Xing Ling - made in China

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Victor Mascarenhas

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Copyright do texto © 2013 Victor Mascarenhas Xing Ling – Made in China é uma obra de ficção que não tem a intenção de ofender ou desrespeitar crenças, religiões, culturas e fatos históricos. O propósito primordial do autor deste livro é divertir o leitor.

Edição Enéas Guerra Valéria Pergentino Design e editoração Valéria Pergentino Elaine Quirelli Capa Enéas Guerra Revisão do texto Maria José Bacelar Guimarães Texto revisado segundo o novo acordo ortográfico da língua portuguesa que entrou em vigor em 2009.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Mascarenhas, Victor Xing ling : made in China / Victor Mascarenhas. -Lauro de Freitas, BA : Solisluna Editora, 2013. 1. Literatura brasileira I. Título. ISBN 978-85-89059-51-0

12-10228 CDD-869.9 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura brasileira 869.9

Todos os direitos desta edição reservados à Solisluna Design Editora Ltda. 55 71 3379.6691 | 3369.2028 editora@solislunadesign.com.br www.solislunadesign.com.br www.solislunaeditora.com.br


“O que estás esperando para apoderar-te de um reino cujos habitantes já te consideram como senhor?” Sun Tzu, A Arte da Guerra


“Se você encontra uma cidade onde você é obrigado a ser alegre 365 dias por ano, onde não há lugar para a tristeza, não há lugar para a solidão, não há lugar para a melancolia, esta cidade está doente. Esta cidade é maníaca.” Antonio Risério, Encontros


“Pelo amor de Deus que Vossa Alteza me mande ir que eu não sei outras palavras por onde o peça [...] e nenhum outro governador pode Vossa Alteza mandar que não faça cá melhor do que eu e com menos trabalho.” Tomé de Souza, em carta ao rei D. João III



一 O calor é causticante e a luminosidade dificulta que ele mantenha os olhos abertos, mas é preciso. O suor escorre

pelas suas costas e as pernas doem pelas horas de vigília usando aquela roupa pesada, mas é o regulamento. Ele detesta aquela roupa ridícula, mas é preciso usá-la para proteger a cidade. Dizem que o costume de vestir policiais com trajes de baiana data do final do século XX, quando homens da antiga polícia militar eram obrigados a se disfarçar para cuidar da segurança de um velho líder político, uma espécie de faraó ou algo parecido, durante festas populares. Hoje, essas festas que misturavam religiões exóticas, como o catolicismo e o candomblé, estão proibidas e praticamente extintas, sobrevivendo apenas na memória dos habitantes mais antigos do território além das muralhas e nos arquivos dos bancos de dados dos servidores instalados em locais como o Vale do Capão, um antigo reduto de tribos nômades que acreditavam em gnomos e extraterrestres, que hoje abriga um polo de nanotecnologia e também parte das máquinas responsáveis pelo armazenamento de milhões e milhões 9


de arquivos nas nuvens virtuais das mais variadas corporações internacionais. Segundo os historiadores, a Nova Inquisição Baiana, movimento responsável pela quase extinção do candomblé e de outras religiões, teve o seu marco zero nos primeiros anos do século XXI, quando um prefeito cristão fundamentalista demoliu um terreiro e aprovou uma série de leis que sufocaram e expropriaram outros terreiros da cidade, muitos deles transformados em megacondomínios onde os endinheirados passaram a viver entrincheirados e protegidos por muros, cercas elétricas e sofisticados sistemas de segurança. Isso acabou deflagrando um processo que culminou com a extinção quase absoluta da religião trazida ao país por antigos habitantes do continente que era conhecido como África, um território dividido entre diversas nações praticamente exterminadas por seguidas guerras, epidemias, ditaduras e experimentos biológicos de diversas nações e corporações do extinto primeiro mundo. Atualmente, o antigo continente negro tornou-se o continente amarelo e é conhecido como Nova Zhonggwo ou Nova China. Zhonggwo quer dizer “reino do meio”, que é como se diz China em chinês, pelo menos desde o século XIX, quando o país ainda era um império e vivia os tempos da dinastia Qing, a última das dinastias imperiais, apeada do poder em 1911 para dar lugar a uma república que foi derrubada em 1949, para dar lugar a outra república, desta vez a Popular da China, sob o comando de Mao Tsé Tung. A partir daí, vieram líderes como Deng Xiaoping, Jin Zemin, Hu Jintao e tantos outros, que levaram as reformas econômicas e as agressivas políticas comerciais chinesas cada vez mais longe, transformando a república comunista na maior potência capitalista do planeta e os ensinamentos 10


a entender que o Terra da Felicidade é uma farsa, que a verdadeira cidade não é nada daquele espetáculo ensaiado e coreografado, que não existe vida real dentro daquelas muralhas e que ser baiano de verdade não tem nada a ver com roupas, dancinhas e sotaques pré-fabricados. Na verdade, essa padronização e espetacularização da tal “baianidade” não foi invenção dos chineses. Isso começou muito antes da invasão sino-capitalista selvagem e surgiu na própria cidade, patrocinada por artistas, jornalistas, publicitários e pelo governo, mais interessados em lucrar com a exploração do turismo, da música e da cultura local, criando uma poderosa arma para manter as massas sob controle, apesar da violência, da concentração de renda criminosa e da cidade sempre ter tido um colossal número de miseráveis e desempregados, mantidos anestesiados sob o jugo do status quo da felicidade maníaca disseminada pela “baianidade”. O eparrey é fabricado pelos próprios chineses nas suas fábricas lisérgicas africanas e entra no país via aduanas piratas e informais abastecidas pelos próprios orientais, que chegaram vendendo bugigangas, roupas, tênis, bebidas e cigarros falsos, e acabaram dominando o comércio nas cidades brasileiras em poucas décadas. A ideia era desenvolver uma versão mais potente do ecstasy, mas algo acabou dando errado e a droga virou uma espécie de LSD junguiano. Para não perder o investimento no desenvolvimento da substância, o barão do tráfico na África Equatorial, o sino-africano Matubo Xiao Sheng, o “Chinegão”, resolveu despachar a droga para o Brasil, onde ela foi misturada com pó de Maizena, Biotônico Fontoura e outras substâncias ao gosto do freguês, o que barateou o custo e fez com que seus tabletes se espalhassem rapidamente pelas metrópoles brasileiras. 15


Em Salvador, o eparrey ganhou seu nome e sua utilização política com os Caramurus, que dominavam o tráfico da substância na capital. Dizem que os revolucionários traficantes estão sendo financiados pelos neocarlistas de fora das muralhas, o que é pouco provável, já que esse grupo, assim como seus arquirrivais, os pós-sindicalistas, foi contemplado com participações nos lucros do Terra da Felicidade. Além disso, os dois grupos continuam se alternando no poder na cidade fora das muralhas, o que garante sua colaboração total e irrestrita ao empreendimento. Ueslei simpatiza com a causa dos Caramurus, mas também não pode dizer isso a ninguém. Seus colegas não entenderiam e nem ele entende porque pensa diferente dos outros, que sequer lembram o que fazem dentro do Terra da Felicidade, já que seus chips incluem lembranças falsas dos seus dias de trabalho, ativadas assim que saem do complexo. Talvez seu implante nanotecnológico tenha sido danificado por algum fator externo, pela qualidade duvidosa do equipamento ou pela leitura dos livros proibidos, que adorava fazer quando criança fora das muralhas, enquanto brincava nas ruínas abandonadas da Biblioteca Central dos Barris. Ueslei pensava diferente dos outros policiais-baiana, mas fingia tão bem quanto os atores que encenavam as missas nas igrejas ou os que faziam as coreografias dos blocos afro para o deleite dos turistas que chegavam, em menor quantidade a cada dia, de toda parte do mundo. O melhor a fazer agora é se concentrar no seu tedioso trabalho, aguentar a alergia provocada pelas rendas e panos da costa do traje de baiana, manter os olhos vigilantes e todos os sentidos aguçados para proteger o Terra da Felicidade, mais um empreendimento da Shanzhai Entertainment Group. 16


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