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PRECISAMOS FALAR SOBRE ‘BUY-OUT’

Espírito de coletividade renovado no combate à Covid-19 se faz necessário ante um enorme desafio para criadores de música para audiovisual: a compra total de direitos autorais imposta por gigantes da produção como Netflix e Amazon

por_ Alessandro Soler | de_ Madri | e Andrea Menezes | de_ Brasília | colaboração_ Lúcia Mota | de_ San Francisco, EUA

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A pandemia que castiga o mundo neste início de ano vai nos impactar como sociedade de maneiras e em escala ainda difíceis de prever. Uma recessão global é dada como certa, e a repercussão disso nos criadores de cultura, tão dependentes do encontro, da proximidade com o público, poderá alcançar níveis inéditos. Como no combate à doença, um renovado espírito de coletividade deverá ser a melhor arma para enfrentar outro problema crescente, prestes a estourar. Trata-se dos contratos de compra total de direitos de remuneração impostos aos autores de produtos audiovisuais (roteiristas, diretores, compositores de trilhas sonoras) por gigantes da produção de séries e filmes, como Netflix, Amazon ou Discovery.

Como a UBC publicou na primeira semana de abril, a fatura imediata da crise da Covid-19 só para o setor de shows musicais no Brasil passa dos R$ 620 milhões em prejuízos — mas deve ser muito maior. O Ecad estimou as perdas em arrecadação de direitos autorais de execução pública em R$ 140 milhões só nos meses de março, abril e maio. Já o Data SIM, braço de pesquisas da SIM São Paulo, maior feira de música do Brasil, entrevistou mais de 1,3 mil players em todo o Brasil e calculou as perdas em R$ 483 milhões.

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Com um investimento de US$ 15,1 bilhões em audiovisuais originais mundialmente só em 2019, a Netflix se transformou na maior produtora mundial de séries e filmes. Não há como não trabalhar com eles. Mas é possível pressionálos a rever sua política de contratos buy-out. À revista “Billboard”, um porta-voz não identificado da Netflix afirmou que os acordos do tipo “não são obrigatórios nem impostos”. Informação que foi desmentida por Cécile Rap-Veber, diretora de licenciamentos da mais antiga sociedade de gestão coletiva musical mundial, a francesa Sacem. Ela denunciou os “contratos americanos” oferecidos pela Netflix aos autores, além da prática sistemática de tentar transferir o foro para os EUA, onde não há direitos de execução pública musical para televisão, cinema ou streaming, por exemplo. A tática de Rap-Veber é a da “vergonha”: dar visibilidade ao tema para que a Netflix e outras produtoras se vejam obrigadas a ceder: “Estão ganhando uma fábula de dinheiro graças ao trabalho dos nossos criadores. É justo que dividam os ganhos.”

Essas companhias globais, denunciam entidades como a Cisac, praticamente agora só operam em determinados mercados com acordos do tipo, também conhecidos como buy-out (compra total). Em troca de uma soma que, em tese, cobriria os royalties futuros a que teriam direito os autores pela circulação das obras para as quais contribuíram intelectualmente, estes devem abrir mão de qualquer ganho futuro, ficando tudo com a própria produtora.

A negociação, ao ser recusada pelos criadores, resulta muitas vezes na anulação da maioria das contratações. Por isso, entrou na mira de sociedades de gestão coletiva, de organizações de defesa dos autores e de legisladores mundo afora. “É uma preocupação, um dos grandes desafios para os autores hoje, está no nosso radar agora e para o futuro. É muito importante que todos os criadores entendam como isso funciona, do que se trata, e as consequências desses contratos do tipo buyout para eles”, afirmou Gadi Oron, diretor geral da Confederação Internacional das Sociedades de Autores (Cisac), durante uma reunião em fevereiro.

A Cisac está prestes a lançar um hotsite para esclarecer as dúvidas dos autores. E um grupo de trabalho elaborará diretrizes para tentar influenciar legisladores de diversos países, harmonizando as leis internacionais e impedindo que os produtores que impõem o buy-out levem o foro dos contratos para os Estados Unidos. “Se o contrato se celebra nos EUA, vale a lei americana. Estamos tentando desenvolver um arcabouço de argumentos legais que valham em diferentes países, para que sociedades de autores de várias partes possam abordar o problema. Muitos criadores assinam esses contratos sem entender a extensão do buy-out. Ao abrir mão do dinheiro, ele não voltará. Colocamos muita ênfase na necessidade de conscientização”, resumiu Gadi Oron.

Diretora de assuntos jurídicos da entidade, a espanhola Cristina Perpiñá-Robert Navarro contou à UBC, em Madri, que a Cisac resolveu atacar o problema conforme se acumulavam as queixas vindas de sociedades de gestão coletiva ao redor do planeta. “Muitas sociedades, na Europa, na Ásia, começavam a negociar com plataformas como Netflix e Amazon. E, quando queriam incluir música, essas plataformas produtoras diziam ‘por tais e tais obras você não pode me cobrar porque temos a licença direta (buy-out) dos músicos’”, ela descreveu. “O buy-out virou a prática normal e mais difundida em mercados como Estados Unidos e Ásia.”

Para Perpiñá-Robert, a Diretiva Europeia de Direitos Autorais digitais, aprovada no ano passado, fornece uma boa base jurídica para harmonizar outras leis internacionais em torno da questão. “A diretiva prevê que o buy-out deve ser exceção, não regra. Se há um trecho de três segundos de uma música que não tem papel central na trama, pode estar justificado vender os direitos à produtora. Mas um contrato assim não pode se impor ao autor de uma trilha inteira”, ela comparou.

Outros bons exemplos vêm de países como Espanha, Itália e Polônia. Todos têm legislações que impedem a venda completa dos direitos autorais de remuneração, não importa o que digam os contratos. No final de 2019, o Uruguai se juntou à lista. “Era uma questão de justiça. Num mundo cada vez mais controlado por corporações de distribuição digital, os criadores não podem estar submetidos à lei do mais forte”, afirmou o senador uruguaio Pablo Mieres, autor da nova norma de direitos autorais do país sul-americano.

O problema, como lembra a diretora jurídica da Cisac, é a prática das plataformas produtoras de levar os contratos para os Estados Unidos, onde não há limites legais ao buy-out. Na França, um projeto de lei tenta impedir isso. Amparados em outra diretiva europeia, a de audiovisual, que prevê uma cota mínima de produção local de 30% para que plataformas como Netflix ou HBO possam operar no continente, legisladores debatem em Paris um projeto de abordagem inovadora. “O projeto prevê que, se há buy-out, não entra na cota de 30%. Ou seja, caso Netflix e companhia continuem a impor os contratos do tipo, não cumprirão a cota e terão que deixar o país”, avaliou Perpiñá-Robert.

Nos Estados Unidos, não há ainda um movimento maciço em âmbito parlamentar para se opor ao buy-out. A base liberal da legislação anglo-saxã, amparada na ideia da livre negociação a qualquer custo, impõe barreiras a iniciativas do gênero. Nada que impeça a associação Your Music, Your Future (YMYF) de lutar.

Formada por autores de diversos estados americanos — e também de outros países —, a iniciativa se uniu à Cisac na campanha de conscientização e educação que deve ganhar corpo nos próximos meses. “Não há como construir uma carreira musical baseada em contratos buy-out. Os royalties são o único caminho. O buy-out prejudica todo o ecossistema da música. Cada dólar de um trabalho pago em buy-out se retira do sistema para sempre”, disse à UBC Joel Beckerman, compositor e fundador do YMYF ao lado de criadores de trilhas sonoras famosos como John Powell (série Bourne) e Miriam Cutler (“Love”). “Leis demoram muito para mudar, mas são a única solução permanente. Sabemos que, realisticamente, esse é um processo para cinco a 10 anos. Por isso a YMYF, seus 12 mil membros nos EUA e um movimento de compositor para compositor são tão vitais.”

A pressão deles foi importante para que o Discovery Channel revisse a prática do buy-out melhor generalizado que, questionada por compositores, levou a produtora a anunciar que não contrataria mais ninguém e só usaria trilhas brancas, como são chamados os bancos de sons genéricos cujas composições também são objeto de buy-out antes da sua inclusão ali. Depois de uma intensa polêmica internacional, o gigante dos documentários voltou atrás.

No Brasil, conforme a UBC investigou, não há ainda um movimento dessa proporção, mas artistas se unem cada vez mais para denunciar esses contratos abusivos. Sob anonimato — “não quero correr o risco de nunca mais trabalhar” —, o diretor de um documentário produzido por uma grande plataforma americana no país relembrou à UBC como foi sua negociação. “Não foi oferecida qualquer possibilidade de não ceder todos os direitos futuros a eles. A roteirista, o autor da trilha e até os produtores contratados tiveram que assinar o mesmo tipo de acordo. Ou é isso ou você não trabalha. O que é que vamos fazer?”

Lucas Marcier é um dos principais compositores de trilhas para cinema e TV no Brasil. Ao lado de companheiros como Plínio Profeta, Fábio Góes, Guilherme e Ricardo Amado, Berna Sepas e muitos outros, ele criou um grupo para troca de informações sobre o buy-out no Brasil. “Muitas produtoras, principalmente as de fora, querem nos impor esses contratos. Temos peitado. O fato de estarmos entre os principais produtores de trilhas do Brasil nos dá poder de barganha”, ele explica. “Nossa pressão já tem surtido efeito. A Netflix parece mais disposta a negociar e se comprometeu a voltar a oferecer contratos mais dentro do que se faz no cinema e na TV aqui, com 25% para a parte autoral, 75% para a editorial, no Brasil; e 50/50 lá fora. O buy-out já não vem sendo tão imposto”, afirma. Para ele, não houve retaliações até agora, mas há um receio dos criadores, ao reivindicar seus direitos de modo isolado, de ficar queimados ou perder futuras oportunidades: “Não somos encrenqueiros, não queremos brigar com ninguém. Só pedimos nossos legítimos direitos.”

Procuradas nos Estados Unidos, Netflix e Amazon Studios não comentaram as acusações de imposição do buy-out e informaram apenas que os contratos são celebrados prioritariamente com foro na Califórnia por se tratar de suas sedes.

‘BUY-OUT’ EM SEIS PONTOS

1. Grandes produtoras globais do ambiente digital, como Netflix e Amazon, estão impondo contratos que preveem a cessão total de direitos futuros pelos criadores envolvidos em séries e filmes (diretores, roteiristas e autores de trilhas sonoras originais). Em troca, esses criadores recebem uma quantia que, supostamente, cobre esses valores. A prática é chamada de buy-out, ou compra total.

2. Para fugir de leis nacionais em países que têm restrições à venda total, como Espanha, Uruguai ou Itália, as produtoras levam os contratos para os EUA, onde não há regulação nesse sentido. Netflix e Amazon alegam fazê-lo porque na Califórnia estão suas sedes.

3. A França debate um projeto de lei que excluiria as produções com buy-out da cota de 30% de produção local obrigatória, o que dificultaria a presença das gigantes do streaming em seu território.

4. A Diretiva Europeia de Direitos Autorais no mercado digital prevê que o buy-out deve ser exceção, não regra, o que pode inspirar outros países na harmonização de suas leis nacionais.

5. Cisac, Your Music, Your Future e outras organizações lançarão uma campanha global de conscientização nos próximos meses para tentar encontrar soluções para o problema.

COMPOSIÇÃO ORIGINAL PARA TV: UM MERCADO QUE CONTINUA A CRESCER

Afonso Nigro faz parte de um exército crescente: o dos compositores de trilhas sonoras originais para TV, cinema, publicidade, internet... O cantor, compositor, ator e produtor, famoso por integrar durante anos o grupo Dominó, tem uma empresa de sucesso, a Nigro Entretenimento, que faz shows para empresas reunindo grandes nomes da música brasileira — inclusive online, durante a quarentena. Ele conta que, se a atividade de eventos e shows teve uma queda “brutal, sem paralelo”, as trilhas se mantiveram, o que dá uma dimensão da pujança desse segmento, como a Revista e o site da UBC vêm mostrando há pelo menos dois anos.

“Como compositor de trilhas, tenho entre meus principais clientes o SBT e a Record. O modus operandi em que atuo com eles é similar ao que se vê no mercado: quando você começa a fazer trabalhos para essas emissoras, acaba entrando nas concorrências que reúnem pelo menos três ou quatro competidores na hora de lançar a música de um novo produto”, explica o criador, que assinou as trilhas de abertura de SBT Brasil, Jornal do SBT, “Cinema em Casa”, “Programa da Maísa” e diversos outros programas.

“É fundamental ser generalista. Quem é muito especialista num determinado gênero não se dá bem. Me pedem coisas com pegada sertaneja, pop, rock, eletrônica... De sertanejo eu não entendo, mas me cerco de bons parceiros. Trabalho muito com Jay Napoli, Mauricio Monteiro e Jefferson Andrade. Cada um tem um gênero diferente, e a gente se complementa”, descreve o artista, que dá conselhos importantes a quem quer entrar nessa área: “É preciso se unir, não ter rivalidade. Saber que se trata de um trabalho coletivo, entender a cabeça do cliente, estar pronto para ouvir não. Entre nãos, mortos e feridos, quem tiver disposição para trabalhar duro vai se destacar e sobreviver.”