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2. AS PRIMEIRAS SEMANAS…

No primeiro dia depois da operação, estava completamente tonta e zonza, dormia mais do que outra coisa. Como tomava vários medicamentos para fazer cocó fininho preparei-me psicologicamente para a primeira defecação pós-cirúrgica e quando a vontade bateu à porta, lá fui eu. Suava por todos os meus poros, mas tinha consciência de que não podia adiar mais o que tinha mesmo de acontecer, fazer cocó por um rabo todo estraçalhado e meio adormecido ainda.

Pernas para cima num banquinho... para quem não sabe, mas todos deveriam saber e fazer, o cocó deve fazer-se sempre com os pés elevados. Nada daquela posição sentada numa cadeira que nos ensinam de pequeninos. Se queremos fazer cocó bem e não partir, nem estragar os nossos rabos, temos de fazer cocó à selvagem mesmo.

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Então lá vou eu para o meu momento de fazer cocó à selvagem, joelhos quase no peito, mãos a suar a segurar a sanita, toda eu num ato de meditação e mindfullness para tentar relaxar um esfíncter ferido num rabo em chagas e sangue.

As doses de parafina líquida que tinha ingerido no dia anterior e mais umas cenas com fibra, tinham feito o seu papel e o bendito cocó lá saiu fininho e devagarinho, enquanto o meu rabo me gritava de dor e ardor profundo.

Depois de terminada a primeira odisseia, comigo a hiperventilar, já um bidé de água morna com Betadine me esperava ali mesmo ao lado.

Mergulho o meu rabo morto de dores agonizantes no bidé e começo a gritar de dores. O Betadine , em contacto com as feridas abertas, fazia-me sentir como se todo o meu rabo estivesse em chamas. As lágrimas corriam-me no rosto, os braços e as pernas fraquejavam, toda eu tremia de dor imensa e profunda.

Passados os dez minutos que me foram recomendados de banho de assento (adoro este nome), levanto-me a medo e seco-me como se estivesse a limpar as pétalas de uma flor que não quero ver caídas. Tudo devagar, num ritual que acabei por repetir tantas e tantas vezes nessa e noutras semanas.

Quando acabava de me limpar caía no tapete da nossa casa de banho, joelhos no peito, olhos lavados em lágrimas, com umas dores indescritíveis, um ardor e sofrimento profundo, sem explicação para mais.

Assim estava mais ou menos durante 1h30 a 2h até a dor, por si, começar a abrandar e eu me conseguir levantar e ir buscar gelo para pôr no meu rabo em chamas.

Deitada na minha cama de rabo para o ar, continuava a trabalhar, já que me tinham dito que conseguiria continuar a fazer teletrabalho.

Nas primeiras duas semanas nunca parei, nem de trabalhar, nem de ajudar nas tarefas domésticas, nem de ir buscar os meus filhos ao colégio...

As dores de morte que sentia nos primeiros dias sempre que ia à casa de banho começaram a aliviar e eu terminei o antibiótico e diminuí as parcas drogas para as dores que me tinham dado.

Diminuí também a ingestão de parafina, o que fez com que, algures na segunda semana, tivesse dois grandes cocós muito duros...

Asneira grande!

De uma das vezes que fui à casa de banho, fiz mais força do que devia e senti um rasgar por baixo.

– Oh Meu Deus, rasguei o rabo outra vez!

Disse para mim mesma em voz alta.

Segui a minha vida normal... mas na 5.ª feira da segunda semana, comecei a sentir que as dores estavam a voltar e a voltar com toda a força. As dores agora eram diferentes, doía sim, quando fazia cocó, mas doía muito mais depois, e durante muito mais tempo.

As dores começaram a prolongar-se por quatro, cinco e seis horas seguintes ao ato mais bonito de todos, o ato de defecar.

Eram dores imobilizantes, que me deixavam sem falar, num choro atroz, em cima da cama. Não conseguia estar parada porque ao mexer-me sentia-me ligeiramente mais aliviada. Não conseguia abrir os olhos, nem pensar, nem escutar nada. Todo o meu corpo se fechava na dor e se concentrava no rabo. Toda eu deixava de existir para apenas sentir a dor imensa e insuportável que tinha no meu rabo. Toda eu ficava reduzida à minha região anal e mais nada no mundo interessava.

Ao início não sabia como lidar com essas dores, tomava a medicação que tinha, Brufen, Nolotil, Paracetamol. .. e nada funcionava. Mas achava que seriam dores passageiras normais da recuperação e fui-me aguentando. No domingo, no final da segunda semana, falei com os meus pais e disse que não aguentava as dores e tinha de ser vista com urgência.

Perante as minhas descrições de dores horríficas, os meus pais levaram-me para ser observada, nesse domingo, ao médico que me tinha operado.

Foi-me feito um toque retal e uma observação e disseram-me que não tinha nenhum abcesso, que se tratava apenas da evolução normal e da cicatrização que para algumas pessoas levava mais algumas semanas. Passaram-me antibiótico novo, Palexia para as dores e lá fui eu à minha vida.

A 2.ª feira, dia 28 de junho, amanheceu e com ela apareceu a minha vontade de fazer cocó e depois do cocó mergulhei num terramoto de dor incontrolável, do qual não via saída.

Liguei para o meu pai.

– Vou levar-te a fazer uma Ressonância Magnética no Hospital da Luz, em Lisboa.

Disse-me ele, depois de ter falado com alguns colegas.

O meu pai é aquele herói de capa branca, muito rezingão e atarefado, mas que está sempre lá quando realmente dele precisamos. Aquele médico que sabe ouvir, mas que sabe, que por ser pai, não pode ser ele a tratar-me e por isso mesmo, procura rodear-se de todas as melhores cabeças. Aquela pessoa a quem sei que posso ligar a qualquer hora, “because he has my back”.

Quando os episódios de dor acalmavam e eu conseguia de novo olhar para o mundo lá fora, estava completamente esgotada, cansada, sem energia, sem vontade de comer ou ver outro amanhecer.

Os amanheceres significavam idas à casa de banho. Tudo o que eu queria evitar a todo o custo.

A comida olhava para mim e eu para ela, a minha fome e o ato de me alimentar eram quase esquizofrenizantes. Significava lembrar-me a mim mesma de tudo o que teria de sofrer no dia seguinte.

– Estou a olhar para ti agora e amanhã vamos encontrar-nos noutro lado.

Dizia eu para toda a comida que via no meu prato.

A minha ida ao Hospital da Luz em Lisboa foi deslumbrante. Ficámos de nos encontrar com um colega da cirurgia às 15h30. Perto das 15h00 estávamos no hospital.

Como não sabíamos exatamente onde era o seu gabinete, andámos de ala em ala numa pequena tour turística no interior do hospital, enquanto eu me arrastava no meio de um dos meus episódios de dor. Eu agarrada ao braço do meu pai, rabo no ar, pernas abertas, com todas as pessoas a perguntarem-se:

– Mas o que é que esta rapariga terá?

Ignorem Sempre O Que A Sociedade Pode

PENSAR E TODOS OS RÓTULOS QUE VOS POSSA

PÔR. VOCÊS SÃO MAIORES E MELHORES SEMPRE!

E ninguém sabia o que eu tinha. Nem eu própria, só sabia que a dor era insuportável e era no rabo. Chegámos ao médico que nos pediu para aguardarmos um pouco.

Todos os momentos de espera, em que não me podia sentar, e em que com as mãos na parede não conseguia parar de mexer as pernas, pareciam uma verdadeira eternidade.

Fomos depois encaminhados para o andar de baixo e disseram-nos para esperarmos numa zona de espera, com, mais uma vez, cadeiras.

Cada cadeira, cada zona de espera com cadeiras, relembrava-me o quão debilitada eu estava. As pessoas olhavam para mim, contorcendo-me de dores, em pé. De alguma vezes chegaram a perguntar-me:

– Quer uma cadeira de rodas?

Como assim quero uma cadeira de rodas? CADEIRA ...

Eu neste momento não sou compatível com cadeiras. Dava-me vontade de chorar, era uma revolta interior, uma sensação de: Ninguém me compreende!

No meio da minha dança de dor constante e enquanto esperava pelo médico que nos dissesse quando poderíamos ir fazer a Ressonância Magnética, à região pélvica, que nos tinha levado àquele hospital, olhei para o letreiro que estava em cima da porta, por onde o médico tinha entrado, que tinha escrito: MAMOGRAFIAS.

Ora, eu virei-me para o meu pai e perguntei-lhe com a minha cara de espanto e dor:

Mamografia? Ele percebeu que o meu problema não é nas mamas, certo? As minhas mamas estão OK , tanto quanto sei. O meu problema é no rabo, pai!

O meu pai riu-se, sem grande vontade, e disse que eu tinha de ter calma. Claro que ele sabia o que eu tinha. Mas, na altura, confesso, que fiquei com algumas dúvidas.

Devemos ter estado perto de uma hora nessa sala de espera. O médico lá saiu do letreiro MAMOGRAFIAS e disse-nos que o melhor que tinha conseguido seria uma RM para as 21h00.

Espera aí, mas são 17h00... Estou a morrer de dores, o que é que eu vou fazer num hospital, onde só há cadeiras e eu não me consigo sentar, durante quatro horas?

Respirei fundo e disse:

– Então levem-me para as urgências, dêem-me morfina na veia e deixe-me sossegadita numa maca, aí num sítio qualquer, à espera.

O meu pai e o médico não comentaram o meu pedido de morfina , mas acederem ao check in nas urgências.

Cheguei ao balcão de entrada das urgências, que só ficava do outro lado do hospital, mais uma volta, mais