Quem pensa, seus males espanta

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Cães Seniores

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Carla Cruz Mestre em Produção Animal

Fotos: Shutterstock

Quem pensa, seus males espanta Chegar aos anos dourados não é razão para descurar um estilo de vida saudável e uma atividade mental produtiva. Manter o cérebro ocupado ajuda a atrasar o declínio cognitivo e o comportamento de cão velho – e o cão e dono andarão bem mais felizes!

epois de termos visto uma das principais, e mais desconhecidas, razões para o “comportamento de velho”, a Disfunção Cognitiva Canina, vejamos agora o que podemos fazer para atrasar o seu aparecimento, e retardar a sua evolução. Este é um tema que me é atualmente muito especial, pois estou a passar por isto com uma das minhas velhotas, a Espiga, uma Teckel de pelo cerdoso de 13,5 anos – além de outras maleitas, tem vindo a evidenciar cada vez mais sinais de DCC.

Use a cabeça – a dele e a sua! Existe ampla evidência que uma das formas mais efetivas de retardar os efeitos do envelhecimento é o usar a cabeça, estimular a mente, resolver problemas e superar dificuldades. O ideal é começar desde novo, mas mesmo num cão que apresente já sinais de dificuldades mentais, é sempre possível obter resultados e atrasar o declínio cognitivo. Há inúmeras formas de apresentarmos desafios ao nosso companheiro canino. Como bónus adicional, passamos mais tempo com ele (e um cão idoso frequentemente procura a companhia do dono, mesmo que não o demonstre abertamente) e melhoramos a nossa relação nesta reta final. Vejamos algumas atividades que se podem fazer…

Treino Um treino bem estruturado, encorajando o cão a fazer as coisas em vez de o obrigar ou castigar quando não faz, põe o cão (e o dono) a pensar. Ambos se divertem, estreitam a relação, e descobrem juntos como resolver problemas complexos. Sim, burro velho aprende línguas. Talvez não o faça tão rapidamente como um cão novo, mas lembre-se que o objetivo não é necessariamente o resultado final, mas o caminho até lá, por o nosso cão a pensar. Arme-se de paciência, de muitas recompensas que o seu cão goste, incluindo as suas refeições, e ponha mãos à obra. Lembre-se de manter as sessões muito curtas (2-3 minutos de cada vez são mais que suficientes) para evitar frustração e aborrecimento, e recompense abundantemente. Certifique-se que os comportamentos são ensinados de uma forma divertida e positiva, sem castigar o cão quando ele “erra” – afinal, ele não sabe o que se espera que faça, é preciso guiá-lo e encorajá-lo a descobrir o que se pretende dele, queremos pô-lo a pensar e não obter um comportamento final perfeito. 14 Cães&Companhia

Esta é a Espiga, com 13,5 anos, problemas cardíacos, de tiróide e disfunção cognitiva canina. É a minha principal inspiração para este artigo.

Desafios adequados ajudam a retardar o desenvolvimento dos sinais de velhice e reforçam a ligação entre o dono e o cão Há várias coisas que se podem ensinar mesmo a um cão que nunca aprendeu formalmente nada na sua vida. Não se fique pela clássica obediência básica, como o senta, deita, fica, etc. Vá mais além, ensine-lhe alguns truques, a imaginação é o limite! Uma rápida pesquisa na net sobre treino para cães idosos irá apresentar-lhe numerosas ideias. Vejamos algumas sugestões (mais ou menos) simples para servir de inspiração.

“Toca” Um exercício simples é o “toca na mão”, é um bom básico para se iniciar e pode ter variadas utilidades futuras – como usar como distração em mo-

mentos de stress ou para desviar a atenção do cão. É um comportamento muito fácil de ensinar. Chamando a atenção do cão e colocando a palma da mão aberta em frente ao focinho dele, a maioria dos cães vai naturalmente tocar na mão, por curiosidade, a ver o que se passa. Quando ele bater com o nariz na mão, recompense-o e dê-lhe a guloseima. Se o seu canito não o fizer, repita, colocando um grão de ração, ou outra guloseima, preso entre os dedos. Atraído pelo cheiro, seguramente que já lá irá com o focinho. Quando ele perceber o conceito, retire a comida de entre os dedos e tente que ele vá à mesma tocar na mão. Ao fim de poucas repetições, ele vai enVá mais além da obediência básica e ensine alguns truques ao seu companheiro. Irão ambos divertir-se e vai fazer um tremendo bem ao seu cérebro.

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Os puzzles incentivam os cães a pensar e a resolver desafios mais ou menos complexos para chegar à comida. Eles adoram!

“quente”, permitem que o cão vá percebendo que o que fez tem algo a ver com o resultado final.

Brinquedos de estimulação mental

tender que uma mão aberta significa que tocar lá com o focinho dá direito a coisas boas. Podemos começar a dificultar um pouco. Peça o “toca” e quando o cão começar a ir em direção à mão, afaste-a um pouco, de forma a que ele tenha de dar um passo para chegar lá, depois dois, etc. Podemos também começar a pedir o toca com o cão a uma distância um pouco maior de nós. Lembre-se de progredir calmamente. Devagar se vai ao longe, e pedir muitas coisas ao mesmo tempo, ou aumentar demasiado depressa o nível de dificuldade vai confundir o cão. Não se esqueça que o objetivo é pôlo a pensar, não baralhá-lo.

“Fecha a porta” Se o seu cão já sabe seguir o movimento da mão para ir lá tocar com o focinho, temos toda uma série de coisas que lhe podemos ensinar. Uma coisa gira e útil é ensiná-lo a fechar portas ou gavetas leves. E é muito simples: coloque a mão encostada à porta aberta. Quando o cão for lá tocar com o focinho, a pressão do toque empurra ligeiramente a porta. Recompense muito, ajude-o a perceber que o objetivo é empurrar a porta. Gradualmente, comece a retirar a mão quando ele for tocar, para que o focinho toque na porta. Faça uma grande festa, recompense-o e repita. Rapidamente ele vai perceber que o objetivo é empurrar a porta. Útil para as noites frias de inverno, por exemplo.

“Vai para a cama” Outra coisa simples de ensinar, útil, e que o seu cão seguramente vai adorar, é ensiná-lo a ir para a cama a pedido. Comece com o cão e a cama ao pé de si e encoraje-o a mexer-se na direção da cama, depois a por alguma pata na cama. Quando ele perceber que o que estão a fazer tem a ver com a cama, passe para recompensar muito quando as 4 patas estiverem na cama. Se ele souber deitar-se a pedido, peçalhe em seguida para se deitar na cama. Se ele não souber, treinem primeiro o “deita” fora da cama, antes de lhe pedir na cama. Quando esta fase estiver superada, co16 Cães&Companhia

Dê-lhe jogos para ele pensar e resolver. Ele vai sentir-se mais entretetido e menos queixoso, e fazem bem ao cérebro mece a afastar a cama, muito gradualmente – nada de ter a cama ao seu lado durante esta fase do treino e depois de repente pô-la no canto oposto da sala e esperar que o cão vá logo para lá. Lembre-se que todos os passos devem ser curtinhos, para ajudar o cão a perceber.

Quente e frio Este tipo de treino, denominado shaping, funciona como o clássico jogo do “quente e frio”, lembra-se dele? Aquele jogo em que uma pessoa escolhe algo que outra pessoa tem de fazer – mas que esta não sabe o que é. A pessoa vai-se então deslocando pela sala, experimentando várias coisas. A outra vai-lhe dizendo “quente” quando ela faz algo em direção ao resultado final, e “frio” quando se afasta disso. Com base neste encorajamento, a pessoa acaba por perceber e fazer o que era esperado dela – apesar de originalmente não fazer a mais pequena ideia do que seja. Com o cão passa-se a mesma coisa. Não lhe damos o sinal de quando está a fazer “mal”, mas as recompensas, e os bónus de recompensas, funcionam como o

Brinquedos com cavidades são excelentes para entalar recompensas ou barrar o interior com algo cremoso. Seguem-se longos momentos a pensar e tentar chegar à comida.

Outra coisa simples de fazer para ajudar o seu cão a pensar é usar brinquedos de estimulação mental. Estes são brinquedos concebidos para se encherem de comida, que depois o cão tem de descobrir como a tirar. Esqueça a taça da comida aspirada em 30 segundos, a mesma quantidade de comida, neste tipo de brinquedos, pode durar horas, e manter o cão bastante entretido – e divertido. Hoje em dia, o mercado está inundado de jogos e brinquedos que fazem os cães pensar. Há por exemplo vários tipos de puzzles, dos mais básicos aos dignos de verdadeiros Einsteins, em que os cães têm de descobrir como abrir diferentes peças para aceder à comida colocada dentro. Há vários tipos de bolas que largam bocadinhos de comida quando roladas, brinquedos em que se podem enfiar grandes biscoitos através de orifícios estrategicamente colocados, brinquedos tipo “sempre em pé”, os famosos Kongs e similares, que se recheiam com guloseimas ou comida, que mantêm os cães entretidos durante muito tempo, garrafas em que os cães têm de descobrir como puxar uma corda para puxar a guloseima no seu interior, etc.

Um brinquedo simples de fazer, mas que puxa pela cabeça dos cães – eles têm que perceber que têm de virar a garrafa ao contrário para que a comida caia.

Deixá-los ser criativos Ou seja, há toda uma panóplia de brinquedos de todas as formas e feitios, cores e texturas, em que os cães têm de descobrir como aceder ao conteúdo. Isto proporciona-lhes horas de diversão e cansaço mental, pois para cada tipo de brinquedo têm de descobrir como aceder à comida. E cães idosos e mais “sabidos”, por vezes, encontram formas mais eficientes de resolver este tipo de problemas. Por exemplo, enquanto os meus cães mais novos se divertem a correr a casa toda atrás das bolas que largam comida, quando a Espiga se farta do exercício, agarra na bola e leva-a para dentro de uma cama; lá, fica a batê-la contra a borda até que os grãos tenham saído todos – obtém o resultado que quer (comer), evita o que não quer (demasiado exercício) e, sobretudo, pensa em como resolver o problema. Fica a ganhar! Umas boas sonecas reconfortantes estão garantidas em seguida – e não o sono aborrecido de quem não tem nada que fazer e passa o dia inteiro “a olhar para a parede”.

Faça você mesmo Com um pouco de imaginação, também se podem fazer brinquedos de estimulação mental em casa. Naturalmente, no caso de brinquedos caseiros, é ainda mais importante supervisionar a atividade do cão, e removê-los assim que houver algum dano, não se esqueça que não estão concebidos para este tipo de utilização. Mas são coisas baratas que se podem fazer e que irão proporcionar horas de diversão ao seu velhote – e umas boas sonecas consoladas a seguir. Alguns exemplos: • Uma garrafa de plástico (em que se retirou a tampa e a anilha, por uma questão de segurança) com uns grãos de ração dentro pode manter cão entretido durante imenso tempo;

• Com duas ou três garrafas de plástico, penduradas a meio numa vara, e uns grãos de ração em cada uma, faz-se um brinquedo divertidíssimo em que o cão tem que descobrir que tem de girar a garrafa para que o gargalo fique para baixo, deixando cair a guloseima; • Uma bola de ténis com um golpe a meio, abrindo uma “boca”, pode ser um excelente recetáculo para uns grãos de ração, que o cão terá que descobrir como remover; • Os tubos de cartão do papel higiénico e do papel cozinha, fechados nas pontas e com uns buracos feitos no corpo, podem transformar-se em giros contentores para rolar a comida fora. E têm o bónus extra que a maioria dos cães se divertir imenso no fim (ou durante) a destruir o cartão; • Um caixote cheio de papéis em que se embrulhou grãos de ração irá propiciar longos momentos de diversão enquanto o cão remove e abre ou rasga os papéis para chegar à comida; • Um tabuleiro de queques com alguns grãos de ração ou biscoitos nas formas (ou só em algumas) e umas bolas de ténis a tapar os recetáculos pode ser um ótimo puzzle para o cão descobrir como chegar à comida.

Tapetes de estimulação mental Dentro do tópico da estimulação mental, uma palavra para os tapetes de estimulação mental, popularmente conhecidos como “Snuffle Mats”. Trata-se de tapetes com tiras de tecido macio e densas em que se esconde comida. Como os cães não conseguem encontrar a comida visualmente, têm de chegar lá pelo cheiro. Ora, farejar é das atividades que os cães mais gostam de fazer. Com um tapete de estimulação mental, os cães gastam uns bons minutos à procura dos grãos de ração escondidos. 17 Cães&Companhia 17


Envelhecer é inevitável, estar velho pode ser evitado. Passe mais tempo com o seu velhote e façam coisas em conjunto Este tipo de brinquedos tem ainda a vantagem que, para cães que frustram muito facilmente e/ou que não estão habituados a resolver problemas, podem ser mais interessantes que os brinquedos em que têm que pensar muito como chegar à comida. Além de isto os por a pensar, este tipo de atividades tem uma vantagem adicional…. Quando noto a Espiga mais queixosa, se noto que alguma mazela antiga

está a dar sinal, ou se está num dia menos bom da sua DCC, é ocasião especial para usar o Snuffle Mat. Uns minutos distraída nele, a farejar (até porque já pouco vê), e “esquece-se” que estava com dores, relaxa e acalma bastante.

Atividades olfativas E isto traz-nos a um novo tópico – atividades olfativas, mais conhecidas pela denominação inglesa nosework. Basi-

camente, envolvem o cão usar o seu nariz para localizar o pretendido. Algumas das atividades sugeridas atrás, no tópico da estimulação mental, enquadram-se também neste tema, mas o nosework tende a ser um treino mais estruturado. O mundo dos cães é fundamentalmente olfativo, não visual como o nosso, pelo que esta é uma atividade excelente para todos os cães, e em particular para cães seniores, pois se frequentemente a visão vai desaparecendo com a idade, o olfato tende a persistir – afinal, os cães têm até 250 milhões de recetores olfativos (contra os nossos “míseros” 5 milhões), é natural que seja mais difícil perderem-nos todos. E a capacidade de identificação de cheiros dos cães é de 1.000 a 10.000 vezes superior à nossa. Experimente esconder biscoitos em diferentes sítios de uma divisão (debaixo de um tapete, atrás de uma almofada do sofá, atrás de um móvel (desde que o cão consiga aceder ao local), etc., com o cão fora dessa sala. Depois deixe-o entrar e procurar a comida, farejando por onde o dono andou e de onde vem o cheiro da comida.

O jogo dos copos

Ou pode começar a usar o cheiro que ensinou a localizar, mas cada vez mais diluído. Por exemplo, pode ensinar-lhe a localizar um pacote de chá escondido sob um recipiente, e quando ele tiver percebido a ideia, começar a diluir cada vez mais o chá. Descubram em conjunto os vossos limites!

Não diga “é normal” Envelhecer é inevitável, mas sentir-se velho não é. Não descarte certas alterações de comportamento como sendo normais num indivíduo idoso. A maioria não é e podem ser controladas ou geridas com o apoio veterinário certo e as atividades certas.

O aparecimento de sintomas relacionados com a idade pode ser retardado com um estilo de vida físico e mental saudável e estimulante. Da mesma forma, mesmo após o aparecimento dos sinais de decadência, é possível atrasar a sua evolução, mantendo o seu cão feliz durante mais tempo. As capacidades físicas de um cão idoso podem não ser as mesmas de um cão mais novo, mas o seu cérebro não precisa de declinar à mesma velocidade, e ele tem toda uma vida de experiências para o ajudar a resolver desafios. Faça check-ups médicos regulares, fale com o seu médico veterinário sobre o que nota no seu companheiro de longos anos, e experimente as atividades aqui sugeridas, e outras que se lembre. Muito rapidamente, irá seguramente notar uma diferença para melhor no seu cão, que andará mais feliz e ativo, e menos queixoso; afinal, um cão (ou pessoa) ocupado não tem tempo ou razão para ficar a remoer nas suas maleitas. Aproveite e goze da melhor forma o tempo que ainda têm juntos! n

A idade não é apenas um número, mas também uma forma de estar. Em conjunto poderão manter-se jovens durante o máximo de tempo.

Experimente ensinar o seu cão, por exemplo, a encontrar uma guloseima escondida debaixo de um recipiente. Depois dificulte um pouco e misture alguns recipientes vazios com o que tem a comida, para que ele aprenda a localizar o contentor certo. Pode ainda ensinar o cão a apresentar um comportamento específico quando encontrou o recetáculo com a comida, como sentar-se, deitar-se ou ladrar. Pode depois aumentar o grau de dificuldade começando a misturar diferentes cheiros, para o cão localizar o que lhe ensinou a encontrar.

Aproveite os anos dourados do seu companheiro, dê-lhe a atenção e cuidados que ele precisa e merece, não o ignore por “ser velho”.

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