Genética das cores do pelo I

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D Genética

Genética das cores do pelo

Uma questão peluda II

Quando olhamos para o nosso cão, para o do nosso vizinho, para as fotos que vemos nesta revista ou na Internet, os cães parecem apresentar um verdadeiro arco-íris de cores. O que permite uma tal diversidade?

O

s canídeos selvagens aparentados com os cães – lobos, coiotes, chacais – têm uma pelagem “aborrecida” e relativamente monocromática, cor de terra mais ou menos intensa consoante o local do corpo As primas raposas apresentam maior diversidade; de acordo a espécie e o ambiente onde vivem podem ser vermelhas, castanhas, cinzentas, amarelas, mesmo brancas. Já os mabecos (ou cães selvagens africanos), primos distantes, têm uma fascinante pelagem às manchas irregulares pretas e amarelas. Mas em todos os casos, uma coisa permanece constante – apesar de poder haver variação na cor entre espécies, dentro de cada espécie a pelagem é bastante uniforme – importante, já que a principal função da cor é a de servir de camuflagem no ambiente. Mas os cães domésticos parecem apresentar uma paleta de cores infindável dentro da mesma espécie – de branco a preto, passando pelas numerosas gradações de amarelo, laranja, vermelho e castanho; alguns cães parecem mesmo azuis! A cor pode ser

sólida, com gradações, às manchas ou, literalmente, às bolinhas! E toda esta diversidade é ainda mais incrível quando se pensa que todas as cores são devidas a pequenas variações num único pigmento!

Qual a origem da cor?

A cor provém de um pigmento chamado melanina, que é produzido em células especiais, chamadas melanócitos, e transferido para o folículo do pelo. A melanina é um pequeno grânulo oval, medido entre 0,1 e 2 μm (milésimo de milímetro). Existem dois tipos de pigmento. A eumelanina corresponde ao pigmento preto ou castanho, enquanto a feomelanina corresponde ao pigmento amarelo ou vermelho. É importante referir que pode haver uma enorme variação na cor deste pigmento, podendo originar um cão tão claro como um West Highland White Terrier ou tão vermelho como um Setter Irlandês. Não existe nenhum pigmento para a cor branca, o branco corresponde à ausência de pigmentação nessa área.

Um melanócito não está “condenado” a produzir sempre a mesma cor. O pelo pode, efetivamente, apresentar sempre uma única cor, mas o melanócito pode também alternar entre a produção de feomelanina e de eumelanina, originando pelos claros com a ponta escura ou mesmo pelos com bandas alternadas de cor – é o chamado pelo agouti. Outros fatores que podem influenciar a cor nos cães são, por exemplo, diferenças na deposição do pigmento no pelo – áreas onde ocorre maior deposição de melanina irão apresentar uma tonalidade mais intensa.

Um pouco de história

O interesse pelas bases genéticas da cor nos cães, pela forma como se transmite, vem de há já muito tempo. Em 1957, Clarence C. Little publica um livro que se tornou num clássico no estudo da genética

Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal Fotos: Shutterstock

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das cores nos cães “The inheritance of coat colors in dogs” (A hereditariedade das cores do pelo nos cães). Ao longo das décadas seguintes, vários outros autores abordaram e procuraram desenvolver este tema, mas sempre com base nos trabalhos de Little. Naturalmente, todos estes trabalhos foram feitos com base em estudos de ninhadas e análise de pedigrees, procurando deduzir-se quantos genes e alelos estariam envolvidos e de que forma se relacionavam e transmitiam. Mais recentemente, com o avanço das técnicas de biologia molecular e genética, tem sido possível tentar detetar os próprios genes e mecanismos envolvidos. Esta pesquisa tem tido um grande impulso nos últimos 15 anos, com numerosos estudos publicados, confirmando (ou não!) os genes previstos teoricamente, e descobrindo outros.

O Rottweiler é preto afogueado (a ). t

Gene B – Brown, castanho

O Cão Lobo Checoslovaco é lobeiro (aw-).

Estrutura destes artigos

Estes artigos sobre a genética das cores nos cães baseiam-se nas descobertas feitas por estas equipas de investigação em genética e nos genes e alelos que confirmaram, infirmaram e/ou descobriram. Podem assim diferir um pouco da bibliografia mais antiga, ou de livros que, apesar de recentes, se baseiam nesses trabalhos históricos sem terem em conta o grande avanço atual do conhecimento. Porém, por uma questão de simplicidade, os nomes dos genes e dos alelos (sempre que possível), serão os utilizados habitualmente, em vez das designações técnicas publicadas nos estudos científicos mais recentes. O artigo deste mês irá abordar os genes responsáveis pelas cores e padrões básicos da pelagem dos cães. No próximo mês iremos falar dos genes envolvidos nas diluições de cores, e depois serão focados os genes que afetam a distribuição e extensão das áreas brancas nos cães. É muito importante ter sempre em mente que cada gene não atua de forma isolada. Os genes – e os alelos de cada gene – vão interagir entre si para originar a enorme diversidade de cores que os cães domésticos apresentam.

Genes que afetam as cores e padrões básicos

Apesar da aparente enorme diversidade de cores dos cães, apenas quatro genes regulam as principais cores e padrões apresentados: D Gene A – Agouti D Gene B – Brown (castanho); D Gene E – Extensão; D Gene K – Black (preto).

Gene A – Agouti

Este gene é responsável pelos padrões básicos de cor que os cães apresentam. Foi já identificado e caracterizado geneticamente, correspondendo ao gene denominado Agouti Signaling Protein (ASIP). Historicamente, pensava-se que tinha 6 alelos. O alelo dominante A originaria uma pelagem totalmente preta (ou, mas corretamente, eumelânica). Em seguida, viria o alelo aw (wolf), relativo à pelagem lobeira, ou agouti (mistura de pelos pretos e amarelos, com um padrão específico), recessivo a A mas dominante em relação aos restantes alelos. 36 Cães&Companhia

Verificou-se também que o padrão em sela e o afogueado não são distinguíveis sob um ponto de vista genético. Quanto ao alelo mais recessivo, o preto recessivo, ainda só foi detetado em cães Pastores e Spitzs. As restantes raças com preto apresentam a versão dominante (gene K). Constata-se assim que no gene A, à medida que aumenta a recessividade dos alelos, aumenta a proporção de pelo eumelânico (escuro) no animal, uma situação mais “lógica” que o que se tinha previamente pensado, e que deve fazer bastante mais sentido sob um ponto de vista da bioquímica da pigmentação que andar a “saltitar” entre pelagens mais ou menos escuras e claras.

A raça Terra Nova é preto dominante (A-).

Com a descoberta do gene responsável por esta distribuição de cores e padrões, constatou-se que muito do que se pensava empiricamente sobre os seus alelos estava incorreto.

O Cão de Pastor Alemão é saddle (as-).

O alelo ay (yellow), codificando para o fulvo (também chamado amarelo dominante ou sable) seria recessivo relativamente a A e ay, mas dominante relativamente aos restantes. O fulvo consiste em pelos amarelos com ponta preta ou às bandas, ou numa mistura de uma maioria de pelos amarelos com pelos pretos mais ou menos espalhados. Neste alelo, a denominação de amarelo dominante é incorreta, pois a pelagem não é unicamente amarela, como veremos mais à frente com o verdadeiro amarelo, no gene E. Segundo o mesmo princípio de ordem de dominância e de recessividade, haveria em seguida o alelo as (saddle), ou padrão em sela, que corresponde à cor clássica do Pastor Alemão e de numerosos sabujos, um manto negro sobre um corpo afogueado. No entanto, alguns autores contestavam se este alelo existiria realmente ou se esta cor seria apenas uma variação do afogueado, o alelo seguinte na escala de dominância. O at (tan) codifica para o afogueado, um padrão muito característico em que a cor de base do animal é eumelânica (preta ou castanha), mas com manchas afogueadas (feomelânicas) nas bochechas, sobre os olhos, peito, membros e em redor do ânus. Finalmente, o alelo totalmente recessivo, a, corresponde ao preto recessivo, uma pelagem uniformemente eumelânica herdada de forma totalmente recessiva.

quadro 1: gene a A teoria:

Com a caraterização genética:

Este gene, que já foi identificado como correspondendo ao gene Tyrosinase related protein (TYRP1), apenas afeta a eumelanina, deixando a feomelanina intata. A teoria previa um gene com apenas 2 alelos, em que o alelo dominante B levaria a que a eumelanina produzida fosse preta e o alelo recessivo b levaria ao pigmento castanho. (Nos cães castanhos bb, o nariz, pálpebras, lábios e almofadas plantares serão castanhas, enquanto que nos cães B- (com pelo menos um alelo dominante), serão pretos.) Atenção, isto não quer dizer que o animal irá apresentar uma cor uniforme preta ou castanha! Significa simplesmente que, nos casos em que o pelo (ou a banda do pelo) seria preto, sob a influência da homozigotia recessiva bb, será castanho. Ou seja, se reler a secção sobre o gene A (ou sobre outros genes), sempre que estiver referido pelo preto, sabe que se está a falar de um cão geneticamente B-; se o cão for bb, basta substituir todas as referências a preto por castanho. Atualmente sabe-se que este gene tem na realidade 3 alelos recessivos, bs, bd e bc. Porém, ao contrário do que acontece por exemplo nos ratos, no caso dos cães, os 3 alelos têm o mesmo efeito fenotípico (não são distinguíveis

por observação); as variações observadas na tonalidade do castanho entre cães não estão associada a nenhum dos alelos ou suas combinações. Assim, para efeitos práticos, podemos continuar a considerar que a teoria corresponde à realidade.

quadro 2: gene B

Gene E – Extensão

Tal como ocorre com o gene A, este gene influencia tanto a distribuição da eumelanina como da feomelanina. Foi já identificado como correspondendo ao gene Melanocortin Receptor 1 (MC1R). O Retriever do Labrador preto é Be o chocolate é bb.

Um Cão de Pastor Alemão preto é preto recessivo (aa).

Ou seja:

Conclusões do Quadro 1

O Cão de Pastor Belga Tervueren é fulvo (ay-).

Assim, verificou-se que o alelo correspondente ao preto dominante não pertence a este gene, mas sim a um novo gene não previamente identificado de forma teórica, denominado K. Confirmou-se que o alelo seguinte na ordem de dominância não era o lobeiro, mas sim o fulvo. Ou seja, dois animais fulvos podem potencialmente produzir lobeiros, mas dois lobeiros (reais!) não conseguem produzir um fulvo.

Dobermann castanho afogueado (atat bb) com um Pinscher Miniatura preto afogueado (atat B). Cães&Companhia 37


Classicamente, pensava-se que os alelos dominantes E permitiriam a expressão normal da pigmentação do cão (codificada pelos restantes genes), sendo que o alelo mais dominante Em (mask) adicionaria uma máscara escura (preta ou castanha consoante a constituição no gene B) na face do indivíduo, enquanto que o alelo E não adicionaria nada. Quanto aos alelos recessivos, o alelo ebr permitiria a expressão do gene A, mas adicionando raias ao corpo (o clássico padrão raiado ou tigrado, visível em todo o corpo se o animal for fulvo ou lobeiro, apenas nas zonas feomelânicas se o animal for afogueado ou mesmo não visível se o animal for uniformemente preto, uma vez que as raias são também pretas). No entanto, o alelo mais recessivo e revela-se completamente epistático sobre o gene A, pois impede que a eumelanina se manifeste. Ou seja, independentemente da constituição genética do animal, se ele tiver duas cópias ee, o animal irá apresentar uma pelagem amarela. A cor pode variar do quase branco do Pastor Branco Suíço ao vermelho profundo do Setter Irlandês, mas sem pelos ou bigodes pretos ou castanhos. Nesta situação, o genótipo do animal no que diz respeito ao gene B apenas pode ser deduzido pela análise da cor do nariz, pálpebras, lábios e almofadas plantares. Mas à medida que este gene foi descoberto e caracterizado, algumas surpresas ocorreram relativamente ao que tinha sido pensado.

O Pug é um caso de super-extensão com máscara escura (Em-).

quadro 3: gene e A teoria:

Com a caraterização genética:

Ou seja:

Conclusões do Quadro 3 Por um lado, sabe-se agora que o alelo codificando para o raiado não está neste gene, mas sim no recém-descoberto K.

Por outro lado, e talvez um pouco inesperadamente, descobriu-se que é aqui que está a base genética para um padrão bastante peculiar apresentado pelo Saluki e Galgo Afegão – o grizzle ou dominó. Os cães desta cor apresentam como que uma espécie de “diluição” da cor da pelagem, e uma espécie de afogueados muito mais claros e extensos, mais abertos, sendo que as zonas escuras também e tornam muito mais claras. Foi recentemente (2010) publicado um estudo que identifica este novo alelo, EG, que, nestas duas raças, e em conjunção com atat, “transforma” um animal afogueado em grizzle/dominó. Apesar de em algumas outras raças ser por vezes encontrado um padrão semelhante, até ao momento este alelo apenas foi detetado no Saluki e Galgo Afegão.

Gene K – Black

Como já referido, este gene não estava previsto nos estudos clássicos, apesar de a sua existência já ser suspeitada há algum tempo. Aliás, mesmo Little já tinha reconhecido que a hereditariedade da pelagem preta nos cães era mediada de forma diferente do que ocorria noutras espécies (os ratos, animais altamente estudados, são frequentemente o ponto de partida para estudos noutras espécies), mas sem chegar ao ponto de reconhecer a ocorrência de um gene distinto. Mas com o decorrer dos estudos genéticos, confirmou-se que certos alelos suspeitados noutros genes correspondiam efetivamente a um gene distinto. Inesperadamente, este gene corresponde a uma β-defensina, uma proteína que tinha sido previamente estudada pelo seu papel na imunidade. Em concreto, este gene corresponde ao CBD103 (mas, tanto quanto se sabe, os alelos deste gene não estão relacionados com a imunidade). Neste gene, a ordem de dominância-recessividade corresponde à permissão da expressão gradualmente aumentada dos padrões de eumelanina e feomelanina codificados nos restantes genes.

Um Flat Coated Retriever preto é preto dominante (KB-).

Na figura não está incluído o alelo EG, pois até ao momento apenas foi identificado na raça Saluki e Galgo Afegão, atuando em conjunção com o alelo at para criar a pelagem grizzle ou dominó.

O Bullmastiff pode ser Raiado (Kbr-).

Assim, o alelo mais dominante Kb (black) impede a expressão dos alelos dos genes A e E, e o animal terá uma pelagem uniformemente preta (ou castanha, consoante a constituição em B). No entanto, se o animal for ee (que impede a expressão da eumelanina), este genótipo é epistático sobre K, pelo que o animal será amarelo independentemente da sua constituição neste gene! Em seguida, temos o alelo Kbr (brindle), que permite a expressão dos restantes genes, mas adiciona raias à pelagem – é o típico padrão raiado. Finalmente, o alelo recessivo ky permite a expressão normal dos outros genes, sem os afetar.

Apenas a raça Saluki e Galgo Afegão podem ser Grizzle ou Dominó (EG-).

O Golden Retriever é um caso de Restrição (ee), independentemente da sua composição nos genes A ou K será sempre amarelo.

QUADRO 4: gene k

Este Dogue Alemão tigrado é Raiado ou Extensão parcial e tem máscara escura. 38 Cães&Companhia

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Em resumo

Apesar de existirem numerosos genes a afetar a cor, intensidade e padrão da pelagem dos cães, na sua

forma mais simples a cor de base pode ser reduzida a 4 genes: D O gene A afeta o padrão de distribuição de eumelanina e feomelanina no corpo do cão; D O gene B determina se a eumelanina produzida será preta ou castanha; D O gene E determina se o animal pode expressar a sua cor e padrões normalmente, se terá uma máscara eumelâmica adicionada ou se, pelo contrário, apenas poderá expressar feomelanina; D O gene K determina se à cor e padrão de base será ou não adicionada uma “camada” integral ou parcial (raiada) de eumelanina. Há que não esquecer que, nos casos em que há alteração nos padrões de eumelanina (por exemplo, adição de máscara ou raiado), esta apenas será visível nas partes feomelânicas (fulvas, lobeiras ou afogueadas) do animal; naturalmente, nas zonas pretas não é possível distinguir uma alteração do

A pelagem do Cão de Pastor Belga Malinois é expressão de feomelanina e eumelanina (kyky).

padrão de deposição de preto, mesmo se geneticamente está codificado. Estes quatro genes interagem entre si para a enorme diversidade de cores e padrões que os cães apresentam. A figura acima apresenta um resumo das principais interações. No próximo número iremos abordar as diluições que podem ocorrer na intensidade do pigmento, e como afetam a pelagem dos cães.D

terminologia Os termos genéticos usados neste artigo foram explicados em detalhe no artigo “Uma introdução à genética” na revista “Cães & Companhia” nº 166 (março de 2011). No entanto relembramos-lhe resumidamente o seu significado. D Alelo: Cada uma das variantes do gene, codificando para o mesmo tipo de informação, mas com uma ligeira diferença relativamente aos restantes alelos do mesmo gene. D Dominante: O efeito de um alelo “camufla” o efeito do outro quando o indivíduo é heterozigótico (ou seja, quer o indivíduo seja QQ ou Qq vai apresentar o mesmo fenótipo, daí frequentemente se representar o genótipo desse indivíduo como Q-). D Fenótipo: Característica observável no indivíduo. Resulta da interação do genótipo com o ambiente. D Gene: Unidade básica da hereditariedade, codifica informação que irá ser expressa no organismo. D Genótipo: Composição genética do indivíduo para a(s) característica(s) de interesse. D Heterozigótico: Os dois alelos do indivíduo são diferentes. D Homozigótico: Os dois alelos do indivíduo são iguais. D Recessivo: o efeito do alelo só se expressa se ocorrer em homozigotia (ou seja, apenas se o indivíduo for qq). Cães&Companhia 39


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