Corda Bamba

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Diรกrio do Nordeste

E T R A

D E

O R I E D A P I C


2 Diário do Nordeste FORTALEZA, CEARÁ - DOMINGO, 13 DE MARÇO DE 2016

O TEMPO MUDOU O CIRCO. O picadeiro ganhou mais número e menos drama. Em volta dele, veio a sinalização, os banheiros químicos, as antenas, os traillers.

A ELES, A VIDA

não deu outra opção que não seja resistir. É sentimento irrenunciável do circense a obrigação de lutar pela continuação da própria história. Por ela, muda-se pano de roda em lombo de jumento, come-se o que for possível comprar da bilheteria da noite anterior, acostuma-se à saudade e aos destinos alterados de cidade em cidade. Não importa a função, para seguir tradição na arte de picadeiro, é preciso rebentar o útero da mãe já embaixo de lona ou nascer com o circo dentro de si. “O importante pra mim não é viver do circo, é viver no circo”, diz o mágico Pascoal Stoppelli Neto. Aos 73 anos, ele retorna ao picadeiro para perder o medo de envelhecer. Ex-paraquedista, deixou o circo algumas vezes para fazer carreira militar, estudar, casar. Mas nunca conseguiu se distanciar por inteiro das lonas. Entrou no circo por influência de amigos artistas numa época em que cozinhava-se o almoço em fogo de chão e morava-se em barracas de pano – lonadas com cera de parafina, querosene e tinta para evitar, no tecido, qualquer travessia de água da chuva. “Hoje, temos outra vida, com mais beleza, mas com menos carinho do público. A gente chegava nas praças, e o povo já vinha receber

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o circo. Não é mais assim”, lamenta Pascoal. Foi-se o tempo em que as carradas do circo chegavam nas cidades já juntando gente. Tão logo a lona fosse armada, os artistas se caracterizavam não para o espetáculo, mas para fazer a propaganda na rua. Palhaços se equilibravam nas mais longas pernas de pau e malabaristas faziam objetos dançarem pelo ar, enquanto uma voz saía dos megafones a convidar o público para a estreia. A essa altura, uma legião de moleques já acompanhava a trupe, na esperança de ser eleita ao posto de coadjuvante do espetáculo. Era preciso ter coragem. Enquanto as mães torciam o nariz, crianças procuravam a liberdade de gritar palhaço. Faziam coro em uníssono mais para ganhar um carimbo na pele que lhes daria entrada gratuita no circo do que propriamente cumprir o objetivo de chamar atenção do público.

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H OJ E T E M E S P E T Á C U L O ? TEM SIM, SENHOR! ÀS OITO HORAS DA NOITE? É SIM, SENHOR! E U V O U A L I E V O LT O J Á . V O U C O M E R M A R AC U J Á ! E O PA L H A Ç O , O Q U E É ? É LADRÃO DE MULHER!

Quando a noite caía, era hora de se arrumar para o espetáculo. De longe, o som da zabumba já indicava o caminho até a lona, que muitas vezes era apenas o pano de roda, um circo sem teto que foi o início da maioria dos circenses. “A banda

“O IMPORTANTE PRA MIM NÃO É VIVER DO CIRCO, É VIVER NO CIRCO. (...) HOJE TEMOS OUTRA VIDA, COM MAIS BELEZA, MAS COM MENOS CARINHO DO PÚBLICO”

PASCOAL STOPPELLI NETO MÁGICO

no circo era tradição. Hoje, não. É só aquela música do som (mecânico)”, diz Francisco de Assis de Lima, o palhaço Novidade. Dos seus 62 anos de vida, 45 foram dedicados à vida circense. Por décadas, Novidade viu o circo resistir, não sem antes perder parte dos números tradicionais e peças de teatro por falta de estrutura ou de artistas para executá-los. É que, nos circos familiares, não há como controlar a rotatividade dos artistas agregados. “Esse pessoal que tá aqui, quando a gente dá fé, vai embora. Aí desmantela o drama todo de novo”, ele reclama. Foi assim que peças, encenadas em capítulos diferentes a cada dia, deixaram o circo. Retomar espetáculos como “Lágrimas de mãe” ou “Pancho, em cada coração um pecado” é um sonho de Novidade, que vez por outra ainda reúne a família para passar o texto escrito apenas na sua cabeça. “O que mais encantou no circo foi o teatro. Era uma apoteose, uma coisa tão bonita!”. O circo é uma viagem sem fim – passeia pela ansiedade dos números arriscados, pelos dramas, pela memória do público, pelas mais diferentes cidades. Como não embarcar nesse caminho, de encanto contraditório e riso honesto? Costuma-se focar no que o circo deixa nos lugarejos, mas o que ele leva, afinal? Nas próximas páginas, os bastidores e o universo criativo de artistas que emprestam seus corpos à arte de lona para mostrar, nos mais longínquos lugares, que há novidade naquela terra.






7 Diário do Nordeste FORTALEZA, CEARÁ - DOMINGO, 13 DE MARÇO DE 2016

O SONHO DE SER

artista de circo, desde sempre, precede de escolha. A fuga com a trupe ou a procura por espaços para adquirir a mais básica formação técnica são caminhos que já começam em curva, impossíveis de prever o futuro próximo, o dia que vem logo mais. Aprendizado de circo é bicho criado em terreno incerto. Na lona, nem sempre há professor. Quando tem, a segurança em repetir os números tradicionais pode esquecer o repasse de detalhes da técnica – o conhecimento é passado de geração em geração pela voz ou pela simples observação do corpo. Fora das lonas, as escolas são escassas. Falta reconhecimento do ensino, que sonha em ser superior quando ainda não conseguiu, dos órgãos oficiais, sequer o status de técnico. Sem família de lona, onde pode-se aprender a arte circense, afinal? Carlos Mariano entrou no circo por acaso. Empacotador de um mercado, ele ziguezagueava as ruas de Iguatu a caminho de casa, quando estruturas de ferro e lona espalhadas em um campo de futebol lhe induziram a frear. “Aquilo me chamou tanta atenção, a ponto de parar e ficar só olhando”, lembra. Não demorou para ser notado por um homem, que, de supetão, lhe convidou para trabalhar. “Foi muito a queima roupa, mas eu disse que queria, se ele falasse com a minha família”, conta Carlos Mariano, que deixou o emprego no mercado pelo circo, onde servia água e aju-

dava nos serviços gerais. “Mas o circo foi embora, e eu fiquei doido porque sempre quis ser artista, desde que me entendo por gente”, ele diz. Ainda criança, Carlos montou um circo no quintal da casa da cunhada, onde cobrava dos amigos o ingresso de um fósforo com cabeça utilizável. Como o pai havia trabalhado em circo por um breve tempo, ele mantinha contato com palhaços. Mais tarde, entrou em grupo de teatro e cantou no rádio, mas o circo nunca lhe saiu da cabeça. Nos anos 1980, decidiu correr atrás do sonho e pegou uma carona para Fortaleza. Ele tinha ouvido que, nos arredores da Praça José de Alencar, era possível conseguir formação e emprego. “A única maneira que a gente tinha de saber quem tava precisando de artista era pela Cadeira 12, do engraxate Paulo”. Paulo era um homem de pele clara e estatura média que, de tanto conversar com os circenses que apareciam ali, pas-

sou a intermediar contatos. Na primeira segunda-feira de cada mês, o entorno da cadeira dele virava festa, com pequenas reuniões informais de circenses. O encontro era um caminho em busca da técnica, embora não fosse suficiente. “Com o circo pequeno, a gente aprende os números e a ter bravura, mas às vezes falta técnica. Você percebe a diferença de quem vem da Escola Nacional de Circo, por exemplo. Talvez o artista do circo pequeno tenha até mais garra, mas não faz com tanta técnica e leveza”, opina Carlos. Ao longo dos anos, ampliaram-se os espaços de formação circense. Hoje, circos itinerantes, entidades da sociedade e equipamentos públicos realizam cursos pontuais, enquanto pelo menos dois circos-escola (Bom Jardim e Conjunto Palmeiras) funcionam regularmente em Fortaleza com incentivo do Governo do Ceará. As ações do Poder Público ainda são insuficientes, mas há esperança de melhora. A Lei

PASSEIO AÉREO: De cabeça pra baixo, o artista caminha com os pés enganchados em argolas feitas de corda e presas em um aparato alto

MALABARES:

Número tradicional de circo, em que o artista utiliza objetos como claves, bolas ou argolas

AÉREOS: Números aéreos incluem o trapézio, números feitos em tecidos presos no topo da lona e a lira (circunferência de ferro presa por um cabo de aço no teto do circo)

PIROFAGIA:

São os números com chamas, dentre os quais está o homem que cospe e engole fogo

ARAME: É a corda bamba onde os artistas apenas se equilibram ou incluem também malabarismo e jogo de facas

MÃO A MÃO:

Acrobacia em que artistas saltam e realizam paradas sustentando-se com as mãos

APRENDIZADO DE CIRCO É BICHO CRIADO EM TERRENO INCERTO. NA LONA, NEM SEMPRE HÁ PROFESSOR. NO CIRCO-ESCOLA, FALTA RECONHECIMENTO Municipal do Circo de Fortaleza, aprovada em 2012 e regulamentada no ano passado, prevê a criação de uma escola pública de circo na cidade até agosto deste ano. No momento, informa a Secretaria de Cultura de Fortaleza, um projeto pedagógico está sendo formatado em diálogo com os artistas circenses. A carência de formação para a linguagem de circo interfere diretamente na atualização dos espetáculos, que têm se tornado cada vez mais homogêneos no Ceará e no Brasil, com repertório e criação limitadas. Além disso, números tradicionais, como tecido e argola, têm desaparecido do picadeiro.

“O número de facas giratórias em cima do arame quase não tem mais”, diz o artista Jhonata Brandão. Da quarta geração da tradicional família Brandão, ele defende que é preciso ensino da técnica e muito ensaio para apresentá-lo com segurança. “Passei oito messes ensaiando só o arame. Pra jogar facas, você precisa sentir a velocidade do vento e ter segurança nas mãos. É preciso ter ciência que o ser humano erra, por isso a cautela é parceira do artista”, ensina. Eron Souza não aprendeu os números que executa hoje com a família. Fugiu de casa ainda criança, no Recife, e mal sabe notícias da mãe e dos quatro irmãos que se envolveram no tráfico de drogas. Depois de dois anos na rua, foi levado a um abrigo que lhe mostrou o mundo circense. “Sou profissional mesmo, formado na Escola Pernambucana de Circo”, diz, orgulhoso. O aprendizado o levou a cinco países europeus, onde passa temporadas se apresentando em hotéis ao público infantil. Quando está no Ceará, Eron ganha as estradas de terra batida com o circo para sentir-se novamente em casa. É artista contemporâneo apaixonado pela arte tradicional: “A diferença é que o tradicional nasce dentro do circo, aprende querendo ou não. Eu não sou tradicional. Venho de uma escola de circo, então sou do contemporâneo. Tenho a visão de quem aprendeu na escola, com um professor ensinando, uma educação para aquela modalidade”.


8 Diário do Nordeste FORTALEZA, CEARÁ - DOMINGO, 13 DE MARÇO DE 2016

Circo pequeno nasce com as feições costuradas à mão. Seus contornos são definidos com sobras de outdoor, blimps publicitários, sacos de açúcar. Lona de fábrica, dessas que vêm de São Paulo para encher o circense de orgulho, ainda não se compra só com a bilheteria

O CIRCENSE HÁ DE TER

a vista boa para costurar empanada e vestir o circo. Quase não tem mais quem queira seguir estrada em pano de roda, porque teto de lona é garantia de simpatia do público e trabalho em tempo de chuva. Sonho de família circense é ter lona de fábrica impermeável, daquelas coloridas que vêm de São Paulo para perfumar bancada e picadeiro com cheiro de coisa nova. Esta, a bilheteria sozinha ainda não paga. E como o circense não tem o privilégio da espera, costura o próprio teto com o que consegue juntar entre as praças. O Circo London, do palhaço Garrafinha, nasceu em Fortaleza, rodeado de lona leve. Só depois ganhou teto, feito com pedaços de outdoor e blimps publicitários – o teto colorido por deslocadas propagandas de cerveja. Era o próprio Garrafinha

quem costurava e ponteava os pedaços de materiais, atividade executada tantas vezes com exaustão e cansaço, a ponto de deixar marcas de descuido gravadas no seu polegar esquerdo. No Interior, longe dos materiais publicitários, o palhaço Novidade cobria seu circo com os sacos de açúcar que ia juntando durante muito tempo, antes mesmo da lona se desgastar. “A gente pegava os sacos de açúcar, emendava e cortava as nesgas do tamanho que quisesse. Depois palombava com corda de agave, sabe? Quando dava uma chuva forte de noite, você tinha que se levantar ligeiro e afrouxar todinho pra não amanhecer com o circo no chão”, conta. Palombar a lona era uma tarefa coletiva. A família se reunia para arrematar com cordas de agave as costuras dos panos que cobririam o circo, uma forma de reforçá-las e impermeabilizá-las. Mesmo assim, quando chovia, era preciso se apressar para salvar o circo. A água molhava a corda e a encolhia, baixando o toldo e provocando risco de desabamento do circo. O tempo de subir a lona produzida com milhares de sacos era para se orgulhar. “A empolgação era tão grande que, quando a gente subia a lona, queria logo tirar retrato lá em cima pra guardar”, recorda Novidade. Ao ser palombada, a lona ganhava mão de tinta e de vela para colorir o teto e tentar evitar que, em dia de chuva, a água molhasse o público. “Em dia de finados, a gente já encomendava as velas ao co-

veiro. Aí derretia com oca, que é aquela tinta pra fazer o xadrez, que a gente pintava como queria. Encerava uma nesga com uma cor e outra com outra. A lona encerada durava, mas chuva não barrava, não. Quando chovia, era só aquela peneirinha na cabeça do povo”, conta Novidade, emendando o riso.

“EM DIA DE FINADOS, A GENTE JÁ ENCOMENDAVA AS VELAS AO COVEIRO. AÍ DERRETIA COM OCA, QUE É AQUELA TINTA PRA FAZER O XADREZ (DA LONA DO CIRCO)”

PRÊMIO FUNARTE CAREQUINHA DE ESTÍMULO AO CIRCO:

Destina recursos oriundos do Fundo Nacional de Cultura para estimular ações de arte circense. Inclui a categoria Circos de lona, que contempla projetos para AQUISIÇÃO DE LONAS, criação, renovação ou CIRCULAÇÃO DE ESPETÁCULOS e aquisição de equipamentos

EDITAL DE INCENTIVO ÀS ARTES:

Lançado pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult), o certame contempla sete linguagens artísticas, dentre as quais está a circense. Os recursos podem ser utilizados para ESTRUTURAÇÃO E MANUTENÇÃO DE CIRCOS com capacidade de até 600 pessoas, CRIAÇÃO E MONTAGEM DE NÚMEROS artísticos para trupes ou coletivos

EDITAL DAS ARTES: Criado no âmbito da Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor), incentiva criação ou adaptação da dramaturgia circense, CRIAÇÃO DE NÚMEROS DE CIRCO, além de AÇÕES PARA PESQUISA e manutenção da infraestrutura circense. Foi lançado pela última vez em 2012, mas deve ser retomado neste ano

CIRCO DE TODAS AS ARTES:

Mantido pela Prefeitura de Fortaleza, o projeto foi iniciado há dez anos para promover acesso à cultura e a serviços de CIDADANIA SOB AS LONAS de circo e praças de Fortaleza. É realizado em parceria com a Apaece

NOVIDADE PALHAÇO

Lona de fábrica até chegava em circo familiar pequeno, mas só se fosse doada ou comprada de segunda mão. A primeira dessas a cobrir o circo do palhaço Limãozinho chegou por doação de um amigo. “Foi a maior alegria. A gente nunca tinha sonhado possuir uma lona daquela. Hoje, a estrutura do Circo Cultural Limãozinho é uma que eu nunca imaginei”, ele diz. Grade de ferro, cadeira, sinalização, pano de roda, cortina. “Quando é que a gente ia conseguir ter um palco no circo né?”, questiona Limão, em tom de incredulidade. As conquistas vieram da união. Depois que o circense Carlos Mariano reuniu os colegas para criar a Associação de Proprietários, Artistas e Escolas de Circo no Ceará (Apaece), em 2006, a informação e as melhorias circularam. “Visitei os circos e comecei a sentir necessidade de progresso, porque o circo que entrei era o mesmo que eu tava vendo. A situação das pessoas não mudava. Elas não moravam bem, não tinham figurino, era tudo muito precário”, explica Carlos Mariano. As reuniões na primeira segunda-feira do mês, na Casa de Juvenal Galeno, foram espaço importante para discutir os problemas coletivos e organizar a luta frente ao Poder Público, garantir o reconhecimento da arte circense como linguagem. “Depois que circo virou cultura, ficou bom demais”, afirma a artista Elis Regina de Lima. Os circenses descobriram o apoio governamental por meio

dos editais em nível federal, estadual e municipal. Editais lançados nas três instâncias, em especial o Carequinha, foram mudando, mais uma vez, as feições do circo familiar de pequeno porte. “Com os editais, a gente teve lona nova impermeável, de fábrica. Ela custa em média R$ 50 mil, então a gente só conseguiu isso por causa dos editais. Não dava pra comprar trabalhando com o ingresso a R$ 3, então lona de fábrica era só um sonho e nada mais”, conta Carlos Mariano. As melhorias, porém, não chegaram para todo mundo. Sem grandes companhias circenses, o Ceará é conhecido pelo grande quantidade de circos pequenos. “Claro que a gente não vive dos projetos. Você tem que ter uma história pra ganhar”, explica Limão. Quem ganhou o benefício, porém, viu sua realidade transformar-se. Sem barracas ou trailers, Pimenta e Aíla Brasil armavam redes todas as noites para os filhos dormirem sob a bancada. O casal, por sua vez, se acomodava em um colchão colocado perto do picadeiro. “A gente vivia assim, numa loninha caindo aos pedaços, até o dia que ganhei o (edital) Carequinha”, conta Pimenta. Com os R$ 15 mil que recebeu do Governo Federal, Pimenta comprou uma lona leve que ele mesmo fez questão de costurar com uma máquina emprestada. Quando ficou pronta, orientou a família: “Negada, agora nós temos nosso cirquinho bonito. Vamos cuidar”.




3 Diário do Nordeste FORTALEZA, CEARÁ - DOMINGO, 20 DE MARÇO DE 2016

O alento de quem mora em trânsito é a casa que se le da fragilidade da va. Apesar s barracas de plá st ic o ou dos trailers tantas vezes, é p soldados ossível sentir-se inteiro em todo lu gar

NO MOVIMENTO

de autoexílio circense, a moradia vira âncora. Sejam as barracas de plástico e lona gasta ou os trailers remendados com pedaços de madeira e alumínio, é a casa – apenas aparentemente improvisada – que absorve questionamentos e angústias gerados na estrada para devolver alento. Dos cômodos apertados, a vista para a empanada recobra o fôlego para seguir adiante e poder sentir-se inteiro em cada novo lugar. Porque circense, desses de família tradicional mesmo, não sonha com chão, finca suas raízes no céu da lona. “Eu nunca me imaginei morando no circo”, diz Michelli Brandão. Já tem mais de cinco anos que ela deixou a casa da mãe, em Aracati, para viver com Éderson, no Circo Halley. Começaram morando sob a empanada mesmo, num tempo em que privacidade pra eles era luxo, até que o marido conseguiu construir uma barraca. “Só era ruim porque, quando era pra mudar, tinha que tirar tudo de dentro, desmontar, colocar as coisas tudo numa caixa”, conta Michelli. Quando os filhos Wemerson e Wendell nasceram, o jeito foi organizar um trailer, ainda que

pequeno. Aos poucos, eles vão reformando, soldando placas de alumínio e adicionando madeira para ampliar o espaço. “Tá muito melhor morar em circo hoje, quase não vejo diferença pra uma casa”, diz Michelle. A família dela mora em um trailer que, por fora, chama atenção pelas vivas cores em amarelo e vermelho. Por dentro, são as cortinas de tecido azuis que dividem o ambiente em três: o quarto do casal, a cozinha e um pequeno espaço que mal acomoda a cama das crianças. Tudo ali dentro é milimetricamente calculado, porque em casa de circense não há espaço que possa ser desperdiçado. Por isso, a televisão está acomodada em uma prateleira ao alto, e o aparelho de som é guardado debaixo da cama. Roupas e objetos pessoais ficam em caixas ou nas poucas gavetas da cômoda. Na cozinha, há fogão, geladeira, máquina de lavar – itens que há poucos anos era luxo inimaginável na vida circense. Michelli está à vontade na vida que escolheu. “Pra mim, tanto faz morar aqui ou em casa. Vou pra onde o Éderson quiser”, ela diz. Como o marido vem de uma das famílias circenses mais

tradicionais do Brasil, osBrandão, é pouco provável que Michelli deixe o circo. “Acho que nem pra outro a gente vai. Aqui é bom porque é tudo família”, ela diz, e sonha que um dia eles consigam um baú de caminhão para ampliar o quarto dos meninos e cozinhar com mais espaço. Enquanto esse tempo não chega, Michelli prende os cabelos loiros em coque e limpa a mesa para poder preparar o almoço. Põe as panelas no fogo e aproveita para dobrar roupas e lençóis. É quando o filho Wemerson entra em casa, com pés de anunciar as tábuas soltas do piso, e se espicha sobre a cama para reivindicar um DVD infantil. A mãe não acha e ruboriza com os gritinhos do menino. “É teimoso, viu?”, ela diz. Todos os dias, Michelli é a primeira a acordar em casa, geralmente entre 7h e 9h da manhã, a depender da quentura do lugar. Ela levanta, abre a janela para arejar o espaço e deixa o marido e os dois meninos dormindo: “Parece que não sentem a quentura. Fico impressionada”. Lá fora, imponentes antenas de televisão a cabo e caixas de ar-condicionado confirmam que

IMPONENTES ANTENAS DE TV A CABO E CAIXAS DE ARCONDICIONADO REVELAM QUE A VIDA DO CIRCO MELHOROU, AINDA QUE O ACESSO NÃO SEJA UNÂNIME

DOS CÔMODOS DOS

trailers, ônibus ou baús, a vista para a empanada recobra o fôlego para seguir adiante sem medo de quebrar-se no caminho

a vida no circo tem melhorado, ainda que o acesso não seja unanimidade entre os circenses. “Hoje em dia é bom demais, mas e quando era de barraca?”, questiona Lúcia Sousa. Ela criou os oito filhos que teve com o capataz Palhinha em barraca. Perdeu as contas de quantas vezes a chuva molhou tudo o que tinha, lhe deixando desespero. “Só não molhava a rede do meu flho com três meses porque eu cobria com um plástico. Nós se escondia tudo dentro do circo, botava os colchões lá. Palhinha sempre trabalhou muito, mas não ganhava o suficiente pra melhorar”. Quando chegava o tempo de mudar, era preciso inventar, para os filhos, alimento que dispensasse fogo. “Eu pegava leite em pó e uma garrafinha d’água, aí batia e dava. Nas viagens, em cima do caminhão, ali mesmo fazia. Por que se fosse viciar com mingau, como eu ia fazer em cima de caminhão, né? Meus filhos foram criados assim e cresceram tudo forte”.


4 Diário do Nordeste FORTALEZA, CEARÁ - DOMINGO, 20 DE MARÇO DE 2016

HÁ DE FINDAR O

tempo em que escola não absorve menino de lona. O circense, aos poucos, já consegue trocar chá por médico pra garantir saúde boa – seja pelo comprovante de endereço emprestado por alguém que mora no entorno do circo ou pela boa vontade do posto de saúde para ignorar a burocracia que o exclui do mais básico dos direitos à vida. Agora visita de agente de saúde, ali, ainda é difícil de acontecer. Parece, assim, um mundo paralelo: o que é normal pra quase todo mundo da cidade, no circo tem vezes que falta. Ligação de luz, dessas em consonância com a lei, demora tantos dias pra chegar que ainda hoje há quem se arrisque a subir nos postes, pondo em perigo a própria vida, pra tirar a família do escuro e poder trabalhar. E água? É tão difícil encontrar terreno que possibilite a ligação provisória da Cagece que todo dia parece uma seca. A solução? Fazer acordo com o vizinho para encher os potes e economizar. Enquanto a água ameaça findar, o circense grita. Por saúde, por educação, pela mínima assistência que o Estado lhe deve. Nos últimos anos, sua voz até tem alcançado os governos e os parlamentos. Vieram incentivos, bolsas e leis que já fazem alguma diferença. A vida no circo,

porém, ainda é árdua. Banho de chuveiro e água encanada, por exemplo, é luxo. Pelo menos os meninos já podem estudar e mudar o perfil de muitas famílias que, quando muito, aprendiam a assinar o nome com a professora contratada pelo dono do circo. “Infelizmente, a gente ainda chega em lugares e encontra dificuldade. A lei melhorou muito, agora é obrigatório matricular a criança circense no colégio, mas às vezes a gente tem que ameaçar, dizer que vai denunciar”, conta Chico Brandão. Aos 33 anos, ele nunca foi formalmente matriculado na escola. “Aprendi a ler e escrever, mas o pouco que sei foi por vontade minha”, diz. É que, por conta das frequentes mudanças do circo do pai, ele só era aceito como ouvinte. Sem vínculos formais, cursou apenas até a 4ª série. Há uma lembrança desse tempo que se mantém viva dentro dele. Uma vez, a professora desafiou os alunos: quem terminasse a tarefa poderia ir embora mais cedo. “Eu via os colegas indo lá. Ela corrigia e liberava. Eu me esforcei pra fazer o dever e fui até ela”, conta.

– TIA, TÁ AQUI A MINHA TAREFA. – NÃO, MEU FILHO, VOCÊ NÃO PRECISA. – MAS A SENHORA NÃO DISSE COMO ERA? – É QUE VOCÊ É SÓ OUVINTE. As palavras da professora marcaram. “Naquele momento é que eu vim me concientizar que, como ouvinte, tanto fazia eu aprender ou não. Mas isso me deu motivo pra tentar me destacar na frente dos outros”, diz Chico. O aprimoramento das leis brasileiras vem dando a ele a oportunidade de ver o seu filho, Cauã (10), e o seu irmão mais novo, Edigleyson (12), te-

OS SETE FILHOS

de Ana Lúcia e Círio se apresentam no Circo Mirtes. Embora itinerem pela periferia da Capital, eles são mantidos sempre na mesma escola

Foto | Fabiane de Paula

“NOSSO OBJETIVO NÃO É MOSTRAR QUE O POVO DO CIRCO PODE SER ALGUÉM NA VIDA LÁ FORA. É TIRAR AQUELE PRECONCEITO DE QUE AQUI DENTRO NÃO TEM FUTURO”

ANA LÚCIA BRASIL CIRCENSE

rem uma vivência diferente com os estudos. Embora ainda sejam muitas as escolas onde é preciso exibir a lei e ameaçar luta pra conseguir vaga, há momentos que dão esperança para que o circense siga jornada em busca dos mais básicos direitos. O Circo Halley foi armado ao lado de uma escola no Eusébio, e nela as crianças Brandão foram matriculadas sem empecilho. Para agradecer, a família decidiu oferecer uma matinê. “Era aluno, professor, diretor, e todo mundo falando com o meu irmão Edygleisson e chamando de Estrelinha, que é o nome dele de palhaço. Ele foi tratado ali como artista mesmo”, lembra Chico. Estrelinha entrou no picadeiro a pedido da professora e recebeu os mais sonoros aplausos dos colegas. “Eu fiquei olhando aquilo e achando importante demais. Pra quem era só ouvinte e passou a vida sendo discriminado no colégio, né? Agora ver o irmão entrar de palhaço como um ídolo é sinal de que alguma coisa mudou pra melhor”, emociona-se Chico. Hoje, não é possível saber ao certo quantas crianças circenses estão matriculadas nas escolas públicas do Ceará. Essas estatísticas escapam das secretarias da Educação do Estado e de Fortaleza, já que a informação não é solicitada no ato da matrícula. O que se sabe, bem por alto, é que não são muitas. “O estudo hoje é tudo”, sentencia Ana Lúcia Brasil, com voz firme. Por isso, ela e o marido, Círio, separam parte da renda do Circo Mirtes para garantir que os

sete filhos permaneçam na mesma escola, independentemente do bairro onde armem a lona da família, em Fortaleza – uma forma de evitar prejuízos à aprendizagem. “Tenho pra mim que não importa se o novo lugar é bom ou ruim de escola, esse é um investimento que a gente faz no estudo deles”, explica Ana Lúcia. Porque só estudou até o 5º ano, ela quer dar aos filhos a oportunidade que até teve antes de casar, quando ainda morava em casa fixa com a mãe, mas não abraçou. “Quer ver esses meninos ficarem doidos? É dizer que não tem dinheiro pra passagem de ônibus pra ir pro colégio”, ela ri, orgulhosa. E assim eles seguem matriculados na Escola Municipal Conceição Mourão, sonhando em fazer uma faculdade que possa somar à vida circense. “Nosso objetivo não é mostrar que o povo do circo pode ser alguém na vida, lá fora. É tirar aquele preconceito de que aqui dentro não tem futuro. Aqui, dá pra estudar e ser artista. Meus filhos vão poder dizer: ‘Sou engenheiro, sou advogado, mas sou trapezista, sou palhaço. Moro no circo’”, diz Ana Lúcia. Enquanto conversa, ela prende os cabelos e passa a mão na testa em sinal de cansaço. Respira fundo, antes de continuar a lavar a louça em uma bacia, economizando até a última gota da água que conseguiu com a vizinha porque não é todo terreno que tem estrutura pra receber ligação da Cagece.


5 Diário do Nordeste FORTALEZA, CEARÁ - DOMINGO, 20 DE MARÇO DE 2016

NO CIRCO HALLEY,

há preocupação em garantir os estudos das crianças. Nem todas se apresentam no picadeiro, mas, lá, a escola também é prioridade do artista

EDUCAÇÃO: A Lei Federal 6.533 ASSEGURA A VAGA NAS ESCOLAS PÚBLICAS de primeiro e segundo graus ao circense e transferência de matrícula, mediante apresentação de certificado de origem. Apesar da legislação, circenses afirmam ser comum ter que lidar com a resistência das direções das escolas, que alegam não ter vaga. A

LEI MUNICIPAL DO CIRCO DE FORTALEZA, aprovada em 2012 e regulamentada no ano passado, direciona as demandas circenses para as Secretarias REGIONAIS. São elas as responsáveis por autorizar a montagem do circo, bem como garantir o acesso das crianças a escolas.

SAÚDE: Conforme a Lei Municipal do Circo, a Secretaria de Cultura de Fortaleza deve emitir um documento que comprova a condição de circense. Com ele, é possível acessar o SUS mesmo sem comprovante de endereço. A lei também estabelece que as Secretarias Regionais viabilizem VISITAS DE AGENTES DE SAÚDE às lonas.

BOLSAS DO GOVERNO: O circense tem DIREITO DE RECEBER o Bolsa Família, mesmo na condição de itinerante, desde que a renda seja compatível aos limites do programa. Nos dez circos que visitamos no Interior, poucas pessoas recebem o benefício. O Ministério do Desenvolvimento Social não tem dados de quantos circenses recebem o benefício, tendo em vista que não existe esta especificação no Cadastro Único. Ao todo, o Ceará tem 1.254 BENEFICIADOS na condição de itinerante, que inclui circenses, pessoas em situação de rua e ciganos. Para se cadastrar, o circense deve procurar os CENTROS DE REFERÊNCIA DA ASSISTÊNCIA

SOCIAL (Cras) ou os POSTOS DO CADASTRO ÚNICO. Os contemplados devem atualizar o cadastro cada vez que mudam de município.

ÁGUA: A Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) informa que, para solicitar ligação temporária de água, no caso de circos, é necessário apresentar ALVARÁ DE FUNCIONAMENTO e outros documentos. O prazo para instalação é de CINCO DIAS ÚTEIS, desde que o imóvel já tenha cadastro, e taxas podem ser cobradas previamente.

ENERGIA:

Para solicitar uma ligação provisória à Coelce, o circense precisa apresentar o alvará de funcionamento do circo e entregar a documetação com 10 DIAS DE ANTECEDÊNCIA. A instalação do SERVIÇO CUSTA ENTRE R$ 72 E R$ 105, a depender se a caixa de medição é monofásica ou trifásica, O aluguel dessas caixas, caso o circense não possua, é de R$ 56,40 e R$ 148, respectivamente. Os custos da energia consumida serão calculados de acordo com a carga instalada apresentada.

“A gente que é de circo economiza água até sem querer. A água que lava a louça é a mesma que limpa o chão, porque aqui ninguém pode se dar ao luxo de ter água pra tudo né?”, ela diz. Energia a família conseguiu ligar com a Coelce, apesar do prazo longo demais (são dez dias) pra quem precisa sair da escuridão com pressa. Mas o circense há de reconhecer que melhorou. Antes, só se trabalhava ligando luz na base do gato - daí os inúmeros choques sob as lonas. “Eu era menino, mas lembro que havia cuidado porque o circo é a nossa casa. Se eu deixar um fio descascado, eu sei que é um filho meu que pode levar um choque. Mas a Coelce não vinha ligar, e a gente tinha que sobreviver, tinha que trabalhar, tinha que ligar a energia”, conta Círio Brasil. Antigamente, lema de circense era o “viva se puder”. Acesso a posto de saúde e hospital, por exemplo, quase não tinha. Doença no circo era tratada na base do chá, porque mesmo quando implementaram o Sistema Único de Saúde (SUS) e espalharam postos pelos confins do País, o circense não tinha um comprovante de residência para conseguir ser atendido. “A gente tomava era chá e xarope. Fui ver

“LEMBRO QUE HAVIA CUIDADO PORQUE O CIRCO É A NOSSA CASA. SE EU DEIXAR UM FIO DESCASCADO, EU SEI QUE É UM FILHO MEU QUE PODE LEVAR UM CHOQUE”

CÍRIO BRASIL CIRCENSE

um médico depois de velha, primeiro porque meu marido não aceitava e segundo porque eu não tinha condições de pagar. Mas a gente tinha tanta saúde naquela época, e as coisas eram tão difíceis que Deus abençoava”, conta Rita Oliveira. Ela, que fugiu para o circo por amor a Antônio Eridã, o palhaço Cola Cola, teve todos os filhos com a ajuda de parteira. Hoje, vive fora das lonas porque três AVCs impuseram casa fixa ao marido. Os postos de saúde ainda exigem comprovante de endereço, mas circense criado solto no mundo encontra meios pra dribrar a burocracia. Exibe documentos de terceiros ou contam com a simpatia do médico. “A gente é de circo, mas somos humanos. Pagamos pelos nossos direitos. Às vezes, até mais do que muitos, porque não tem retorno. A gente não pede saneamento, não pede todas as exigências que a cidade tem. A gente só pede o direito de viver e trabalhar”, argumenta Jocileudo de Souza Simões, o palhaço Limãozinho.




8 Diário do Nordeste FORTALEZA, CEARÁ - DOMINGO, 20 DE MARÇO DE 2016

MULHER QUE DEU

pra viver nos arredores da lona há de erguer, dentro de si, uma fortaleza. Disso, todas elas sabem, não importa se rebentaram ao mundo já dentro do circo ou se com ele decidiram fugir, movidas por amor ou por encanto. Quando o sol se move ao topo do céu e parece ameaçar queimar a empanada, é hora de cumprir as tarefas que, perto ou longe das lonas, lhes foram impostas, ainda que à revelia. E assim, todas as manhãs, elas lavam, cozinham, cuidam, limpam - mergulham em um trabalho mecânico que, na organização caótica de barracas e traillers, parece nem ter fim. Entre a obrigação de brigar pelo colégio dos meninos e de garantir o bem-estar da família, tiram alguns momentos pra ensaiar os números que devem, mais tarde, consagrá-las como artistas. O acesso delas ao picadeiro é amplo, mas mulher de circo tem que trazer dentro de si coragem pra enfrentar o público e manter a vista alta, mesmo quando os olhares tortos são muitos e tentam, a todo instante, ferir-lhes a dignidade. Não há como desarmar-se, se paira sobre elas um risco iminente de ter de engolir algum “puta” ou “vagabunda” quando tudo o que se tem é a necessidade de manter a tradição da família.

“ELES ACHAM NORMAL MULHER QUE TOMA DE CONTA DA CASA. GENTE COMO EU, QUE AJUDA NA MONTAGEM, É CHAMADA DE DOIDA. MAS FUI CRIADA NO MEIO DOS HOMENS”

FRANCISCA REGINA DE LIMA CIRCENSE

“EU JÁ SOFRI MUITO POR NÃO TER MARIDO PERTO DE MIM. O POVO PENSA QUE É MULHER DA VIDA. MAS EU TENHO A MINHA MORAL, GRAÇAS A DEUS. TODO MUNDO ME RESPEITA”

“PASSEI MUITA COISA DE BAIXAR A CABEÇA E IR PRA CASA PENSANDO: ‘MEU DEUS, COMO PODE?’ A GENTE SE CHOCA. NÃO É PORQUE A MULHER É ARTISTA DE CIRCO QUE PODE SER MENOR, DO POVO NÃO QUERER AMIZADE” “TÃO ACABANDO COM A REPUTAÇÃO DAS MULHERES CIRCENSES. SEI QUE A BRIGA É FEIA, MAS VOU LUTAR. A ÚNICA DIFERENÇA É QUE A NOSSA CASA NÃO É DE TIJOLO, MAS NOSSA DIGNIDADE É A MESMA”

CIDA VILAR

ANA LÚCIA BRASIL

ZENAIDE CARDOSO

“Passei muita coisa de baixar a cabeça e ir pra casa pensando: ‘Meu Deus, como pode?’ A gente se choca. Não é porque a mulher é artista de circo que pode ser menor, do povo não querer amizade. Isso dói, maltrata”, diz Zenaide Ferreira Cardoso. A história da família dela expõe dois caminhos distintos da mulher circense, cada um deles com desafios e dores próprias: o da mulher que foge com o circo e o de quem escolhe sair dele para retornar à sociedade. A família Cardoso, cujo patriarca era um importante juiz de Direito, deixou a cidade de

Macaé, no Rio de Janeiro, para passar as férias no Nordeste. A viagem seguia tranquila, não fosse a insistência da filha única, Zélia, para ir ao circo. Insistiu tanto que conseguiu acompanhar os espetáculos durante três dias, tempo suficiente para se apaixonar e receber o convite de fuga por um dos artistas. Como num conto de fadas, deixou a pensão onde estava hospedada pela janela, apoiada por uma corda, para viver seu amor. Renegada pela família conservadora, perdeu herança por abraçar a vergonha de ser mulher de circo “Ela nunca mais viu a família.”, conta a filha, Zenaide. Sob a lona, Zélia cri-

ou 16 filhos e, anos depois, viu parte deles fazer justamente a escolha inversa à sua. Quando completou 18 anos, Zenaide deixou o circo para casar com um médico. Voltou à sociedade quase sem perceber, eximindose dos palcos por amor ao marido. “Quando fiquei noiva, ele não queria que eu trabalhasse como antes. Quem é trapezista tem que ser na base do maiô, aí a gente levava piada, e ele não gostava”, conta. Pra se fazer respeitar dentro das lonas, é preciso ter marido ou coragem pra se impor. Não é raro ter de ouvir proposta indecente por causa do figurino ou ter o desempenho posto em dúvida por ocupar lugares que,

CIRCENSE

CIRCENSE

EX-CIRCENSE

sabe-se lá quem disse, não são delas. Ousar, no circo, é acumular funções e se embricar também no “trabalho dos homens”, espaço conquistado com a força das marretadas na montagem da empanada ou com boa estratégia para administrar o circo. “Eles acham normal é mulher que toma de conta da casa. Gente como eu, que ajuda na montagem, é chamada de doida. Fui criada no meio dos homens e me acostumei. Tô criando minhas filhas do mesmo jeito”, conta Francisca Regina de Lima, que nasceu no circo e segue a itinerar pelo Interior, no Circo-Cultural Limãozinho. Nos confins do Ceará, Cida Vilar também precisou mostrar sua força. Quando se divorciou, o marido levou metade do circo. Ciente de que a história da família é a da arte de picadeiro - e que fazer os filhos mudarem de profissão seria como violarlhes a identidade -, ela decidiu continuar com o Circo Fantástico. Precisou armar-se de paciência para mostrar sua capacidade de fechar a folha da semana. “Já sofri muito por não ter marido perto de mim. O povo pensa que é mulher da vida”, lamenta. No circo, a mulher que é mãe sonha com o dia em que não vai precisar se preocupar com o que dará de alimento aos filhos amanhã. E quando a vida dá filhas mulheres, como deu a Ana Lúcia Brasil, a fortaleza que vinha sendo construída internamente se transforma quase automaticamente em luta. No Circo Mirtes, ela tenta mudar o destino das quatro filhas, uma tentativa de evitar que elas precisem enfrentar os mesmos preconceitos que viveu. “Uma vez, no circo do meu cunhado, dois senhores vieram perguntar se tinha aguém pra fazer programa. Pensam que circo é bordel? Não. Eu vou voltar a estudar pra mostrar que as pessoas não podem generalizar as mulheres. Tão acabando com a reputação das mulheres circenses. Sei que a briga vai ser feia, mas vou lutar. A única diferença é que a nossa casa não é de tijolo, mas nossa dignidade é a mesma”, ela diz.


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