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CULTURA SOB AMEAÇA

Decisões do governo federal impactam produção em diferentes áreas, como cinema e música, e enfraquecem a indústria cultural; na Câmara, sopram ventos contra a gestão coletiva de direitos autorais

Há 90 anos, o político mineiro Gustavo Capanema conseguiu que o então presidente Getúlio Vargas criasse o Ministério da Educação e da Saúde Pública (mais tarde, no segundo governo Vargas, Ministério da Educação e Cultura, MEC). Era o embrião de um projeto modernizador para o país que tinha a produção de conhecimento como chave para superar o subdesenvolvimento. Capanema se cercou de nomes como Carlos Drummond de Andrade, Heitor Villa-Lobos, Mário de Andrade, Oscar Niemeyer e Manuel Bandeira.

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No Brasil de 2020, outros nomes contribuem para uma sensação generalizada de cultura à deriva. Roberto Alvim, diretor de teatro que, em setembro, chamou Fernanda Montenegro de sórdida era secretário de Cultura até parafrasear um líder nazista para anunciar um edital destinado a obras conservadoras e cristãs, em janeiro. A Funarte ainda tem no comando um indicado seu, Dante Mantovani, maestro que disse em seu canal no YouTube que “o rock ativa a droga, que ativa o sexo, que ativa a indústria do aborto (…), que ativa algo muito mais pesado, que é o satanismo.” E Sérgio Camargo, militante ultraconservador negro para quem o racismo não existe no Brasil e “a escravidão foi benéfica para seus descendentes”, quase assumiu a Fundação Palmares, não fosse uma suspensão pela Justiça.

No vídeo em que anunciou o Prêmio Nacional das Artes a projetos amparados na “fé do povo brasileiro e na sua ligação com Deus”, o ex-secretário Alvim provocou escândalo. Além de usar um tom ufanista — “este será o renascimento da arte e da cultura no Brasil” — e adaptar um discurso do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels, o secretário pôs como trilha de fundo a ópera “Lohengrin”, de Wagner, compositor de cuja obra Hitler teria tentado se apropriar ideologicamente, segundo alguns historiadores. Para o presidente do Congresso, Rodrigo Maia, ao associar-se ao nazismo, “o secretário de Cultura passou de todos os limites.” Após intensa repercussão negativa, que incluiu ainda associações judaicas e até a Embaixada da Alemanha no Brasil, Bolsonaro demitiu Roberto Alvim.

Poderiam ser só anedotas políticas de tempos convulsos em Brasília. Mas são indícios do que especialistas chamam de desmonte da cultura. Antes mesmo da posse, o presidente Jair Bolsonaro prometeu que extinguiria o Ministério da Cultura (e cumpriu). São conhecidos os ataques pessoais dele a artistas como Daniela Mercury e Caetano Veloso, além das desqualificações ao cinema nacional. “Há quanto tempo a gente não faz um bom filme, não é?”, resumiu o chefe do Executivo numa transmissão ao vivo por uma rede social em dezembro.

O dirigismo cultural também vem sendo denunciado. Em agosto, um edital da Ancine para produções audiovisuais sobre a diversidade sexual foi cancelado. Em setembro, o jornal “Folha de S. Paulo” revelou que o governo está monitorando, através de redes sociais, os posicionamentos políticos e ideológicos de autores e diretores de obras que pleiteiam financiamento e solicitam pautas em palcos e espaços como Caixa Cultural e Centro Cultural Banco do Brasil. Peças com temática transexual foram recusadas. “Não veremos mais certo tipo de obra. Não é censura, isso é preservar os valores cristãos”, escreveu Bolsonaro numa rede social. Temas relacionados à ditadura também teriam sido vetados. “Os filmes que estamos fazendo a partir de agora não vão ter mais a questão de ideologia, aquelas mentiras todas de histórias passadas falando do período de 1964 a 1985”, definiu o presidente.

REVESES EM SÉRIE

Dentro de uma lógica de confrontação com a classe artística, houve diversas decisões polêmicas do governo ao longo de 2019: vetar a prorrogação, até 2024, dos benefícios do Recine, tirando milhões de reais de futuras produções audiovisuais e ameaçando a expansão de salas de cinema; reduzir o teto dos projetos da Lei Rouanet de R$ 60 milhões para R$ 1 milhão; congelar os R$ 700 milhões do Fundo Setorial do Audiovisual (liberados só em dezembro) e promover uma profunda desidratação da Ancine.

“Há uma evidente intenção de atingir a cultura e seus produtores de forma estruturada. Em contraposição, não apresentam nada. O viés ideológico fica cada vez mais evidente, como se toda a produção cultural fosse de esquerda. Destruir órgãos e reputações de pessoas ligadas à cultura parece ser considerado estratégico. Tentam fechar as possibilidades da reflexão, um atributo tão caro à cultura. Em outros governos autoritários já vivemos situação semelhante”, opina Alberto Freire Nascimento, doutor em Cultura e Sociedade, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e experto em políticas culturais.

Um dos artistas plásticos brasileiros mais conhecidos no mundo, o paulistano Vik Muniz faz coro: “Eu não vejo dentro do discurso dos atuais secretários e dos ministros do governo Bolsonaro nenhum plano concreto de construção. É só destruição, é só desmantelamento.”

MÚSICA TAMBÉM SOFRE

A música teve castigos bem específicos. Um dos mais evidentes foi a edição de uma medida provisória por Bolsonaro, a 907, em novembro, isentando quartos de hotéis de pagar execução pública. Segundo o Ecad, os autores sofrerão perdas de R$ 110 milhões por ano, o que, naturalmente, impactará sua renda e, em última análise, sua própria capacidade de criar cultura. Ainda falta o Congresso ratificar a decisão.

“(Se isso ocorrer), a medida negará aos criadores o direito de autorizar o uso de suas obras intelectuais e o acesso a uma remuneração justa, criando um benefício específico e injustificado para o setor hoteleiro e um dano significativo para os criadores”, alertou a Confederação Internacional das Sociedades de Autores e Compositores (Cisac).

Outra medida, não menor, que afetaria milhares de músicos e demais artistas que vendem seus serviços na qualidade de microempreendedores individuais (MEI) foi a exclusão de inúmeras categorias artísticas desse regime de reduções fiscais a autônomos que ganham até R$ 81 mil por ano. Anunciada em novembro, a mudança foi suspensa por Bolsonaro após críticas generalizadas, inclusive dentro da sua base de apoio.

PONTOS DE ATENÇÃO PARA 2020

Para este ano, há duas pautas que merecerão a atenção do setor musical. Uma delas é a possível reforma da lei de direitos autorais. Uma consulta pública aberta pelo Ministério da Cidadania em junho, quando a Cultura ainda estava vinculada à pasta, prometia mudanças em diversos pontos. Desde então, nada mais foi dito, e o teor das propostas de alteração segue nebuloso. Procurados, os ministérios da Cidadania e do Turismo não divulgaram o resultado da consulta e não estabeleceram uma data para o anúncio de alguma mudança.

Já no Congresso, sopram ventos que fazem prever tentativas de alteração na gestão coletiva de direitos autorais. No final de novembro, uma audiência pública na Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara teve tom predominantemente crítico, inclusive da parte do seu relator, deputado Felipe Carreras (PSB-PE), à atuação do Ecad. Alguns dos pontos tratados como afronta ao direito econômico foram a situação de monopólio do órgão no setor e a sua potestade para determinar os valores a serem cobrados dos usuários de música. Os dois aspectos estão previstos na atual lei de direitos autorais que, dada a consulta pública de meados do ano passado, o governo parece querer alterar.

A lei atualmente em vigor é a 9.610, de 1998. Regula, entre outros aspectos, a gestão coletiva de direitos autorais, conquista democrática que assegura aos autores um poder de grupo nas negociações com os usuários das suas obras. E prevê que, no caso da música, tal gestão deve ser levada a cabo pelo Ecad. Em 2013, através da lei 12.853, a normativa ganhou mudanças como a criação de uma instância de regulação da gestão coletiva pelo Ministério da Cultura e promoveu alterações nos mecanismos de escolha da direção das sociedades de gestão. Agora, tudo leva a crer que se avizinham mais mudanças, que exigirão mobilização dos autores caso a gestão coletiva se veja ameaçada.

Em ritmo vertiginoso, uma série de ameaças e recuos se sucede estes dias. Acompanhe as atualizações mais relevantes no site da UBC.

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