Quanto custa o amor de um cão?

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Cidadania

Carla Cruz

Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal (www.aradik.net) Fotos: Shutterstock

Quanto custa o amor de um cão? Quantas vezes se ouve dizer “o amor não se compra” ou “eu gasto o que for preciso com o meu animal, mas não dou dinheiro por um cão”? Será que esta forma de pensar é justa para com todos os envolvidos? Vejamos...

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usta a crer que a esmagadora maioria dos cães no mundo inteiro vivem à margem da sociedade humana. Cerca de 80% dos cães vive relativamente perto de povoações, mas sem contacto estreito com pessoas, sem uma família ou um humano a quem possam chamar seus. Parece uma realidade dura quando se pensa que na nossa sociedade os cães vivem maioritariamente em estreita proximidade com as pessoas. Seja como companheiros de trabalho, como auxiliares e assistentes em diversas tarefas, como companheiros da família ou como “filhos substitutos”, é difícil pensarmos em alguma situação em que os cães não estejam presentes a partilhar a nossa vida, as nossas alegrias e as tristezas. Muitos cães hoje são parte integrante dos nossos círculos familiares e de amigos, e para muitos seria inconcebível pensar na sua família próxima sem um ou mais animais de companhia. Para cada momento de tristeza ou mesmo de zanga que nos causam, há incontáveis momentos de prazer e de felicidade que nos proporcionam. Sem dúvida que cada um destes bons momentos apaga as más ocasiões. Como se pode, então, pensar sequer em por um preço nisso? Como se pode pensar em comprar um membro da nossa família? O amor que temos para dar e para receber é imaterial, não é possível por um preço nisso, para alguns é mesmo chocante ponderar semelhante coisa! Mas… será mesmo?

Porque queremos um cão?

Vamos começar pelo princípio… Por que razão decidimos ter um cão? 26 Cães&Companhia

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Os criadeiros despacham os cachorros assim que estão desmamados, sem vacinas, nem desparasitações e mal comendo, para que tudo o que entra seja lucro. Em alguns casos, não temos grande voz na matéria, deparamo-nos com um cão abandonado e não temos coragem de lhe virar as costas. Mas, na maioria das vezes, queremos um cão por alguma razão – seja para nos ajudar em algum trabalho (como a caça ou o pastoreio), seja porque pretendemos fazer algum tipo de competição desportiva (Obediência, Agility, Mondioring, Exposições Caninas, etc.), seja, na maioria dos casos, porque queremos um companheiro com quem partilhar a vida, alguém que fica feliz por nos ver quando chegamos a casa (porque como bem sabemos, os filhos nem sempre ficam) e que vá passear connosco passear quando queremos relaxar ou fazer um pouco de jogging. Consoante a função que queremos que o nosso cão desempenhe, temos sempre algumas expectativas quanto às suas características – que tenha um aspeto que nos agrade, que se saiba portar bem, que fique feliz em estar perto de nós e que seja saudável. Mesmo que não nos apercebamos, as nossas decisões em optar por um cão em vez de outro acabam por ser baseadas fundamentalmente nestes traços. Cães&Companhia 27

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Onde ir buscar um cão?

Aqui começam as dúvidas e questões. Depois de ponderarmos a razão porque queremos um cão, onde ir buscar o nosso patudo? Vamos a um criador? Mas não são todos meros seres desprezíveis que vivem de explorar as pobres cadelas a fazê-las parir constantemente para ganharem dinheiro com os cachorros? Ou vamos a um refúgio? Resgatar uma das pobres almas que lá estão, sem culpa nenhuma, que apenas tiveram o azar de se perder ou de ser abandonadas por seres abjetos? Iremos mesmo dar dinheiro a ganhar a um explorador de cães quando podemos ter um excelente companheiro sem custos nenhuns? Afinal, estamos à procura de um amigo, e a amizade não tem preço, o amor não se paga!

Depende do que queremos

Queremos um companheiro para a nossa família, não nos importamos particularmente com o aspeto ou com o comportamento do cão? Sem sombra de dúvida, vamos a um refúgio. Se não temos requisitos particulares, porque não dar uma casa a um dos inúmeros cães que a procuram ou perderam? Mas atenção, não saber o historial dos animais pode levar a algumas surpresas e problemas comportamentais e/ou de saúde inesperados, sobretudo depois de passar a fase de adaptação ao novo lar. Ou, pelo contrário, estamos à procura de um determinado tipo específico de cão, porque gostamos de determinados traços físicos ou comportamentais, porque queremos previsibilidade naquilo que um cachorro se irá tornar, ou porque queremos um cão para uma determinada

A previsibilidade numa raça não nasce fruto do acaso, deriva de muitos anos de uma seleção continuada para um determinado tipo de cão e isso tem custos.

função? Ou seja, estamos à procura de um cão de raça? Já se começam a ver em Portugal alguns grupos de rescue dedicados à recolha e adoção de cães de determinadas raças que se viram no infortúnio de perder a sua casa ou de terem estado nas famílias erradas, mas a forma mais comum de se adquirir a um destes animais é dirigindo-se a um criador.

Há custos e custos

Sem qualquer sombra de dúvida, não é possível por um preço no amor. Não é possível quantificar o abanar de uma cauda e uns olhos adoradores que nos olham no mais fundo da nossa alma. Mas é sim possível por um preço na comida que os cães comeram até encontrarem uma casa. É possível determinar quanto é que gastaram no veterinário, em vacinas, desparasitações e quaisquer outros tratamentos que tenham precisado. Pense no seu próprio cão. Quanto gasta por mês com ele em alimentação? Quanto gasta com as vacinas? Com as desparasitações? Com brinquedos e outro material? Um outro cão, noutra família, num criador ou num refúgio, tem gas-

tos equivalentes. Adicionalmente, há sempre o risco de haver contas no veterinário extra com alguma doença ou acidente; quando há vários animais juntos há sempre o risco de haver imprevistos.

Custos de alimentar uma ninhada

Com uma ninhada, os gastos com a cadela e os cachorros são significativamente superiores. A gestação e a amamentação são períodos de grande desgaste energético para a mãe – durante o aleitamento, as necessidades energéticas da fêmea chegam mesmo a triplicar ou mais. Os cachorros estão também numa fase de crescimento acelerado e de construção do seu esqueleto, têm necessidades energéticas muito elevadas e específicas, sobretudo depois do desmame. A mãe e os cachorros requerem uma alimentação de elevada qualidade, adequada às suas necessidades específicas e, logo, bastante mais cara que a de um cão em repouso. Por razões relacionadas com o desenvolvimento comportamental, os cachorros precisam de ficar com a mãe e outros cães que haja em casa pelo menos até às 8 semanas, de forma a aprende-

Já existem em Portugal grupos de rescue dedicados à recolha e adoção de cães de uma determinada raça que aparecem perdidos, abandonados ou foram entregues

Um criador digno desse nome dá à mãe e aos bebés o melhor que pode, para assegurar o melhor início de vida dos cachorros e apoia os donos durante toda a vida do cão

É cada vez mais frequente os refúgios cobrarem uma “taxa de adoção” quando entregam um cão, para ajudar com os custos desse e de outros animais que têm a seu cargo.

rem as regras de comunicação e interação caninas, isto é fundamental para o seu bom comportamento futuro. E nessa fases, os bebés comem que nem piranhas! Tudo isto corresponde a despesas elevadas com a alimentação da ninhada durante os 2/3 meses que estão com o criador. Passe por uma loja de animais e veja o preço de uma ração premium para cachorros. Agora multiplique isso pelas 4 ou 5 sacas de 20 kg (e bem mais, consoante o porte dos cães) que se gastam durante a criação de uma ninhada.

o seu mundo com a boca e facilmente se contaminam e recontaminam com parasitas. Os custos das desparasitações quinzenais também acumulam a um bom valor. Adicionalmente, os cachorros devem levar pelo menos duas doses de vacinas, nas idades adequadas, antes de saírem para as suas novas casas. As vacinas não podem começar a ser dadas antes das 6/8 semanas (consoante o tipo de vacina). Se tem ideia do que custa vacinar o seu cão, imagine quanto custará numa ninhada.

Custos veterinários de uma ninhada

Já para não esquecer que durante o crescimento os cachorros requerem uma série de brinquedos e material para socialização e estimulação física

A mãe e os cachorros precisam de ser desparasitados frequentemente, pois estes exploram

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Mais custos de manutenção da ninhada

e mental, para o seu correto desenvolvimento, mais custos a adicionar ao resto. E, frequentemente, nem é possível reaproveitar os brinquedos de uma ninhada para outra, não resistem ao espírito explorador e dentes tenazes dos bebés. Nenhum criador digno desse nome entregará um cachorro seu antes de ele ter pelo menos cerca de 8 semanas, porque sabe que esse período é fundamental a nível de comportamento e porque o sistema imunitário do cão não está suficientemente maduro para receber vacinas antes dessa idade. Nenhum criador sério quer correr o risco de entregar um bebé imaturo para o ver morrer pouco tempo depois, por ter mudado para um ambiente para o qual não tinha proteções. Mas esse período tem custos significativos, como acabámos de ver.

Mesma raça, custos diferentes?

Então, como é possível que dentro de uma mesma raça, se encontre cães com preços de aquisição totalmente díspares, variando facilmente numa ordem de grandeza de 10 ou mais vezes? Bem, porque há o trigo e há o joio. Ou seja, há criadores e criadores, há criadeiros e Criadores. Há quem faça ninhadas por fazer, para tirar

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dinheiro com a venda de cachorros. Não se preocupam com as condições em que as mães estão, em fornecer alimento de qualidade adequada (o barato é bom, certo?) ou os cuidados de saúde necessários, fazem ninhadas frequentes e despacham os cachorros assim que estão desmamados – é a partir daqui que eles começam a dar despesa, se se forem embora cedo, sem vacinas nem desparasitações, e mal comendo, tudo o que entrar é lucro. E se houver problemas depois, já não é nada a ver com o “criador”, o dono que se desenrasque. E muitas vezes os cães acabam por apenas ter uma semelhança superficial com a raça que são suposto ter. Há também quem faça ninhadas por paixão, selecionando criteriosamente os reprodutores (que apenas reproduzem ocasionalmente), assegurando-se que têm qualidade morfológica, comportamental e funcional adequada para a raça, que estão bem de saúde, fazendo os testes de saúde adequados para a raça (dependendo dos testes, cada um pode facilmente ultrapassar os 200€, frequentemente é aconselhável fazer diferentes tipos de testes e alguns devem ser repetidos anualmente), para minimizar o risco de criar cachorros com alguma doença genética. São aqueles que dão à mãe e aos bebés o melhor que podem, para assegurar o melhor início de vida aos cachorros, e que dão apoio aos donos mesmo depois de terem entregado os canitos, porque se preocupam com o bem-estar dos cães que criam. E há depois uma miríade de tipos intermédios de criadores entre estes dois extremos, prestando diferentes níveis de cuidados aos animais, com diferenças nos gastos que têm, logo nos preços que praticam.

Cães gratuitos nos refúgios?

“Pois, isto é tudo muito bonito, mas então porque é que eu vou a um refúgio e trago um cão de borla?” Pense bem… os cães no refúgio não comem todos os dias como os outros? Não pre-

Um cão num refúgio não é gratuito, simplesmente houve alguém que tratou dessa responsabilidade por si cisam de ser vacinados e desparasitados como os outros? Isso tem custos, certo? Como é possível que um cão lá seja gratuito? Porque acha que os refúgios e associações de proteção animal estão constantemente a fazer campanhas e apelos a donativos? Quantos não sobrevivem do dinheiro pessoal dos voluntários que os dirigem e apoiam? Com a agravante que, como o dinheiro é limitado, frequentemente a alimentação fornecida não é (não se consegue) ser da melhor qualidade e é frequentemente alterada, o que acaba por ter impactos a prazo na saúde e bem-estar dos animais Um cão num refúgio não é gratuito, simplesmente houve alguém que tratou dessa responsabilidade por si. Aliás, cada vez mais por esse mundo fora os refúgios estão a cobrar uma “taxa de adoção” quando entregam os cães, para ajudar com os custos desse e outros animais que têm a seu cargo.

Criar tem custos!

“Então, mas o criador tem os cães porque quer, porque é que tenho de pagar por isso?” Não quer saber o que pode esperar do seu cachorro, a nível físico e de caráter? Não é essa a razão porque se opta por um criador em vez de um refúgio? Essa previsibilidade não nasce fruto do acaso, deriva de muitos anos, décadas, séculos de uma seleção continuada para um determinado tipo de cão. E tudo isso tem custos. Realmente, não tem que pagar por ter um cão, mas não tem porque esperar colher frutos do trabalho de outros a custo zero.

Não vai a um concessionário automóvel exigir um carro gratuito, porque hoje em dia é um acessório indispensável, pois não? Não vai ao médico exigir uma consulta gratuita por achar que tem direito a ter acesso ao conhecimento duramente adquirido do médico e que ele deve tratá-lo por amor à camisola, certo? Porque acha que deve exigir que um cachorro, com todos os custos inerentes a uma criação, lhe seja entregue gratuitamente? Há realmente quem assuma os custos de criação de uma ninhada – frequentemente pessoas bem-intencionadas, mas sem noção do que realmente implica criar bem cachorros – mas que direito lhe assiste de se chegar a um estranho e exigir-lhe gratuitamente algo que custou tanto dinheiro, trabalho e horas de sono e de tempo de família a obter?

Não fuja às suas responsabilidades!

Faça a sua parte e, percebendo agora o que custa criar adequadamente um cão, não duvide em fazer o seu contributo para que o tipo racial e comportamental da sua preferência perdure, assuma o custo do seu cachorro. Tem dúvidas na razão do preço? Pergunte, tão simples quanto isso! O criador irá fornecer-lhe as explicações necessárias para se sentir tranquilizado. E se for buscar o seu cão a um refúgio, lembre-se de deixar um donativo generoso. A associação teve custos com o seu companheiro, e provavelmente tem muitos mais na mesma situação ou em pior estado, que precisam do contributo de todos para conseguirem arranjar boas casas. n

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