Homenagem a Jean Boghici

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Foto: Banco de Imagens TN Petróleo

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BOGHICI, o pioneiro das artes

por Orlando Santos

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Quando, em 2012, o apartamento da família Boghici pegou fogo em Copacabana, a imprensa, em sua totalidade, ficou preocupada com as inúmeras e valiosas obras de arte que podiam ter sido consumidas pelas chamas. 164

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Não era um apartamento comum e sim de Jean Boghici, o pioneiro da comercialização de obras de artes no país – e um dos seus maiores colecionadores. Entre os quadros que se perderam, duas obras-primas brasileiras, Samba, de Di Cavalcanti (foto na pág. 111), e A floresta, de Alberto Guignard. Mas a imprensa se espantou mais ainda com a reação de Jean, para quem, pior do que a perda dos quadros, o que mais lhe entristecia era a morte de um de seus gatos queridos. Os amigos, de longa data, contudo, não se surpreenderam com esta reação. Hoje,o romeno que adotou o Brasil como sua terra e em especial o Rio de Janeiro, passa boa parte de seu tempo na ponte aérea Rio-Paris, onde também tem um apartamento. Jean Boghici iniciou sua coleção dos anos 1960, comprando obras de artistas para formar um acervo com os mais importantes quadros de autores brasileiros, muitos até então desconhecidos do público. Alguns dos fatos marcantes da vida desse romeno de 86 anos completados em 2014, estão documentados na enciclopédia digital. VINDA PARA O BRASIL – Colecionador, marchand e galerista, ele estudou engenharia na Romênia e, aos 19 anos, mudou-se para Paris. Ali, viveu sem documentos, dividindo um quarto de hotel com o secretário de Brancusi (1876-1957), o escritor americano James Baldwin (1924-1987)


e o antropólogo romeno Henri H. Stahl (1901-1991). Com esse último, decidiu vir para o Brasil, aonde chegam em 1949. Sem dinheiro e documentos, Boghici dorme algumas noites na praia de Copacabana e então segue para Belo Horizonte. Trabalha como eletricista na Casa Isnard e conhece Guignard (1896-1962), conforme relata no catálogo da exposição que mais tarde organiza sobre o artista. Muda-se para Governador Valadares, em Minas Gerais, para trabalhar na firma de engenharia Morris Knudsen. Faz desenhos fortemente expressionistas como temas tirados da miséria local. Segundo conta, é então que desenvolve o gosto por desenhar, animado também por uma exposição de Vincent Van Gogh (18531890), que vê em Paris, em 1948. De volta ao Rio, monta uma oficina de conserto de televisões e ao mesmo tempo trabalha como vitrinista numa loja de roupas para homens, a Ducal, de José Carvalho. Este, mais tarde torna-se sócio da Petite Galerie, onde Boghici tem sua primeira experiência como galerista, ao realizar a exposição do pintor primitivo Pedro Paulo Leal (1894-1968). Nesse período, assiste às aulas práticas que o pintor francês André Lhote (1885-1962) ministra no Rio a convite da Prefeitura da cidade. É contratado pela Fundação Cultural do Distrito Federal, cujo diretor é o poeta e crítico Ferreira Gullar (1930), para pesquisar arte popular brasileira. Junto com o cronista José Carlos de Oliveira (1934-1986), também contratado, ele percorre o Norte e o Nordeste do país adquirindo obras que formariam o acervo do Museu da Arte Popular de Brasília, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012). Quando o presidente Jânio Quadros (1917-1992) renuncia, em 1961, eles já haviam adquirido 40 caixas de obras brasileiras. A PRIMEIRA GALERIA – Boghici inaugura, em 1961, a Galeria Relevo. Tem dois sócios, Jonas Prochovnic, vendedor de automóveis, e Eryma Carneiro, advogado tributarista – juntamente com o filho deste, Carlos Eryma. A inauguração ocorre em agosto, na avenida Copacabana, 252. Os sócios são ligados por uma rede de relações não apenas profissionais. Prochovnic é quem financia a galeria. Sua revendedora está localizada no mesmo prédio em Copacabana, onde moram Lygia Clark (1920-1988) e Giovanna Bonino, dona da galeria que representa a artista. Henri Stahl, antigo companheiro de quarto de Boghici, é sócio de Prochovnic na revendedora, e amigo de Carlos Eryma, cujo pai, já citado, Eryma Carneiro, é colecionador. O sobrinho deste, Evandro Carneiro, trabalha na galeria. O secretário da galeria é Matias Marcier, filho do pintor Emeric

Marcier (1916-1990), também romeno, cuja exposição inaugura o espaço. A primeira obra vendida por Boghici é uma urna marajoara pertencente a um frequentador da revendedora de Prochovnic. O comprador é o mecenas Raymundo Ottoni da Castro Maya (1894-1968), mais tarde cliente habitual da galeria. As obras das exposições vendem bem. Boghici investe em obras de artistas de sucesso já com galerias, como Alfredo Volpi (1896-1988), Di Cavalcanti (1897-1976), José Pancetti (1902-1958), Dacosta e Guignard. Ao mesmo tempo, na contracorrente, aposta nos artistas cariocas da nova figuração, quando a tendência dominante era o informalismo abstrato. É pela produção de artistas como Antônio Dias (1944), Rubens Gerchman (1942-2008) e Wanda Pimentel (1948) que ele se interessa. ARTE BRASILEIRA EM PARIS – Em 1964, depois de uma exposição malsucedida de Antônio Dias, decide levar as obras para Paris, onde vende boa parte delas. A essa altura, Boghici se associa à marchand e jornalista Ceres Franco, que reside em Paris e ali mantém a galeria L’Oeil de Bouef. Nessa época, eles se aproximam dos jovens artistas ligados à Escola de Paris, como Guillaume Corneille (1922), Peter Foldès (1924), Michel Macréau, Antonio Berni (1905-1981) e Antonio Segui (1934). Parte desses artistas forma o contingente estrangeiro da mostra Opinião 65, que Boghici e Ceres organizam no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM/RJ). A inauguração acontece em agosto de 1965, com a participação de 29 artistas. Estão presentes, entre outros, os brasileiros Antônio Dias, Rubens TN Petróleo 97

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coffee break Gerchman, Carlos Vergara (1941), Hélio Oiticica (1937-1980), Ivan Freitas (1932), Ivan Serpa (19231973) e Roberto Magalhães (1940). Dentre os artistas estrangeiros estão Juan Genovés (1930), Wright Royston Adzak (1927), Alain Jacquet (1939-2008) e Gérard Tisserand (1934). O nome da exposição se deve ao show Opinião, realizado no ano anterior com a cantora Nara Leão (1942-1989), e se inspira em uma música do sambista Zé Keti (1921-1999). A exposição tem boa repercussão, tanto que enseja uma segunda edição em 1966, a Opinião 66, e serve de modelo para duas mostras realizadas na Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), em São Paulo. Entre outras coisas, é ali que Hélio Oiticica apresenta publicamente pela primeira vez seus parangolés. Alguns artistas participantes consideram que passaram a ser mais respeitados a partir de então. A Galeria Relevo inaugura a mostra Supermercado 66, com obras de pequeno tamanho de 90 artistas, a preços acessíveis e colocadas em sacos de papel. A Relevo expõe ainda Samuel Buri (1935), Giorgio Morandi (1890-1964) e o pintor chileno Nemésio Antunes. Mas, por volta de 1967, a atividade começa a declinar por conta da situação política e da dificuldade em renovar o contrato com o proprietário da loja. VOLTA AO MUNDO – Boghici fecha a galeria em 1969 e viaja pelo mundo. De volta ao Brasil, abre em 1979 uma nova galeria – desta vez com seu próprio nome. É inaugurada com uma mostra de Joaquim Torres-García e expõe artistas importantes, como Alexander Calder (1898-1976), Frans Krajcberg (1921), Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), Maria Martins (1894-1973), Guignard e Marcier. Em 1980, apresenta a mostra Homenagem a Mário Pedrosa, por ocasião da volta de Pedrosa do exílio. O catálogo contém textos de escritores e críticos como Hélio Pellegrino (1924-1988), Clarival do Prado Valladares (1918-1983), Pierre Restany (1930-2003) e Ferreira Gullar. Outras coletivas notáveis foram 150 anos de Pintura no Brasil: Coleção Sérgio Fadel e Mestres da Pintura Chinesa do Século XX. Boghici também organiza eventos no Rio de Janeiro, fora da galeria. No Copacabana Palace, faz exposição Realismo poético do Rio de Janeiro séculos XIX e XX, na Obra de Gustavo Dall’ara e Jorge Eduardo. Na Casa França Brasil, organiza Missão Artística Francesa e Pintores Viajantes: França-Brasil no século XIX, pelos 200 anos da Revolução Francesa, e Cícero Dias 90 Anos: Oito Décadas de Pintura. Para a ECO92, idealiza a mostra Natureza: Quatro Séculos de Arte no Brasil, realizada no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB). No ano passado, expôs mais obras no Museu de Arte do Rio, na Praça Mauá, e tem participado do ArtRio, no Cais do Porto. A galeria Jean Boghici conti166

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nua aberta no número 180 da rua Joana Angélica, em Ipanema, Rio de Janeiro, onde Jean passa boa parte do seu tempo quando está na cidade. Coleções de peso – Todas as pessoas envolvidas no mercado de arte são unânimes em afirmar que a participação pioneira de Jean na comercialização desse mercado a partir dos anos 1960 foi importante para desencadear uma estratégia inovadora de seu setor ainda incipiente. Pessoalmente ou à frente de suas galerias, Jean desenvolveu e estimulou um trabalho que possibilitou, entre outras coisas, o surgimento de artistas poucos conhecidos. Além disso, paralelamente, por indicação de Jean, vários colecionadores iniciantes foram enriquecendo os seus acervos particulares, e coleções de peso se formaram sob a tutela criteriosa desse romeno alegre e espirituoso. Guilherme Rodrigues, que herdou do pai Genaro, há mais de 50 anos, a técnica milenar da impressão litográfica utilizando pedras de calcário, conhece bastante Boghici, e dá o seu testemunho. Para Guilherme, além de possuir um dos maiores acervos de arte, Jean foi o responsável pela existência de algumas das melhores coleções de arte do nosso país, a partir do Rio, servindo como uma espécie de curador delas com seu aval pioneiro e criterioso.

UMA BELA PARCERIA Jean Boghici e Benicio Biz, da TN Petróleo, já se juntaram por mais de uma dezena de vezes para a criação e produção de livros e catálogos de arte – alguns deles esgotados. Talvez o mais importante de todos tenha sido sobre o pintor pernambucano Cícero Dias. A obra foi entregue pelos autores ao artista, em solenidade na sede da Unesco em Paris, pois Cícero era funcionário da entidade. Uma nova parceria está em curso, para a retomada desse trabalho, de fundamental importância para a iconografia da arte brasileira de todos os tempos.

Capa do livro Cícero Dias, lançado na Unesco em Paris, 1996 Patrocínio: Banco Icatu


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A arte moderna brasileira em NovA dimeNsão

Após seis meses em obras, o terceiro piso do Museu Nacional de Belas Artes (MNBA), no Centro do rio, é reaberto para exibir a mostra permanente da Galeria de Arte Brasileira Moderna e Contemporânea, que teve seu acervo ampliado. o espaço, que antes obrigava 180 trabalhos, agora apresenta 205 obras, a maior parte doações, assinadas por 170 artistas.

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GAleRIA de ARTe BRAsIleIRA ModeRNA e CoNTeMPoRÂNeA mNBA - museu Nacional de Belas Artes Av. Rio Branco, 199 – Cinelândia – RJ Tel: (55 21) 2219 8474 entrada franca 104

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por orlando santos

no acervo foram incluídas obras como Retrato de Yeda Schmidt (esposa do falecido empresário Augusto Frederico schmidt), de candido portinari; telas de Willys de castro, Décio Vieira, João Fahrion, Timóteo da costa, Alex Flemming, gravuras de Maria bonomi, Fayga ostrower e Gilvan samico; e esculturas de celso Antonio, entre outros. com 1.800 m2, divididos em dois andares, a Galeria de Arte brasileira Moderna e contemporânea apresenta no primeiro piso o movimento da Abstração na gravura, com destaque para obras de Fayga ostrower, Anna bella Geiger, rossini perez, Artur piza Dora basílio, edith behring, Anna letycia, entre outros. no segundo andar, artistas como Gilvan samico, Maria bonomi, leonilson, carlos Martins, Adir botelho, rubem Grilo, cláudio Mubarac, Fernando Vilela se reúnem a outros nomes que refletem a importância da gravura na produção artística brasileira das décadas de 1980 até hoje. na tocante às esculturas, novas peças também são apresentadas, de artistas como Farnese de Andrade, celso Antonio, rubens


um DoS PilAReS da revitalização da zona portuária, o Museu de Arte do Rio, ou simplesmente MAR, finalmente foi inaugurado, depois de dois adiamentos, apresentando quatro exposições simultâneas, incluindo a do marchand Jean Boghici, exibindo a cenografia mais ousada entre as quatro exposições inaugurais. o cenário da montagem de “o Colecionador”, deixa as pinturas suspensas por cabos numa espécie de espiral na qual o público pode entrar. No centro de tudo, estão as esculturas e os objetos. As quatro exposições e mais o acervo do MAR, contemplam a história da cidade a questões da arte. São mostradas obras de arte de cartões postais e cartazes publicitários do Rio, assim como o acervo de outro grande colecionador, Sérgio Fadel. mas, sem sombra de dúvida, a grande espectativa é pela mostra das 136 obras de Boghici, muitas delas desconhecidas do grande público, algumas sobreviventes do incêndio que danificou peças preciosas no apartamento do colecionador, no ano passado. Das obras previstas inicialmente para a exposição, apenas 10% foram atingidas pelo fogo. Boghici considera essa uma das grandes mostras do seu belo acervo. Num local dos mais charmosos. TN Petróleo 88

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Foto: divulgação

Fotos: Banco de Imagens TN Petróleo

Gerchman, zélia salgado, Abraham palatnik e um bronze retratando carlos oswald, recém-doado ao MnbA pela família do artista, de autoria de paulo Mazzucchelli. os novos trabalhos completam a coleção anterior que volta a exibir autores como: Manabu Mabe, iberê camargo, beatriz Milhazes, eliseu Visconti, Di cavalcanti, Jorge Guinle Filho, Tarsila do Amaral, carlos oswald, Gonçalo ivo, Mauricio bentes, Amílcar de castro, pancetti, Guignard, Tomie ohtake, Marcos coelho benjamin, Antonio Henrique Amaral, etc. A Galeria de Arte brasileira Moderna e contemporânea do MnbA abriga uma das raras mostras na qual se pode descortinar num só espaço todo um relevante percurso artístico que vai do início do século XX até o contemporâneo no brasil.

RIo GANHA MUseU de ARTe NA PRAçA MAUá


28/01/1928 (Ismail, Romênia) 31/05/2015 (Rio de Janeiro)

Orlando Santos, Jean Boghici e Benício Biz


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