Um século de jornalismo na Bahia 1912 - 2012

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Um sĂŠculo de jornalismo na Bahia 2012 1912


Um sĂŠculo de jornalismo


2012 na Bahia 1912


Um século de jornalismo na Bahia 2012 1912 proponente

edição

texto

Rede Educare

Solisluna Design Editora

Carlos Ribeiro

direção

editores

revisão do texto

Ranulfo Bocayuva

Valéria Pergentino Enéas Guerra

Maria José Bacelar Guimarães

André Brasileiro

pesquisa

coordenação

Talyta Almeida Carlos Ribeiro

Agência A TARDE Cedoc – Centro de Documentação A TARDE Arquivo Histórico e Geográfico da Bahia Arquivo Público do Estado da Bahia Biblioteca Pública do Estado da Bahia Fundação Pierre Verger (Os créditos das imagens estão nas páginas 198 e 199)

produção executiva

Maurício Villela (Cedoc / A TARDE) colaboradores

Edivaldo Boaventura Carlos Casaes (fotografias)

design e projeto gráfico

Enéas Guerra Valéria Pergentino Elaine Quirelli

fotografias

tratamento de imagens

Elaine Quirelli apoio à pesquisa

(equipe Cedoc) Renato Martim Rubem Coelho Valdir Ferreira

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Um Século de jornalismo na Bahia, 1912-2012 / [texto Carlos Ribeiro]. -- Lauro de Freitas, BA : Solisluna Editora, 2012. ISBN 978-85-89059-53-4 Este livro é resultado do projeto “A História da Bahia de 1912 a 2012 – Um Século de Mudanças”, aprovado no Ministério da Cultura com número de Pronac 114678.

Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, registrada, transmitida, transcrita ou armazenada em sistemas de recuperação, ou traduzida para alguma língua ou linguagem de computador, de nenhuma forma ou por meios eletrônicos, mecânicos, magnéticos, manual ou qualquer outro, sem a autorização por escrito dos detentores do copyright (autores), do jornal A Tarde, da Rede Educare e da Solisluna Editora.

1. A Tarde (Jornal) - História 2. Imprensa Brasil - História 3. Jornalismo - Bahia - História.

12-14230

CDD-079.8142 Índices para catálogo sistemático: 1. Bahia : Brasil : Jornalismo : História 079.8142



Sumário 9

Testemunho da História

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Paixão e sucesso

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Simões Filho e A Tarde

25

Guerras e revoltas — 1912 - 1921

37

Heroísmo e tragédias — 1922 - 1931

51

Suspensão e resistência — 1932 - 1941

65

Páginas da nova era — 1942 - 1951

81

As grandes transformações — 1952 - 1961

99

Sonhos e sobressaltos — 1962 - 1971

115

Abalos e mudanças — 1972 - 1981

131

Ventos democráticos — 1982 - 1991

147

Dias de trovão — 1992 - 2001

165

Novas fronteiras — 2002 - 2012

183

Um jornal combativo e polêmico

196

A festa de A Tarde

197

História viva constrói futuro

198

Créditos das imagens

200

Sobre a edição

“Um Século de Inovações”, exposição comemorativa do centenário do Jornal A Tarde realizada entre 19 de setembro e 4 de novembro de 2012, no Salvador Shopping.




Testemunho da História Ferbasa / Fundação José Carvalho

É com grande satisfação que a Cia de Ferro Ligas da Bahia (Ferbasa) contribui para este projeto editorial de especial importância na história do jornalismo do nosso Estado. Ao retratar os mais relevantes acontecimentos históricos dos últimos cem anos pela ótica dos seus repórteres, articulistas, fotógrafos e redatores, A TARDE dá testemunho de um tempo de extraordinárias transformações em todos os campos das relações humanas. Um tempo no qual a Ferbasa também se insere, como agente transformador, ao longo de meio século de existência, comemorado em 2011. Fundada em 23 de fevereiro de 1961, pelo engenheiro José Corgosinho de Carvalho Filho, a Companhia iniciou suas atividades no Município de Campo Formoso, Bahia, no ramo da mineração, com o objetivo de produzir ferro cromo. A sua Planta Metalúrgica situa-se no município de Pojuca, a 87 km de Salvador, onde desenvolve suas principais ligas – de cromo (FeCr) e silício (FeSi) –, indispensáveis à fabricação do aço inox e aços especiais. A Ferbasa consolidou-se no mercado ao longo desses 51 anos, por priorizar uma política administrativa pautada em uma forte preocupação social e ambiental, na valorização dos seus colaboradores, na qualidade dos produtos e na transparência. Esses princípios agregaram valor à marca, tornando-a referência no mercado nacional.

Hoje, a Companhia está classificada entre as 500 maiores empresas do Brasil e as 20 maiores da Bahia, com faturamento anual superior a US$ 500 milhões. José Carvalho ganhou notoriedade também pelo pioneirismo, entre os empresários brasileiros, com que se aprofundou na problemática social brasileira, buscando soluções por meio de ações na área da educação. Ainda em 1975, quando o conceito de responsabilidade social era muito pouco difundido no Brasil, doou 94% das ações que possuía da Ferbasa para a Fundação José Carvalho, que leva o seu nome, tornando-a acionista controladora da Companhia. A Fundação José Carvalho completará, neste ano de 2012, 37 anos de existência, beneficiando, anualmente, aproximadamente 6 mil crianças e adolescentes, por meio do oferecimento de educação gratuita no ensino fundamental, médio e técnico e profissionalizante, nas seis escolas próprias, bem como em projetos, convênios e parcerias espalhados nos interiores da Bahia, Pernambuco e Sergipe. Este livro é, portanto, um produto que faz justiça a dois empreendimentos vitoriosos cujos nomes tornaram-se exemplos de persistência e credibilidade. Geraldo de Oliveira Lopes Diretor Presidente e de Relações com Investidores

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Paixão e sucesso Ranulfo Bocayuva

Uma história de paixão pelo jornalismo. Assim pode ser resumido um século de vida do Jornal A TARDE, que se perpetuou, entre 1912 e 2012, comprovando credibilidade e independência, características originais preconizadas pelo seu fundador, o jornalista, empresário e político Ernesto Simões Filho. “Imparcial, mas não indiferente; neutro, mas não se esquivaria das controvérsias partidárias. Mais sereno do que violento mas, se atacado, repeliria a ofensa à altura”, definia, no primeiro número, sua linha editorial. Dividido em décadas e amparado em cuidadosa pesquisa de textos e imagens, este livro é fruto do desejo de compartilhar e relembrar a história da Bahia, do Brasil e do mundo a partir do olhar único, diário, analítico e combativo de um jornal cujo pilar fundamental sempre foi o respeito aos princípios éticos e à liberdade de informação. Aliado inseparável dos baianos e da Bahia, soube ousar, criando projetos gráficos e editoriais inovadores paralelamente a práticas comerciais e administrativas em sintonia com as exigências do mercado. Não é fácil se chegar aos cem anos. Se o fosse, outros jornais baianos também teriam conseguido. Por isso, lembramos que este centenário deve ser comemorado por todos os baianos, porque a

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importância de A TARDE transcende seus próprios limites empresariais, colocando-se no patamar de insubstituível instituição democrática baiana com objetiva missão social. Como escreveu Jorge Amado, A TARDE é um ícone baiano comparável ao Mercado Modelo, Pelourinho, Elevador Lacerda ou Convento do Carmo. A obrigação de informar e formar opinião é um dos compromissos mais sérios de A TARDE, que, ao longo desses anos, defendeu implacavelmente o interesse público, vencendo as perseguições externas e as adversidades econômicas. No mundo das comunicações online, o leitor perceberá que o jornal se adaptou e se renovou para enfrentar os desafios da múltipla competição, sem perder sua qualidade mais importante: a fidelidade às suas nobres origens. É verdade também que este sonho só foi realizado graças ao envolvimento coletivo, trabalho intenso e criatividade constante de colaboradores e profissionais talentosos, aos quais agradecemos carinhosamente. Este livro, que se esforça em revelar “[...] como se tornou A TARDE carne da carne, sangue do sangue do povo baiano”, conforme a expressão amadiana, é um presente para a Bahia. Uma boa viagem nas notícias para todos.




Simões Filho e A Tarde Edivaldo M. Boaventura

O ponto de partida da criação do jornal, no conturbado ano de 1912, é a figura exponencial do seu fundador, Ernesto Simões Filho, jornalista, político e empreendedor. O jornal foi a sua trincheira de combatente e enérgico jornalista em defesa da Bahia e da liberdade de expressão. Simões Filho manifestou precocemente o seu direcionamento para a imprensa. O fundador marcou a construção de uma empresa editorial de peso como o jornal A TARDE. É significativa a tiragem do periódico e mais ainda a sua identidade com os interesses da Bahia. A força do seu talento evidenciou-se no jornalismo vigoroso, na política combativa e na inovação empresarial. O caminho por ele percorrido foi sempre de lutas, de campanhas, de exílios a atentados, com capacidade de resistência e de combate que só lhe fizeram crescer a imagem.

fotografia, um instantâneo. A revista não foi além do trigésimo número e somente os seis primeiros foram publicados sob a responsabilidade do futuro fundador de A Tarde.”1 A experiência com O Carrasco, O Papão e na Gazeta do Povo, de certa maneira, prepararam a criação do jornal que sonhava. Formado em direito, aderiu de imediato à política, como partidário de J.J. Seabra. Com esse alinhamento chegou até a dirigir os Correios na Bahia e compôs a bancada seabrista, na Assembleia Estadual. Uma vez afastado de Seabra, que assumiu o governo do Estado da Bahia, em 29 de março de 1912, logo em seguida, em 15 de outubro, Simões lançou o jornal A TARDE, a maior realização de sua vida. O ano de 1912 foi significativo e feliz, não somente pela criação do jornal como também pelo nascimento de sua filha primogênita, Regina, que lhe sucedeu anos depois no comando do jornal.

Mesmo nas ocasiões que comportariam maior descontração, conservava a postura elegante e altiva. A foto é da sua viagem aos Estados Unidos, em companhia de outros diretores de jornais. No volante do jipe, uma jovem oficial das Forças Armadas americana. Simões Filho, por volta dos quatorze anos de idade, criou seu primeiro jornal chamado “O Carrasco”. Em 1904 criou “O Papão”, um jornal em formato de revista de caráter humorístico e satírico.

Nascimento do fundador Nasceu, no Recôncavo, na próspera cidade de Cachoeira, em 4 de outubro de 1886, dia consagrado a São Francisco de Assis. A família Simões é originária de Itiúba, nos sertões da Bahia. Mas a Cachoeira daquela época era um dos mais importantes e dinâmicos entrepostos comerciais que recebia mercadorias da capital e as enviava para o interior, revertendo em troca produtos a serem comercializados em Salvador ou exportados. O nascimento de Simões Filho no Recôncavo baiano explica certos aspectos de sua personalidade. Estudou o primário na sua cidade natal, continuando os estudos no Colégio São José, em Salvador, dirigido pelo notório professor João Florêncio Gomes. Neste estabelecimento, ainda com 14 anos, revelou-se precocemente jornalista lançando o periódico O Carrasco. Quatro anos depois, foi a vez de O Papão. Para Cláudio Veiga, esta revista é um retrato da Bahia em 1904: “A evocação não chega a ser um filme, mas uma

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A criação do jornal

Caricatura de Simões Filho publicada na primeira edição de “O Papão”. Vista da Praça da Piedade na bucólica Salvador de 1912, ano de fundação do Jornal A Tarde.

Em 15 de outubro de 1912, pois, servindo-se de uma impressora Marinoni, alugada à Casa Reis & Cia, uma das melhores tipografias da cidade, Simões Filho dava início à atividade empresarial, editando A TARDE. Instalada na Rua Manuel Vitorino, nº 23, mudando-se logo em seguida para a Rua Corpo Santo, nº 78, na Cidade Baixa. Este prédio abrigou uma rotativa Alber com capacidade para rodar um jornal com 16 páginas.2 Em 1930, subirá para a Praça Castro Alves, onde a sede permanecerá até os anos setenta. Desde os primeiros anos, o jornal lidera a opinião pública graças a ação corajosa e destemida do seu idealizador. O editorial fixou-lhe o norte: “Então, combateremos o que se nos afigurava condenável no partidarismo adverso ao nosso, sem um instante sequer lançarmos mão de outros processos que não fossem os da mais absoluta probidade profissional”. O ideário vai mais longe: “A luta pelos mais nobres deveres da civilização não pode deixar de ser a nossa preocupação assídua e constante, sem embargo da feição principal

d`A TARDE ser a de um jornal de informações.” Em três precisas palavras, definirá melhor a sua missão: Imparcial, “[...] ela não será contudo indiferente aos embates do direito”; neutra, “[...] não se esquivará das controvérsias partidárias quando interessarem ao bem-estar coletivo”; e ponderada, “[...] não provocará rixas pessoais ao paladar dos farejadores de escândalos, afeitos a barrear a honra alheia, mas também não cederá um passo na reação pronta, enérgica e viril”. Dentre os colaboradores do primeiro número, encontra-se Teodoro Sampaio com um artigo erudito deplorando a demolição da antiga Igreja da Ajuda, a Sé de Palha, igreja onde o padre Antônio Vieira pregou o mais famoso dos seus sermões sobre o sucesso das armas de Portugal contra as da Holanda. Consta também a primeira entrevista de Lauro Sodré a bordo do navio Bahia. O principal redator foi Henrique Câncio. Na procura de talentos, o jornal terá como colaboradores, dentre muitos outros, Carlos Chiacchio, Lulu Parola, Luiz Viana Filho. Buscando sempre firmar novos paradigmas para o jornal que criara, diferenciando por completo


dos periódicos existentes, o empreendedor Simões Filho importou da Alemanha, no ano seguinte à fundação, uma Koenig-Bauer com capacidade para imprimir 10.000 exemplares, além de providenciar uma equipe de técnicos alemães para manter a nova sala de impressão com um sistema de reprodução litográfica. Esta equipe também capacitou o pessoal. Pela primeira vez, A TARDE circulou com seis páginas, apresentando ao seu público o jornal mais bem impresso da Bahia. Apareceu a novidade comercial dos “Anúncios Populares”.3 Às vésperas da Primeira Grande Guerra (1914-1918), contratou os serviços telegráficos do estrangeiro e pôde, dessa maneira, informar o noticiário da conflagração europeia, ganhando o primado da imprensa local. Era assim que Simões Filho inovava com o seu jornal, tornando-se o primeiro nas notícias. Em 1917, com o jornal implantado e liderando boa parte da política baiana, Simões Filho foi escolhido como membro fundador da Academia de Letras da Bahia, titular da cadeira de número 31, patrono o jornalista Belarmino Barreto.

A Tarde e a Velha República O jornal nasceu e cresceu no embate da oposição. O desempenho na Velha República caracterizou-se pelo combate à política de J.J. Seabra. Em razão de destemida e corajosa oposição, Simões Filho sofreu um atentado à sua vida. Ao realizar um comício na Praça Municipal, quando o político Medeiros Neto começou a falar, um tiro abriu fogo. Os participantes do comício se dispersaram. Caíram dentro do carro, o orador e Simões Filho. Um tiro raspou-lhe o couro cabeludo. O senador Miguel Calmon reagiu, levantou-se e encarou a situação de frente, levando os colegas feridos à Assistência Médica. Foram feridos gravemente à bala não somente o fundador de A TARDE, como também Medeiros Neto e um estudante. Salvaram-se ele e os companheiros, morrendo um estafeta, partidário de Ruy Barbosa.4 O atentado na Praça Municipal foi o primeiro sofrido por Simões Filho. A sucessão de J.J. Seabra se complicou com o lançamento da candidatura de Francisco Marques de Góes Calmon, advogado de prestígio ligado às classes empresariais e presidente do Instituto da

Ordem dos Advogados, inteiramente fora das lides partidárias. Exclusivamente por manobra política, Seabra indicou Góes Calmon ao Governo da Bahia. Sucede que o expediente de Seabra não lhe deu o resultado esperado. Góes Calmon foi aceito pela população, sendo eleito para governar a Bahia de 1924 a 1928, derrotando o seabrismo. Confirmando a eleição de Góes Calmon, apesar do protesto de Seabra, o presidente Artur Bernardes garantiu a posse. Góes Calmon realizou um excelente governo voltado, sobretudo, para construção de estradas. Simões Filho apoiou Góes Calmon e foi eleito deputado federal, passando a morar no Rio de Janeiro, mas não descuidou do seu jornal. Uma vez no Congresso, Simões participou das grandes decisões, inclusive como líder da bancada. Na Câmara Federal, debateu com líderes nacionais do nível de Batista Luzardo, Joaquim Sales, principalmente com João Neves da Fontoura com quem travou acirrada discussão. Participou como relator da Comissão de Finanças, ora defendendo crédito para o Ministério da Guerra, ora sustentando veto do Presidente da República. Seguindo a política do “café com leite”, o presidente Artur Bernardes, mineiro, foi sucedido

Em carro aberto, acompanhado de auxiliares, Simões Filho deixa as oficinas de A Tarde para distribuir pessoalmente os exemplares do seu jornal aos leitores. Enfrentava assim uma proibição da polícia, que estava a serviço do governo da época.

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Em pronunciamento de Otávio Mangabeira com J.J. Seabra e ao lado Simões Filho. Na foto abaixo, a elegância de Simões Filho, característica presente em toda sua vida.

A Revolução de 1930 e o autonomismo pelo paulista Washington Luís. No que concerne à participação da Bahia no ministério, Miguel Calmon deixou a pasta da Agricultura e Otávio Mangabeira assumiu o Ministério das Relações Exteriores, no governo Washington Luís. Na Câmara dos Deputados, Simões Filho participou ativamente das articulações para a sucessão presidencial. A independência marcou a sua atuação parlamentar, opondo-se sempre aos governos. Destacou-se pela oratória expressiva e agressiva quando se tratava de defender os interesses da Bahia. Quando da sucessão de Washington Luís, no lugar de ser indicado o presidente de Minas Gerais, Antonio Carlos, o escolhido foi o paulista Júlio Prestes, alterando-se a regra da alternância Minas Gerais e São Paulo. Simões Filho, líder da bancada, articulou o nome de Vital Sores, governador da Bahia, para vice-presidente na chapa de Júlio Prestes; para tanto, manteve acirrada discussão na Câmara.

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Enquanto tudo isso acontecia no plano federal, A TARDE assumiu uma nova fase. Em 1930, inaugurou-se a nova sede do jornal, na Praça Castro Alves. Simões Filho, preso ao seu periódico, procurou, de todas as maneiras, atualizá-lo. Contratou novos e excelentes colabores, como Medeiros e Albuquerque, Humberto de Campos e Gustavo Barroso. Agenciou a participação de o Correio Nacional para o transporte da mala postal do Rio de Janeiro para a Bahia por avião. O que havia de mais moderno e atualizado na época concorria para a confecção do jornal, desde equipamentos de radiotelegrafia até sistemas de composição e impressão. Para a publicidade, chegaram anúncios dos departamentos comercias das grandes empresas. As empresas de propaganda que começaram a se instalar no país supriam o jornal de anúncios bem desenhados. Contratou comunicados especiais que faziam o relato do que acontecia no país.5 A TARDE dispunha de bom mercado para publicidade e de leitores. O jornal


funcionava condignamente instalado em sede própria, quando sucedeu a Revolução de 1930 que derrubou a Velha República. As forças políticas baianas sofreram e iriam se alterar por completo com as mudanças impostas pela nova ordem política, com Getúlio Vargas à frente. A Bahia passou a ser governada por interventores federais. Simões Filho reagiu à ditadura e liderou a oposição com o autonomismo. A síntese de Pedro Calmon6 explica a situação política da época. Simões contrapunha a autonomia do Estado à ditadura e seus delegados, tendo, de um lado, o seabrismo, filiado à revolução, e os tenentes que a iniciaram. Entenda-se assim a denominação autonomismo do bloco político liderado por Simões Filho. Foram anos difíceis para ele e para o seu jornal. Opondo-se à ditadura, recorde-se que Simões Filho vinha de uma tradição federalista, liberal e democratizante com o alinhamento político ao seu ídolo e mestre Ruy Barbosa. A sua dedicação ao

grande baiano levou-o a adquirir a casa onde este nasceu, em Salvador, para ser museu. Enfrentou, destemidamente, o interventor Juracy Magalhães, como na Velha República se batera contra Seabra. Em face das liberdades comprometidas com a ditatura Vargas, A TARDE deixou de circular por alguns dias, mas não arrefeceu o ímpeto combativo do seu fundador. A sua adesão aos paulistas, manifestada em vigoroso discurso, custou-lhe o exílio. Enviado para a Europa com outras personalidades, ficou em Portugal, depois seguiu para Paris. Com o Movimento Constitucionalista de São Paulo em 1932, regressou ao Brasil. Em 1934, Simões sofreu o segundo atentado que quase o vitimou, no Corredor da Vitória em Salvador, juntamente com o seu irmão Antônio. Com forte pancada na cabeça, caiu e foi espancado. Imputada a responsabilidade do atentado ao interventor Juracy Magalhães, ele sempre o repeliu.

Simões Filho quando Ministro da Educação em encontro com a poeta Cecília Meirelles e outras personalidades da literatura brasileira.

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A redemocratização de 1946

Simões Filho foi um dos artífices da aproximação do presidente Eurico Dutra com o governador Otávio Mangabeira, entendimento que resultou na colaboração do governo federal em obras importantes da Bahia.

Anos depois, com o fim da ditadura Vargas, para a Constituinte de 1945, a bancada autonomista era composta por Otávio Mangabeira, Aloísio de Carvalho Filho, Nestor Duarte e Luiz Viana Filho. Desta composição saiu Otávio Mangabeira para governar a Bahia, contando com as articulações e o apoio de Simões Filho. Quatro anos depois, para a sucessão de Mangabeira, Lauro de Freitas concorreu com Juracy Magalhães ao governo da Bahia. Simões liderou com o seu jornal a oposição cerrada à volta de Juracy. Prevendo a vitória de Getúlio, articulou-se com este, seu antigo adversário. Um fato novo surgiu, quando o candidato Lauro de Freitas morreu em desastre aéreo no sertão. Simões apoiou com entusiasmo a candidatura de Regis Pacheco, médico humanitário, político de prestígio de Vitória da Conquista. Com expressivo apoio do jornal e conduzido por Simões, Regis venceu a eleição pelo Partido Social Democrático (PSD)

com os votos de Getúlio Vargas. Na Bahia, saíram vitoriosos: Getúlio, Regis e Simões Filho, líder condutor da eleição. A Bahia deveria ter um ministério no governo de Getúlio Vargas que então se iniciava. O mais indicado era manter-se a Bahia, no Ministério da Educação e Saúde, ocupado sucessivamente por Clemente Mariani e Pedro Calmon. Neste sentido, João Neves da Fontoura lembrou a Getúlio, em São Borja (RS), o nome de Simões Filho para a pasta reservada aos baianos. Simões Filho compôs o chamado “Ministério da Experiência”, isto é, dos primeiros anos do governo de Getúlio, em oposição ao “Ministério Fatal”, referentes aos derradeiros anos. Como vitorioso das eleições na Bahia, ficou com a pasta da Educação e Saúde. Levou consigo homens ilustres como Anísio Teixeira, Péricles e Demades Madureira de Pinho, Eugênio Gomes, Afrânio Coutinho e Arlindo de Assis.

O Presidente Getúlio Vargas e o Ministro da Educação e Saúde, Simões Filho.

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Manifestação de crianças do Abrigo dos Filhos do Povo, instituição que Simões Filho sempre amparou. Cosme de Farias, Lopes Pontes e Dorival Passos também aparecem na foto.

Sempre renovando o jornal Deixando Simões o ministério, continuou participando da política e da família. Empreendeu nova reforma do seu jornal com o slogan: “com roupa nova e o velho espírito bahiano”. Pessoalmente dirigiu a montagem da nova rotativa alemã, MAM, e o novo conjunto de estereotipia e material para o parque gráfico. Acompanhou todo o trabalho de implantação com dedicação e entusiasmo, pouco antes do seu falecimento. O jornalista inovador se completou com a figura extremamente polida, elegante e cultivada de homem de aprimorado bom gosto no vestir e no proceder. Do ponto de vista baiano, era um homem do Recôncavo. Para Péricles Madureira de Pinho,7 seu chefe de Gabinete no Ministério da Educação e Saúde: “[...] homem de bravura pessoal, inteligência aberta a todas as modificações dos tempos, iludiu a muita gente pela elegância de seu trajar [...]”. Complementa o chefe de gabinete: “Os que o supunham um retrógado e saudosista não conheciam sua agilidade de espírito,

seu arejamento intelectual, de que deu vivas afirmações quando ministro de Estado, à beira dos 70 anos”.8 Simões Filho, jornalista por excelência, foi deputado, ministro e político de marcante intervenção na vida pública. Cuidou sempre do seu jornal com a maior dedicação, levando-o a alcançar o mais alto padrão de desempenho. Foi o responsável pela criação da marca A TARDE. Acima de tudo, pairava seu extremado amor à Bahia. A alguém que o pretendia insultar, ele respondeu “Morra Simões Filho, mas viva a Bahia”. Faleceu, no Rio de Janeiro, em 24 de novembro de 1957, aos 71 anos. O seu corpo foi transladado para a Bahia. Ficou em câmara ardente na sua sala em A TARDE. Expressivo cortejo de pessoas e de representações o reverenciou, acompanhando seu corpo ao cemitério do Campo Santo. Por coincidência, encontra-se sepultado ao lado de Otávio Mangabeira, seu amigo e companheiro de política por toda a vida.

Notas VEIGA, Claudio. Um retrato da Bahia em 1924: O Papão. Salvador: Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, 1986. 2 COUTO, Arthur L. Simões Filho empresário. A Tarde, Salvador, 4 out. 1986. Caderno Especial, p. 8. 3 Ibid. 4 CALMON, Pedro. A vida de Simões Filho. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1986. 5 Ibid. 6 Ibid. 7 PINHO, Péricles M. de. São assim os baianos. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1960. p. 18. 8 Ibid., p. 19. 1

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BAHIA Denunciado pelo Banco Econômico, o intendente de Salvador, Júlio Brandão, é afastado do cargo por desvio de verba.

A cidade do Salvador é bombardeada.

Inauguração oficial do Porto de Salvador. Primeiro Mercado Modelo, construído em estrutura metálica.

Salvador ganha novo cinema, Ideal, localizado na ladeira de São Bento.

Encomendado para a navegação do Recôncavo, chega à Bahia o vapor Cachoeira.

O funcionalismo da Bahia vive uma crise, devido ao atraso nos salários. A peste bubônica se propaga na Bahia. É inaugurada a Avenida Sete de Setembro, que liga o Largo de São Bento ao Farol da Barra.

É inaugurado em Salvador o Relógio de São Pedro. Surge o primeiro caso de peste negra no estado da Bahia.

A Rua dos Capitães, em Salvador, passa a chamar-se Rui Barbosa em homenagem ao grande jurista baiano.

Cosme de Farias cria a Liga Baiana Contra o Analfabetismo.

BRASIL Início da Guerra do Contestado, no sul do país.

Wenceslau Braz é eleito presidente da república. Jagunços liderados pelo Padre Cícero ocupam Vale do Cariri, no Ceará.

Morre o Barão do Rio Branco, ministro das Relações Exteriores.

Villa Lobos realiza o primeiro concerto com suas composições.

Fim da Guerra do Contestado, que envolveu camponeses e governos estaduais em uma região disputada pelo Paraná e Santa Catarina.

Ruy Barbosa lança sua candidatura à Presidência da República, mas desiste, alegando dificuldades financeiras.

1912 Naufrágio do Titanic. O transatlântico chocou-se com um iceberg em sua viagem inaugural. Morreram mais de 1.500 pessoas.

1913

1914

1915

Criação do Canal do Panamá. Henry Ford inaugura sua primeira linha de montagem industrial, o que permitiu um aumento na produção do modelo Ford T.

1916 Nascimento do Dadaísmo, o mais radical dentre os movimentos de vanguarda europeus, no início do século XX.

Início da Primeira Guerra Mundial.

Alemanha declara guerra a Portugal.

Gandhi é preso por liderar um protesto de mineiros indianos na África do Sul.

Albert Einstein apresenta a Teoria da Relatividade Geral.

MUNDO


BAHIA Fundação da Academia de Letras da Bahia. O estado enfrenta uma crise no setor do cacau, seu principal produto de exportação.

O jornal “O Imparcial” começa a circular, sob direção do advogado Lemos Britto.

Acontece a greve geral operária da Bahia.

Os sertões da Bahia são mais uma vez palco da guerra entre coronéis.

A febre amarela prolifera no estado. Simões Filho se candidata à Intendência de Salvador.

Morre o ex-governador Severino Vieira.

O coronel Horácio de Matos declara guerra ao Governo da Bahia. É decretada a intervenção federal para solucionar a situação.

Para aperfeiçoar a defesa do país, os fortes do estado são reformados e adquirem novos canhões.

J.J. Seabra é eleito governador da Bahia.

O anarquista José Oiticica celebra, em Andaraí, na Chapada Diamantina, o primeiro casamento sob o regime do “amor livre” no Brasil. Governo da Bahia restabelece imposto de consumo, tributando bebidas fermentadas, destiladas ou gasosas, além do sal, do açúcar e dos cigarros. A medida é considerada ilegal pela Associação Comercial.

BRASIL Voluntários brasileiros se alistam para a Primeira Guerra Mundial. Trabalhadores brasileiros paralisam suas atividades. O episódio ficou conhecido como Greve Geral de 1917.

Delfim Moreira assume interinamente a presidência no lugar de Rodrigues Alves, que contraiu gripe espanhola.

Morre em Petrópolis o médico e cientista Oswaldo Cruz.

1917

O Brasil estreia nos Jogos Olímpicos, em Antuérpia, na Bélgica.

Epitácio Pessoa vence as eleições para Presidente da República.

1918

Acontece a Revolução Russa, que levou o Partido Bolchevique ao poder, sob a liderança de Vladimir Lênin.

Morre a princesa Isabel, a última princesa imperial do Brasil.

1919

1920

1921

O Tratado de Versalhes encerra oficialmente a Primeira Guerra Mundial.

A classe operária italiana entra em greve e ocupa fábricas do país.

Hitler torna-se presidente do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães.

Liga das Nações realiza sua primeira assembleia. Entra em vigor, nos Estados Unidos, a Lei Seca, que proíbe o consumo de alcool.

Fim da Primeira Guerra Mundial. A gripe espanhola faz milhares de vítimas em todo o mundo.

Chega ao fim a Revolução Mexicana.

MUNDO

Fundação do Partido Comunista Chinês.


“Há dois meses anunciamos a publicação d’A Tarde, nos moldes que, hoje, ela aparece. Nós precisamos fazer um jornal honesto, bom e bem-educado, era a fórmula que seduzia a nossa antiga paixão pela imprensa, de que há pouco nos afastamos, embora o travo de fel que ainda amargamos, não sem saudades. Devemos, pois, ao público patrício a afirmação sincera de que A Tarde, secundada pelas auras de seu apoio, há de ser um jornal digno. Digno, repetimos. Não é vã a promessa de inexpertos, desprecatados dos maroiços em que é fertil o lidar exaustivo da imprensa. Nela fizemos a Educação democrática de nosso espírito, no árduo pelejar do jornalismo político, em longo período de lutas e debates incandescentes. Então, combatemos o que nos afigurava condenável no partidarismo adverso ao nosso, sem um instante sequer lançarmos mão de outros processos que não fossem os da mais absoluta probidade profissional. É sob a égide desse mesmo princípio que A Tarde, hoje, distende o seu laboro. Apenas, fora da órbita das facções, ela há de ser mais calma do que apaixonada, mais moderada do que rubra, mais serena do que violenta. A luta pelos mais nobres deveres da civilização não pode deixar de ser a nossa preocupação assídua e constante, sem embargo da feição principal d’A Tarde de ser um jornal de informações. Imparcial, ela não será, contudo, indiferente aos embates do direito; neutra, não se esquivará das controvérsias partidárias quando interessarem ao bem-estar coletivo; ponderada, não provocará rixas pessoais ao paladar dos farejadores de escândalos, afeitos a barrear a honra alheia, mas também não cederá um passo na reação pronta, enérgica e viril. Projetar por toda a parte a claridade meridiana, filar pela gola os atentados, onde quer que se entronizem, não conhecer acepção de pessoas, desde o último dos miseráveis até o chefe do Estado, no distribuir dos louros e da censura, praticar a honra, a franqueza, a liberdade mais livre no uso da palavra escrita, eis o nosso compromisso com o nobre povo baiano. E o transcorrer do tempo há de comprovar sobejamente que o cumprimos. Aquece-nos o coração a esperança profunda de que A Tarde vencerá; assim, Deus em que desalteramos a nossa fé de crentes, e o povo em que depositamos a nossa crença de patriotas e democratas, a protejam e amparem.” A Tarde, 15/10/1912. Simões Filho

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1912 – 1921

Guerras e revoltas “Nós precisamos fazer um jornal honesto, bom e bem educado [...] Devemos, pois, ao público patrício a afirmação sincera de que A Tarde, secundada pelas auras de seu apoio, há de ser um jornal digno.” Ernesto Simões Filho. Editorial – A Tarde,15/10/1912.

Em 15 de outubro de 1912, a Bahia passa por um dos momentos mais conturbados da sua história. Nove meses após o bombardeio da cidade do Salvador, no rastro da guerra campal que se alastrou pelas então estreitas e insalubres ruas do Centro Histórico, o governo J. J. Seabra, iniciado sob intervenção direta do Marechal Hermes da Fonseca, promove, em meio a intensa polêmica, mudanças drásticas na urbe que se estendia do distrito da Sé até as então distantes paragens da Calçada e do Rio Vermelho. A demolição de velhos sobrados e igrejas para a abertura de avenidas, característica do projeto de reforma urbana nos dois governos seabristas (19121916 e 1920-1924), é o tema principal da edição de

estreia de A TARDE. No artigo intitulado “A Igreja da Ajuda: recordações da sua história antiga”, o eminente historiador Theodoro Sampaio questiona a demolição da igreja da Ajuda, um dos mais antigos monumentos da cidade. Ao abrir espaço para análises e opiniões de engenheiros, técnicos e sanitaristas, o jornal reconhece a necessidade da “remodelação material da cidade”, sobretudo pelos aspectos da higiene e do progresso econômico, mas denuncia enfaticamente a derrubada dos prédios antigos com o consequente apagamento de aspectos importantes da Salvador dos séculos XVIII e XIX, o gasto excessivo de recursos obtidos mediante empréstimos a bancos estrangeiros, os altos lucros

“O primeiro prédio, da esquina da Praça do Conselho, demolido para o alargamento da rua da Misericordia. É uma das boas obras municipais.” A Tarde, 4 /11/1913. “Como acabará a praça Aclamação? Não há quem não se interesse pelas remodelações, não há quem não acompanhe estudando, criticando, ‘dando uma nota’, as obras que se vão fazendo pelas ruas e praças da capital. Comenta-se o estilo, censura-se o desperdício de material, fala-se da morosidade dos trabalhos, diz-se que ‘ficará bonito ou que será um aleijão’ e, assim, acompanha-se, cada um com o seu modo de ver, as obras da Avenida da Barra, da Ladeira de S. Bento, do Palácio Rio Branco etc. Mas que se tem dito da Praça da Aclamação?!!! Que será feito dela? Lembram-se todos que antigamente, na administração do dr. Carneiro da Rocha, foi ela cortada até ao nível da rua do forte de S. Pedro, vindo em declive desde as grades do ex Passeio Público. E assim permaneceu até a atual administração remodeladora; desta, um dos primeiros atos foi o embelezamento daquela praça. Era preciso fazer, desde logo, alguma coisa e, destarte. Foram projetados os melhoramentos, que de pronto tiveram início: fez-se uma forte muralha e de novo foi a praça aterrada.” A Tarde, 4 /11/1913.

Palácio Rio Branco após bombardeio.

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dos contratantes, o atraso na execução das obras e a demolição de residências das classes menos favorecidas sem as devidas indenizações. Na edição de 4 de janeiro de 1913, lembra que “A Bahia deseja progredir, mas não se conforma que esse progresso a leve à ruína”. E, ressaltando a existência de “[...] problemas outros de grande transcendência, embora menos vistosos”, conclui: “Não há duas opiniões: basta de avenidas!” As páginas do novo vespertino tornam-se, desde sua estreia, espaço privilegiado de debate sobre

questões que atingem a vida cotidiana dos seus leitores, cidadãos da Bahia. Assim, além de inovações técnicas importantes, que o tornariam um marco no processo de modernização do jornalismo baiano, visíveis nas destacadas manchetes e fotos de primeira página, bem como na ênfase noticiosa das suas reportagens, A TARDE revela, logo de saída e de forma bastante enfática, uma das características que manteria ao longo dos seus cem anos de existência: o comprometimento com a história e o destino de sua terra.

“Febrentos, chaguentos e até leprosos, em frente ao Hospital Santa Izabel, ao sol e à chuva, improvisaram ínfimas barracas de molambos e folhas do jardim de Nazareth, acampando junto à grade deste. De dia, mendigam pela vizinhança... esse aspecto, que estampamos, se não fosse fotografado parecia incrível.” A Tarde, 29/8/1921.

Ao lado, entrevista com Theodoro Sampaio. A Tarde, 21/11/1912.


Consciência crítica O estado de abandono da capital seria tema recorrente nas manchetes, no primeiro decênio de A TARDE. À lama e o lixo nas ruas, e ao “[...] capim verdejante pelos beirais das casas, à guiza de jardins suspensos”, que formavam “[...] a trindade adornativa da nossa cidade”, somavam-se outras questões, gravíssimas, a elas associadas: a malversação das verbas públicas pela administração municipal, a precariedade dos serviços de água e esgoto, a contaminação dos alimentos (denunciava, em sucessivas manchetes, a falta de fiscalização dos gêneros alimentícios, a exemplo do leite e da carne), as péssimas condições higiênicas dos hospitais e asilos e a frequente proliferação de doenças infectocontagiosas, com destaque para a tuberculose, a sífilis, a febre amarela, a peste bubônica, e, nos anos finais da Primeira Guerra Mundial, a temível gripe espanhola que se alastrou, também, pelo interior do estado.

Não menos destaque teriam as obras do porto da cidade do Salvador, que se estenderiam ao longo de trinta anos, bem como o lento progresso nos transportes terrestres, com a substituição, no perímetro urbano, das velhas carroças de tração animal por bondes elétricos e caminhões. Lembrava, frequentemente, o fato de que vultosos recursos eram destinados a grandes obras, enquanto faltava o mínimo para outras questões humanitárias não menos importantes. O problema da precária assistência infantil nos orfanatos da Sagrada Família e de São Francisco de Assis, bem como a situação calamitosa do ensino e das condições materiais nas escolas públicas, eram preocupações recorrentes. “Vamos, srs.! Um bom movimento. Das verbas destinadas à Civilização da velha urbe destinai as sobras à assistência infantil, e tereis concorrido para incorporação à família baiana, dos pequeninos

Vista de Água de Meninos e obras do porto em Salvador.

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Acima, à direita, primeiro prédio da Escola de Belas Artes, construído em 1877. Acima, oficinas gráficas de A Tarde. Foto publicada na edição de 12/8/1920. Abaixo, as carroças trafegavam livremente pelas ruas de Salvador, obstruindo o tráfego dos bondes.

deserdados de lar”, diria na edição de 31 de janeiro de 1913. Vale assinalar que o jornal, nos anos iniciais de sua existência, não se limitava a publicar reportagens, artigos e denúncias. Realizava atividade assistencialista, com campanhas e ações beneficentes de grande vulto e amplamente divulgadas em suas páginas. Da mesma forma, denunciava o descaso ao qual eram submetidas questões díspares, como a cultura

– a exemplo do abandono a que estava relegada a Escola de Belas Artes, construída poucos anos antes, em 1877 – e os animais. Em nota intitulada “Carroças e carroceiros”, conclama a prefeitura “[...] a lançar suas vistas para as carroças que trafegam na rua do Xixi”, onde “[...] os carroceiros carregam seus jumentos com cargas excessivas, dando lugar a que os animais não suportando a carga caiam, obstruindo o tráfego de bonde durante minutos seguintes, e até horas”.


Facções em conflito Dois assuntos estiveram presentes, com grande intensidade, nas páginas de A TARDE, no período que se estende da sua fundação até 1921. Em âmbito nacional, a política salvacionista do Marechal Hermes da Fonseca (1910-1914), por contrariar interesses das oligarquias solidamente estabelecidas nos estados, provocaria revoltas populares e militares do sul ao norte do país. A Guerra do Contestado, referida diversas vezes, com a designação de “Canudos ao sul”, prolongar-se-ia até agosto de 1916, no Paraná e em Santa Catarina. A TARDE noticia, já em 1912, “[...] o desastre das tropas legais, desbaratadas” e expressa o receio de uma “guerra civil”. A revolta dos sertanejos de Juazeiro, liderada pelo padre Cícero Romão Batista, em 1914, ocuparia também grandes espaços no jornal. Na edição de 5 de março de 1914, na qual trazia como título, em letras destacadas, “A Revolução ao Norte – BASTA DE SANGUE!”, clamava “[...] pela paz entre irmãos”. Poucos dias depois, na edição de 17 de dezembro, reproduzia pela primeira vez a foto do padre Cícero, com o título “O Ceará em revolução – Quem é o padre Cícero”. Em âmbito estadual, a sucessão de Antônio Moniz (1916-1920) marcou o retorno de J. J. Seabra ao governo do Estado, no início dos anos 20, em meio a violentos combates de facções políticas contrárias, verificados na capital. No interior do estado, a reação à candidatura do ex-governador produziria, conforme palavras do historiador Luís Henrique Dias Tavares, “[...] conflitos graves e sangrentos [...]” no que se convencionou chamar de “revolta sertaneja”.

“A Revolução ao Norte. Basta de sangue! A intervenção do exército na revolução cearence e a ordem civil – A nação clama pela paz entre irmãos.” A Tarde, 5/3/1914.

A posse de Seabra, entretanto, seria garantida mediante intervenção federal promovida pelo presidente Epitácio Pessoa. Frustrava-se a intenção do Coronel Horácio de Matos de invadir a capital da Bahia à frente de três mil homens. Outro conflito que mobilizou a opinião pública, ao longo de várias edições, foi o que ocorreu entre Bahia e Sergipe pela demarcação das fronteiras entre os dois estados. “Brigaremos com Sergipe?”, perguntava o jornal, na edição de 7 de janeiro de 1914, referindo-se ainda à “[...] invasão da força policial sergipana nos domínios baianos”.

A Tarde, 16/2/1920.

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