Telegonia

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D Genética

Mitos & realidades na criação (II)

Telegonia Continuando a desmistificar algumas ideias enraizadas no âmbito da criação de animais, vamos este mês abordar o conceito de telegonia.

Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal • Fotos: Shutterstock

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telegonia é o conceito de que os filhos podem herdar as características de um parceiro sexual que a mãe tenha tido anteriormente, independente do actual. Esta teoria foi bastante comum até aos finais do século XIX. É ainda prevalente em alguns círculos de criação de animais, nomeadamente cães, onde a ideia é associada à pureza das raças, assumindo uma variante na qual se diz que se uma cadela de raça pura tiver acasalado com um cão sem raça definida, nunca mais terá cachorros puros.

Um pouco de história

O conceito da telegonia vem-nos desde os tempos de Aristóteles (séc. IV a.C.), tendo sido amplamente aceite na Antiguidade. Era por exemplo uma ideia comum na Grécia para a génese dos seus heróis, que teriam dupla paternidade - a do seu pai terrestre e simultaneamente a do deus com quem a mãe tinha tido relações previamente. Foi recuperada na Idade Média, quando os trabalhos de Aristóteles foram redescobertos, e inclusive usada para resistir ao casamento de membros da realeza com mulheres que tivessem sido previamente casadas, por receio que a descendência não fosse exclusivamente da linhagem pretendida. No século XIX, e dando mais ênfase à criação animal, houve um caso em Inglaterra que foi particularmente difundido como um exemplo claro da telegonia, tendo inclusive sido relatado à Royal Society e mencionado por Charles Darwin nos seus famosos “A origem das espécies” e “A variação dos animais e plantas sob domesticação”. Em 1815, Lord Morton cruzou uma égua, 7/8 Árabe, que nunca tinha sido antes acasalada, com um macho quaga (uma subespécie de zebra actualmente extinta, com riscas nítidas apenas na parte da frente do corpo). Ao ser subsequentemente acasalada com um garanhão Árabe puro, a descendência produzida “estranhamente” apresentava riscas nos membros, como o quaga.

Aguarela de Nicolas Marechal (1753-1802), pintada em Paris em 1793, que ilustra o quaga de Louis XVI.

A favor ou contra?

No entanto, mesmo durante o período em que a telegonia era uma ideia bem estabelecida, havia quem dela discordasse e o tentasse provar. Por exemplo, mesmo na canicultura, onde o conceito era popular, nos finais do séc. XIX foram feitas experiências de cruzamentos (equivalentes às da égua com o quagga) para negar a ocorrência de telegonia. Por exemplo, acasalou-se uma fêmea Deerhound com um macho Dálmata (à época consideradas duas das raças mais puras), tendo sido produzidos 7 cachorros. Posteriormente, a Deerhound foi acasalada com um 36 Cães&Companhia

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macho da sua raça. Deste cruzamento resultaram 5 cachorros, que ao longo do seu desenvolvimento não evidenciaram quaisquer sinais de alguma influência do Dálmata com o qual a sua mãe tinha sido acasalada previamente. Portanto, com evidência a favor e contra a influência de parceiros anteriores na descendência, o que pensar? Se esta questão poderia ser difícil de responder há 100 anos atrás, desde a descoberta dos mecanismos da hereditariedade e da forma concreta como se processa a reprodução sexuada que a resposta só pode ser uma.

Base genética da reprodução sexuada

Como temos visto ao longo dos últimos meses, na maioria dos animais a constituição genética de cada indivíduo resulta da mistura dos genes do seu pai e da sua mãe. Durante a produção das células sexuais, o número de cromossomas (que contêm o ADN, a informação genética) de cada célula é reduzido a metade, através da meiose. Assim, quando há a união da célula sexual masculina e feminina, o novo indivíduo que se irá gerar volta a apresentar o número de cromossomas típico da sua espécie. Problemas que ocorram durante a meiose, que levem a que as células sexuais não contenham exactamente metade do número de cromossomas original, originam normalmente problemas, levando a que o indivíduo resultante não seja viável ou a que apresente problemas sérios – um exemplo ocorre com o Síndroma de Down (anteriormente designado como mongolismo, devido às características faciais que as pessoas afectadas apresentam, evocando superficialmente traços asiáticos), também denominado por Trissomia 21, no qual o indivíduo afectado possui três cromossomas 21, em vez de apenas ter um par como é normal na nossa espécie; esta situação leva a que o indivíduo apresente problemas mais ou menos sérios de desenvolvimento físico e mental. Assim, devido à ocorrência de reprodução sexuada e à forma de produção das células sexuais, não é possível Cães&Companhia 37

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Uma vez que em cada cio a fêmea liberta vários óvulos, diferentes óvulos poderão ser fertilizados por espermatozóides de diferentes machos. Cada cachorro terá um único pai, mas o seu pai poderá ser diferente do dos seus irmãos

que um indivíduo possua os cromossomas, logo os genes de mais que os seus dois progenitores, pai e mãe.

Base fisiológica da reprodução sexuada

Os apoiantes da telegonia agora poderiam dizer: Ok, certo, um indivíduo só pode ter ADN de um pai e de uma mãe, mas isso não invalida que o pai possa ser um parceiro que a fêmea tenha tido anteriormente. Mas… será? Nos mamíferos, quando a fêmea nasce, já tem todos os oócitos (que irão dar origem aos óvulos), ou seja já tem todas as células reprodutoras, que poderá utilizar durante a sua vida reprodutiva. Quando são libertados dos ovários, os oócitos passam por um período de maturação de alguns dias, ao longo do seu percurso pelas trompas de Falópio e pelos cornos uterinos; só após este período podem ser fecundados. Em contrapartida, nos machos a produção de células sexuais é constante ao longo do tempo. Nos cães, a espermatogénese dura em média dois meses até os espermatozóides estarem preparados para a cópula. Durante o seu percurso no tracto genital feminino, sofrem ainda mais duas fases de maturação antes de serem capazes de fertilizar o óvulo. O período de sobrevivência dos espermatozóides no útero é de cerca de uma semana, apesar de a sua capacidade para fertilizar ir diminuindo ao longo do tempo. Isto tem duas implicações. Uma é que se a cópula ocorrer uns dias antes do período óptimo de fertilidade da cadela, esta pode ficar à mesma gestante (apesar 38 Cães&Companhia

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Se se lembram do explicado no artigo de introdução à genética (publicado na revista “Cães & Companhia” nº 169, Junho de 2011), um indivíduo tem duas cópias (alelos) de cada gene, uma herdada da mãe e a outra do pai. Esses alelos irão interagir entre si de diferentes formas, entre as quais a dominância e a recessividade. Um alelo diz-se dominante sobre o outro quando o seu efeito “camufla” o efeito do outro alelo, ou seja, quer o indivíduo possua duas ou apenas uma cópia desse alelo, o seu efeito irá ser manifestado; diz-se recessivo se o seu efeito só se manifestar quando o indivíduo possui duas cópias idênticas. Será assim simples explicar o que se passou com a égua. A sua primeira cobrição foi com o quaga, pelo que não se sabia previamente qual o seu património genético, o que esperar que produzisse. No caso de a égua ser portadora de alelo(s) recessivo(s) no(s) gene(s) que codifica(m) para as riscas nas patas, mas possuindo dominante(s) para impedir a sua expressão nela própria, ela não apresentaria as riscas nas suas patas, mas teria o potencial genético para as transmitir. Bastaria que o garanhão que com ela foi cruzado ser também portador desse(s) alelo(s) para que a sua descendência apresentar riscas nas patas mesmo que os seus progenitores não as exibam, sem ser necessário recorrer a teorias relativas à influência de um progenitor de uma criação anterior. Aparentemente, é relativamente comum que cavalos Árabes apresentem riscas nas patas, pelo que esta é natural que haja numerosos indivíduos portadores de alelos transmitindo essa informação, ainda que eles próprios não a exibam.

“Uma justificação para o racismo?”

A telegonia influenciou o discurso racista nos séculos XIX e XX, recorrendo ao argumento de que se uma mulher ariana tivesse tido um filho com um homem não-ariano, nunca mais seria poderia ter um filho ariano “puro”. Se este raciocínio nos parece hoje em dia ridículo, basta mudar a espécie visada que depressa nos apercebemos que a ideia ainda prevalece em certos círculos de criação animais. Nos cães, em alguns meios é ainda comum a ideia que se uma cadela de raça tiver uma ninhada com um cão sem raça, ou de outra raça, nunca mais terá filhos puros. Em algumas zonas do mundo, essa cadela seria em consequência abatida ou dada, independentemente do seu valor ou capacidade de trabalho.

Em suma...

Os conhecimentos actuais sobre a hereditariedade e reprodução mostram-nos que, efectivamente, não é possível que um macho com que uma fêmea tenha acasalado num dado período reprodutivo afecte as gestações em períodos subsequentes. Caso ainda continue com dúvidas, pode sempre recorrer aos testes de paternidade para confirmar os progenitores dos cachorros produzidos… Telegonia – mito ou realidade? Um mito sem dúvida!D

Os espermatozóides não são capazes de persistir de um ciclo reprodutivo para outro, mas em cada ciclo a cadela é capaz de copular com diferentes machos.

de correr o risco de uma ninhada pouco numerosa, devido à perda de fertilidade dos espermatozóides). A segunda consequência é que, considerando que o intervalo entre cios é normalmente de cerca de 6 meses (com uma amplitude “normal” entre os 4 e os 9 meses), não é possível que espermatozóides introduzidos no tracto genital da fêmea durante um cio sobrevivam até ao cio seguinte. Logo, os indivíduos produzidos numa dada ninhada apenas serão filhos do(s) macho(s) com o qual a fêmea tenha copulado nesse período éstrico.

Ninhadas com dupla paternidade

Apesar de os espermatozóides não serem capazes de persistir de um ciclo reprodutivo para outro, em cada ciclo a cadela é capaz de copular com diferentes machos. Uma vez que em cada cio a fêmea liberta vários óvulos, diferentes óvulos poderão ser fertilizados por espermatozóides de diferentes machos. Cada cachorro terá um único pai, mas o seu pai poderá ser diferente do dos seus irmãos. No entanto, serão todos filhos de cães com os quais a fêmea tenha acasalado nesse cio, não de cães com que tenha copulado em cios anteriores.

Dominância e recessividade

Mas afinal, então, como explicar o caso da égua que deu, em parições subsequentes ao acasalamento com o quaga, filhos com riscas? Cães&Companhia 39

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