Desenvolvimento psico-motor dos caes

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D Etologia

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uando nascem, alguns animais estão preparados para uma vida praticamente independente. Por exemplo, poucos minutos depois de nascer, um veado ou um borrego é capaz de andar e correr de forma relativamente ágil. O que naturalmente é uma estratégia evolutiva com sentido – sendo animais caçados por outras espécies, quanto mais rapidamente se conseguirem movimentar, mais facilmente conseguem escapar aos predadores e deixar de colocar a sua progenitora e/ou grupo familiar em risco acrescido. Já os canídeos, como vários outros predadores, nascem num estádio de desenvolvimento físico e comportamental mais “incompleto”, com mecanismos sensoriais e motores mínimos, pelo que dependem completamente

da progenitora durante o primeiro período da sua vida. Os estudos mais completos sobre o desenvolvimento comportamental e físico dos cães foram efectuados ao longo de 20 anos no Jackson Laboratory, nos EUA, sob a orientação de John P. Scott e John L. Fuller, tendo sido publicados em 1965 num livro que é ainda hoje uma referência, chamado “Genetics and the social behavior of the dog” (“Genética e o comportamento social do cão”). Com base na evolução das suas capacidades, o desenvolvimento de um cachorro foi tradicionalmente dividido em quatro fases, ou períodos, sequenciais, em grande parte dependentes da idade do animal. Antigamente eram designados por “períodos críticos”, porque se pensava que as competências que não fossem ad-

quiridas nessa idade específica já não o seriam mais. Actualmente, sabe-se que não é bem assim, existe alguma variabilidade nos timmings, dependendo do indivíduo, do seu crescimento específico e do ambiente em que se desenvolve, pelo que são mais correctamente designados “períodos sensíveis”. Vejamos então quais as fases do desenvolvimento de um cachorro.

Período neonatal

Decorre desde o nascimento até cerca das 2 semanas de idade. Nesta fase, o cachorro não é um organismo auto-suficiente, dado que nasce com um cérebro muito imaturo e capacidades sensoriais limitadas. Os olhos e ouvidos estão fechados, sem reacção (embora alguns cachorros possam reagir a luzes muito fortes).

Pensava-se que o olfacto e o paladar estavam pouco desenvolvidos, mas estudos efectuados no final dos anos 90 sugerem que o sentido do olfacto estará já relativamente desenvolvido, o que faz sentido pois sem dúvida será um dos sentidos utilizados para localizar a progenitora. Ao contrário do que ocorre nos restantes sentidos, as respostas ao toque estão bem desenvolvidas, dado que são necessárias para localizar a progenitora. Exibe reacção à dor e ao frio, mas mau controlo da temperatura. A temperatura é mantida fundamentalmente através do contacto estreito com a progenitora e restantes companheiros de ninhada. Não é capaz de urinar e defecar de forma autónoma; o comportamento de excreção é reflexo, estimulado pela língua materna (ou um pano húmido

e morno, no caso de cachorros órfãos criados à mão). O comportamento e morfologia estão adaptados a uma vida infantil, estando ausentes os padrões característicos do adulto. Por exemplo, a forma da cabeça e da boca estão adaptadas à sucção do leite das tetas maternas; algumas semanas mais tarde, com o desenvolvimento físico, a forma da boca muda e os cães deixam de conseguir sugar líquidos. Nesta fase, os cachorros não são capazes de andar, apenas arrastar-se de um lado para outro (maioritariamente para uma fonte de calor, alimentação e conforto) e o comportamento apresentado é quase exclusivamente de solicitação de cuidados – o cachorro choraminga quando está desconfortável (com fome ou com frio) de forma a atrair a atenção da progenitora; quando está confortável, passa quase todo o tempo a dormir.

Apesar de nesta fase os cachorros serem cegos e surdos, tem sido evidenciado que a existência de stress moderado (por exemplo, o manuseamento por parte das pessoas) é benéfico para o desenvolvimento da sua mente, no sentido em que acelera o crescimento, re-

duz a emocionalidade e, possivelmente, poderá aumentar a resistência a algumas doenças.

Período de transição

Decorre aproximadamente da segunda à quarta semana de idade; inicia-se quando os olhos se abrem e termina

Não é surpresa para ninguém que um cachorro se comporta de forma diferente de um adulto. Mas o comportamento de um cachorro não é igual ao longo do seu desenvolvimento, as suas aptidões e reacções variam, por vezes consideravelmente, consoante a sua idade. O conhecimento das suas capacidades em cada idade é fundamental para se poder criar e educar um cão com um carácter equilibrado.

quando aparecem as primeiras reacções de “medo”. É um período de rápidas alterações, no qual os padrões de comportamento neonatais diminuem ou desaparecem, começando a aparecer os padrões característicos do adulto. Além dos olhos, abrem-se nesta fase os ouvidos e começam a aparecer os primeiros dentes, o que permite a alteração dos comportamentos ingestivos – começa a transição de uma alimentação baseada exclusivamente no leite materno para uma alimentação sólida. No estado silvestre (e em alguns casos de cães domésticos), a progenitora começa a regurgitar comida às crias, preparando-as para o desmame; substituindo-se à mãe, é durante este período que o criador começa a apresentar comida sólida aos cachorros. Os membros começam agora a suportar o peso do cachorro, o que, associado ao rápido desenvolvimento dos restantes órgãos sensoriais, permite a alteração dos comportamentos exploratórios, dos padrões neonatais baseados no tacto, para os padrões adultos. O mecanismo de regulação da temperatura é melhorado, o que, associado ao facto

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Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal • Fotos: Shutterstock

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de o cachorro começar a andar, permite que este comece a explorar o exterior da sua “toca”. O mecanismo de excreção já não é um reflexo, começa a haver algum auto-controlo, e a progenitora vai abandonando gradualmente este gesto. É ainda nesta fase que o cachorro começa a abanar a cauda. Apesar de a influência materna se fazer sentir ainda de forma importante, o comportamento de solicitação de cuidados do cachorro diminui; verifica-se a alteração do padrão investigatório, agora baseado não apenas no toque, mas também nos restantes órgãos sensoriais; pelas 3 semanas, o cachorro começa a responder a pessoas e outros animais que detecte à distância. É também neste período que começa a surgir o comportamento agonístico (agressivo), tornando-se os rosnidos, latidos e lutas amigáveis com os outros cachorros da ninhada cada vez mais comuns. Surge o comportamento de fuga, primeiro sob a forma de movimento para trás em reacção a um sinal e, no final do período, como resposta de “susto” ao som, primeiro sinal que a audição se desenvolveu. No final desta fase, começa a ser possível induzir reflexos condicionados; antes, qualquer tipo de condicionamento é instável.

No período neonatal o cachorro não é auto-suficiente e depende completamente da progenitora (ou das pessoas na sua ausência).

Em suma, neste período o cachorro passa de um animal muito protegido do ambiente a um que lhe é altamente sensível.

Período de sociabilização

Decorre até perto das 12 semanas. É nesta altura que o cachorro começa a

exibir a maioria dos padrões comportamentais do adulto. Verifica-se o rápido desenvolvimento dos padrões de comportamento social, em contraste com o período anterior, onde ocorrem essencialmente alterações motoras e sensoriais. A mãe começa a deixar os cachorros sozinhos por períodos de tempo cada vez maiores. O cachorro já consegue fazer associações rápidas entre estímulos, semelhantes às do adulto, o que lhe permite apreender muito do mundo exterior, mas não é capaz de aprender padrões motores complexos, dado que as suas respostas motoras não estão ainda completamente desenvolvidas. Co-

meça a deslocar-se de forma adulta e a exibir comportamentos sexuais, como montar outros cachorros, embora incompletos, e a investigar pessoas ou objectos inanimados. Começa também a aprender com a progenitora quais as respostas comportamentais adequadas com os restantes membros da sua espécie. É também nesta fase que aparecem as primeiras reacções de “medo”, que dependem muito do ambiente. Começa a verificar-se o comportamento de imitação, isto é, os cachorros começam a comportar-se como um grupo. Surgem também as lutas fingidas e ataques de grupo (combinação de comportamento de imitação e agonístico),

Durante o período de sociabilização, os cachorros aprendem com os restantes membros do seu grupo quais as respostas comportamentais adequadas nas diferentes situações.

As lutas fingidas permitem aprender o controlo da mordida e desenvolver-se-ão posteriormente em rituais que irão permitir evitar muitas lutas reais.

que permitem o estabelecimento de relações sociais e de dominância (apesar de não completamente definidas), sem que os indivíduos fiquem seriamente feridos.

Período juvenil

Começa pelas 12 semanas, com a primeira longa excursão fora da toca, e termina com o início da maturação sexual, que por norma irá decorrer entre os 6 e os 18 meses, dependendo do porte do animal (cães pequenos tendem a atingir a maturidade sexual mais cedo que os grandes). As alterações que ocorrem não são tão marcantes como nos períodos anteriores. Todos os órgãos estão já quase 40 Cães&Companhia

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completamente desenvolvidos. No que respeita às capacidades motoras, as diferenças dizem respeito essencialmente ao aumento de força e habilidade, não à emergência de novos padrões, isto é, as alterações são quantitativas e não qualitativas. A dentição permanente começa a surgir cerca das 16 semanas, estando em geral completa no fim deste período. As curvas de crescimento começam a estabilizar; termina a fase de crescimento rápido, apesar de o crescimento continuar até perto dos 2 anos, idade em que a maioria os cachorros terminam o grosso do seu desenvolvimento físico (com excepção das raças de porte muito grande). Os comportamentos começam a atingir uma organização estável. As capacidades de aprendizagem parecem já completamente desenvolvidas no início do período, embora o cachorro não consiga ainda aprender tarefas difíceis, parcialmente devido ao seu reduzido período de concentração e à elevada excitabilidade emocional exibida. Quanto à velocidade de formação dos reflexos condicionados, ela começa a diminuir pelos 4 meses, provavelmente porque a aprendizagem prévia começa a interferir com as novas aprendizagens. O comportamento agonístico desenvol-

ve-se, pelas 15 semanas, num padrão ritualizado de dominância/submissão; a ocorrência de lutas reais é muito reduzida. Esta ordem de dominância limita o contacto com animais estranhos e os cachorros tendem a atacar estranhos colocados com eles. No entanto, o grau de tolerância face a desconhecidos depende da raça e do grau de desenvolvimento dos cachorros, que nesta fase tendem a reagir como um grupo em muitas situações, demonstrando que o comportamento de imitação se tornou mais comum. Continua a verificar-se comportamento sexual, mas realizado de uma forma juvenil e facilmente interrompido. É a maturação da função sexual, com a capacidade de efectuar relações sexuais completas, que marca o fim deste período.

Idade adulta

Considera-se que o animal alcançou a idade adulta quando atinge a maturidade sexual, ou seja, quando é capaz de copular eficazmente e reproduzir-se. No entanto, tal não significa necessariamente que o seu desenvolvimento físico e psicológico esteja terminado. Isto é particularmente notório no caso de cães de grande e muito grande porte, que continuam ainda a crescer durante Cães&Companhia 41

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mais alguns meses após a maturidade sexual; também o seu comportamento permanece essencialmente “adolescente” durante mais uns meses, sendo comum que apenas pelos 2 ou 3 anos de idade comecem mostrar-se mais calmos e controlados.

O imprinting ou vinculação

O imprinting, ou vinculação em português, diz respeito ao estabelecimento de laços emocionais com outros indivíduos. É um processo que ocorre em determinado período da vida do animal. Por exemplo, em aves, os pintos associam o estímulo em movimento que vejam nas primeiras horas de vida como sendo a “sua espécie”, e irão segui-lo ao longo do seu desenvolvimento. Estímulos diferentes que lhes sejam apresentados mais tarde já não serão considerados como tal. O período em que ocorre o imprinting varia consoante o tipo de animal, e é determinante para que o indivíduo “saiba” a que espécie pertence, qual será o seu grupo social e/ou sexual. Os cães são um caso especial, pois são dos poucos animais que são capazes de estabelecer este tipo de laços duradouros com outras espécies para além da sua. Como foi verificado antes, durante o período neonatal, as interacções sociais do cachorro ocorrem virtualmente apeA interacção com outros cães e pessoas durante o período de socialização é fundamental para que o cachorro possa estabelecer laços sociais duradouros com estas espécies (imprinting).

nas com a progenitora; os irmãos ou outros organismos são de somenos importância. O período de amamentação, ao qual esta fase é primariamente dedicada, cria um vínculo social e emocional entre o cachorro e a mãe. Durante o período de transição, os sentidos do cão são subitamente estimulados e o cachorro apercebe-se da presença dos irmãos e da existência de um mundo exterior à sua toca, cuja influência se faz sentir de uma forma cada vez mais marcada. Nesta idade, o cachorro é sensível à presença de outros animais e pessoas, mas não desenvolveu ainda todas as suas capacidades de comunicação, continuando a relacionar-se essencialmente com o seu próprio grupo familiar. O período de socialização é, como o seu nome indica, o período em que o cachorro mais facilmente irá estabelecer relações sociais, quer com outros cachorros, quer com outras espécies. O comportamento de exploração, bem como situações que envolvam contacto corporal (como jogos de luta ou comportamentos sexuais) favorecem a interacção com os indivíduos nas imediações do cachorro. Paralelamente, o surgimento de reacções de medo e fuga face a estranhos (começando pelas 8 semanas) limita o estabelecimento de relações com contactos casuais,

comprometendo o potencial de formar laços com outras espécies. Em suma, as experiências (ou falta delas) pelas quais o cachorro passe terão efeitos duradouros no seu comportamento. Tem sido demonstrado que a formação de laços sociais se inicia pelas 3 semanas, com um pico pelas 6 a 8 semanas, diminuindo pelas 12 semanas. Na primeira parte deste período (3/4 a 6 semanas), os cachorros formam mais facilmente laços sociais com outros cães (vinculação primária); durante todo o período, ocorre o estabelecimento de associação às pessoas e/ou outras espécies (vinculação secundária). Experiências realizadas por Fisher, em 1955, e por Fuller, em 1961 (Scott & Fuller, 1965; Seksel, 1997), demonstraram que cachorros criados em isolamento (sem contacto com pessoas ou animais) até às 16 semanas, findas as quais eram colocados em contacto com outros cachorros, perdiam a capacidade de se relacionar normalmente com estes, mantendo-se em regra afastados e não exibindo comportamentos de jogo. No entanto, foi também demonstrado que quando esses cachorros passavam a lidar com pessoas, começavam a exibir o comportamento típico de cachorros um pouco mais novos, reagindo de forma normal às pessoas em poucos dias. Isto permite pensar que, pelo menos em al-

No período juvenil, ocorre essencialmente um aumento da força e da habilidade do cachorro e os comportamentos começam a atingir uma organização estável.

guns casos, nesta idade é ainda possível promover comportamentos típicos em cachorros que passaram já a fase ideal de socialização.

Consequências para a aprendizagem

O conhecimento de como se processa o desenvolvimento psico-motor de

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um cachorro permite refutar algumas ideias que perduraram (e em alguns meios ainda subsistem) sobre a educação e treino de cães. Por exemplo, durante muito tempo vigorou a ideia que, para um cachorro estabelecer bons laços com os seus donos, deveria ser adoptado aos 49 dias de idade. Ora, tal não é assim. Às 7 semanas, os cachorros estão efectivamente no auge do período de socialização, mas os laços sociais irão ainda ser muito facilmente estabelecidos durante mais algumas semanas, pelo que é benéfico que passem ainda mais algum tempo no meio do seu núcleo familiar, aprendendo a comportar-se como cães. Adicionalmente, nesta idade os cachorros estão ainda a iniciar o seu plano de vacinação, pelo que mesmo sob um ponto de vista imunológico não é aconselhável adoptar um cachorro de tão tenra idade. Muito comum foi também a ideia que um cão só poderia ser treinado a partir dos 6 meses de idade, ou ainda mais tarde. Se é verdade que um cachorro mais velho tem um período de concentração superior, como foi visto atrás, aos 3 meses de idade é possível ensinar coisas aos cães e até mesmo mais cedo. Apesar de normalmente não o considerarmos como tal, até o reconhecimento do nome por parte do cachorro recém-adoptado é uma aprendizagem.

Em suma...

Ninguém espera que uma criança se comporte da mesma forma que uma pessoa adulta; da mesma forma, não se deve esperar que um cachorro tenha as mesma atitudes e reacções que um cão adulto. O comportamento que um cachorro irá apresentar em cada situação está dependente do seu nível de desenvolvimento, que deve ser tido em consideração quando se planeia a sua educação e treino. Efectivamente, existem idades mais propícias para dar o mundo a conhecer ao cachorro, períodos em que apresentar novas experiências, animais e pessoas ao cachorro irão facilitar grandemente a sua adaptação ao meio. Um cachorro que seja exposto ao máximo possível de novas situações durante o período de socialização tem uma grande vantagem à partida na sua relação com o nosso mundo humanizado. Porém, estas fases não estão completamente “gravadas na pedra”, e irão depender não só da idade, como do indivíduo e do ambiente em que vive. Um cachorro que tenha crescido em relativo isolamento, ou um cão do qual não se conheça o seu passado, poderão mesmo assim vir a ser bons companheiros, com os devidos cuidados de educação e de habituação ao mundo onde se espera que venham a viver. Quando em dúvida… porque não arriscar (em consciência)?D Cães&Companhia 43

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