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Textos da Curadoria

“Há pessoas que transformam o sol numa simples mancha amarela, mas há aquelas que fazem de uma simples mancha amarela o próprio sol.” (Pablo Picasso)

“Guinendade” é uma exposição de Artes Plásticas da Guiné-Bissau que responde a um desafio lançado pela UCCLA e assumido por uma curadoria de três guineenses que a organizaram em três núcleos, projetando aspetos de uma cultura edificada numa diversidade imensa, assente em raízes de uma trintena de comunidades, cada uma delas exibindo marcas e expressões próprias.

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O primeiro núcleo apresentado é o da Panaria, com cerca de 15 obras, imortalizada na herança ancestral conhecida por “Panu di Obra” ou “Panu di Pinti” (Pano de Pente), cuja origem é atribuída aos manjacos, experientes na arte de tingir o tecido e usar com sapiência o tear, atividade em que são acompanhados sobretudo pelas comunidades Papel e Fula. Esta arte está ligada a diferentes momentos da vida guineense que vão das festividades do casamento, à exibição de prosperidade e proteção e também nas cerimónias fúnebres.

O segundo núcleo é constituído por 41 peças etnográficas em representação da imensa riqueza cultural e patrimonial guineense, produzido pelos multifacetados saberes dos grupos e comunidades do país. Perfilam-se trabalhos de Bijagó, Felupe, Nalú, Mandinga, Fula e Mandjaco. São adornos para várias funções, Máscaras, Bastões, Esculturas, em madeira e pedra, Bilhas, Punhais, Machados. Destacam-se ainda peças modernas do Escultor Rui Vasquez, inspiradas no artesanato guineense.

No terceiro núcleo perfilam-se 28 obras de artistas contemporâneos com grande diversidade de cores e imagens, em grande parte retratando a vida de pessoas e o seu quotidiano.

O ontem das artes plásticas guineense está povoado de traços e imagens de reconhecida diversidade artística, com parte significativa de pendor etnológico, exibindo eloquentes falas e formas que abarcam diferentes períodos e incidem em vivências sociais e das comunidades. Entre nomes e figuras que a história regista como autores desta arte, ressalta de imediato a figura de Augusto Trigo, nascido em 1938, o primeiro grande mestre das cores mágicas que marcaram de forma indelével o dealbar de uma fase nova na expressão artística que ele soube assumir e interpretar, respeitando as marcas pictóricas da multifacetada cultura guineense que ele gradualmente foi transportando com o sossego que ele próprio incarna como pessoa e como artista. Trigo perscrutou a sociedade e as suas histórias. Criou, observando a natureza. Criou, indo por etapas ao património cultural, certamente marcado pelas histórias que lhe foram contadas enquanto menino, nos djumbai da sua ilha natal, Bolama, a antiga capital, como atesta a sua imensa produção na época em que os seus quadros embelezavam a maioria dos serviços públicos em Bissau.

Cabe registar nomes de outros guineenses que, no mesmo período colonial, integraram a lista de seguidores das pegadas do mestre Trigo. São eles Augusto Nogueira, Raul Freire Andrade, Armindo Fonseca, Paulino Ferreira, Paulino Lopes, os irmãos Carlos e Zeca Castro Fernandes, Amisson Lima, entre outros. Todos, cada um com o seu estilo, deram o seu contributo inspirando-se nos valores de uma guinendade então em processo de formação, fixando cores, paisagens e aspetos marcantes do quotidiano e muito da vida cultural. Todos autodidatas, mas eivados de brio profissional, iam assumindo esta arte com entusiasmo e dedicação à medida das suas posses, na ausência de estruturas e organizações vocacionadas para a promoção da arte.

A situação política e o clima de guerra, que provocaram a deslocação de famílias inteiras, sobretudo nos finais da década de 60 e início de 70, beliscaram de certa maneira a intensidade criativa dos amantes da arte e de outros bem mais jovens em fase de iniciação. Mas nas tabancas, embora também deslocadas várias vezes por mor da guerra em fase cada vez mais dura, os artesãos, tecelões, escultores, continuaram, embora de forma mais reduzida, a dar vida às suas criações, valorizando a cultura.

Mas indo ainda ao baú do passado recente, já no período pós-colonial, encontramos o momento áureo em que a cultura na Guiné-Bissau conheceu espaços de valorização, incentivada pelo discurso oficial, sendo-lhe atribuído o estatuto de parceira no conjunto das políticas de desenvolvimento, subindo assim degraus nunca dantes vistos, com suportes firmados na criação de infraestruturas e programas definidos de forma harmoniosa e em sintonia com valores emanados do chão da guinendade. Vivia-se a fase primeira da independência, época de grandes opções e com tudo por fazer. Era a década de setenta, o país emergente enfrentava enormes carências de toda a ordem. Ainda assim, à cultura foi conferido lugar de primazia na longa lista de prioridades.

O novo poder traduzia o discurso político em atos, ações e iniciativas em sintonia com os ditames do desenvolvimento, batizado de “reconstrução nacional”. Os atores-beneficiários eram maioritariamente meninos e jovens ávidos de aprender seguindo a linha do fazer mais e melhor, por isso disponíveis para a longa caminhada que os bombolons anunciavam. Na batuta estava um homem da cultura da geração de Amílcar Cabral, Mário de Andrade, um dos seus companheiros, com uma vasta experiência adquirida na sua terra natal, Angola, mas caldeada em Portugal, França, onde viveu períodos de grandes mutações políticas e sociais ocorridas na sequência do Movimento de Maio de 68. Companheiro também de Alioune Diop, Cheick Anta Diop, Aimé Césaire, Senghor, uma mão cheia de estudantes e nacionalistas africanos e antilheses, enfim, todos eles figuras ligadas à prestigiada “Présence Africaine”, com uma Editora renomada mercê de várias atividades socioculturais na terra de Albert Camus e de Jean-Paul Sartre, em franca mutação, irradiando efeitos de contágio pelo mundo fora.

Os meninos-aprendizes de então, hoje, fazem questão de erguer a bandeira da resiliência produzindo arte guineense “Ku kil ki ten”, para assim celebrar o contexto em que ocorreu o processo de aprendizagem e realização artística resultante da construção de infraestruturas, programas e jornadas formativas como uma vitória que perdura, exibindo resultados concretos. No entanto, seriam contrariados na fase posterior, a partir da década de oitenta, marcada por uma inércia aberrante que redundou num retrocesso doloroso, ademais patente nas diferentes esferas da vida do país de Amílcar Cabral, o homem que afirmava ser o processo de luta pela independência “um ato de cultura”. Essa mesma cultura foi penalizada e algumas das conquistas obtidas no primeiro quinquénio, não só não foram capitalizadas, antes foram abandonadas e esquecidas.

À guisa de factos que a história nos legou, é de bom-tom registar a criação da “Casa de Cultura”, que tinha por função promover o livro, a leitura, as artes plásticas, o debate de ideias. O seu primeiro responsável foi Carlos Lopes e depois Duco C. Fernandes, os seus grandes impulsionadores e animadores, que lhe deram vida e razão de ser na programada segunda fase, que apontava abertura de outras “Casas”, nomeadamente em Bafatá, Gabu, Bolama e, numa terceira fase, uma em cada região. Foi criado o DEDILD (Departamento de Edição e Difusão do Livro e do Disco), a Escola da Música, e relançados o Ballet “Esta é a Nossa Pátria Amada” e o Instituto Nacional de Cinema. Em fase de conceção perfilavam-se programas que faziam

parte de uma carteira repleta de objetivos que projetavam a Cultura e os seus agentes a uma dimensão nacional inspirada nas asas nascidas de um sonho ninado no berço das Colinas do Boé, dois anos antes da proclamação da independência.

Muitas foram as jornadas, seminários, cursos intensivos de formação em diferentes áreas e disciplinas da cultura, com reputados formadores selecionados criteriosamente ao abrigo de acordos de cooperação existentes com países amigos. O perfume da Cultura subia e espalhava-se…, multiplicavam-se as bandas e os festivais de música. O teatro encontrou palco projetando-se com o Grupo “AFROCID”, criado em 1975 e dirigido pela brasileira Teresa Santos, na peça que surpreendeu Bissau no ano seguinte, “Milo”, que colocava na agenda a relação Mulher-Homem e a sociedade. Carlos Vaz e Luís Badaró vieram a seguir e deram ânimo e impulso a esta arte, muito do agrado dos guineenses. As artes plásticas conheceram um forte arranque na “1ª Exposição de Pintura Moderna Guineense”, uma coletiva com a participação de uma dezena de jovens artistas, sendo que uma boa parte deles continua emprestando cores e tons inovadores a esta arte.

Enorme foi a alegria e a recetividade dos artistas, que tinham vivido um clima de incerteza, dúvidas e desesperança, ao sentirem os primeiros sinais de uma aragem fresca que indiciava políticas culturais amplas com garantias de continuidade. Algo novo estaria a acontecer… e aconteceu. Entre os jovens “tocados” pela pintura, seguindo as pegadas deixadas por Augusto Trigo, hoje a viver em Portugal, destacaram-se alguns resistentes continuadores, como Galóga, Diamantino, Lacerda, Lilison Cordeiro, Domingos Luísa, Djibril, Manuel Júlio, Fernando Júlio e Carlos Barros, o “Carbar”, agora “mestre Carbate” que, por conta própria, enquanto produz, forma “miúdos para a nossa arte não morrer”.

A abordagem temática destes “novos” criadores, mas já com anos de trabalho nas artes plásticas, foi-se aprofundando à medida que encontravam inspiração nos tons ora quentes, ora suaves, da rica panaria, enquanto se familiarizavam com os pigmentos usados pelos escultores na hora da feitura, para dar cor e expressão às suas criações. Os artistas aproximavam-se cada vez mais do “campus” da função social/comunitária que essas figuras em si inserem. E com os conhecimentos acomulados foram à tela inovando. E das suas mãos fizeram nascer imagens sedutoras e contagiantes, ao mesmo tempo que sensibilizavam os mais jovens para um olhar mais atento à sociedade para melhor chegarem às telas encantadas, parideiras de vida em partos de criatividade e de saber, impregnando-as de imagens que nos falam, e nos chegam à alma pelos olhos inundados de cores e tons que não pedem licença para nos interpelar, entregando a cada um ferramentas novas para mais facilmente interpretarem o ser e o ter, no ato de partilhar os saberes.

Num ápice, máscaras, baka bruto, alimentaram os seus traços na linhagem expressiva dos adornos de costas e de cabeça bijagós, bastões, o “canta-pó” balanta, pássaros Nalus, objetos e utensílios dos vários grupos do multifacetado mosaico guineense. Meletcho dos meninos de praça”, bilhas e potes manjacos, a amargura-escrava dos “meninus di kriason”, das “crianças talibés” de canecas de lata penduradas ao pescoço pedindo esmolas pelas ruas, foram recriados e levados com toques de magia e denúncia à tela para que a marcha do tempo não faça esquecer as dores e as mágoas. E na mutação das cores transportadas nos pincéis e espátulas, feitos velas navegantes, fizeram pousar a “alma beafada” nas telas virgens, enriquecendo-as com a serenidade contagiante das suas cores encantadas, depois de voos esbaforidos, anunciando a chegada da chuva amiga. Balobas, Bembas, Bolanhas, Lalas, Kusundé, Baile de Tina, Tambor, Kumpó, Korá, Mandjuandadis, todas as figuras do edifício cultural guineense e do imaginário coletivo, foram convocadas ao ato de criação dos artistas, com entrada direta

nos frescos em reconfiguração, alimentando a crença que da guinendade nascerão forças que farão esquecer o hoje agreste que a terra vive, com artistas a inventarem tintas e telas a partir do corpo das árvores.

Para além dos artistas já mencionados, que fizeram e fazem a ponte entre o passado e o presente, acrescentam-se outros nomes sonantes, na terra ou residentes no estrangeiro, como Manuela Jardim, João Carlos Barros, Lemos Djatá; Irley Barbosa, Sidney Cerqueira, Hipólito Djatá, Sidney Cerqueira, Kevin M. Lima, Felisberto Pereira (Botodjo), Mo, Helena Neves, Aly Silva, Serafim dos Santos e Maio Copé. Todos eles sustentam um desempenho artístico em prol de uma Guiné-Bissau positiva.

Mas hoje, a figura tutelar, a mais representativa da Guiné-Bissau no mundo das Artes Plásticas, premiado com várias distinções, é sem sombra de dúvida Nú Barreto – o menino que um dia deixou a zona fronteiriça do norte da nossa terra, São Domingos, em direção a Paris, levado por um tio. O menino fez-se homem e o homem revelou-se artista. Estudou, fez várias formações e especializações em França nas áreas da Fotografia e da Pintura.

Nú elevou-se a uma dimensão superior pela via do trabalho, tornando-se um digno representante não só da Guiné-Bissau, como de toda a África, pela beleza artística e estética das suas obras e pelos seus conteúdos e abordagens. As suas obras percorrem os quatro continentes. Por estes dias, por exemplo, podem ser vistas na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, na exposição “Europa Oxalá”, como no National Museum of African American History and Culture, Washington DC, EUA e como em muitos outros espaços da Europa, África, Ásia e América.

Este artista interventivo, de rara sensibilidade criativa, que integra a equipa da curadoria deste certame sob o título genérico de “Guinendade” tem sido um autêntico Embaixador da Cultura Guineense no mundo, exibindo quadros de enorme valia pictórica e abordando temas que obrigam a uma reflexão séria sobre o mundo atual, a nossa realidade e os problemas socioculturais e até de sobrevivência que hoje se colocam a toda a humanidade.

Esta exposição, a que se juntam dois portugueses, o Professor Mário Varela, profundo conhecedor do universo cultural guineense, e o Escultor Rui Vasquez, que presenteia os visitantes com esculturas modernas inspiradas nos artefactos e figuras da etnografia guineenses. São duas enormes contribuições que estendem a cultura guineense à lusa terra amiga. O conjunto das obras desta exposição, batizada de “Guinendade”, reflete a forma de estar e de ser dos guineenses no seu reconhecido saber partilhar e saber receber os amigos. Fica o desafio. Desfrutem dos trabalhos expostos, que mais não são do que pedaços da vasta riqueza cultural, de mais de uma trintena de grupos comunitários, aqui apresentados pelas mãos obreiras de tecelões, pintores e escultores de ontem e de hoje. São panos-pente, batik, esculturas, adornos, esculturas, telas, enfim, condimentos para encher os olhos e deliciar a alma. Bem-vindos!

Tony Tcheka

Como membro da curadoria desta pertinente exposição - Olhares da Guinendade – Artes da Guiné-Bissau, considerei elementar que um dos seus núcleos ilustrasse e retratasse os panos d´obra da Guiné-Bissau. Para que o visitante desta exposição ou o leitor deste catálogo possa entender melhor o contexto histórico, social e artístico destas peças de arte, considero necessário recorrer ao estudo e investigação que elaborei num anterior projeto - Têxteis Africanos. O qual nasceu precisamente da memória dos panos d´obra da Guiné-Bissau integrados nas coleções do Museu Nacional de Etnologia de Lisboa.

Este estudo conduziu a uma (re)criação simbólica, resultado da descoberta de novas funções para os têxteis/panos, um novo imaginário, onde o humano e a função criativa se complementam e diluem. A cultura e a pessoa surgem em cada novo pigmento, em cada nova forma, em cada novo olhar, atravessando o objeto artístico e dando lugar a uma idealização identitária.

Através do conjunto dos elementos que o constituem e das circunstâncias que lhe deram origem, o pano d´obra adquire um profundo significado humano, que não se esgota na sua análise. Guarda reservas de comunicabilidade que darão margem a que outros meios e outras épocas o assimilem, descobrindo-lhe um conteúdo novo, mantendo-o vivo e presente.

Da pesquisa e da observação dos panos d´obra do museu e da experimentação em combinação com conceitos estéticos, criativos e de diálogo intercultural, resultaram trabalhos com suporte em papel reciclado em analogia à textura dos panos. Sobre o papel são aplicadas técnicas de desenho, pintura e escultura.

Este projeto foi primeiramente apresentado na Exposição Através dos Panos (2005 a 2008) no Museu Nacional de Etnologia. A dinamização de Oficinas lúdico-pedagógicas do serviço educativo do museu que se seguiu assume uma particular importância no desenvolvimento global do indivíduo e na organização das sociedades.

As coleções de panos d´obra do Museu Nacional de Etnologia foram recolhidas nas décadas de 60 e 70 pelos etnólogos Fernando Rogado Quintino e António Carreira, respetivamente nascidos na Guiné e em Cabo Verde1 .

O estudo foi realizado de modo a que se pudesse também entender a participação de outras componentes, como: a organização dos panos em bandas ou tiras, a feitura em tear, a tingidura do algodão, os motivos decorativos e a importância social e cultural do pano no vestuário.

Assim, a História diz-nos que foi com os primeiros escravos trazidos da Guiné2, no século XV, onde já há muito a tecelagem era conhecida, que se deu a entrada deste tipo de panos e a respetiva produção em Cabo Verde. Com eles aparecem em Cabo Verde os teares tradicionais da Guiné, e muitos dos padrões ali usados eram de origem Fula, Mandinga e Manjaco.

António Carreira, no seu livro Panaria Cabo-Verdiano-Guineense, descreve o conjunto de circunstâncias que favoreceram, no século XVI, o desenvolvimento da panaria nas ilhas de Cabo Verde, como: a necessidade de criar moeda para a obtenção de escravos e outros produtos africanos na costa da Guiné; a utilização dos escravos para a plantação e preparação do algodão e tingidura com plantas tintureiras; a presença de escravos-tecelões de etnias guineenses conhecedores da arte da tecelagem.

Na sequência da pesquisa realizada, define-se por pano

1 A análise de documentos da época, a leitura do livro Panaria Cabo-Verdiano - Guineense de António Carreira e a observação dos panos da coleção do museu contribui para o conhecimento da História dos panos. A relação Cabo Verde – Guiné é enformada pela importância da trilogia escravatura, panos e algodão, sem esquecer os aspetos políticos, económicos e sociais. 2 Carreira, António. Panaria Cabo-Verdiano-Guineense. Junta da Investigação do Ultramar, Museu de Etnologia do Ultramar. Lisboa 1968

d´obra todo aquele que é formado por bandas ou tiras e feito em tear horizontal de pedais de origem sudanesa. A dificuldade da obra valoriza o pano, tornando-o mais caro. O pano é utilizado como vestimenta, mortalha ou ainda para transportar às costas crianças pequenas.

Na Guiné, os panos d´obra são designados por panu di pinti e feitos em linha de algodão preto e branco, ou algodão e seda de várias cores. Em Cabo Verde é conhecido por panu di terra. Geralmente é feito em linha de algodão azul e branco ou preto e branco. No século XVI, a utilização de lã na tecelagem dos panos da Guiné e de Cabo Verde, bem pode ser uma reminiscência de técnicas de tecelagem utilizadas pelos Mandingas com o objetivo de obter determinada textura.

Os motivos decorativos do pano d´obra são simétricos e geométricos e demonstram a grande riqueza criativa dos tecelões. A técnica de decoração é feita durante a tecelagem, em desenhos que formam padrões complexos compostos por losangos, figuras, estrelas e rosáceas. Os motivos da faixa central diferem de pano para pano, sendo os padrões variados que dão geralmente o nome ao pano. Os das faixas transversais pouco variam entre si. Neste grupo, as rosáceas, espécie de estrelas de oito pontas, predominam nos panos d´obra cabo-verdianos e a cruz de Cristo centrada em losangos predomina nos panos guineenses. A técnica dos desenhos geométricos, pensa-se, terá sido introduzida pelos portugueses, no século XVI, na tecelagem destes dois países, devido aos contactos com os árabes na Península Ibérica. A indústria da tecelagem deu incremento à utilização de plantas tintureiras como a urzela e o índigo para a tingidura dos fios de algodão. Especialmente o índigo, com que se obtinha uma cor azulada, tendendo por vezes para o preto, em função das doses de tinta utilizadas, o que era muito apreciado.

Do século XVI até ao final do século XVII (ponto alto do tráfego negreiro), a arte de tecer foi acompanhada de muita prosperidade para aqueles que produziam e negociavam em panos.

A partir da 1ª metade do século XVIII, razões várias ditaram o fim do cultivo do algodão em Cabo Verde e da tecelagem nas ilhas: as secas constantes, a proibição de venda de panos a estrangeiros, a abolição do tráfego de escravos, o insucesso das companhias monopolistas, etc.

A partir do século XIX, o pano d´obra apenas resistiu no seio das tradições familiares, muitas vezes associadas a acontecimentos festivos.

Na Guiné, e mesmo com as transformações resultantes do impacto de outras culturas, a herança têxtil manteve o seu lugar de destaque: nos ritos de passagem (fanado), nos contratos de casamento, nos funerais e mortalha de defuntos, nas apresentações de cumprimentos, etc. A produção de panos d´obra na Guiné está ligada às etnias Papel, Manjaco, Fula e Mandinga.

Para melhor se entender a importância destas etnias na confeção dos panos, torna-se necessário entender o agrupamento social e religioso a que pertencem. Assim, aos povos islamizados da região de Farim, Bafatá e Gabu, pertencem os Mandingas e os Fulas. A par da atividade de confeção de bandas ou tiras, é exercida uma outra mais intensa, a tinturaria, geralmente a cargo de famílias Saracolés. Estes tintureiros organizam-se em comunidades quase fechadas e habitualmente só se casam entre si. Constroem as suas casas nos pontos extremos do povoado junto à margem de rios ou de poços onde o complicado sistema da tinturaria é montado, dada a grande quantidade de água necessária para a lavagem dos panos tingidos. O azul anil, mais ou menos carregado, é a cor predominante nas tingiduras do algodão.

Entre as etnias animistas que produzem panos destacam-se os Manjacos e os Papéis. Estas etnias praticamente só produzem panos d´obra. Na sua organização social existem

categorias de idades, castas e classes. Nas classes sociais encontramos as profissionais, onde aparecem os tecelões. Curioso é de notar que, enquanto a atividade de tecelão só pode ser exercida por homens, a de tintureiro pode ser exercido por mulheres. A panaria confecionada pela etnia Manjaco e Papel é muito elaborada, sendo de notar o gosto pela combinação de cores. As tiras, ou bandas, não excedem os 20 cm de largura, mas variam de comprimento conforme a função do pano (4 a 6 tiras formam um pano).

A importância que o pano d´obra guineense tem em várias etapas da vida é reforçada pelo uso de padrões que, pela sua leitura, revelam a situação daquele que o veste. Tomemos como exemplo: o parida de borboleta, também chamado pano de ronco, é usado por mulheres grávidas de homens abastados; o dana rosto e o aranha são usados para os rituais de iniciação; o ouro igreja, para a festa da lavoura; o lactus e o mantampinha são vestidos pelas raparigas nos batuques e nas festas de grupo e de idade; o iran cego para as cerimónias funerárias; o boca branca é vestido pela noiva após o período de casamento e o bandeira assinala a sua virgindade. O pano obra palácio é usado para apresentar cumprimentos a um recém-chegado importante. Hoje em dia, não há grande rigor na atribuição de nome aos panos. A escolha do nome é, em alguns casos, bastante arbitrária e feita pelos próprios tecelões.

Simbolicamente o pano traz proteção, fertilidade, e é também o elo de ligação com o sobrenatural. Nos choros de defunto de todos os grupos étnicos, o pano que primeiro envolve o morto é o de bandas de algodão de cor natural, mas os Mandingas e os Papéis envolvem posteriormente o amortalhado em panos d´obra: três, vinte, cem panos, consoante o seu estatuto social e o poder económico da família. Para o luto e para a assistência às cerimónias funerárias, vestem-se panos de seis bandas, com 200 cm a 225cm de comprimento, conhecidos por Ka-Ndjande.

Os múltiplos significados do uso do pano como vestuário não só definem o estatuto, mas também o sentido estético do seu utilizador. Na Guiné, o pano simples é utilizado pelas mulheres como vestuário de trabalho. O d´obra, por ser mais elaborado, é adquirido, oferecido e acumulado em malas, como bem de valor, de herança e usado nas cerimónias sociais e nos rituais fúnebres. As crianças pequenas são transportadas e apertadas às costas da mãe por um bambarém (tira de pano de pente). Nos meios tradicionais do interior, os homens grandes usam vestir o pano cobrindo todo o corpo. O vestuário tradicional dos Fulas e dos Mandingas é o pano de bandas azul-claro tingido pelos Saracolés, podendo ser bordado ou não.

A dinâmica dos contactos culturais leva a uma evolução natural do pano d´obra. A estilização, a criação e a adaptação a mudanças sociais levam a que os padrões decorativos estejam constantemente a ser reinterpretados. Os panos industriais estampados e os panos d´obra com figuras dos principais líderes políticos, como Amílcar Cabral, e de visitantes venerados, como S. S. o Papa João Paulo II, são geralmente produzidos em contextos comemorativos ou eleições e ilustram novos modos de comunicar.

Manuela Jardim

Inconcebível seria traçar estas ou algumas linhas, sem sequer umas outras sobre um precursor das artes plásticas guineense, ou seja, sem um prévio e encantado historial de um artista que, por si só, resume a complexidade do embrião de um leque colorido e vasto, afogado na sua indivisível crença na terra animista. Aí nasceu uma força, a tal que, desvendada e atormentada, segue o destino num pulsar tanto quanto inquietado, desconhecido. Havia marcado o tempo num compassado brilho, legando à posteridade uma nobreza justa e consciente, justificando uma qualidade que perdura, embora com baços desequilíbrios nas andanças contemporâneas. O legítimo guineense de origem portuguesa chama-se Augusto Fausto Rodrigues Trigo, vulgo Augusto Trigo. Pelo seu talento, aí veiculou o historial pictural contemporâneo guineense, legando obviamente uma escola e a marca A. Trigo.

Confirmou-se que, num passado esquecido, houve algumas práticas dos poucos metropolitanos em serviços na ex-colónia, mas infelizmente nada se foi preservando localmente. Foram produções privadas e repatriadas à origem.

A prática artística do filho de Bolama, uma das antigas capitais da Guiné portuguesa, onde nasceu a 17 de outubro de 1938, foi-se aperfeiçoando e afincando numa linha própria ou pessoal, explorando um realismo académico assente num figurativo que, finalmente, propunha uma marca distintiva que os futuros alunos teriam que adotar e a ela se adaptar.

Certo é que, poucos anos depois da nascença, em termos artísticos, findava a Época Moderna (primeira metade do século vinte), abrindo-se a Época Contemporânea (a partir de 1945).

A convicção criativa e fulgurante da época ofereceu notoriedade e abriu um período de encomendas públicas, durante o qual o jovem artista proliferou com obras na cidade, marcando para a eternidade as pinceladas coloridas num fulgor da flor da juventude. Quase um padrão, tilintando cantos da cidade, mas também edifícios públicos, ainda percetíveis, embora lamentações…

A vaga pós-independência coincidiu com uma iniciativa pessoal de descobrir novos talentos e propulsá-los numa exigência merecida dum novo país, aspirando relampejar e troar pelo mundo fora, já que assumiu a sua soberania. Aí reside a pertinência do processo educativo e da formação duma jovem classe, esfomeada de objetivos sociais e culturais. Tudo isso justificava a razão da árdua conquista, pela qual mortos pelas causas, seriam cedidos à vida. Subscrevendo na íntegra a qualidade criativa florescente e incandescente nesta época, é de honra salientar que toda a Cultura guineense usufruía do brilho cobiçado. É nesta prolífica tela crítica em que mergulhada se encontrava a juventude pós-colonial, no marasmo duma conspiração, visando guiar a nova aspiração social-comunista, calcado numa imposição totalitária, onde a cultura falou mais alto, embora com sequelas.

É sim, nessa película sonora e visual, onde a Cultura deu provas duma capacidade insubstituível, pela qual artistas inventivos nascem e crescem lutando contra, opondo o afinco duma ideologia insustentável e retrógrada.

O campo musical foi dos mais insubmissos, mas também dos mais afetados. Os impactos dos gritos de desabafo soavam a quilómetros e impediam qualquer sombrio pensamento ou escondidas ideias, que por detrás se almejavam. Uma luta feroz, o desafio à liberdade foi o da nação inteira, ocultando ordens.

No contexto evocado, repleto de contestação e instabilidade política, a coabitação entre a cultura e a política foi perversamente ocultada ao povo. É o povo o fazedor da cultura, e é ao povo que a cultura pertence. Pondo de parte a inconstância ambivalente, talentos criativos emergem, colocando na cena plástica nomes como Lacerda, Diamantino, Nando Mar-

tins, Galóga, Amissão Lima, Lilison Cordeiro, Domingos Luísa/ Domingos Ka Mati, Carlitos Barros e muitos outros …

Este movimento de criadores alimentou-se do puro produto realista do precursor supracitado (A. Trigo), e absorveu igualmente as influências possíveis dum mundo em constante desenvolvimento.

Relembrando um outro apogeu efervescente da pós-independência, onde a firmeza do patente nacionalismo tilintava a criatividade e o eco soava além-fronteiras. A juventude no seu todo desafiava, como sempre, vencia por um tempo determinado, marcando indelevelmente na história as suas aspirações e inspirações.

A liberdade criativa no mundo ocidental já teria abordagens mais aprofundadas e seguidas por além-mar, sendo o palco onde se decidem correntes artísticas e ideológicas que cruzam o conceptualismo. Uma outra corrente envolvendo determinação na prática artística.

A (escola) A. Trigo permaneceu até então nessa paisagem, tornando patente, pelos vistos, uma identidade doravante a considerar.

O figurativo tornou-se desde então uma razão de sobrevivência de qualquer digno artista. Apraz saber e valorizar uma tal riqueza nacional, em prol dos praticantes e no interesse duma sociedade. É de louvar e reconhecer o legado.

Estando em marcha a prática artística contemporânea, incumbe-nos tirar ilações entre o útil e o inútil, servido explicitamente o ideal na sua essência. Só assim avança positivamente a Cultura.

A presente mostra, que tem por foco principal demonstrar o enorme leque da diversidade criativa da cultura guineense, juntando períodos e correntes, histórias e sensibilidades, gerações distintas, oferece uma indeterminada possibilidade de leitura, tentando albergar o quão vasto é a rica cultura.

Navegando na contemporaneidade, a nova geração assume o encanto herdado, exigindo, elevando e acompanhando o desenvolvimento das respetivas sociedades.

Múltiplas oportunidades se apresentam a cada passo, a cada sociedade. Incumbe à referida ficar vigilante a cada passo, de forma a contribuir para a emancipação e elevação da Cultura.

Nú Barreto