Síndroma dos Irmãos de NInhada (Littermate Syndrome)

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Comportamento

A Carla Cruz Mestre em Produção Animal

Fotos: Shutterstock

“Síndrome dos irmãos de ninhada” Quando consideram adicionar um cachorro às suas vidas, muitas pessoas optam por adquirir logo dois. A intenção é a melhor, permitir que façam companhia um ao outro quando ficam sozinhos em casa. No entanto, em alguns casos, pode ser pior a emenda que o soneto. Conheça um pouco mais sobre este potencial problema.

situação é comum… Uma família decide que está na altura certa para introduzir um cachorro no seu seio. No entanto, como as pessoas trabalham fora de casa, têm medo que ele se sita triste e sozinho durante esse período. O que fazer? A solução parece óbvia – em vez de um, trazer logo dois irmãos. As contas de comida e veterinário ficam um pouco mais altas, mas afinal, tanto trabalho dá um como dão dois, certo? E mantêm-se entretidos e acompanhados quando não há ninguém em casa, não ficam tristes.

Parece que algo está errado… No entanto, pouco tempo depois de adquirirem os cachorros, os donos começam a aperceber-se que algo está errado… Eles passam o tempo todo a brincar um com o outro, ignorando o resto da família, ou apenas lhe prestando uma atenção mínima e momentânea, regressando de seguida a apenas querer estar um com o outro. Nota-se que não sabem viver um sem o outro, e entram em stress quando separados, mesmo durante pouco tempo, e evitam contacto com pessoas e outros cães, refugiando-se no seu companheiro canino. Pior ainda, apesar disto, passado uns meses podem mesmo começar a atacar-se mutuamente – apesar de inicialmente parecerem serem os irmãos mais amorosos à face da terra. O que se passou? Como é que uma situação idealizada como a perfeita para a família e para os cães se desmoronou num pesadelo que, frequentemente, implica a remoção de um dos cães da família, para a sua segurança?

“Síndrome dos irmãos de ninhada”

???????????????????????????????? ???????????????????????????????? ????????????????????????????? sai com um e o outro fica em casa, ou, por exemplo, quando um tem de permanecer internado no veterinário e o outro se vai embora? Consegue imaginar a aflição? Pior, os cachorros tendem a tornar-se dependentes das suas reações mútuas, e quando confrontados com situações que não conhecem ou que os intimidam replicam os comportamentos de medo um do outro, entrando-se num ciclo difícil de quebrar, até porque a atração e confiança que têm um no outro é muito mais forte que a que têm no dono, que

não lhes é tão motivante e reconfortante como o seu irmão. Apesar de todo este apego, não é incomum que, à medida que crescem, os dois irmãos comecem a lutar entre si, frequentemente de forma violenta – para grande incompreensão e desgosto dos donos, que não conseguem entender como os dois conseguem guerrear entre si a ponto de se causar danos sérios, quando deviam amar-se como irmãos (atribuindo-lhes conotações familiares humanas).

A situação acima descrita corresponde à síndrome dos irmãos de ninhada, mais conhecida pela sua designação inglesa, littermate syndrome. Ocorre quando os cachorros desenvolvem um hiperapego entre si, de tal forma que se tornam codependentes um do outro e o resto do mundo não é tão atrativo como a sua interação. Torna-se difícil desenvolver a personalidade de cada cachorro enquanto indivíduo independente, pois o stress que eles mostram quando estão separados, mesmo que por pouco tempo ou à vista um do outro, é demasiado grande. Não é incomum um ficar a berrar quando acontece algo tão simples como um deles ser passeado enquanto o outro fica no mesmo sítio. Que pensar então de quando se 4 Cães&Companhia 4

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guramente seria antiético. Não há uma garantia que este problema irá ocorrer quando se adquirem dois cachorros ao mesmo tempo, mas têm sido observados e reportados casos suficientes para que nenhum criador responsável ou refúgio sério promova a adoção simultânea de dois irmãos de ninhada; os riscos de ocorrência são bastante superiores aos benefícios da adoção conjunta. É muito mais seguro adotar primeiro um cachorro, deixá-lo crescer, e então adicionar um segundo cão.

O caráter é importante Por experiência pessoal e profissional, tenho constatado que o littermate syndrome tende a ocorrer com mais frequência com cães tímidos – quer por falta de socialização desde a nascença, quer por feitio próprio. O que faz sentido – quando se está inseguro sobre uma situação, é natural que se olhe para quem nos é próximo e em quem confiamos para ver quais as suas reações; se o outro mostra medo face a algo, nós iremos também mostrar medo, pois acreditamos que se ele está intimidado, alguma razão haverá, e é mais seguro mostrá-lo também – é o chamado medo social.

Linguagem própria Muitos donos não se apercebem deste problema até ser demasiado tarde. Efetivamente, ao verem os cachorros a brincar alegremente entre si, pensam que isto satisfaz a sua necessidade de interação social, quando frequentemente isto não podia estar mais longe da realidade. O facto de eles saberem interagir entre si, não quer dizer que o saibam fazer com outros cães. Aliás, frequentemente ocorre o oposto, os irmãos têm a sua “linguagem própria” e atuam entre si de formas diferentes das dos outros cães (por vezes até mais à bruta), e que os outros muitas vezes não entendem ou toleram. Seguramente já ouviu falar nos gémeos (humanos) que muitas vezes desenvolvem uma linguagem própria entre eles, que mais ninguém entende? Em cachorros que crescem juntos pode ocorrer a mesma coisa. Depois, não sabem interagir com cães estranhos, e podem tornar-se reativos por frustração por os outros cães não quererem interagir com eles da mesma forma. Eu própria vejo isso em casa, com os irmãos que guardei da minha última ninhada de Teckels, há 2 anos, a Elsa e o Spi. Apesar de terem vários outros cães para brincar, da raça deles e de outras, em 95% das situações preferem brincar juntos, de forma bastante mais física e 6 Cães&Companhia 6

Daí que dois cachorros tímidos podem levar-se a ser cada vez mais inseguros, enquanto se estivessem a crescer sem o outro, certamente desenvolveriam uma relação bastante mais confiante com o dono, seguindo a sua postura calma e segura para perceber que a situação afinal não tem nada de intimidante.

O dono contribui Por vezes, a própria presença do dono pode contribuir para agravar a situação. Por exemplo, o Dani e o Dino são dois Teckels irmãos atualmente com 4 anos, tímidos, apesar de terem sido extensamente socializados como todas as minhas ninhadas e como os cachorros de

???????????????????????????????? ???????????????????????????????? ????????????????????????????? bruta que fariam com outros cães. Coincidentemente ou talvez não, a Elsa (que gosta de brincar muito mais à bruta que o paciente irmão) é o único Teckel reativo com cães estranhos que tenho.

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Irá ocorrer? Não existem estudos científicos sobre este tema em particular, até porque seria difícil desenhar um que permitisse controlar a situação – além de que muito se-

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ma. Já tive os problemas acima descritos com Teckels (cães de caça). E o mais sério que tive foi com duas irmãs Drever, raça cão de rasto ainda altamente funcional e de comportamento bastante juvenil, a Blackie e a Blondie. A Blackie é a mais intrépida das duas, aventureira e curiosa; já a Blondie é mais insegura, prefere observar e seguir o exemplo dos outros. Em cachorras, quando saia com uma e deixava a outra em casa, não havia problemas, ficava com a mãe e o resto dos amigos. Mas quando saia com as duas ao mesmo tempo para um sítio diferente, e depois deixava a Blondie no carro enquanto ia treinar com a Blackie, o mundo parecia que acabava se a Blondie tivesse acesso visual à irmã, ela ficava a choramingar e ladrar o tempo todo – se a sua fonte de segurança estivesse fora de alcance, ela ficava sem uma referência para se manter tranquila.

Nem sempre precisam de ser irmãos

outra ninhada nascida ao mesmo tempo, mas os fatores genéticos também contribuem para o caráter, e nesse aspeto a combinação de progenitores não correu muito bem. Apesar de individualmente serem bastante afetuosos comigo e estarem habituados a passar tempo sozinhos comigo, e de se basearem no meu comportamento para decidir como reagir face a situações estranhas, quando estão juntos comigo presente, passam o tempo quase todo a “picar-se” um ao outro, a ladrar e resmungar e em posturas hierarquizadas ritualizadas de, tendo mesmo uma vez chegado a vias de facto. No entanto, estes mesmos cães, quando estão sozinhos (ou quando pensam que ninguém os está a ver), são os melhores amigos, dormem juntos e passam o tempo quase todo juntos, tranquilos.

O tipo racial influencia

que em cães de caça, sobretudo em cães de rasto, que tendem a ter um desenvolvimento comportamental tardio e a serem mais imaturos. Obviamente, o caráter individual de cada cão é o fundamental, mas o tipo racial poderá dar uma ideia da predisposição. Já mantive pares de irmãos de Barbado da Terceira e, há algum tempo, convivi com vários pares de irmãos de Cão da Serra da Estrela, sem qualquer proble-

Talvez não possa ser considerado estritamente “síndroma de irmãos de ninhada” (por não serem irmãos), mas uma chamada de atenção para que estes comportamentos de hiper-apego a outro cão, ignorando o resto do mundo à sua volta, pode ocorrer com outros cães que não diretamente um irmão. Pode ocorrer quando se adquirem dois cachorros de idades semelhantes, mesmo que ninhadas/raças diferentes. E pode mesmo acontecer quando o cachorro vai para uma casa onde existem cães de tipos muito diferentes do dele e um cão do seu tipo e “idade mental”. Quando o Gabe (irmão da Blackie e da Blondie) emigrou para os EUA aos 4 meses, foi viver para uma casa onde havia vários Mastiffs ingleses (raça de grande

porte) e um outro Drever, um ano mais velho. Lembro-me da dona comentar repetidamente que os dois se tinham tornado inseparáveis, dormindo e brincando juntos, e de como se tinha tornado difícil obter a sua atenção individual. Já consultei também outras situações em que dois cachorros com poucos meses de idade, o mais novo dos quais algo tímido, começaram a adotar o feitio do menos confiante, e começaram a surgir problemas, como ansiedade por separação, que quase seguramente não teriam ocorrido não fosse a espiral de insegurança em que entraram mutuamente.

Já tenho dois cachorros. E agora? Conhecer os riscos de adotar dois cachorros de idades aproximadas é importante, mas e se já o tiver feito? Se já tiver os cães em casa, o que fazer? Não desespere, há várias coisas que se podem fazer para minimizar os riscos do aparecimento, ou agravamento, deste problema.

Saber estar sozinho O crucial é tratar cada cachorro como um indivíduo próprio, e habituá-los a saber estar sozinhos, separados um do outro, sem stress. Habitue-os a saber estar em divisões separadas da casa, ou fisicamente separados um do outro através de uma cancela para bebés colocada numa porta por exemplo. Dê-lhes algo delicioso para se entreterem enquanto estão separados, como um kong recheado, para que associem esses momentos de separação a algo fantástico em vez de traumático. Comece por poucos minutos de cada vez, consoante a capacidade deles em gerir o stress, e vá aumentando muito gradualmente.

Fazer passeios separados Faça passeios separados. Sim, é o dobro do trabalho, mas é também fundamental para que aprendam a saber estar e a funcionar sozinhos, e os passeios são uma excelente fonte de distrações.

Atenção individualizada Reserve momentos do dia para atenção individualizada a cada cão, sem que o

???????????????????????????????? ???????????????????????????????? ????????????????????????????? outro esteja no mesmo local a competir por atenção. Aproveite para mimos, para o escovar, para o treinar, para brincar com ele… Torne esses momentos no ponto alto do vosso dia, reforçando (ou criando) uma excelente relação entre si e cada um dos seus cães.

Aprender a relacionar-se Além disto, não se esqueça que é crucial os cachorros aprenderem desde cedo a interagir adequadamente com outros cães, não apenas entre si, para evitar problemas futuros. Há que não esquecer que apesar de os

cães adultos serem extremamente pacientes com cachorros, à medida que estes vão crescendo, a tolerância vai diminuindo, e um cão que não saiba comunicar de forma correta com outros cães que não os seus companheiros imediatos arrisca-se a dissabores sérios. É um problema que não se vai manifestar de imediato, enquanto são bebés, mas mais cedo ou mais tarde irá ocorrer se eles não aprenderem a relacionar-se com outros cães.

Procure ajuda! Se tem dúvidas ou não se sente seguro sobre como fazer qualquer um destes passos, consulte um educador especializado em problemas de comportamento e que trabalhe de forma positiva, não punitiva. Este profissional poderá ver e avaliar a vossa situação específica e fazer-lhe recomendações concretas para o vosso caso particular, demonstrando e ajudando-o a perceber qual a melhor forma de superarem a situação… ou, idealmente, de evitar que ela surja. n

Outra situação que tenho notado é que o tipo racial dos cães também parece influenciar a predisposição para o surgimento do littermate syndrome, até porque vai influenciar os grandes traços gerais de caráter. Cães pastores e de guarda tendem a ser mais maduros e autoconfiantes, e tenho visto menos ocorrências desta situação 8 Cães&Companhia 8

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