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Capa - Fernanda Mandagará

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ADRIANA CHIARI

MAGAZINE N.

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“Vocês não me conhecem”

FERNANDA MANDAGARÁ

Do Teatro Drive-Thru em São Paulo ao The Globe Theatre em Londres

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Valnei Nunes Jornalista

FERNANDA MANDAGARÁ

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Eis que surge no palco do Royal Vauxhall Tavern, conhecida casa de show e baladas no coração de Londres, uma mulher de maquiagem pesada, usando luvas de borracha amarelas e segurando um saco de lixo. Diz ser a faxineira do local, nega ser a Fernanda. Surge no palco de dentro da personagem a outra personagem, a dragqueen Lola Maria Delfuego, afetada e escrachada, com um boneco inflável vestido com uma máscara de papel do rosto do presidente dos EUA, Donald Trump.

“Vocês não me conhecem”, esta é a frase por detrás da atriz de teatro Fernanda Mandagará, 36, nascida em Porto Alegre.

Mas quem é a verdadeira

Fernanda Mandagará?

Fernanda conta que, na infância, “sonhava em ser bailarina de jazz, queria ser loira, de cabelo cacheado e olho azul”, mas era gordinha de cabelo preto. Foi se conscientizando, se empoderando e descobrindo o seu espaço.

A atriz, que sempre estudou em escola pública, conseguiu superar o ensino precário no Brasil e também estudou no Colégio Militar, o que possibilitou ingressar no mundo acadêmico.

Fernanda desistiu de fazer Direito e foi estudar teatro, “todo mundo era muito cool”, diz. "Me sentia marginalizada na faculdade de teatro por ser muito diferente. Vinha de outro contexto, diferente dos meus colegas, mais alternativos e muitas

vezes jovens com maior poder aquisitivo.”

Mas encontrou a sua turma, se achou no teatro físico e na comédia. Fernanda conta que sempre teve facilidade para comédia. "Vem da minha mãe, ela é contadora de estórias, sempre se dava mal, era meio clown. Tudo ela fazia piada. Eu cresci achando que tudo poderia ser engraçado. Comédia é difícil”, afirma a atriz. “A vida de ator é a pior possível” – em entrevista, brinca com a própria condição da profissão de artista.

Fernanda passou a produzir as suas peças e também montou elenco para curtas-metragens em Porto Alegre, chegou a achar que era menos artista e mais produtora.

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Teatro Drive-Thru

Um ano depois de formada foi para São Paulo, cidade em que sempre quis morar. Quando chegou lá não tinha muito dinheiro e foi se virando como podia, era freelancer, trabalhou em eventos e foi recepcionista.

Chegou a apresentar peças nos Parlapatões, renomado teatro no centro de São Paulo. Ainda na capital paulistana, Fernanda, juntamente com dois outros atores, fundou a companhia “Teatro Enlatado”. Criaram o “Drive-Thru”, uma cabine móvel na rua, de 1 metro por 2, tipo miniteatro, onde realizavam um espetáculo acessível ao público que passava na rua, usando espaços físicos como parques, praças, museus, etc. A peça foi pauta de várias matérias de televisão e foi muito bem recebida pela crítica e pelo público na época. Monólogos sobre racismo, misoginia e diversos temas faziam parte do cardápio que o público podia escolher.

Segundo Fernanda, “o teatro não convencional abriu a minha cabeça. Descobri que eu não preciso de um espaço físico para fazer um espetáculo. O teatro pode ser realizado de várias maneiras. Lembro que havia muito improviso na época. Era a experiência do teatro imersivo, interagíamos com o público, isso deu todo o preparo para os meus números de cabaré”.

Números estes que viriam à tona alguns anos depois durante a jornada artística de Fernanda no Reino Unido.

Queria fazer teatro para quem estava passando e não apenas pra alguém que estava indo ao teatro.”

Teatro Inglês x Teatro Brasileiro

Fernanda Mandagará costuma comparar o teatro inglês ao teatro brasileiro... diz ser o primeiro mais frio, mais calculado e técnico que o teatro brasileiro, por sua vez mais físico, passional, político e contemporâneo. Afirma que “o teatro inglês é muito politicamente correto, é um teatro intelectualizado onde se pensa muito no que se vai dizer. Mas existem qualidades diferentes”. Durante o mestrado em artes cênicas no Reino Unido, Fernanda não se identificou com o teatro inglês. “Os ingleses são mais realistas e naturalistas e também mais contidos fisicamente. Os brasileiros são mais soltos, improvisam mais. Os ingleses tecnicamente são impecáveis”.

“No primeiro dia de ensaio no mestrado na conceituada East15 Acting School já perceberam que eu era diferente”, diz Fernanda.

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Fernanda respirava, se alongava, se preparava para o ensaio, enquanto os britânicos parados a olhavam com curiosidade, estranhando aquilo tudo.

Mandagará conta que “as pessoas me viam como exótica, o sotaque dificultava ser selecionada para as peças, achavam que eu era boa, mas me colocavam no lugar em que eu não me sentia à vontade”.

E assim Fernanda foi se lapidando e criando uma identidade própria, uma forma independente, sólida, ácida e surrealista. A indústria do teatro no Reino Unido é maior e muito diferente

do Brasil, como a duração do tempo dos ensaios. Tudo é muito mais caro e dinâmico.

Apesar de a atriz sentir falta do teatro no Brasil, não se arrepende de ter recomeçado a sua carreira em Londres, berço do teatro tradicional no mundo.

Todo conhecimento pode ser transformador, e assim fez a sua fascinante carreira por meio da própria transição e adaptação, construindo um diálogo crítico, político e cultural entre terras tão distantes e distintas.

Cabaré, Tropicália e Dragqueen:

O Lugar de Fala

Fernanda, que já se apresentou no Barbican, no Festival de Teatro de Edimburgo, foi residente do The Globe Theatre, o renomado Teatro de Shakespeare, e nos últimos dois anos imergiu no universo das dragqueens e criou personagens como a Lolo Brown, uma drag grotesca, escrachada e perturbadora.

A dragqueen é um clown do gênero – palhaço do gênero. Mandagará explica: “Quando eu entendi que poderia explorar o clown através do gênero, pra mim foi natural, a comédia está em mim, veio das minhas próprias personagens femininas”.

Mandagará explica que a sua drag-

queen “é diferente, não tem o glamour estonteante das dragqueens tradicionais”. Fernanda se identifica com o público e o estilo de vida GLBTQ (gay, lesbian, bissexual, transgender, queer), defende os direitos gays, mas chegou a se questionar se uma dragqueen seria o seu lugar de fala.

“Para entender o lugar de fala, é preciso antes refletir: quem é que tem mais chances de falar (e ser ouvido) na nossa sociedade? Ou seja, quais vozes são amplificadas e carregam autoridade e quais vozes são silenciadas, ignoradas e desmerecidas?”, explica Luísa Pessoa, editor de tradução e adaptação.

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Pouco a pouco a drag foi tomando um espaço de identidade mútua na sua persona atriz e a própria Fernanda não atriz. Foi selecionada no Soho Theatre e foi estudar a linguagem de cabaret e dragqueen com a dupla de dragqueens mais cobiçadas do momento, as Bourgeois and Maurice. Burlesco, ácido, travestido e tropical são traços de seu trabalho, e a sua personalidade magnética e provocadora é transmitida em cena.

A atriz costuma brincar e jogar com a condição de imigrante, trazendo reflexões importantes do nosso tempo, como o racismo, a xenofobia, a misoginia e o deslocamento de culturas – conceitos que estão no epicentro da sua criação artística e textual.

Fernanda é uma artista política, revela que gosta de chegar no limite, mas se preocupa com até onde a atriz pode chegar com temas que podem muitas vezes incomodar.

O espetáculo Tropicália, que está em cartaz no Acolah Theatre, em Dalston, leste de Londres, tem a direção do seu marido, Ramiro Silveira, e produção e roteiro da própria Fernanda. Na peça a atriz explora uma distopia ambientada numa ilha chamada Tropicália, um dos poucos locais do planeta em que ainda é possível viver, num mundo devastado pela lama.

Mensagem para os leitores

Tudo depende do ponto de vista e não há lugar mais pra preconceitos em 2019. Respeite as pessoas na sua individualidade. Todo mundo tem uma história e devemos respeitar as pessoas e as suas culturas. O exótico não existe, nada disso existe. Seja cara de pau, se empodere, explore mais o seu lugar de fala e tenha voz, se defenda, exerça seus direitos como mulher e tenha orgulho em ser quem é.

Na “Tropicália” o homem é objetivado como as mulheres foram na História, a personagem principal é a presidente das tais “terras prometidas” e suas falas são recheadas de malícia e sarcasmo. Fernanda termina brilhantemente criando um lugar de fala dentro do espectro do preconceito e da discriminação em relação à diversidade da sociedade e das liberdades individuais.

Fernanda se revela uma artista contestadora, uma persona de olhar progressivo, autocrítica e com linguagem afiada, a voz necessária que se levanta por meio dos gêneros e ecoa na

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nossa era de extensas fronteiras visíveis e invisíveis. O seu trabalho nos diverte e se debruça sobre o doce veneno provocador da consciência do próprio corpo feminino e o de seu espaço de ação e fala.

A sua obra desperta e nos humaniza na tentativa incansável e resiliente de nos tornarmos uma sociedade menos violenta, sem preconceitos e livres do mal-estar social que temos vivenciado com a intolerância e a ignorância de grupos e indivíduos de várias partes do planeta.