Quem contribui mais para a descendência?

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D Genética

Mitos & realidades na criação (I)

Quem contribui mais para a descendência?

Neste mês de regresso às aulas, vamos fazer algumas revisões, usando o que fomos abordando antes das férias para examinar ideias populares sobre criação de animais e ver se são mitos ou realidades. Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal • Fotos: Shutterstock

N

este número vamos abordar uma das questões mais comuns: É o

pai ou a mãe que contribui mais para a descendência?

Apesar de esta questão parecer ter uma resposta simples, na realidade não é assim tão linear e, potencialmente, depende da abordagem que se considere.

A nível individual

Quando estamos a analisar o contributo dos progenitores para a descendência, e sob um ponto de vista puramente genético, estamos a pensar nos traços que podemos observar e medir, quantitativa ou qualitativamente. Se se lembra do que foi exposto no artigo de introdução à genética e sua terminologia, publicado na revista “Cães & Companhia” nº 166 (Março de 2011), as características de um indivíduo são codificadas pelos seus genes (ou, mais concretamente, resultam da interacção dos seus genes com o ambiente, mas vamos focar-nos na componente genética). Os genes são segmentos de ADN (Ácido Desoxirribonucleico), 36 Cães&Companhia

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que se organiza de uma forma muito enrolada sobre si próprio e que, conjugado com proteínas, forma os cromossomas. Nos animais, os cromossomas localizam-se no núcleo das células e ocorrem aos pares; de cada par, um dos cromossomas é herdado do pai e o outro da mãe. Ora, se em cada indivíduo os cromossomas estão aos pares e o filho herda um dos elementos do par de cada progenitor, apenas poderá herdar metade do património genético de cada um (caso contrário cada geração teria o dobro dos cromossomas da geração anterior). Logo, é necessária a existência de um mecanismo que permita, nas células sexuais, reduzir a informação genética dos progenitores a metade. Esse mecanismo é a meiose, no qual a partir de uma célula se obtêm quatro células com metade da informação genética original. Desta forma, quando as células sexuais de cada progenitor se conjugam para formar o novo indivíduo, este fica novamente com o número total de cromossomas típico da sua espécie. Assim, as características que vemos normalmente nos indivíduos e para as quais seleccionamos (por exemplo, a cor da pelagem, uma aparência específica ou a Cães&Companhia 37

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quantidade de leite ou carne produzidas), estão codificadas pelos genes localizados no núcleo das células, e são transmitidas em proporções iguais pelo pai e pela mãe.

características que são selecionadas nos animais de companhia dependem fundamentalmente do ADN localizado no núcleo das células, herdado em igual proporção do pai e da mãe. Porquê então a noção tão arreigada de um dos pais contribuir significativamente mais para a descendência? Há duas razões principais, a prepotência e os factores epigenéticos.

ADN mitocondrial

Porém, apesar cada um dos pais contribuir com metade dos genes nucleares, tecnicamente, a mãe contribui com mais material genético total para a descendência. Isto ocorre porque o núcleo não é o único local da célula onde existem cromossomas, também existe ADN nas mitocôndrias. As mitocôndrias são organitos encontrados em todas as células (excepto nos glóbulos vermelhos) e que desempenham várias funções. A principal é a de funcionarem como “centrais energéticas” das células, convertendo a energia química dos alimentos numa forma que as células conseguem usar, a adenosina trifosfato (ATP). Mas neste caso, o nosso interesse nas mitocôndrias, sob um ponto de vista genético, é que elas também possuem ADN, que é transmitido de forma independente dos cromossomas localizados no núcleo das células. Quando um óvulo é fertilizado por um espermatozóide (cada um com metade do património genético das células não sexuais), o núcleo do óvulo e o núcleo do espermatozóide contribuem igualmente para a constituição do núcleo do zigoto (o produto da fusão de ambas as células sexuais). Em contrapartida, o ADN mitocondrial apenas provém do óvulo; apesar de as mitocôndrias do espermatozoide poderem entrar dentro do óvulo, são posteriormente destruídas. Assim, as mitocôndrias são herdadas apenas (e salvo mutações pontuais ou algumas espécies de plantas, por exemplo) por via maternal. Aliás, esta situação, associada ao facto de não sofrer

Nos animais, os cromossomas localizam-se no núcleo das células e ocorrem aos pares; de cada par, um dos cromossomas é herdado do pai e o outro da mãe.

Prepotência

recombinação por não haver meiose, tornam o ADN mitocondrial muito interessante em estudos de genética populacional, pois permitem acompanhar a evolução e dispersão de linhagens maternais. Existe um certo número de doenças que têm sido associadas às mitocôndrias, ocorrendo normalmente por problemas genéticos ou ocorrência de mutações que afectam o seu correcto funcionamento. São tanto mais importantes quando ocorrem em órgãos que requeiram um elevado consumo de energia. Desta forma, o ADN mitocondrial poderá ter um certo impacto na descendência, nomeadamente no caso de características que envolvam um elevado desempenho energético. No entanto, há que não esquecer que a maioria das

A base genética do fenómeno da prepotência foi explicada em mais detalhe na revista “Cães & Companhia” nº 168 (Maio de 2011). A prepotência diz respeito a um reprodutor tender a passar de forma consistente à sua descendência a(s) característica(s) de interesse. Esta situação acontece mais frequentemente quando esse indivíduo é consanguíneo, pois nesta situação tem maior probabilidade de ter, no(s) gene(s) de interesse, os 2 alelos iguais. Logo, os seus filhos, em vez de receberem cada um dos diferentes alelos, irão receber o mesmo alelo, codificando para a mesma característica. Caso se trate de um alelo com efeito dominante, irão todos expressar a característica de interesse, mesmo que do outro progenitor recebam um alelo recessivo (que não se irá manifestar, ou fá-lo-á com pouca intensidade, em virtude da presença do dominante). Logo, irão ser homogéneos para essa característica. Se se conseguir obter um indivíduo que tenha vários genes de interesse em homozigotia dominante, então ele será capaz de transmitir à sua descendência (pelo menos à primeira geração) uma boa parte das suas características de forma consistente.

Factores epigenéticos

A outra situação tem a ver com a mãe, e pode envolver diferentes tipos de factores ambientais, com ou sem repercursões na expressão dos genes. Nos últimos anos, o campo da epigenética (do prefixo grego epi – acima + genética) tem tido um grande desenvolvimento. O seu objectivo é estudar as alterações na expressão dos genes devidas a mecanismos que não sejam a alteração da cadeia de ADN. Isto porque certos factores não genéticos – como por exemplo, o ambiente in utero, substâncias químicas, drogas e medicamentos, dietas, a própria idade –, podem levar a alterações na forma como os genes se vão expressar, sem no entanto alterarem a sua base genética. Estas alterações irão permanecer ao longo das divisões celulares durante a vida da célula, e podem mesmo permanecer ao longo de várias gerações, sem que no entanto ocorram alterações na sequência do ADN do organismo. Isto leva a que dois indivíduos com a priori exactamente a mesma constituição genética, mas que tenham tido gravidezes em condições de desenvolvimento díspares, sejam diferentes mesmo à nascença, devido ao comportamento diferente (à expressão diferente) dos seus genes.

Influências não genéticas

Mesmo sem considerar a influência do ambiente nos genes, a mãe irá ter, no desenvolvimento da descendência, uma influência não genética superior ao pai, já que o seu estado físico e comportamental irão influenciar significativamente (mas não devido a razões genéticas) o desenvolvimento dos cachorros, durante a amamentação e até irem para as suas novas casas. Uma mãe em má forma física não será capaz de fornecer um alimento de qualidade aos seus cachorros, que se irão em consequência desenvolver menos; frequentemente este atraso é compensado quando os cachorros começam a receber alimento suplementar de qualidade, mas nem sempre. 38 Cães&Companhia

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Um macho pode acabar por ter um impacto superior na população que as fêmeas, simplesmente pelo número superior de descendentes produzidos Adicionalmente, e apesar de haver grandes traços de comportamento com uma base genética, os facto de os cachorros serem criados por mães tímidas ou confiantes irá afectar o seu comportamento futuro.

A nível populacional

A outra abordagem a ter em conta quando se considera o impacto que cada um dos progenitores tem na descendência é encarar a situação não sob um ponto de vista do impacto que têm em cada cachorro criado, mas sim olhar para o global da sua população, raça ou espécie.

Número de cachorros potencialmente produzidos

Quantos cachorros cada sexo consegue produzir ao longo da sua vida? Vamos considerar uma situação “ideal” em que se consegue maximizar o potencial reprodutivo dos animais. No caso da cadela, assumindo uma esperança de vida reprodutiva de 10 anos, com 2 ninhadas por ano e uma média de 6 cachorros por ninhada, é fácil constatar que o máximo de descendentes que ela poderá criar será de aproximadamente 120 cachorros. Claro que, na realidade, acabam por ser muito menos, não só porque à medida que a idade vai aumentando a fertilidade vai diminuindo, como também porque qualquer dono responsável não deixará a sua cadela reproduzir-se em todas as oportunidades. Porém, o macho, que tipicamente se torna fértil pelos 10 a 15 meses (consoante o porte), não tem virtualmente limite quanto ao número de cachorros que

pode produzir ao longo da sua vida. Mesmo tendo em consideração a diminuição de fertilidade com a idade, ele pode reproduzir-se muito mais frequentemente que uma fêmea, inclusive mesmo semanalmente. Assumindo que tudo o resto decorre de forma saudável e sem problemas, incidentes que alterem temporariamente a espermatogénese podem normalmente ser resolvidos num período de 2 meses (tempo que demora a desenvolver novos espermatozóides), enquanto que numa fêmea um cio falhado implica que apenas poderá entrar em reprodução no cio seguinte, normalmente pelo menos 6 meses depois. Assim, globalmente, um macho pode acabar por ter um impacto superior na população que as fêmeas, simplesmente pelo número superior de descendentes produzidos. Esta é a razão porque normalmente os reprodutores populares (utilizados com uma frequência muito superior aos outros) são normalmente machos. É também por este motivo que, normalmente, se usa uma maior pressão de selecção nos machos do que nas fêmeas, ou seja, tem-se mais cuidado na selecção das características desejáveis que no caso das fêmeas, pois normalmente são usados menos machos que fêmeas, e são-no mais intensivamente (este tema foi abordado em maior detalhe na revista “Cães & Companhia” nº 167, Abril de 2011).

Ou seja...

Sem nunca esquecer que um indivíduo é sempre o produto da combinação dos genes do seu pai e da sua mãe, influenciados pelo ambiente onde se desenvolve, no fim deste artigo, o leitor deverá ser então capaz de responder à pergunta inicial: Quem é mais importante para a descendência? O pai? Ou a mãe? D Cães&Companhia 39

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