Cães de Rebanho I

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D Etologia

Cães de Rebanho Cão de gado vs Cão de pastor

PR. RUI ÓSCAR TEIXEIRA ©CARLA CRUZ

©CARLA CRUZ

Por: Carla Cruz, Bióloga, Mestre em Produção Animal e Doutoranda em Ciência Animal)

Cão de Castro Laboreiro.

Morfologia dos cães de pastor

©CARLA CRUZ

PR. OLIVÉRIO MEDEIROS CARREIRO ©CARLA CRUZ

Cão da Serra de Aires com o pastor.

Tradicionalmente designados sob o mesmo nome, os animais popularmente designados como “cães de pastor” podem exercer uma de duas funções completamente distintas, requerendo características especializadas: enquanto uns auxiliam na condução dos rebanhos, outros protegem os rebanhos dos ataques de predadores. Ambos os tipos caninos constituem parte integrante do sistema tradicional de maneio de gado europeu.

a sinonímia. Como curiosidade, até um livro etnográfico datado de 1933, “Etnografia Portuguesa, volume II”, de J.L. Vasconcelos, individualiza, nos cães de guarda, os mastins, os cães de fila, os molossos e os cães de montanha, nos quais inclui os cães de gado nacionais; no entanto, na sua classificação dos cães, não parece haver lugar para os cães de pastor. Para evitar confusões na terminologia, e para se conseguir saber imediatamente a que tipo de animais nos estamos a referir quando falamos destes cães, optei há uns anos por usar as denominações clássicas de “cão de gado”, quando me refiro aos cães de protecção de rebanho; “cão de pastor” ou “cão de pastoreio”, para falar de cães de condução de rebanhos; e por introduzir o termo “cão de rebanho” quando abordo o conjunto dos diferentes cães que trabalham com o gado. Mas afinal, quais as principais diferenças entre os dois tipos de cães de rebanho?

Cão de Gado Transmontano com ovelhas.

Os cães de pastor variam consideravelmente em dimensão, mas são em geral de pequeno ou médio porte – normalmente com altura ao garrote inferior a 65 cm e menos de 35 kg de peso – compactos, com focinhos tipicamente compridos e estreitos (apesar de nos cães de condução de bovinos poderem ser mais maciços) e frequentemente de orelhas erectas (ou cortadas de forma a ficarem erectas). A sua morfologia, denominada de tipo lupóide, assemelha-se à de um predador (o lobo), parecença esta que é acentuada pela coloração típica da pelagem – apesar de poderem apresentar uma variada gama de cores, as preferidas são as tonalidades escuras. Há referências que indicam que os pastores referem que muito branco num cão de pastoreio é indesejável, aparentemente porque as ovelhas não se assustam muito com semelhante cão, talvez porque um cão branco se assemelha menos ao lobo ancestral.

Cão de Fila de São Miguel a pastorear vacas.

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Barbado da Terceira.

PR. GRUPO LOBO ©CARLA CRUZ

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A

ssociado à actividade de produção animal, nomeadamente de ovinos e caprinos, o cão tem-se revelado um auxiliar indispensável. Tradicionalmente designados sob o mesmo nome, os chamados “cães de pastor” ou “cães de gado” podem exercer de facto uma de duas funções completamente distintas: enquanto uns auxiliam na condução dos rebanhos (cães de pastor propriamente ditos, cães pastores, cães de condução ou, como são também conhecidos em algumas zonas do país, cães de virar), outros protegem os rebanhos dos ataques de predadores (cães de gado propriamente ditos). No entanto, esta diferença entre os diferentes tipos de cães nem sempre tem sido reconhecida, sendo comum ainda hoje, mas particularmente na literatura mais antiga, estes dois tipos de cães serem considerados sob o mesmo nome, quer este fosse o de cães de gado, quer o de cães de pastor, quer atribuindo-lhes

Cão da Serra da Estrela na função de cão de gado, com cabras. Cães&Companhia 31

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Barbado da Terceira (cão pastor) a pastorear cabras.

prida) e apresentando toda a gama de variações do branco ao preto. Actualmente, na maioria das raças do Centro e Norte da Europa, a cor predominante é a branca; em raças de países mediterrâneos (Portugal, Espanha, Balcãs) e da Ásia Central encontra-se uma maior diversidade de cores.

Existem várias teorias para a predominância de cores claras nos cães de gado. Uma é a de que animais de cores claras são mais facilmente distinguidos dos predadores; adicionalmente, nas regiões quentes, esta tonalidade poderá conferir uma melhor protecção relativamente ao calor. Pode também ser devida a uma selecção efectuada pelos pastores e proprietários dos cães, dado que animais dessa cor teriam uma maior procura, em detrimento de animais com outra coloração. Outra hipótese é a de que a coloração foi seleccionada de forma a assemelhar-se à dos animais que os cães estão incumbidos de guardar. As primeiras cabras e ovelhas domesticadas eram pretas, cinzentas ou castanhas, tal como os primeiros cães de gado. Cães de cores invulgares (como branco ou malhado) possivelmente seriam mantidos por curiosidade, como animais de estimação. Durante o período romano, as ovelhas de cor branca começaram a ser preferidas, o que levou à selecção dos cães também para essa cor. E se o leitor pensa que a cor é um assunto de somenos importância, basta pensar que já no século I d.C, autores de renome na área da agricultura dedicavam um espaço nos seus tratados para descrever as cores ideais para o cão de guarda do rebanho e para o de guarda de propriedades (na altura não existiam ainda cães de pastor).

Cão de Fila de São Miguel.

Comportamento dos cães de pastor

Em contraste, o modo de acção dos cães de pastor é fundamentalmente aprendido. Naturalmente,

PR. JOSÉ EZEQUIEL PIRES ©CARLA CRUZ

Rafeiro do Alentejo (cão de gado) com ovelhas.

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PR. DÉBALO HENRIQUE ©CARLA CRUZ

Em contraste, os cães de gado são animais em geral de grandes dimensões e corpulência – tipicamente com mais de 65 cm ao garrote e 35 a 65 kg de peso. Pela sua dimensão e aspecto lembram frequentemente ovelhas, o gado que estão normalmente incumbidos de proteger. Morfologicamente são mastins ou amastinados, apresentando tipicamente cabeças maciças e arredondadas, orelhas caídas e cauda longa. A pelagem, densa, parece ser o principal factor que permite a distinção das várias raças, podendo ser curta ou longa (tendendo neste caso a ser moderadamente com-

PR. GRUPO LOBO ©CARLA CRUZ

Morfologia dos cães de gado

PR. OLIVÉRIO MEDEIROS ©CARLA CRUZ

o ataque directo apenas é utilizado em último recurso. O modo de acção destes cães não é “aprendido”, mas essencialmente instintivo. O seu comportamento deriva essencialmente da vinculação ao gado – idealmente, estes cães deverão ser criados desde cachorros com os animais que irão proteger, passando a encará-los como parte do seu grupo familiar, da sua “matilha”. O comportamento de guarda deriva do comportamento de protecção do seu grupo, pelo que podem ser deixados sozinhos em segurança com o gado. A sua forma de actuar é assim independente de treino pelo proprietário, e inclusive independente da presença do pastor por perto, tendo os cães sido seleccionados ao longo dos tempos para serem capazes de tomar decisões de forma autónoma. É também este factor que os torna tão difíceis de motivar quando se pretende fazer um treino formal (por exemplo, de Obediência) a cães destas raças.

O modo de acção destes cães (ladrando, perseguindo e mordendo o gado) deriva do comportamento predatório. Em consequência, os animais do rebanho exibem uma reacção de medo que origina a fuga, levando-os a afastarem-se do cão. Muito activos e enérgicos, estes cães exibem uma rápida capacidade de aprendizagem, sendo, como tal, fáceis de treinar. São muito receptivos aos comandos do pastor, sob cuja supervisão trabalham. Não podem ser deixados sós com um rebanho, pois o seu forte instinto predatório pode facilmente levar ao ataque e morte de vários animais.

Cão da Serra da Estrela de pêlo curto (cão de gado).

Cão de Gado Transmontano.

Os cães de gado não conduzem o rebanho; acompanham-no nas suas deslocações protegendo o gado de predadores

Border Collie (cão pastor) a conduzir um rebanho.

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Contrariamente aos cães de pastor, os cães de gado não conduzem o rebanho; “limitam-se” a acompanhá-lo nas suas deslocações, como mais um elemento do rebanho, mantendo-se permanentemente na sua proximidade mas sem perturbar a sua actividade; porém, estão sempre atentos ao que se passa, e se o gado se movimenta, de imediato o acompanham e exploram em redor, certificando-se da ausência de ameaças. São animais calmos e independentes; pouco receptivos a comandos, trabalham sem supervisão humana. No caso de confronto com potenciais ameaças, a sua acção é essencialmente dissuasiva, através de latidos, rosnidos e postura corporal, colocando-se entre o seu rebanho e o intruso, etc.;

©CARLA CRUZ

©CARLA CRUZ

Comportamento dos cães de gado

Cachorro de Cão de Castro Laboreiro.

existe uma componente genética importante no que respeita aos traços comportamentais importantes para o pastor, e as diferentes raças têm sido seleccionadas para exibirem padrões comportamentais um pouco diferentes consoante a espécie de gado a que se destinam; no entanto, a maioria é versátil e adaptável a trabalhar com outras espécies (i.e. ovinos, caprinos, bovinos, suinos, etc.). Ao contrário do que sucede com os cães de gado, é necessário esperar que os cães tenham alguns meses de idade antes de se iniciar o seu treino específico para a condução do rebanho, em virtude de algumas componentes comportamentais fundamentais só surgirem num estado mais tardio do seu desenvolvimento. Um cão de pastor apenas deve ser utilizado após um período de treino e sempre sob a supervisão de um pastor, sem os quais poderá causar danos aos animais do rebanho/manada. Cães&Companhia 33

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Os cães de rebanho em nossa casa…

Pois... esta informação sobre a forma de actuar dos cães de rebanho é bastante interessante, mas certamente apenas se aplica na situação de trabalho com o gado, certo? Será mesmo assim? Quem tem um cão de uma raça de pastoreio, especialmente daquelas que até muito recentemente, ou ainda actualmente, são seleccionadas principalmente pela sua capacidade de trabalho, certamente já terá reparado que, por exemplo, o seu cão está constantemente à espera que que o dono lhe diga o que fazer. Ou, quando está à solta nos seus passeios, tem tendência a tentar agrupar as pessoas à sua volta, inclusive por vezes mordiscando os seus calcanhares. Estas atitudes derivam directamente

PR. CENTRO DE REPRODUÇÃO DO RAFEIRO DO ALENTEJO ©CARLA CRUZ

Nos anos 1970/80, a equipa de investigação americana liderada por Raymond Coppinger criou cachorros de raças reconhecidas como cães de gado e da raça Border Collie (cães de pastor) em condições semelhantes, tendo constatado não existirem diferenças significativas no comportamento dos cães até à maturidade sexual. Nesta altura verificou-se que os cães de pastor começaram a exibir um comportamento de fixação por um objecto, vivo ou inanimado, elemento reconhecido como uma componente do comportamento predatório e, como tal, necessária em muitos tipos de cães de pastor e indesejável num cão de gado, cuja função é a de proteger e não perturbar um rebanho. Nos cães de gado, pelo contrário, não ocorreu o aparecimento de nenhum padrão motor novo, mantendo estes o seu comportamento juvenil. É precisamente por exibirem um forte instinto predatório, reminiscente do seu ancestral selvagem, que os cães de pastor são eficazes na sua acção, quando abordam o rebanho.

PR. NUNO CORONHA ©CARLA CRUZ

Um exemplo americano

Cão da Serra de Aires.

Rafeiro do Alentejo.

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Um cão de pastor apenas deve ser utilizado após um período de treino e sempre sob a supervisão de um pastor

Cão da Serra de Aires a trabalhar como cão de pastor.

do comportamento de pastoreio, da sua tendência para ir buscar e juntar o rebanho. Já quem tem um cão de uma raça de cães de gado facilmente constata que, apesar de o seu cão ter uma grande tendência para passar uma grande parte do dia aparentemente a dormitar, qualquer barulho estranho o irá pôr de imediato de alerta, levando-o a posicionar-se entre a situação estranha e o seu núcleo familiar. Caso o cão tenha à sua disposição um terreno de dimensão suficiente, irá alternar as “sestas” com o patrulhamento do perímetro do território. Normalmente, numa situação de confronto, é mais difícil levar um cão de gado a morder (o último recurso após várias exibições de dissuasão) que um cão de pastor, para quem a mordida faz parte do seu trabalho normal, quando encontra um animal do rebanho que não lhe obedeça. E, naturalmente, o treino de Obediência tende a ser particularmente trabalhoso, não por teimosia ou “burrice” do cão, mas por ser difícil encontrar a motivação certa – afinal, estes cães foram seleccionados para pensarem de forma independente do seu dono, que podia ou não estar presente, ao contrário do cão de pastor, que trabalha com o seu dono e sob sua orientação.D

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