentira e o mascaramento (o malandro que não tem vintém, mas fuma charuto e joga a dinheiro) são estratégias de sobrevivência e, ainda, uma filosofia que recebe sua súmula na can26


ção. A filosofia de Noel é desencantada: por isso, ainda que João Ninguém se distancie da falsidade reluzente do luxo e da hipocrisia “aristocrática”, sua alegria talvez não esteja, de todo, livre de uma contraparte melancólica – a constatação de que a sociedade é inimiga e, visto que não há meios de combatê-la em pé de igualdade, convém aceitar seus meandros e enredar-se por eles. Talvez seja possível questionar se esse lugar de tensão ocupado pela figura do malandro não é também o terreno, ainda não muito confortável, por que transita o compositor popular, escravo do samba “muito embora vagabundo”, em tempos de uma indústria fonográfica ainda incipiente. Não inserido na ordem do trabalho braçal, o compositor é ao mesmo tempo “escravo” e “vagabundo”. Não há como rimar o modelo de vida burguês, ditado pela ordem do trabalho, com os valores defendidos pelo sambista: não por outra razão, sua voz soará sempre desconcertada, irônica, ácida e certeira. João Valentão: o sonho acordado Outro é o universo de Dorival Caymmi. Em suas canções praieiras, temos a experiência de uma totalidade: “a poesia caymmiana nasce de um mundo que deixa perceber inteira a sua figura” (Risério, Caymmi: uma utopia de lugar, p. 103). Parece não haver nenhuma distância entre a alma e as formas, isto é, entre o sujeito e os caminhos que o mundo exterior oferece para que ele se realize plenamente. Tomando de empréstimo as palavras com que Lukács definiu as culturas fechadas que produziram a grande épica grega, a obra de Caymmi nos sugere que “a alma encontra-se em meio ao mundo; a fronteira criada por seus contornos não difere, em essência, dos contornos das coisas; ela traça linhas precisas e seguras, mas separa somente de modo relativo” (Lukács, A teoria do romance, p. 29). Daí essa sensação de integração e totalidade: o trabalho não dilui as individualidades e, antes que negado (como no samba de Noel Rosa), é incorporado às canções, seja como conteúdo tematizado, seja como 27




forma (“Canoeiro” parece recuperar o próprio ritmo da pescaria, na enumeração ágil de versos curtos: “cerca o peixe/ bate o remo/ puxa a corda/ colhe a rede/ ó canoeiro/ puxa a rede do mar”). No plano sentimental, as canções praieiras não apresentam a perspectiva do amor irrealizado, o qual é substituído, via de regra, pelo jogo lúdico e lúbrico da sedução, pelos atrativos da “vizinha do lado”. O verso é claro, límpido, conciso, tem potencialmente as tintas da épica e a delicadeza da lírica, estiliza e recria a fala cotidiana – entretanto, como alerta Antonio Risério, “a poesia de Caymmi é coloquial, mas nem por isso se confunde com a poética da malandragem […] ‘malandro’ e ‘otário’, os termos antitéticos da malandragem, inexistem no vocabulário caymmiano” (Op. cit., p. 43). Vejamos, então, como se constrói a figura de seu “João Valentão” (1953). Nos primeiros versos da canção, somos apresentados à figura social, à sua face pública associada à violência. As tônicas dos versos recaem sobre o som nasal (“ão”) e sobre a vogal “i”, como a reforçar, neste espelhamento sonoro e neste eco incômodo, os predicados de João (força, valentia, desmedida): João Valentão é brigão Pra dar bofetão não presta atenção E nem pensa na vida A todos João intimida Faz coisas que até Deus duvida Mas tem seu momento na vida João vive de inserir a desordem na ordem, sem consciência daquilo que faz (“não presta atenção”), mas, por alguns momentos, passa a repousar nessa ordem outra, fechada, perfeita, nessa atmosfera lânguida para que convergem o ronco das ondas, o pôr-do-sol, os carinhos da morena e a vontade de contar histórias despertada pela noite de Lua – vale lembrar que a noite, em Caymmi, pode ser a noite de temporal que amedronta e afugenta 30


os pescadores, instaurando a terrível perspectiva do mar traiçoeiro (“pescador não vai pra pesca/ que é noite de temporal”), mas também pode, ao contrário, converter-se na noite lírica, contemplativa, noite enluarada “que se estende vitoriosa sobre o medo, rebrilhando nas dunas e nos coqueirais” (Risério, op. cit., p. 78). Na canção, há apenas uma referência ao trabalho: “cansaço da vida, da lida”. É significativo que o personagem esteja cansado da vida e da lida, ao mesmo tempo, posto que a relação entre homem e trabalho não se encontra fissurada. A figura caymmiana que mais se aproximaria da tópica consagrada do “malandro” é também a que mais diverge dele: inserido na realidade do trabalho (ordem), pode também transitar pelos meneios da desordem (a briga, a violência), mas volta sempre a essa ordem maior, integradora, a essa terra que é um sonho acordado (“não há sonho mais lindo do que sua terra”). As estruturas típicas de repetição empregadas por Caymmi, que podem ser sonoras ou sintáticas (por exemplo, a anáfora em “é quando... é quando... é quando...”) também servem para reforçar esse vetor cíclico e repetitivo, esse eterno retorno a uma mesma condição. Vale lembrar que o malandro noelino vive às voltas justamente com uma incômoda ausência de lugar. Cumpre, entretanto, perguntar pelo componente utópico desta canção. Remeto novamente a Antônio Risério: A Bahia de Caymmi é um sonho acordado […] Essa imagem não se esgarça: mantém-se psicologicamente nítida. A afeição caymmiana impede o seu obscurecimento. Mas o mais relevante, do ponto de vista da idealização aqui examinada, é que a imagem da Bahia, na obra de Caymmi, está a salvo das ansiedades cotidianas. Estas sensações de luz e cor, de gentes e gestos, estão todas apaziguadas pela distância. São cromos líricos isentos de conflito. (p. 121) No rastro da argumentação de Antônio Risério, poder-se-ia dizer que Caymmi oferece um cenário idílico e ausente de con31


flitos, pré-industrial, congregador e fechado às ameaças de desestabilização. Nele, cabe com folga mesmo a figura, à primeira vista desordenadora, de João Valentão. Não nos esqueçamos de que esta “terra-sonho” projeta-se, entretanto, nas ondas do rádio. Projeta-se nas cidades do sudeste brasileiro em que crescia o mercado consumidor da canção popular. Composta nos anos 1950, a canção projeta-se sobretudo contra o galope presto das correntes modernizadoras da economia, o crescimento desordenado das cidades, o processo de industrialização. Arcaizando a vida das comunidades pesqueiras, Caymmi institui sua particular “utopia de lugar”. Para Risério, esta arcaização utópica não produz dialéticas ou fraturas no interior do texto caymmiano, embora a exclusão nas canções dos conflitos históricos e sociais (e a apresentação do seu reverso, da comunidade pousada numa existência perfeita e íntegra) possa significar também uma atitude crítica. Lembremos da “Palestra sobre lírica e sociedade”, de Adorno: para o teórico alemão, a entrega do poeta à voz lírica soa mais social quanto mais distante da realidade decaída. O recuo do poeta, aparentemente a-histórico e intemporal, é antes de tudo uma valoração e uma negação consciente da “supremacia do mundo das coisas”.

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A leitura machadiana para além da literatura Mariana Chirico Machado Holms

O leitor convidado a ler o artista “O olho que só reflete é espelho, mas o olhar que Sonda e perscruta é foco de luz.” Alfredo Bosi “Paremos neste beco”, como nos diz o narrador machadiano. De “cá fora” observaremos a leitura de Machado de Assis sobre um tipo de artista que ele mesmo jamais poderia ser, ao passo que os requisitos e métodos de sua aguda composição são cuidadosamente expostos nas figuras de João Maria e Mestre Romão. Haveria então um processo de apreensão do mundo que ocorre anteriormente (ou interiormente) para que a expressão – literária, plástica e musical – desse mundo fosse possível. Há um leitor atento, que antecede o escritor e é demonstrado nos contos: "Habilidoso" (1885) e "Cantiga dos esponsais" (HSD, 1884). Tratam do delicado tema da produção artística que demanda mais que instrução: a capacidade de ler o mundo, o rosto de seu público e a capacidade de plasmar um mundo exterior a si. A vida do protagonista de "Habilidoso" é dura, mas parte de uma recusa à técnica e à reflexão dos métodos artísticos. João Maria não se pode chamar artista plástico, pois não passa de um “copista”. A descrição da pele áspera, da barba emaranhada e 33


inculta, da imagem rude e sem qualquer iluminação ou refinamento, mesmo trabalhando em telas, com tintas e pincéis, culmina na envergadura de homem executando um trabalho braçal, porque, para ele, disso a pintura não passava. Quando nosso narrador e crítico-guia figura as escolhas temáticas de João Maria para suas primeiras representações, presenciamos uma queda vertiginosa provocada pelos verbos e locais de contato com possíveis gêneros: na Academia de BelasArtes, ele engenha uma cena de assassinato, o que seria uma cena trágica, notando a exigência de uma força dramática que a pintura, segundo Lessing (Laocoonte),1 necessitará captar num breve momento de ação, além disso, dispor os corpos orientando as linhas de perspectiva da tela. Na Rua da Quitanda, o pobre homem irá se atirar aos legumes, com um gesto brusco, impensado; todavia, encontrará na natureza-morta o desafio dos estudos de luz, da exigência de precisão; então tentará as marinhas, já ciente da possibilidade remota de realização plástica, sem crer que logrará. Machado de Assis, com sua originalidade, revela que “toda arte tem uma técnica” (“Habilidoso”, p. 1051). Aos leitores ingênuos, ele expõe sua erudição e suas leituras: a tradição que o escritor sorve, referencia e discute. É possível que essa seja uma pontada a algumas concepções românticas que pretendiam romper o paradigma coletivo de arte, requerendo uma produção “original”, que fundasse novos topoi, mas a discussão do Romantismo se presentifica no aspecto do vocábulo “gênio”. “Não dizia gênio, por não conhecer o vocábulo”: Genie,2 na tradição do Romantismo alemão significara multitalento, expressava a “habilidade” natural de um artista em imitar, mas também inovar, recuperando e discutindo a tradição antiga, mesclando gêneros, como Shakespeare ou Goethe fizeram. Sem aprendizado, como haveria João Maria dialogar com tradições ou “fundar” um estilo de imitação? Ainda mais, ele se pautava pelo que falavam dele, agarrava-se ao adjetivo que lhe impuseram, “repetia consigo mesmo”. 34

1 Cf. Laocoonte ou sobre as fronteiras da Pintura e da Poesia, pp. 193194: “A pintura pode utilizar apenas um único momento da ação nas suas composições coexistentes e deve, portanto, escolher o momento mais expressivo a partir do qual torna-se mais compreensível o que já se passou e se seguirá.”

2 Gênio no séc XVIII: “o gênio é entendido não mais associado à ideia platônica, ou seja, ele não é mais a capacidade de lançar-se para a contemplação da Ideia, da essência última das coisas. Mas é sobre a faculdade inata de, esquecendo de si mesmo, imitar a natureza em sua perfeição que repousa tal conceito.” (Lisardo, 2009, p. 51)


Uma bela e triste imagem, que o escritor pintará para o leitor, é a natureza que poderia até vingar, e que foi agressivamente domesticada, natureza estragada pela vida: “como ao brio natural do cavalo se junta o estímulo das esporas” (“Habilidoso”, p. 1051). “O brio natural do cavalo” seria cavalgar livremente, independendo do estímulo opressor das esporas; a natureza tolhida fará o cavalo nada experimentar senão a sela, as esporas, o freio que sangra sua boca e que morde seus dentes, e quem o estimule com cliques e barulhos. - Tem vindo muita gente? - Tem vindo algumas pessoas. - E olham? Dizem alguma coisa? - Olhar, olham; agora se dizem alguma coisa, não tenho reparado, mas olham. - Olham com atenção? - Com atenção. (Ibid., p. 1052) O problema de João Maria era cuidar o que diziam sobre ele, preocupava-se com o rótulo de suas cópias, não se importando que as vissem de longe, sem entrar no recinto onde estavam expostas, não havia uma dimensão outra em que se pudesse adentrar, não havia espaço artístico. A obra de arte celestial (admirada e copiada por João Maria) jamais convidaria o observador a perscrutá-la, por conta da falta de coesão interna. Afinal o próprio artista-copista não compreendera o nexo daquilo que reproduzia, pressupõe-se que ele não saberia qual dos anjinhos era o menino Jesus, nem tampouco o porquê da lua sob os pés da Virgem Maria. Essas lacunas que explicariam algo da iconografia das pinturas extrapolariam também a mera cópia; preenchendo-as, o senso crítico do pintor seria trabalhado e quiçá estimulado a criar ou comparar diferentes representações, diferentes conceitos abarcados nas figuras que compunha sobre a tela. As pergun35


tas que lhe faltavam: o quê? e para quê? fazem pensar a matéria e o propósito da produção da arte, que não é simplesmente decorativa, mas conceitual. O trabalho da significação estética deve existir para, ao menos, inquietar seu observador e confrontá-lo. Não há confronto na leitura de rótulos, tão-somente na experiência de observação artística, na ousadia da perspectiva estética apresentada para o observador. Machado é bastante atual na observação da postura dos visitantes em exposições de arte: Hans Hollein expôs, em lugar de quadros e na sua mesma proporção, rótulos como etiquetas com informações (título, coleção, data, material) das respectivas “obras”, enquanto estas estavam em miniatura no lugar de seus rótulos.3 A perda da importância da obra em si não é tematizada no conto, pois a crítica em "Habilidoso" recai sobre a incompreensão do “artista” em relação à própria “obra”, contudo a preocupação excessiva pelo que se pode dizer sobre o quadro, em vez do que o quadro diz, é uma discussão que envolve a compreensão de arte como um todo. A dificuldade em se alcançar o sentido da obra, em ler a obra, repercute na leitura que se tentará fazer de possíveis clientes, “João Maria não pôde ler-lhe nada no rosto”. Um pintor que não lê expressões faciais soaria um tanto risível, se nosso guia não desenhasse a agonia e a ansiedade daquele pintor quase analfabeto-funcional na linguagem que reproduzia. “E o pobre-diabo não lia nada, cousa nenhuma nas caras impassíveis”. A dificuldade de leitura era de João Maria ou as caras seriam realmente impassíveis? João Maria não lia as pinturas que reproduzia, não lia as caras, não lia a arte, ademais se apresentava para um público que também nada poderia ler. Da leitura passou-se à palavra: “não diziam palavra”, “não podia entender semelhante silêncio”, ironicamente, encontravam-se na Rua do Ouvidor. “Olhemos bem para ele”. Machado então acabara de nos proporcionar a leitura de uma fisionomia, levando o seu leitor pela mão, apontando os aspectos da miséria cultural e laboriosa de uma arte braçal. Encontraremos alguma admiração no olhar pueril das crianças à porta de seu universo de réplicas 36

3 Cf. “Imagem que sumiu da parede” (Dornbusch, 2011, p. 27): O artigo expõe a utilização dos espaços vazios na arte e analisa diferentes propostas. Uma delas é chamada de “imagem que sumiu da parede”, com que Hans Hollein, arquiteto e designer, ironiza a preocupação dos visitantes do museu, voltados para o comentário e a definição da obra exposta. Destarte, a imagem em si, estilo e cores não importam mais: a obra de arte tornou-se título e autoria, a obra nada mais seria, senão sua classificação e então desaparece sob o olhar dos observadores-leitores de rótulos.


inexpressivas. “Os meninos olham embasbacados”, um deles diz à mãe “estou vendo alguma coisa!” e “ficam todos a olhar boquiabertos”. Continuam sem dizer palavra, mas “para não turvar a inspiração o artista”, no entanto, algo eles perguntarão: o quê (quem seria o menino Jesus?)? e para quê (há sob os pés de Maria uma lua?)?. Questiono então a inexperiência e o despreparo de uma criança em oposição à sua intuição que não fora ainda cauterizada, ou estragada pela vida; possivelmente nesse detalhe, Machado não tenha sentenciado tão cabalmente o vulgo. O olhar como experimentação artística “A imaginação, mesmo quando parece mimética, é heurística: descobre na personagem de ficção virtualidades e modos de ser que a coisa empírica não entrega ao olhar supostamente realista e, na verdade, apenas rotulador.” Alfredo Bosi Saiamos agora do ciclo aprisionador do “eterno João Maria”, que, em seu “trabalho de Penélope”, apenas refaz seus trabalhos, para não morrer, não se desenganar. Em "Cantiga dos esponsais", outra leitura de Machado se estabelece: a espontaneidade e a experiência que se tornam matéria artística. Romão Pires, bom homem e bom músico, rege a orquestra nas missas cantadas com alma e devoção e o amor delineará a experimentação desse outro artista na linguagem musical. A complicação se dá, pois a vocação de Mestre Romão não tinha “língua”, era uma “luta constante e estéril entre o impulso interior e a ausência de um modo de comunicação com os homens”. Distinguindo-se de João Maria, o velho músico tinha algo dentro de si, tinha um ímpeto. Todavia, assim como o primeiro, Romão reproduzia o discurso alheio, regendo uma excelente orquestra que toca músicas que não são dele, apesar de regê-las com amor. 37


A esterilidade da luta, talvez fosse vencida pelo envolvimento amoroso, pela felicidade conjugal e lírica. Romão fora casado. Por dois anos, com uma mulher “nem muito bonita, nem pouco, mas extremamente simpática, e amava-o tanto como ele a ela”; pode-se notar então, que a mulher não era uma musa onírica do ultra-romantismo, não era possuidora de uma beleza extraordinária, e nem o amor que ele lhe dedicava era desmesurado. 4 Por conseguinte, detecta-se uma caracterização indiferente, quase vulgar pelas indeterminações da mulher sem rosto, sem olhar, charme ou dotes artísticos e um equilíbrio na relação amorosa dos dois. Apesar da naturalidade com que tudo é esboçado distantemente do ideal romântico, algo parecido com inspiração inquietou Mestre Romão três dias após seu casamento, algo que os meninos à porta de João Maria não desejaram turvar. Bastaria inspiração para compor, pintar ou narrar? As experiências pessoais bastariam para desencadear uma composição comunicável? O que Mestre Romão comunicaria e para quê? Ele tinha uma aspiração nobre, era o desejo de registrar a felicidade que sentira. Não conseguindo compor, a frustração e a tristeza pela luta improdutiva eram, naturalmente, incompreendidas pelo vulgo. João Maria se valia dos aplausos e elogios vulgares para copiar e retocar, mas pertencia a esse nicho de incompreensão da arte: ele era vulgar e, por isso, permaneceu paralisado no tempo e no espaço reduzidos de seu quarto, com seu reduzido público juvenil. A expressão musical da felicidade que rebentava no peito de Romão e o forçava a lutar, produziria mais que a libertação e a materialização do sentimento, mas faria quem tocasse a canção, contar que um mestre Romão...

4 Machado de Assis, no conto chamado “Um homem célebre”, apresenta uma personagem que recorre ao casamento como fonte de inspiração para compor música clássica. Pestana casa-se com Maria, uma exímia cantora lírica, tísica, também de feição indiferente à pena do narrador. O músico procura nela a realização de uma experiência ideal romântica, mas à sua mente vêm ecos de composições outras, sua memória lhe prega peças, fazendo-o plagiar seus modelos de compositores sem se dar conta.

Quem não conhecia Mestre Romão, com seu ar circunspecto, olhos no chão, riso triste, e passo demorado? Tudo isso desaparecia à frente da orquestra; então a vida derramava-se por todo o corpo e todos os gestos do mestre; o olhar acendia-se, o riso iluminava-se: era outro. (p. 387)

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Romão centrava-se em si e na sua experiência amorosa para compor algo que o mantivesse vivo, mas a própria vivência não é suficiente, quando não se é uno. O riso era triste, mas iluminava-se: havia outro Romão, como havia o Pestana das polcas diabólicas e o Pestana do santuário clássico; é preciso aceitar esse duplo do artista, além de homem e músico: o intérprete e o compositor. No homem se refletirá os valores que ele coloca para si na sua composição, no músico – no momento da interpretação − ele é livre para encher-se de vida e experimentar uma felicidade alheia, não atrelada às suas crises internas. Sob essa perspectiva, a satisfação esfuziante do artista ao tocar era algo que ele alcançava na execução das canções alheias, pois o sentimento de apropriação da obra de outro e ter de assumir outra feição é algo próprio do artista. Embora tratemos de entusiasmo ou felicidade, Fernando Pessoa, em sua Autopsicografia, nos adverte sobre a distância entre a máscara do ator e seu próprio rosto, cujo limite se pode confundir através do sentir: “O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”. Esse fingimento, ou essa interpretação, é fugaz e o apagamento instantâneo dessa iluminação, dessa euforia musical que se dissipa rapidamente, salienta a crise da sensação vã do que é executado versus a pretensão de um registro eterno. A almejada produção que sirva para registrar seu amor e sua felicidade, é antes a desejada música composta para ser executada por outros e emprestada, como a ele foram as cantigas regidas na orquestra e praticadas em seu cravo. No intuito de emprestar ou delegar sua voz aos intérpretes, habilidade ou inspiração não bastam. É mister selecionar uma matéria que possa ser apropriada pelo outro, uma máscara que caiba nos rostos de quem a vestir. Romão pretendia traduzir seu sentimento de felicidade, porém olhava somente para baixo, não conseguia identificar-se, não verificou a tempo que compor, narrar ou pintar viriam após levantar os olhos e apropriar-se da matéria e do sentimento alheios, observados de um ângulo pró39


prio que fosse capaz de estilizá-los: “[o compositor] é mais o pintor de sentimentos estranhos do que exibicionista dos próprios” (Dahlhaus, 1991, apud Lisardo, Richard Wagner e a música como ideal romântico, p. 43). Assim, Mestre Romão aproxima-se da matéria alheia, quando se dedica a compor “ao menos este canto que eles [recém-casados] poderão tocar...”, mas é ferido mortalmente pela naturalidade com que o casal expressará a sua própria felicidade suplantando um empréstimo ou uma interpretação. “A diferença é que se miravam agora, em vez de olhar para baixo” (p. 389). O fato de se olharem provocou a necessidade de comunicação, eles tiveram o quê e para quem expressar. O olhar ensimesmado, para baixo, não necessita, naturalmente, de tradução, exceto se for dirigido a outro. O olhar do outro motiva uma frase musical, linda e à toa, como que inconscientemente. Discutir e organizar essa mensagem e habilitá-la como arte caberia ao compositor Mestre Romão, como coube ao nosso Machado de Assis.

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Herói e anti-herói na roda dos ventos: Os flagelados do vento leste Lílian Honda

“[...] Aqui nem chega a haver os que fogem Porque seria para se afogarem no mar.” Jorge Barbosa Três ventos, Harmatão, Nordeste e Monção, são os jogadores seculares que percorrem o oceano, determinando a sorte da população de Cabo Verde, como explica Manuel Lopes no prefácio de seu romance, Os flagelados do vento leste, publicado pela primeira vez em 1960. O primeiro, o vento leste conhecido pelos cabo-verdianos como “lestada”, sai do deserto do Saara, quente, seco e carregado de poeira, para varrer o arquipélago provocando seca e destruição. O alísio do nordeste, por sua vez, empurra para longe a umidade da monção, que alimenta as escassas chuvas nas ilhas e proporciona a colheita de alimentos, principalmente o milho. Grandes secas foram registradas na história do país, entre elas a dos anos 40, vivenciada pelo autor, que provocou a nefasta e trágica fome retratada no romance. Viver em função de chuvas irregulares e insuficientes é, portanto, o destino dos cabo-verdianos que, a despeito das condições adversas, dedicam-se à agricultura, atividade mais importante ainda à época em que se passa a narrativa: a década de 40. É dessa luta obstinada pela sobrevivência daqueles que vivem da terra, à mercê de forças que fogem ao seu controle, que

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o autor extrai um romance neorrealista com tinturas épicas, em que a insularidade se irradia e se reproduz em formas circulares por toda a narrativa. Desde o início, o romance é marcado pela necessidade que o cabo-verdiano tem de seguir os vestígios das condições climáticas. Os personagens frequentemente estão com os olhos no céu ou perscrutando o ar à procura de sinais da vinda de chuva, com base em crenças tradicionais ou na simples intuição, como no trecho: “Os homens espiavam, de cabeça erguida, interrogavam-se em silêncio. [...] Nem um fiado de nuvem pairava nos espaços” (Lopes, Os flagelados do vento leste, p. 12). Ou no segmento: “Outubro tem de ser de calmaria . Todo mundo sabia. Todos esperavam a calmaria de outubro” (p. 63). Ou, ainda: “A primeira quinzena de novembro foi assim: ora escusas, ora promessas, negaças e sorrisos [...]. Borrifos no ar que cheiravam a pó” (p. 63). As crendices juntam-se ao animismo e à fé de origem católica coexistentes no arquipélago, formando a base da estrutura circular do romance. Os ventos, a chuva e a própria natureza são retratados como divindades que determinam a sorte dos personagens – e de todo um povo. Os corvos Becente e Becenta, que aparecem no quarto segmento do capítulo “Chuva”, por exemplo, são humanizados e ganham inteligência superior a das pessoas do local – “eram sabidos, endiabrados, trocistas, céticos e filósofos” (p. 63) – e podem ser associados às divindades tricksters, cujo papel é lançar truques ou jogos para aumentar a consciência ou promover a instabilidade necessária à renovação (esses são os casos de Eros ou mesmo de Hermes, na mitologia grega). Estabelecendo uma relação de Os flagelados do vento leste com a épica grega, vale lembrar que os ventos eram filhos do deus Éolo, habitante de uma ilha por onde passa o herói Ulisses, segundo a Odisseia. É Ulisses, aliás, quem provoca a liberação dos ventos no mar. Os protagonistas da trama são José da Cruz e o filho gerado em seu primeiro casamento, Leandro. José da Cruz apresenta as 42


virtudes do herói clássico: retidão, honestidade, perseverança, coragem, força, equilíbrio e liderança, por exemplo. É dele o sonho premonitório que leva os amigos e familiares a “semear em pó”, ou seja, a plantar antes que a terra seja molhada pelas chuvas. O grupo semeia sob os olhares céticos da comunidade, mas, depois da chuva, vem a confirmação dos méritos do herói: Sim, José da Cruz sabia o que fazia. E o que fazia era sempre a tempo e horas. Era um homem de bom pensar e de bom conselho [...]. Não acreditaram. Tirante o compadre João Felícia e nhô Manuelinho, ninguém mais acreditara na sua profecia. O seu papel era agir por palavras e obras. Dizer na boca e mostrar no trabalho. (p. 35) Leandro, por outro lado, é o oposto do pai. Em épocas de maior fartura, o rapaz ganha a vida como pastor de rebanho nas montanhas, trabalho de que gosta por mantê-lo apartado da comunidade. Todavia, nos períodos de seca e fome, torna-se ladrão de flagelados ainda mais pobres do que ele. É dissimulado, mentiroso, fraco, humilhado, ladino, desonesto e eventualmente violento, vícios inscritos em seu rosto por uma grande cicatriz, como descreve Manuel Lopes: Evitava descer aos povoados para não atrair os olhares, não despertar suspeitas. A cicatriz do seu rosto constituía um alvo comprometedor. Os olhares fixos, a curiosidade das gentes suspeitosas atingiam-no, não no aspecto do rosto, mas nas verdades da sua alma, na insegurança da sua consciência; não na aparência mas na realidade mais profunda do seu ser. (pp. 174-175) Leandro é multifacetado, como um típico anti-herói da literatura moderna: sente culpa e compaixão, bem como um genuíno afeto pelo pai e sua nova família, composta pela segunda mulher, Zepa, e os três filhos do casal, a quem ajuda no sustento com o fruto dos seus roubos. Protagonista da segunda metade 43


do livro, Leandro vai formar com Libânia um casal excluído e isolado, como Adão e Eva das montanhas, que acena para um recomeço no interior de uma gruta (poder-se-ia dizer “útero”), no alto de paredões de granitos, longe dos povoados e da fome. Não só a gruta está abastecida de mantimentos roubados por ele, como se parece muito mais com um lar do que os “funcos” (habitação precária cônica) do povoado onde vive o pai. O primeiro círculo se fecha em torno de José da Cruz. Em sua fé inabalável, Inzé, como é chamado, obedece aos desígnios de seu deus católico não porque terá resultados, mas porque é a sua única alternativa: De qualquer maneira, destino de homem de enxada é cavar e semear. Este é que é destino de homem: cavar e meter grão. A espiga vem do desígnio de Nosso Senhor. Se não vem é porque Ele não quis. Seja feita a sua vontade. (p. 37) Esse deus que determina o plantio não recompensa o fiel. Outros deuses, os dos ventos e da chuva, porém, respondem pelo castigo à hýbris do herói, que é a obstinação em não abandonar seu lar para ir à busca do trabalho nas frentes de construção de estradas abertas pelas autoridades. Por outro lado, a migração dentro da ilha tampouco representa garantia de sobrevivência, porque a comida não é suficiente nem mesmo nas frentes de trabalho. Como um herói épico, José da Cruz representa todo um povo e seu calvário é também o do cabo-verdiano preso à ilha, vagando em círculos à procura de alimento. O estoicismo com que o protagonista e, por extensão, a população das ilhas, encaram os sofrimentos corresponde também a um desígnio divino e os inimigos do homem não são mais do que, eles próprios, vontade divina, como mostra o trecho em que a seca se torna realidade: Era a luta. A luta braba que começava. Contra os elementos negativos. Contra os inimigos do homem. A luta silenciosa, de vida ou de morte. Introduzia-se no primeiro entendimento. Depois, 44


entrava no sangue e no peito. O homem tornava-se a força contrária às forças da Natureza. Por um mandato de Deus, o homem lutava contra os próprios desígnios de Deus. Dava toda a vontade e sua força. Não podia fazer mais nada. O que está acima da força do homem não pertence aos seus domínios. O homem tinha uma medida. Chuva, vento e sol estavam fora dessa medida, e o homem não se podia incriminar pelo que sucedia fora da sua medida. Os desígnios de Deus eram superiores à vontade dos homens, mas o dever do homem era lutar contra esses desígnios. (pp. 95-96) Gradativamente, e pontuando o texto com maus presságios, pressentimentos ruins e agouro, o autor vai narrando o agravamento da situação, passando da esperança para o espectro da fome e deste para a calamidade, situações enfrentadas com resignação pelos agricultores e suas famílias, que vão apenas cedendo às imposições da seca, afrouxando os vínculos e a dignidade. Não há espaço para a esperança, a não ser no início do romance, quando a chuva dá alento às personagens, mas não ao leitor, porque o próprio título da obra traz em si o aceno da tragédia. Os modestos sonhos a que se entrega José da Cruz são de antemão malogros, pois ao leitor é revelado que Miguel Alves não irá fazer os investimentos na terra que alardeia. O próprio motivo da viagem de Miguel Alves à ilha, de cunho pessoal, revela-se uma ilusão. No entanto, ao contrapor duas formas de enfrentar o flagelo da seca, a da regra, representada por Inzé, e a do desregramento, representada por Leandro, a narrativa não está propondo saídas para o calvário do cabo-verdiano. Nenhum dos dois escapa aos círculos de isolamento, em diversos níveis: primeiramente, o fato de serem todos prisioneiros de uma ilha; em segundo lugar, pela constituição de uma comunidade de agricultores fechada, em que personagens “de fora”, como Maria Alice (a professora), Miguel Alves (o funcionário público) e até mesmo Leandro não se inserem plenamente; por fim, isolamento em si 45


mesmo, pelas dificuldades de comunicação e relacionamento dos personagens. Pai e filho tampouco escapam ao destino determinado pelo deus católico e pelos deuses do vento e da chuva, pois tanto num caso, como no outro, suas trajetórias terão desfecho tragicamente similar, em decorrência de diferentes formas de “desenraizamento”, quais sejam, o êxodo do primeiro e a ida à cidade do segundo.

Assim, a astúcia ou as habilidades do anti-herói moderno não possibilitam uma fuga ao flagelo da seca, acabando, ironicamente, no infortúnio em meio à fartura de seu retorno ao útero. Com Libânia, mais um círculo se fecha: o de que sempre haverá habitantes na ilha para continuar cumprindo os desígnios divinos. Ao final, porém, o ruído das asas das canhotas, aves brancas da família dos abutres, voando em círculos ao redor do penhasco onde se situa a gruta de Leandro, lembram-nos de que a desgraça continua rondando.

BAPTISTA, Maria Luísa. Vertentes da insularidade na novelística de Manuel Lopes. Porto: Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto, 2007. Disponível em: <http:// www.africanos.eu/ceaup/uploads/EB001.pdf>. Acesso em: 10 jun. 2013. BROMBERT, Vitor H. Em louvor de anti-heróis: figuras e temas da moderna literatura européia. Cotia: Atelier Editorial, 2002. Disponível em: <http://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=TW1SvKaBaA0C &oi=fnd&pg=PA11&dq=her%C3%B3i+tr%C3%A1gico&ots=hWTZ8POwG6&sig=1T7lI4hHcip4sL60yT PX9H0UZz0#v=onepage&q=her%C3%B3i%20tr%C3%A1gico&f=false>. Acesso em: 10 jun. 2013. LOPES, Manuel. Os flagelados do vento leste. São Paulo: Ática, 1979. VEIGA, Manuel (coord.). Cabo Verde, insularidade e literatura. Paris: Karthala, 1998.

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Na beira do mar: uma leitura de Canções praieiras, de Dorival Caymmi Juliana Ramos Gonçalves

“Jankélévitch a écrit : La musique nous enveloppe et c'est ainsi Qu'elle nous pénètre car elle est vaste et infinie comme la mer.”1 Pascal Quignard, Boutès I Dentre todos os predicados sobre o mar que se possa elencar, talvez um dos que mais mantenha a atenção de um olhar atento e sensível seja o seu movimento, a um só tempo variado e repetido. Para acompanhá-lo com precisão, é necessário desvencilhar-se de tudo aquilo que estiver ao redor e mergulhar a atenção no ir e vir das ondas, nesse ritmo cíclico e natural, às vezes tão alheio às concepções de existência do homem contemporâneo. No vasto campo das artes, talvez a música seja aquela que mais se aproxime da dinâmica marítima, ao exigir do ouvinte uma contemplação igualmente hipnótica e submersa, que prescinda do mundo além-som durante o tempo da escuta, que reclame a repetição das canções para uma compreensão mais aprofundada – porque assim como cada onda quebra diferentemente sobre a areia, cada escuta pode fazer emergir novos pensamentos e sensações. Não é exatamente uma surpresa fazer do mar tema para a música. Há muito tempo ele é cantado, em diversas partes do 47

1 “Jankélévitch escreveu: a música nos envolve e é assim que nos atravessa, pois ela é vasta e infinita como o mar.”


mundo. No entanto, talvez tenham sido poucos os compositores que de fato atingiram uma consonância entre a matéria musical e aquilo sobre o que ela canta, entre o tempo indefinível do mar e o tempo de uma canção, o qual, ainda que limitado em um fonograma, exija um mergulho contínuo na multiplicidade de questões levantadas. No Brasil, o conjunto de canções que – acredito – melhor consegue concentrar e espraiar essa atmosfera é aquele do álbum Canções praieiras (1954), de Dorival Caymmi, obra que me parece não apenas um cantar sobre a natureza marítima, mas a própria continuação do seu movimento, seja ele um convite à jangada ou uma tempestade temerosa. Não bastasse a sofisticação estética que emerge da simplicidade – o álbum é bastante conciso, todo à base de voz e violão, sem espaço para excessos –, essas canções ganham em significação ao serem absolutamente atreladas à experiência histórica de um lugar específico, num tempo igualmente específico: as comunidades pesqueiras do recôncavo baiano no início do século xx. Embora Caymmi não tenha sido um pescador ou canoeiro, suas canções praieiras revelam bastante intimidade com aquele universo, como se o cancionista, ao cantá-lo, dele também fizesse parte. Essa característica confirma-se e explicita-se quando nos precipitamos em seu mar sonoro, com especial atenção às letras. O ponto de vista do narrador ou do eu lírico não é o de quem olha para essas comunidades distanciadamente, do alto da cidade grande. Não: os seus pés também estão no cais ou na areia, às vezes até mesmo numa jangada, sobre as ondas verdes do mar. É um ponto de vista de dentro, de alguém que partilha esse universo e canta suas belezas e tragédias. Logo na canção de abertura, ouvimos: “Andei por andar, andei/ E todo caminho deu no mar”, e depois: “Quem vem pra beira da praia, meu bem/ Não volta nunca mais”. Estamos, portanto, diante de um sujeito que, apesar de se enveredar por caminhos diversos, acaba sempre voltando para a beira do mar, daquele mar do recôncavo, como se ele também estivesse sujeito à ação da lua sobre a maré. Também nós, os ouvintes, ficamos sujeitos a essa ação 48


após uma primeira escuta. Este é o texto de alguém que tenta se aproximar intimamente dessas canções. II Penso em falar de Canções praieiras de maneira mais ou menos linear, isto é, acompanhando a ordem a partir da qual o álbum é construído, pelo fato de que ela não me parece aleatória, e sim um importante elemento constituinte da obra. Assim, retornando à primeira canção, de título “Quem vem pra beira do mar”, podemos considerá-la um anúncio do que virá nos próximos vinte e três minutos e meio, ao longo de oito canções. É uma apresentação temática, evidentemente, mas não só: também são introduzidos a posição do cancionista e o modo como ele trata os seus temas. O primeiro ponto, já referido e comentado, ficará mais claro ao pensarmos especificamente sobre cada uma das letras do álbum, poesias nas quais Caymmi “estetiza realidades que vivenciou de forma integral e imediata”, no dizer de Antonio Risério (Caymmi: uma utopia de lugar, p. 12). Quanto ao modo do cantar/tocar, percebemos logo de início que ele não é festivo ou alegre, nem mesmo quando o andamento das canções se intensifica. Ouvimos antes um som que parece contemplar, e que muitas vezes será envolto pela melancolia. Precisamos estar atentos a esse modo das canções, ele sublinha e traz à tona aquilo sobre o que se canta. Sobretudo porque o universo praieiro não é unilateral: “A onda do mar leva/ A onda do mar traz”. Leva e traz não apenas o cancionista, mas também o jangadeiro, o peixe, a tempestade. A natureza é cíclica, dá e tira sem cessar. O modo de vida referido e estetizado por Caymmi é arcaico quando comparado aos nossos dias – e até mesmo aos dias contemporâneos às Canções praieiras, se pensarmos no contexto da década de 1950. O tempo dessas canções é outro, refere uma relação íntima com a natureza, o que inclui estar submetido a ela, inclusive quando é indomável e cruel. A vida nas comunidades praieiras é portanto cíclica, “não no sen49


tido da repetição abstrata, metronômica, mas no sentido do retorno fundamental dos eventos. Mais assemelhada à pulsação mesma do mundo do que ao relógio obsessivo” (Ibid., p. 74). A segunda canção, “O bem do mar”, introduz outra polaridade que permeia todo o universo praieiro: o olhar do pescador sobre aquilo que ele ama e escolhe. A voz de um narrador aproxima o ouvinte e dá o mote: “O pescador tem dois amô/ Um bem na terra, um bem no mar”. Bem, aqui, não é apenas um sinônimo de querido, de amado. A construção nos autoriza a pensar nessa palavra também como um advérbio, que caracteriza e encerra cada ser estimado no lugar que lhe é conferido, um estando como fincado no solo (“bem na terra”) e o outro, submerso e espraiado nas águas (“bem no mar”). São bens que não se misturam, e a voz que vem a seguir, não mais a do narrador, mas a de um sujeito participante dessa realidade – como mostra o uso de “a gente” o confirma: O bem da terra é aquela que fica Na beira da praia quando a gente sai O bem de terra é aquela que chora Mas faz que não chora quando a gente sai O bem do mar é o mar, é o mar Que carrega com a gente pra gente pescar O bem da terra é, portanto, a mulher, que nessa comunidade tem uma posição sedentária, o que não significa isenta de funções. O bem do mar, por outro lado, é ele próprio, que dá o alimento e o trabalho. A forma como isso é dito, entretanto, sugere algo ainda além: “O bem do mar é o mar, é o mar”. Esse verso, tão simples em sua construção, é cantado de modo muitíssimo enfático, o acento da canção inteira recai sobre ele. Esse verso é o ápice, o instante preciso em que uma onda atinge sua altura máxima antes de se desmanchar com vastidão. A repetição e o acento não são gratuitos. Eles revelam o absoluto, como quando o mar torna-se oceano. Penso aqui no “sentimento oceâni50


co” referido por Freud – “Um sentimento de vinculação indissolúvel, de comunhão com todo o mundo exterior” (O mal-estar na civilização, p. 8) –, e que talvez o pescador o experiencie por alguns instantes, ao estar em meio às águas. Digo isso passando sob a óptica do próprio Caymmi, que aponta já no título a escolha feita dentre os amores, e que talvez seja aquela que mais dê ao pescador a sensação de plenitude: o bem do mar. Se nessa última canção a ideia de mar acentuava sobretudo as benesses do que ele dá (ao menos do ponto de vista masculino) em “O Mar”, a terceira do disco, as tragédias que ele causa são finalmente explicitadas, para além do que poderia fazer supor os versos introdutórios: “O mar/ quando quebra na praia/ é bonito, é bonito”. Aqui não é mais só a mulher quem “chora mas faz que não chora”. O próprio homem também demostra apreensão (“Pescador quando sai/ Nunca sabe se volta nem sabe se fica”), assim como aqueles do seu entorno (“Quanta gente perdeu seus maridos, seus filhos/ Nas ondas do mar”). E tudo isso cantado de modo grave e desassossegado. Mas logo após essa introdução o cancionista incorpora outro ritmo para iniciar o relato de um episódio. Ele conta a história de Pedro, que “vivia da pesca / Saía no barco/ Seis horas da tarde/ Só vinha na hora do sol raiá”, e que tinha como admiradora apaixonada Rosinha de Chica. Uma manhã, porém, Pedro não retornou de sua pesca noturna. O seu corpo apareceu posteriormente, na praia, “roído de peixe”. O relato não especifica a causa dessa morte: não se fala em tempestade ou em mar revoltoso. O que se sublinha são, antes, os efeitos que essa morte causou: Pobre Rosinha de Chica Que era bonita Agora parece Que endoideceu Vive na beira da praia Olhando pras ondas Andando, rondando 51


Dizendo baixinho Morreu, morreu E o que é a loucura, senão ser ou estar alheio às instâncias organizadoras da vida comum, incluindo-se aqui o tempo e suas subdivisões mecânicas? Rosinha de Chica, ao endoidecer, incorpora uma atitude cíclica e repetitiva diante do que lhe é doído e inexplicável, a qual se espelha na própria construção poética, que equipara o movimento das águas à reação da moça, por meio dos sons nasais: “Olhando pras ondas/ Andando, rondando/ Dizendo”. Aliás, a atitude de Rosinha é exatamente oposta à própria ideia da morte, que abarca a impossibilidade de repetição e retorno. Note-se que a partir desses versos que destaquei, o andamento da canção se desacelera gradualmente e as vogais são cantadas de modo prolongado, o que enfatiza a melancolia do que se diz – como se o narrador se solidarizasse com a dor da personagem, incorporando o tempo subjetivo de Rosinha à sua canção. Ao final dessa estrofe, o refrão é retomado: “O mar/ quando quebra na praia/ é bonito, é bonito”. E é com essas palavras contemplativas que Caymmi finaliza a sua canção, que acabara de relatar a morte de um pescador e o consecutivo enlouquecimento de sua admiradora. São esses versos que criam uma expectativa inicial, a qual é desfeita durante a narração, e que ao final circunscrevem o ouvinte numa zona de estranhamento. Por que é bonito, se mata? Ora, os pescadores descritos por Caymmi estão, como já dito aqui, intimamente relacionados com a natureza. O mar inspira-lhes, ao mesmo tempo, fascínio e assombro, como coloca Jorge Amado em Mar morto: “O mar que tudo lhes dá, tudo lhes toma”, inclusive a vida. Daí essa espécie de mote pelo avesso que, embora pareça desdizer o que é narrado, acaba na verdade complementando o sentido da canção. Um procedimento semelhante é utilizado por Caymmi em “É doce morrer no mar”, única canção do álbum feita em parceria – com o escritor Jorge Amado, a partir de frases do seu romance Mar morto (1936). A pequena introdução instrumental já 52


anuncia um tom bastante melancólico, que será mantido e esmiuçado ao longo de toda canção. Após alguns poucos segundos, emerge a voz grave de Caymmi, que apresenta o refrão: “É doce morrer no mar/ Nas ondas verdes do mar”. E essa formulação estranha, que aproxima a ideia de afogamento a certa doçura (nas águas do mar, que são salgadas!), ganha status de afirmação: “No contexto, a descendência melódica parece indicar certeza e distensão”, nas palavras de Mirella Longo (“Memórias do cais: Caymmi, canções e fontes”, p. 70). Embora eu não concorde com a ideia de distensão (o que se verá mais bem explicado a seguir), o refrão atua de fato como uma máxima, como a comprovação de uma realidade. Mas essa morte seria doce pra quem, então, já que a voz que a relata é de uma melancolia tão latejante? As estrofes seguintes dão algumas pistas, quando o canto, que até então era impessoal, adquire uma voz de contornos mais definíveis: “A noite que ele não veio foi/ Foi de tristeza pra mim/ Saveiro voltou sozinho/ Triste noite foi pra mim”. Estamos, assim, diante de uma voz feminina, que lamenta a perda trágica de um amor. Ao retratar o universo praieiro, Caymmi realmente o faz à beira do mar. Nessa canção, isso significa incorporar o lugar da mulher, que acompanha com o olhar a partida de um saveiro. É uma relação de alteridade criada pelo cancionista, que, ao assumir um corpo e uma posição que não são originalmente seus, dá voz a uma realidade que o toca. Em seguida, após a repetição do refrão, uma nova estrofe complementa a história: “Saveiro partiu, de noite foi/ Madrugada não voltou/ O marinheiro bonito/ Sereia do mar levou”. Aqui, introduz-se um novo elemento, que até então só tinha aparecido como sugestão, na primeira canção do álbum, ao se falar “nas águas de Dona Janaína”. Numa comunidade pesqueira da Bahia, onde o candomblé é bastante respeitado e praticado, a “sereia do mar” não seria outra senão Iemanjá (nome que de fato aparecerá na estrofe seguinte). Dentre todas as representações dessa entidade religiosa, “sereia” talvez seja aquela que mais sintetize o sincretismo sofrido pelo candomblé ao 53


longo dos tempos. E essa é uma imagem cuja força é remota e dúbia. Desde os mais antigos mitos das mais diversas tradições, as sereias fascinam e amedrontam marujos. Elas atuam no cerne de um limiar: entre a promessa dos prazeres do seu canto e o horror do afogamento. Essa imagem, nesta canção, dá força a uma possível leitura que se solidifica a partir da última estrofe: “Nas ondas verdes do mar meu bem/ Ele se foi afogar/ Fez sua cama de noivo/ No colo de Iemanjá”. O eu lírico da canção, relembremos, é feminino. O seu canto é lamentoso porque é o relato de uma perda. Mais que isso: é lamentoso porque é a constatação resignada da atração fatal sofrida pelo seu homem, que se foi afogar, e não se afogou simplesmente. É a constatação de uma mulher que, estando inserida no universo mitológico do candomblé, sabe que Iemanjá não é apenas a mãe protetora dos marinheiros, mas é também sua amante num único momento da vida que é, na verdade, a morte. O trecho a seguir, de Mar morto, ilustra bem esse sentimento: Lívia pensa com raiva em Iemanjá. Ela é a mãe-d'água, é a dona do mar, e por isso, todos os homens que vivem em cima das ondas a temem e a amam. Ela castiga. Ela nunca se mostra aos homens a não ser quando eles morrem no mar. Os que morrem na tempestade são seus preferidos. E aqueles que morrem salvando outros homens, esses vão com ela pelos mares em fora, igual a um navio, viajando por todos os portos, correndo por todos os mares. Destes ninguém encontra os corpos, que eles vão com Iemanjá. Para ver a mãe-d'água muitos já se jogaram no mar sorrindo e nunca mais apareceram. Será que ela dorme com todos eles no fundo das águas? Lívia pensa nela com raiva. (p. 31, grifos meus) Após todo esse trajeto analítico, fica claro que talvez só um marinheiro devoto de Iemanjá considere doce morrer no mar. Daí a impessoalidade da voz do refrão, como se o eu lírico feminino repetisse essa máxima para expor, resignadamente, o conhecimento dessa mitologia do cais, com a qual discorda e contra a 54


qual nada pode fazer. É o seu canto lamentoso contra o canto sedutor da sereia. Daí essa canção ser cheia de arestas, atravessada por uma tensão que não se resolve. A melancolia do canto e do instrumento ressignificam o refrão, como se o eu lírico confessasse: dizem que é doce morrer no mar, mas eu não acho. Aliás, se repensarmos a canção “O bem do mar”, podemos relacionar aquele sentimento de absoluto experimentado pelo pescador à sua relação com Iemanjá. O bem do mar é o próprio mar porque é lá que vive a divindade dos marinheiros. A ressignificação do mote “é doce morrer no mar” é um dos elementos que faz com que a canção tenha a sofisticação que tem – característica ausente no livro de Amado, pois a falta do teor melancólico torna esses dizeres menos complexos e com uma força menor. Comparando ambos, Mirella Longo diz que “a canção não contempla o projeto de transformação social presente na literatura de Jorge Amado dos anos 30. Pelo contrário, ela afirma a fatalidade e a converte em doçura” (op. cit., p. 71). Embora eu discorde absolutamente dessa “conversão em doçura”, reconheço que, nas canções praieiras, de fato não há um projeto de transformação social. No entanto, acho que isso se dá principalmente por conta da posição adotada por cada autor em relação a suas obras. No prólogo de Mar morto, Amado faz uma espécie de advertência: “E se ela [a história] não vos parecer bela a culpa não é dos homens rudes que a narram [os homens do cais]. É que a ouviste da boca de um homem da terra, e, dificilmente, um homem da terra entende o coração dos marinheiros” (p. 17). O narrador de Mar morto é, assim, alguém que apesar de ter uma admiração sincera pela vida no cais, reconhece-se fora dela, o que é muito diferente da posição de Caymmi, que parece trazer o coração dos marinheiros para junto do seu. Aliás, o teor político do romance se dá sobretudo porque o autor insere personagens intelectuais no contexto praieiro, como a professora Dulce e o médico Rodrigo, as quais, por não fazerem parte originalmente daquele universo, reconhecem suas mazelas de modo diferente. 55


Retomemos, agora, uma faixa precedente de Canções praieiras: “Pescaria (Canoeiro)”, a quarta do álbum, que descreve a pesca marítima com rede. O ritmo dessa canção é diferente do das demais; mais acelerado, é como se mimetizasse a agilidade necessária a essa atividade: “Cerca o peixe/ Bate o remo/ Puxa a corda/ Colhe a rede/ Ô canoeiro/ Puxa a rede do mar”. Embora eu não concorde com Risério quando ele diz que essa canção tem uma “vívida alegria” – pois a considero antes concentrada no trabalho que festiva –, de fato “ainda não estamos aqui num mundo em que o desempenho produtivo implique a supressão da individualidade” (Risério, op. cit., p. 45). Trata-se de uma comunidade pesqueira, e a voz que a canta está muito próxima dela como um todo, como também de cada um em particular. Ela sabe que “Vai ter presente pra Chiquinha/ Ter presente pra Iaiá”, e o diz utilizando os nomes íntimos dessas personagens. Além disso, esse “desempenho produtivo” não suprime a individualidade porque depende quase exclusivamente do corpo do pescador, da sua resistência física, da sua relação com o meio natural, da sua experiência e perspicácia na observação dos movimentos ao redor. Digo quase exclusivamente porque, ao pescar no mar, esses homens dependem não apenas do seu conhecimento e trabalho, mas também do que a natureza dispõe. E talvez esse seja um ponto considerável para interpretar o único momento dessa canção que destoa do seu aspecto geral, por cessar o andamento rítmico das estrofes e incorporar um tom melancólico, desacelerado: “Louvado seja Deus, ó meu pai”. Aqui, é a voz do próprio pescador que parece surgir, como se ele fizesse de modo lamentoso um agradecimento (em caso de muito peixe na rede) ou uma súplica (em caso de escassez). Ainda quanto à individualidade preservada no universo praieiro, lembremos que em “O mar” estamos falando, por exemplo, de Rosinha de Chica, e é comum, em comunidades pequenas, que as pessoas se refiram umas às outras a partir de suas relações de parentesco, ou ainda a partir das funções que desempenham. Assim, na canção “A jangada voltou só”, a sex56


ta do álbum, o narrador caracteriza os personagens da maneira como são conhecidos em seu arraiá: “Chico era o boi do rancho/ Nas festas de Natal” e “Bento cantando modas/ Muita figura fez”. Na introdução dessa canção, o violão sugere um clima de suspense, ainda mais acentuado pelo intervalo entre os versos do refrão: “A jangada saiu/ com Chico Ferreira/ E Bento”, e depois: “A jangada voltou só”. Temos, mais uma vez, uma história de morte no mar: “Com certeza foi lá fora/ Algum pé de vento/ A jangada voltou só”. A ação do vento, que impulsiona e dá movimento à jangada, é também a que pode derrubá-los. Outra canção de Caymmi – que não se encontra em Canções praieiras –, de nome “O vento” (1954), descreve bem a importância desse elemento natural para o trabalho do pescador: Vento que dá na vela Vela que leva o barco Barco que leva a gente Gente que leva o peixe Peixe que dá dinheiro No entanto, o seu refrão diz “Vamos chamar o vento” de modo que também sugere suspense e desassossego, pois o vento é desejável e necessário para impulsionar a vela, mas também pode soprar de um jeito indomável e ameaçador. É a natureza a inspirar fascínio e receio nos homens junto a ela, o que também se dá na penúltima canção do álbum, “A lenda do Abaeté”, e dessa vez com algum teor sobrenatural. As notas graves da introdução ao violão sugerem sobriedade, que se mantém no início da letra: “No Abaeté tem uma lagoa escura/ Arrodeada de areia branca”. A seguir, algumas cenas são descritas, como a da lavadeira que, ao trabalhar junto à lagoa, “Vai se benzendo porque diz que ouve/ Ouve a zoada do batucajé”, e também a do pescador que “dá pancada se o filhinho brinca/ Perto da lagoa do Abaeté”. Esse lugar em Itapuã já foi cenário de muitos afogamentos, o que criou uma aura de mistério em torno dele – a ponto da la57


vadeira escutar o som dos atabaques ao se aproximar. Mas eis que o canto se modifica e adquire um matiz contemplativo pra falar das belezas da lagoa e de seu entorno sob a luz da lua, para depois, como que acordando dessa admiração incontida, voltar a expressar temor: “Credo cruz te desconjuro/ Quem falou de Abaeté?”. Diante do que se desconhece ou não se pode dominar, adota-se uma posição de respeito, refletida na sobriedade de algumas das canções desse álbum, mas também no trato íntimo dessa comunidade com as coisas ao redor, como o apreço ao mar e a devoção a Iemanjá. III A última canção do álbum de fato o encerra, pois é a voz de um sujeito finalmente distanciado do universo praieiro – tanto que seu título é “Saudade de Itapuã”. O eu lírico relembra o coqueiro, a areia, a morena. E confessa: “Eu nunca tive saudade igual”. Note-se que, quando o seu olhar não está mais colado ao universo praieiro, o que ele rememora não é mais o trabalho braçal ou os casos de morte no mar, mas sim os prazeres de se estar sobre a areia, sob o sol. Até o vento é manso aqui, fazendo “cantiga nas folhas”. São reminiscências seletivas. E assim, nessa canção, o eu lírico fala de Itapuã deixando claro que o faz de um outro lugar, de um outro ponto de vista, no sentido literal mesmo – o próprio Caymmi, aliás, deixara sua terra natal (Salvador) em 1938, aos 24 anos. E é esse mesmo sentimento que engendra, posteriormente e com resultado bem diverso, uma canção como “Saudade da Bahia”, de 1957. Ainda haveria muito pra se pensar a respeito de Canções praieiras, inclusive sobre em que medida a visão de Caymmi estaria ou não atinada com questionamentos sociais ou com as transformações pelas quais passava, então, a região do recôncavo baiano. Mas é difícil precisar esse “então”, esse tempo no qual as canções praieiras se situam, justamente porque esse álbum é o resultado de um cruzamento de tempos. Há o tempo 58


da vivência, o da lembrança, o da composição, o do registro em fonograma. Há o tempo subjetivo, da percepção de um homem quanto ao que ele vive, relembra e esquece; o tempo histórico, esse suceder de eventos que se pretende o mesmo para cada indivíduo em cada espaço distinto; e ainda o tempo da natureza, esse que ambos, homem e história, às vezes subjugam por achar que não faz parte de sua travessia. Canções praieiras não aspira ao todo. É, antes, um recorte, e sendo um recorte comunica com precisão e beleza aquilo a que se propõe. Talvez ele esteja mesmo mais próximo da natureza e das relações de alteridade, em detrimento das preocupações sociais de Jorge Amado, por exemplo. Mas essa escolha não é menos legítima. Pelo contrário, num tempo em que não mais conhecemos a direção dos ventos e trabalhos manuais, essas canções de Caymmi são um respiro aliviado, ainda que melancólico.

AMADO, Jorge. Mar morto. São Paulo: Martins Editora, 1965. CAYMMI, Dorival. Canções praieiras. Gravadora Odeon, 1954. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin; Companhia das Letras, 2013. LONGO, Mirella Márcia. “Memórias do cais: Caymmi, canções e fontes”. In: Literatura e sociedade, nº 4. São Paulo, USP/FFLCH/DTLLC, 1999, pp. 68-77. RISÉRIO, Antonio. Caymmi: uma utopia de lugar. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993.

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O violoncelo fora do lugar – arte e sociedade em um conto de Machado de Assis Gabriel Cordeiro dos Santos Lima

“De todas as coisas humanas, a única que tem o fim em si mesma é a arte.” Machado de Assis Introdução A presente análise tem por objeto de estudo o conto “O machete”, de Machado de Assis. O protagonista de tal narrativa – Inácio Ramos – é um violoncelista admirável, porém pouco conhecido. Ciente da impopularidade de sua arte, o músico vive pacificamente, sem grandes aspirações. Entretanto, ao ser descoberto por estudantes de direito, Inácio vê sua vida se transformar radicalmente, até as mais drásticas consequências. Com a prosa ímpar de Machado de Assis, o texto apresenta comentários significativos no que tange à sociedade brasileira do início do século XIX e à condição do artista carioca nessa época. O violoncelo fora do lugar Logo no primeiro parágrafo de “O machete”, o narrador já descortina a condição contraditória do artista erudito brasileiro, que tem sua arte valorizada, mas não necessariamente mate60


rialmente recompensada. O pai do violoncelista corporifica essa contradição: tem uma bela voz de tenor mas é, com toda a franqueza e simplicidade do termo, pobre. Ao longo do texto, tampouco Machado poupa adjetivos à caracterização da música clássica: chama-a de “elevada”, “austera”, “pura” e “sublime”. Contudo, não deixa de salientar a pobreza financeira à qual os artistas eram submetidos à sua época. Em uma passagem significativa, o narrador diz que “a sociedade deles [das personagens] não era certamente dispendiosa nem vivia de ostentação; mas qualquer que seja o centro social há nele exigências a que não podem chegar todas as bolsas”. A desigualdade inerente ao sistema é, portanto, naturalizada e aceita de maneira assustadoramente resignada. No entanto, no que tange à condição social dos indivíduos, os comentários mais férteis parecem se dar a respeito das personagens femininas. A mãe de Inácio, por exemplo, é uma senhora “cuja alma parecia superior à condição em que nascera, tão elevada tinha a concepção do belo”. Esse é um aspecto elementar da ironia machadiana. Ao analisar Memórias póstumas de Brás Cubas, por exemplo, Roberto Schwarz se detém no episódio em que Brás Cubas lamenta o fato de Eugenia, sua possível pretendente, ser coxa; e diz: “Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?”. Aqui, Schwarz observa que “se o universo fosse ordenado razoavelmente, moças coxas (pobres) não seriam bonitas, e moças bonitas não seriam coxas (pobres)” (em Um mestre na periferia do capitalismo). O mesmo, então, se aplica a “O machete”. E o argumento é metafísico: do trecho referido, depreende-se que, se o universo do narrador do conto correspondesse a sua ideologia, a alma dos desfavorecidos não permitiria elevadas concepções do belo, as quais estariam legadas apenas às elites. Em outras palavras, pobres não gostariam de boa arte. “Trata-se de harmonia universal, mas concebida a partir da mais imediata conveniência particular, com supressão dos demais pontos de vista, e, sobretudo, sem supressão da dominação de classe”, acrescenta Schwarz no mesmo texto. 61


Nessa esteira, então, o que dizer de Carlotinha (a mulher de Inácio), cuja única riqueza era a beleza (“Toda a riqueza da filha era a beleza”)? Esta parece um exemplo crasso das palavras de Schwarz, quando este diz que “Não sendo proprietários nem escravos, estas personagens não formam entre os elementos básicos da sociedade, que lhes prepara uma situação ideológica desconcertante. O seu acesso aos bens da civilização, dada a dimensão marginal do trabalho livre, se efetiva somente através da benevolência eventual e discricionária de indivíduos da classe abonada” (Ibid.). Carlotinha tem na sua aparência física sua única perspectiva de ascensão, para não dizer de sobrevivência. É o desvelo escancarado da sociedade patriarcal que reifica a mulher, transformando-a em objeto. Não por acaso, com efeito, ela se casa com um homem que a sustenta. Se não fosse pelo casamento, ela não teria como se manter. O matrimônio surge, então, como um favor (“nossa mediação quase universal”, irá dizer Schwarz) que recompensa os atributos físicos. Estes últimos, no entanto, não são capazes de transcender a condição de classe, uma vez que, no caso da personagem, a beleza não tem “poesia nem ideal” (ou seja: até quando a beleza é permitida à mulher pobre, a beleza, em si, é pobre). Há, no entanto, uma personagem em “O machete” cuja condição laboral difere das demais. Trata-se do violoncelista Inácio, o único no universo do conto a exercer o trabalho livre assalariado. É verdade: poder-se-á argumentar que ele deve algo ao favor, em última instância. Em uma sociedade que paradoxalmente desvaloriza a arte no sentido material, para valorizá-la enquanto capital cultural “sublime”, o acesso ao estudo de violoncelo, bem como a contemplação de suas peças, surge como um luxo das altas classes. É necessário, então, que o burguês preste um “favor” ao artista. Isso é fato, e nos abre a porta para outro conflito importante em “O machete”: a antítese entre a arte erudita e a arte das massas. Vejamos. Quando o personagem tocador de machete (Barbosa) é introduzido na história, demonstra certa vergonha do próprio 62


instrumento; se sente inibido na presença de um instrumentista clássico, pertencente às supostas altas esferas da cultura. Sua arte é impressionante, como demonstra sua execução que, contudo, só é realizada mediante muito encorajamento por parte do próprio Inácio. O amigo de Barbosa, Amaral, muito mais atento ao violoncelo, também se preocupa em salvaguardar um abismo de qualidade entre os dois instrumentos, dizendo que “É outro gênero...” e, posteriormente, ante a perspectiva de um concerto dos dois instrumentos juntos, clamando: “Não profanemos a arte!”, e exigindo que apenas Inácio toque. Amaral representa uma concepção elitista de arte. O instrumento clássico, cujo conhecimento é privilégio das elites, é mais valorizado por ele do que o instrumento popular. Ao mesmo tempo, Machado mantém o violoncelista isolado da sociedade “que não o entende”, até este ser descoberto por estudantes universitários. Não por acaso, o primeiro admirador confesso de Inácio é um aspirante a jurista, pertencente a um setor da sociedade que, geralmente, não se aflige com preocupações de ordem trabalhista. Afinal, a instrução de nível superior é, até hoje, um privilégio no Brasil. E, uma vez que a apreciação do violoncelo se restringe aos que já possuem esse privilégio, o caráter restrito desta apreciação é reforçado. Há, no entanto, um descompasso entre a ideologia estética de Amaral e a sociedade do conto. Tão logo o machete vem a público, repercute positivamente, sendo prontamente aclamado (diferentemente do violoncelo, que nunca provocou grandes manifestações por parte das massas). Aqui, então, cabe pensar acerca do que a idolatria à música clássica representava nesse contexto. Pelo menos em “O machete”, esta aparece (conforme já vimos) na forma de um berloque cultural da classe dominante. Ademais, se observarmos alguns comentários feitos pelo narrador, poderemos associar o violoncelo à cultura estrangeira, europeia. Isso porque Inácio aprende a tocar o instrumento com um “velho alemão”, preterindo a rabeca (instrumento popular) em uma cena em que “o artista fluminense” contrasta 63


com o “artista germânico”. Também quando Inácio se refere aos “grandes mestres” do violoncelo, recorda Mozart e Weber (ambos germânicos). Surge aqui, então, uma ideia de música clássica semelhante ao que Schwarz chama de “ideia fora do lugar”. Para ilustrar esse conceito, Schwarz faz menção às pinturas e esculturas do período colonial como exemplos do deslocamento de ideologias, revelando a forma como a colônia incorporava elementos da metrópole sem que estes correspondessem à realidade prática dos países onde imperava a economia escravista. Diz o crítico que Em certos exemplos, o fingimento atingia o absurdo: pintavam-se motivos arquitetônicos greco-romanos – pilastras, arquitraves, colunatas, frisas etc. – com perfeição de perspectiva e sombreamento, sugerindo uma ambientação neoclássica jamais realizável com as técnicas e materiais disponíveis no local. Em outros, pintavam-se janelas nas paredes, com vistas sobre ambientes do Rio de Janeiro, ou da Europa, sugerindo um exterior longínquo, certamente diverso do real, das senzalas, escravos e terreiros de serviço. (“As ideias fora do lugar”) Na comparação com outros contos de Machado de Assis, também somos capazes de notar esta contradição. No conto “Um homem célebre”, por exemplo, o personagem central busca incessantemente uma epifania que lhe permita compor uma peça clássica (europeia) já que, a despeito de seus esforços, só consegue compor marchinhas e polcas (brasileiras). Com Inácio ocorre justamente o contrário: ante o sucesso do machete, só consegue reagir com composições eruditas e melancólicas que não caem no gosto popular. Se há uma diferença, a temática dos dois contos, nesse sentido, é a mesma. Seria, portanto, a idolatria a Weber e Mozart mais um desses exemplos? O descompasso entre o gosto artístico de Amaral e Inácio e o gosto musical do conjunto da sociedade carioca não seria um caso prático da importação de ideias estéticas euro64


peias, sem que estas correspondessem à realidade da periferia do capitalismo? Por todos os elementos já mencionados, é possível pensar que sim. E a exposição dessa confusão ideológica é mais clara no desfecho dramático do conto. A inveja do machete A crítica literária sempre apontou ciúmes e loucura como dois temas centrais do universo machadiano. Nesse sentido, pode-se dizer que “O machete” é um conto emblemático. Ambos os temas se entrelaçam ao final da história para engendrar sua conclusão. O casamento de Inácio e Carlotinha, desde o princípio, parece algo incompleto. Tão logo ambos começam a se relacionar, é dito que a mulher renuncia a seus hábitos “frívolos”, sabendo “curvar-se à lei que de coração aceitara”. Já aqui a instituição do casamento surge não como um produto da vontade interior, do coração, por assim dizer; mas sim como produto de uma lei externa que é imposta à revelia do desejo do indivíduo. Mais: a necessidade de aceitar o “favor” do casamento, já que a única riqueza de Carlotinha era beleza, obriga-a a tolher a própria subjetividade em um exercício castrador de superego. Mais irônico impossível, se pensarmos que, ao final, o casamento termina graças à “frivolidade” de Barbosa, que reconcilia a mulher adúltera com seus hábitos originais. Os instrumentos musicais começam a surgir, então, como representantes do espírito das personagens entre as quais Carlotinha transita. O violoncelo é grave, “silencioso” e “profundo”; o machete é frívolo e alegre – ao cabo, vitorioso. Também “grave” e “profunda” é a alma de Inácio, que recusa os aplausos de sua mulher à execução de sua primeira peça, argumentando que seu instrumento “não era lindo, como ela dizia, mas severo e melancólico”. E o casamento é o laço social que ata Carlotinha a essa alma cuja essência tanto diverge da sua. Uma vez juntos, o casal passa a ter uma vida que “corre65


ria assim monotonamente bela, e não valeria a pena escrevê-la” (comentário que coloca o “bela” muito mais como uma aceitação convencional da perfeição aparente do matrimônio do que, efetivamente, como um reflexo da felicidade dos cônjuges). Com o desenrolar da trama, porém, a prosa machadiana vai dando evidências da atração de Barbosa por Carlotinha. Inácio parece não perceber. Se percebe, não se manifesta. No entanto, a grande demonstração de ciúmes se dá no instante em que o machete de Barbosa começa a receber mais atenção do que o violoncelo. E aqui, importante observar, não se trata de um ciúme destrutivo (como o de Bentinho em Dom Casmurro) mas sim de um ciúme resignado. A mulher de Inácio, inclusive, surge como personagem secundária na inveja do marido. É o que se vê quando este afirma: “O que tenho é que estou arrependido do violoncelo; se eu tivesse estudado o machete!”. Para Inácio, o instrumento musical parece mais importante do que a própria esposa que o abandona ao poucos. Neste instante, podem surgir duas interpretações. Uma, conforme apontado por Antonio Candido em Vários escritos, poderia relacionar as preocupações de Inácio com um tema muito caro à obra de Machado de Assis: “o tema da perfeição, do ato completo, à obra total”. Argumentar-se-á, então, que o violoncelista – mais preocupado com a busca por sua opus magna, por seu reconhecimento enquanto grande músico – se preocuparia antes com seu instrumento do que com sua mulher. Esta ideia não pode ser descartada. Mas o próprio Antonio Candido traz outra questão à baila. Ao analisar outro conto de Machado (“O espelho”), Candido descreve a forma como o personagem central da história é levado à “beira da dissolução espiritual” quando seus escravos fogem, e este para de ser socialmente reconhecido enquanto “senhor”. Faz-se necessário, então, que ele se olhe diariamente no espelho, devidamente fardado (instrumento simbólico de seu status social), caso contrário seu reflexo torna-se turvo e irreconhecível. O mesmo acontece com Inácio Ramos, que tem sua sa66


nidade mental dissolvida no instante em que sua mulher o troca por Barbosa. O mais curioso, porém, é observar que, ao se referir a seu rival, Inácio diz que a mulher “foi-se com o machete”. O ser humano, já transformado em instrumento de trabalho, é então representado por uma metonímia fantasmagórica que substitui seu próprio nome. O fetichismo da profissão é evidente: importa mais o Barbosa músico do que o Barbosa indivíduo. Dessa forma, a cisão espiritual da personagem submetida às regras da divisão do trabalho conduz à derradeira loucura. A auto-imagem de violoncelista de sucesso em “O machete” equivale à auto-imagem de senhor em “O espelho”. Por isso, uma vez preterido, Inácio enlouquece. Sua sanidade mental é perdida no mesmo instante em que se perde o reconhecimento social pelo desempenho no ofício. Como aponta Adorno, “[a obra de arte] na própria constituição de sua autonomia [...] ratifica a posição social do espírito cindido segundo as regras da divisão do trabalho” (Teoria estética). É essa perda espiritual (decorrente da própria divisão do trabalho) que transforma Barbosa em machete e Inácio em violoncelo. E é a vitória do primeiro que conduz o segundo à loucura.

ADORNO, Theodor. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 2008. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Avenida, 2012. ______ . Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Orbis, 2012. ______ . “O espelho”, “O machete” e “Um homem célebre”. In: 50 Contos de Machado de Assis. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. CANDIDO, Antonio. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970. SCHWARZ, Roberto. “As ideias fora do lugar”. In: Ao vencedor as batatas. São Paulo: Editora 34, 2000. ______ . Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

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novíssimos Resenha de Sentimental, de Eucanaã Ferraz1 Isabela de Vilhena Gaglianone

“Estranha matéria, que sobe do fundo À flor da memória camada de espuma Diário de bordo vem quebrar aqui” “Talvez hoje” O verso, nas línguas, dizem tantos filósofos, antecede a prosa. Por ser mais imediato, por ser mais sentimental. A linguagem poética permanece existindo como verso e então não se deixa estender por uma prosa, porém, invisível: suas palavras, suas imagens, ecoam-se entre si e interiorizam discursos inteiros sem nem precisar proferi-los. As imagens poéticas encerram um círculo hermenêutico de compreensão da parte pelo todo e do todo pela parte. O livro mais recente de Eucanaã Ferraz particulariza em si essa coesão e Sentimental é um desdobramento semântico da própria palavra que lhe dá título, vai de um sarcasmo melancólico, sensorial, a uma leveza quase etérea, corredeira de figuras mágicas. Octavio Paz diz que a poesia é, no limite, mágica, no sentido de mágico semelhante ao que entende a antropologia: uma chave simbólica.2 Ao longo de Sentimental, o teor dos poemas beira o nar68

1 A resenha faz parte de um projeto da cisma de tratar sempre de escritores contemporâneos e de livros recém-lançados. Sentimental, de Eucanaã Ferraz, saiu em Outubro de 2012, pela Cia. das Letras. Na revista Cisma n. 1, tivemos resenhas sobre Tarde, de Paulo Henriques Britto (por Aline Rocha) e Junco, de Nuno Ramos (por Sofia Nestrovski). Na cisma n. 2, publicamos uma entrevista com o poeta mexicano Fabio Morábito, feita por Mayra Moreyra Carvalho e Priscila Genelhú.


rativo, a correnteza das sinestesias e das significações, porém, nasce de imagens imediatas que, juntas, desnovelam a imaginação, imagens que se equilibram no tempo; no tempo que passa, morte em tantos sentidos, mas também no tempo do sonho e do passado que, como memória, revive-se a cada momento do presente – o sentimental é latente. O tom é grave, mas leve; por vezes, quando ácido, e, então, descrente e também nostálgico. Os extremos coexistem, na plenitude da complexidade de sua coexistência. Surdo e com “os dois olhos bem abertos”, na “mímica sem sentido” que “parece ser o sentido de tudo” (versos do poema “Oboé”) é como se o mundo estivesse submerso, mudo, de modo que somente às imagens coubesse significar – com todas as polissemias e flutuações de significados a que levam os poemas de Eucanaã. O ritmo geral dos poemas é sincopado, o ritmo quebrado do deslocamento tônico dos versos. Efeito gerado por diferentes formatos e divisões dos versos, que ora prolongam, ora cortam as sonoridades, mas também causado pelas experiências ricas da pontuação: tanto nos encadeamentos sem vírgulas, que amalgamam signos em um único significado, abstraindo-os, e, que, ambivalentes, geram duplos sentidos – como os substantivos que são ao mesmo tempo possíveis verbos poéticos, por exemplo, “Janeiro bicicletas” (de um verso de “Papel tesoura e cola”). Ou ainda, nos versos com seguidas pontuações expressivas, como no angustiado poema “Dizer adeus, amigo”:

2 Nas palavras de Paz, a poesia “é metamorfose, mudança, operação alquímica, e por isso é limítrofe da magia, da religião e de outras tentativas para transformar o homem e fazer ‘deste’ ou ‘daquele’ esse ‘outro’ que é ele mesmo”; “O valor das palavras reside no sentido que ocultam.” (PAZ, Octavio. “A imagem”, In: Signos em rotação. pp. 43 – 50)

Devia ter sido, naquele tempo, antes do destino, Que, talvez um movimento, meu, de alguém, [...] Qual teria sido?, e tudo fosse diferente, outro caminho. Mas nada se fez. Tantas vezes nada se faz A síncopa musical dá ao ritmo um caráter um pouco folclórico, um pouco rústico, porque a tônica do compasso é deslocada e o ritmo torna-se fugidio – o contratempo, esperado a ser o tempo fraco, 69


passa para um primeiro plano. Um ritmo dissonante. Na poesia de Eucanaã, o ritmo sincopado do deslocamento sonoro ilumina algumas palavras e transmuta suas imagens, deixa a tônica semântica muitas vezes suspensa – por exemplo, no poema “Dance” Retesa enquanto repuxos de sangue aveludam Avenidas que pareciam inquebrantáveis mas Agora castelos em degelo sob pés em desafio Cada contorcionismo é mais que desespero E que beleza – é fora do tempo é sem narrativa É ainda graça leveza cada gesto que Surge ou “A flor aberta do gramofone por onde amídala/ a música passava lisa;” (“Victor talking machine”). O próprio sentimental, enquanto ambivalência de sensação e de sentimento, desenvolve-se nessa musicalidade, em que a base conceitual e a tonalidade coexistem nos movimentos simbólicos dos poemas. Esse ritmo sincopado, que aparece algumas vezes como quebra violenta, outras, sereno deslocamento – é o caso da simplicidade de “dezembros de dezembro” (do poema “O círculo negro”) –, é como o ritmo da água, que, quer rio, ou quer mar, é imagem recorrente no livro. O mar metaforiza, por um lado, o morrer poético, condensa a profunda e irreversível sensação do tempo que passa. “E como nunca antes: aéreo. Mais/ que isso, marítimo. Repara:// tem ares de quem navega a todo/ pano em seu navio-fantasma” (“Só faço verso bem-feito”); mas o mar também se revolve infinitamente e metaforiza, por outro lado, um constante murmurar do passado relembrado pelo presente – um tempo subjetivo, presente solitário em que vivem, em universos próprios mas espelhados, o viúvo, o astronauta, o homem a bordo de seu silêncio e o insone urbano, separados pela mesma margem arenosa às avessas. Entre “nuvens algas”, atrás de 70


uma “epopeia mística de mais de mil/ de milhares de versos”, a poesia do livro lembra a definição de Octavio Paz, segundo a qual “o poema é tempo arquetípico”, ou seja, um perpétuo presente que é, também, o mais remoto passado e o futuro mais imediato. [...] A condição dual da palavra poética não é diversa da natureza do homem, ser temporal e relativo mas sempre lançado ao absoluto. (“A consagração do instante”, In: Signos em rotação, p. 54) Assim, “De nada adiantaria dizer ao rio que// chegando à praia ele não retornará” (“Tão bonita”) na imensidão navegante, o tempo é fugidio, repleto de silêncios e de fábulas. A poesia de Eucanaã Ferraz, em Sentimental, parece um trapezista. Nela, o sentimental equilibra-se sobre o intelectual e cria um mundo próprio, uma atmosfera quimérica. Os poemas escapam-se uns nos outros, formando um todo que abarca rumos de destinos distantes, além-mar. De um ponto a outro, desdobram o caráter de tensão existencial do “sentimental”, em suas dimensões históricas e humanas.

FERR AZ, Eucanaã. Sentimental. São Paulo: Cia. das Letras, 2012. PAZ, Octavio. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 2012.

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colaboradores Gabriel Cordeiro dos Santos Lima é estudante de Letras – Português e Espanhol, na USP. É também pesquisador na área de crítica literária e literatura latino-americana. Guilherme Nogueira Tauil é graduando em Letras – Português e Espanhol, na USP. É representante discente do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, pesquisa a obra de Rubem Braga, gerencia o maior acervo digital sobre Chico Buarque e escreve sobre literatura para o site quartacapa.com. Isabela Gaglianone é formada em Filosofia pela USP. Publicou textos na Cisma 1 e 2. Juliana Cunha, estuda Letras – Português e Inglês na USP, e faz iniciação científica sobre J.D. Salinger no departamento de Teoria Literária com o Prof. Dr. Edu Teruki Otsuka. É repórter e tradutora freelancer com traduções publicadas em veículos como Folha de S.Paulo e revista piauí. Juliana Ramos Gonçalves é graduanda em Letras – Português e Francês, na USP

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Lílian Honda é jornalista e aluna de Letras – Português e Latim, na USP. Marcos Vinícius Ferrari é graduando do curso de Letras – Português e Russo, na USP. Atualmente, dedica-se à tradução de contos de Anton Tchékhov, com apoio da FAPESP. Mariana Chirico Machado Holms está cursando sua graduação em Letras – Português e Alemão, na USP. Pedro Abreu Meyer Pires é aluno do quarto ano de Letras – Português e Alemão, na USP, e estagiário de tradução pela Lionbridge Participações. A tradução de Ein Tisch ist Ein Tisch foi produzida para a aula de Tradução Comentada do Alemão II. Sofia Nestrovski é uma das editoras e idealizadoras da cisma. Pesquisou a obra de Nuno Ramos sob orientação da Profa Dra Viviana Bosi. No momento, dedica-se à tradução de The Renaissance, de Walter Pater, sob orientação da Profa Dra Lenita Esteves. Cursa graduação em Letras – Inglês, na USP. Vitor Serrano nasceu em Setúbal (Portugal), estudou na Universidade de Lisboa, cidade onde vive e trabalha.




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