O Semeador de Orquestras - História de um Maestro Abolicionista

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Jorge Ramos

Tranquilino Bastos (1850-1935)

O Semeador de Orquestras Hist贸ria de um Maestro Abolicionista





Jorge Ramos

Tranquilino Bastos (1850-1935)

O Semeador de Orquestras Hist贸ria de um Maestro Abolicionista

BAHIA 2011


O Semeador de Orquestras

História de um Maestro Abolicionista copyright © 2011 Jorge Ramos Edição Solisluna Design Editora Projeto gráfico e design Valéria Pergentino Elaine Quirelli Editoração Tratamento de imagens Elaine Quirelli Diagramação Ernesto Falcón Revisão de texto Oldair Matos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ramos, Jorge O semeador de orquestras : história de um maestro abolicionista / Jorge Ramos. -- Salvador, BA : Solisluna Editora, 2011. Bibliografia. ISBN 978-85-89059-42-8 1. Bastos, Manoel Tranquilino, 1850-1935 2. Cachoeira (BA) - História 3. Maestros - Biografia 4. Movimento abolicionista I. Título 11-10427

CDD-784.2092

Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Maestros : Vida e obra 784.2092

Contato com o autor: (71) 3334.0588 jorge.ramos@irdeb.ba.gov.br www.vapordecachoeira.blogspot.com Contato com a editora: (71) 3379.6691 www.solislunaeditora.com.br editora@solislunadesign.com.br

Capa da partitura de uma das composições do maestro abolicionista Tranquilino Bastos (1878).



...E aqueles que por obras valorosas se vão da morte libertando; Cantando espalharei por toda parte Se a tanto me ajudar engenho e arte. Luiz de Camões em Os Lusíadas, Canto Primeiro, II.

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Fernando Pessoa em O Infante.

Manifestações artísticas, romances, peças teatrais, poesia, em meio a tantas outras, podem hibernar anos, décadas, em fundos de baú, ou sítios ermos, mas se um dia tiverem sua vez, surgirão à luz, incólumes, com o esplendor que lhes for inerente. Tuna Espinheira (cineasta) em Caçadores de Imagens. A Tarde Cultural, 8 de março de 1997.


Praça da Aclamação, onde o Hino da Cachoeira foi executado pela primeira vez, em 1922. Ilustração de Tom Maia

Dedico este trabalho a Aninha Ramos e a nossos filhos, Diego e Desirée. Incansáveis encorajadores que não mediram esforços e se empenharam decisivamente nas pesquisas. Aos meus pais – sr. Souza e dona Gizélia – e irmãos Carlinhos e Pedro Paulo, que da eternidade testemunham essa conquista. A dona Morena Ferreira (Cordão de Ouro), amiga da família Bastos por mais de oito décadas.

A dona Doralice Gomes (Tia Bililiu), a última guardiã do acervo de Tranquilino Bastos, e a todos os descendentes do maestro, esse espírito de luz que dedicou sua vida à arte musical e à caridade, que cultuou como sagrado o respeito a todos os seres vivos e pregou a paz e a igualdade entre todos os homens. Ao professor Raimundo Cerqueira, exemplo de amor extremo à Lyra. E também à bibliotecária Célia Mattos.



Vista de Cachoeira e São Félix às margens do Rio Paraguaçu, meados da década de 1960.


Um resgate histórico

H

á alguns anos recebi das mãos de dona Doralice Gomes – a saudosa Tia Bililiu– um monte de papéis velhos, alguns com mais de 100 anos. Eram cartas de família, escassas fotografias, cadernos de contabilidade mercantil contendo anotações pessoais, textos abolicionistas, marcações de datas históricas e rascunhos, além de correspondências (ativa e passiva), recortes de jornais colados e uma série que parecia inesgotável de preciosidades ligadas à vida e obra de Manuel Tranquilino Bastos (1850-1935). Minha esposa logo sugeriu: Este material dá um livro! A velha tia era a última remanescente criada pela família do maestro. Orfã, fora acolhida aos dois anos de idade e criada pelas filhas do maestro na ampla casa do Largo do Monte, em Cachoeira. Todos os filhos e alguns netos do maestro já tinham morrido e ela, segundo nos confessou, achava que deveria ser dado algum destino útil aos papéis da família, caprichosamente guardados, por décadas, em pacotes de papel pardo amarrados com cordão. Para minha surpresa, me deparei também com alguns papéis e cadernos escritos à mão pelo próprio maestro, os mais antigos datados da década de 70 do século 19, até chegar aos anos 30 do século 20. Muitos outros tinham sido escritos, após sua morte, por seus filhos. Não havia sequência cronológica e a grande maioria dos documentos não estava datada. Indagando daqui e dali, e principalmente pesquisando, comecei a montar o quebra-cabeças, separando os papéis por assuntos: pessoais e de família; originais e os respectivos recortes dos textos jornalísticos que publicara na imprensa cachoeirana; assuntos comerciais; receitas de medicina homeopática; atas de sessões espíritas; partituras musicais e livros de presença em ensaios musicais das filarmônicas que fundara e dirigira, etc. O passo seguinte foi mergulhar na pesquisa histórica sobre Cachoeira e o Recôncavo daqueles anos, o seu ambiente econômico, social, político e cultural para contextualizar a época em que Tranquilino Bastos vivera e, então, trabalhar essas fontes primárias de maneira


adequada e poder decodificar as inúmeras mensagens – algumas pareciam cifradas – contidas nos papéis do acervo da família. Porque Tranquilino Bastos, além de exímio clarinetista, era compositor, regente de orquestra e professor de música, além de jornalista, líder espírita, praticante da homeopatia e vegetariano. De todas essas atividades ele extraía ensinamentos de caráter moral e os disseminava como doutrinas. Entre os documentos, alguns citavam uma celebração patriótica, uma tocata musical, um desabafo pessoal contra alguma injustiça que presenciara, a ajuda que prestara a um doente ou uma assistência espiritual a um moribundo, além de anotações de cunho filosófico e observações que hoje soam como politicamente corretas, como a defesa do meio ambiente, o combate ao racismo e à intolerância religiosa e a defesa veemente da liberdade de manifestação. O sonho de Tranquilino Bastos, expresso claramente, era ver publicados alguns textos seus – chegou a submetê-los à apreciação de algumas pessoas –, transformados em livro, cujo nome já tinha escolhido: Minhas Percepções. O Semeador de Orquestras – História de um Maestro Abolicionista traz, além de acuradas pesquisas, o conteúdo do livro que Tranquilino Bastos sonhou publicar. Jorge Ramos Bahia, outubro de 2011


Prefácio

A

biografia de Tranquilino Bastos traz à tona a vida militante do mais destacado intelectual cachoeirano do fim do século 19 e do começo do Século 20. Trata-se de um intelectual-cidadão, no melhor sentido da palavra. Excelente na sua arte, a música; erudito na sua compreensão dos vários domínios de saberes do seu tempo, artes, ciências e humanidades; atuante na defesa da cidadania, seja em causas coletivas, como o movimento abolicionista, seja em sua pregação pelo aperfeiçoamento moral de cada cidadão. Jorge Ramos é igualmente um intelectual humanista, patriota e cachoeirano, que soube reconstituir a importância do Maestro Tranquilino em seu tempo e em seu lugar. O tempo é de transição da Bahia escravista açucareira para a Bahia agroexportadora, que no caso da cidade de Cachoeira é o da produção, comercialização e beneficiamento do fumo e, principalmente, da manufatura de charutos finos. É também um tempo de transição do regime imperial para a chamada Velha República. Cachoeira vista de São Félix Ilustração de Tom Maia


O autor é muito feliz na caracterização do papel da antiga vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto da Cachoeira como a segunda cidade da Bahia, porta de entrada para o interior do estado e liderança cultural inconteste de todo o Recôncavo. Este era o lugar de Tranquilino Bastos, e Jorge Ramos traduz muito bem a firmeza do testemunho dele naquele tempo de vigência da política oligárquica e da violência como prática cotidiana. Através da vida do intelectual-músico, o autor retraça magistralmente a vida cultural do Recôncavo Baiano, centrada em dois tipos de instituições culturais que mobilizavam as paixões e reproduziam os valores civilizatórios: as filarmônicas e os jornais. O ponto alto do livro é o repertório de ideias que formavam o universo do intelectual Tranquilino Bastos. Graças à generosidade da Tia Bililiu – dona Doralice Gomes, o autor foi presenteado com o acervo pessoal do biografado, um “monte de papéis velhos”. Este acervo permitiu a Jorge Ramos construir o seu capítulo Minhas Percepções e sistematizar o roteiro do livro que Tranquilino Bastos gostaria de organizar. A rigor, o jornalista contemporâneo construiu a pauta, as manchetes, as janelas e os resumos do intelectual do passado, despertando a mais viva curiosidade dos leitores. Esta obra está inconclusa. Como nas obras musicais, ela termina em “fuga”, deixando ao leitor a esperança de sua continuidade. Sentimos a falta da música de Tranquilino. Ouvimos ainda o eco do patriótico Hino de Cachoeira, com o seu final apoteótico: Abrasador!!! Gostaríamos todos de poder apreciar uma amostra do conjunto da obra do maestro, em suas várias modalidades, gravada em disco anexa a esta importante obra. Quem sabe se o Maestro Fred Dantas, conhecedor da obra musical do biografado, poderia nos brindar com tal mimo? Ubiratan Castro de Araújo Historiador, diretor da Fundação Pedro Calmon e membro da Academia de Letras da Bahia



Sumário 17

O Maestro Abolicionista

21

A campanha abolicionista em Cachoeira

26

Origens e a produção de Tranquilino

32

Evolução histórica de Cachoeira

42

O ensino da música em Cachoeira

48

As festas das filarmônicas

60

As batalhas nem sempre somente musicais entre as filarmônicas de Cachoeira

68

Um hino para festejar o centenário do 25 de junho

76

A saída e o perdão à Lyra

82

Europa descobriu na Bahia um semeador de orquestras

89

Influências mitológicas nas filarmônicas

95

O agente musical

102

O espiritismo

108

A homeopatia

111

A família Bastos

115

A face do artista

118

Depoimentos sobre a obra de Tranquilino Bastos

125

Minhas Percepções

204

Referências bibliográficas



O Maestro Abolicionista

N

a noite de 13 de maio de 1888 (domingo), liderada por um negro magro de 37 anos, a filarmônica Euterpe Ceciliana desfila garbosa pelas ruas de Cachoeira executando composições alegres, seguida por uma multidão animada, que a todo instante dá gritos como “Viva a liberdade!”. À medida que a passeata avança, novas pessoas se agregam ao alegre cortejo. São, em sua maioria, negros e mulatos. Todos comemoram, cantando, dançando e se embriagando, aquele momento de felicidade coletiva em que se festeja o fim da escravidão. O próprio regente da filarmônica, Manuel Tranquilino Bastos, um dos principais abolicionistas cachoeiranos, filho de uma negra com um português, vê com profunda emoção a realização do sonho que sempre acalentou, de igualdade entre as pessoas. A banda segue pelas ruas iluminadas a lampião. O destino é a Rua Direita da Praça (atual 25 de Junho), onde fica a sede do Montepio dos Artistas Cachoeiranos, que realiza naquele momento uma sessão solene. O Montepio comemora o ato histórico com o salão nobre repleto. Já tinham falado os oradores principais, Pedro Vieira de Alvim, promotor público da comarca, e José Joaquim Villas-Boas, advogado. Logo após a aprovação do texto de um telegrama que a entidade enviaria ainda naquele mesmo dia à Princesa Isabel, irrompeu, vindo da Rua de Baixo (hoje significativamente Rua 13 de Maio), a ruidosa passeata, com Tranquilino Bastos à frente da Euterpe Ceciliana. Banda e multidão param em frente à sede da entidade. A massa, compactada na rua, delira, espocam foguetes e gritos de “Viva a liberdade!”. JORGE RAMOS

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O orador é chamado novamente e se dirige à multidão, “composta de mais de oito mil pessoas, às quais da janela deste edifício lhes falou o mesmo dr. Pedro Vieira, proferindo um brilhante e luminoso discurso, no qual tratou do benefício que viria resultar a nação brasileira tão sábia lei e que, portanto, os que hoje acabam de receber tão salutar benefício deverão continuar no seu trabalho para ser bons cidadãos e perfeitos brasileiros (ver ata à página 25). Após o discurso e os muitos vivas à Nação Brasileira, à Sua Alteza Regente, ao povo cachoeirano e à Sociedade Montepio dos Artistas Cachoeiranos, a Ceciliana, que se achava postada em frente a este edifício, tocou uma canção análoga ao ato, apresentando depois ambas as filarmônicas o Hino Nacional, sendo freneticamente aplaudidas com palmas, brados e vivas. A ata da reunião revela ainda que havia duas filarmônicas, sem se referir nominalmente à outra, mas é muito provável que tenha sido a Minerva Cachoeirana, criada dez anos antes. Naquela noite, Tranquilino Bastos, à frente da sua banda, foi acompanhado de uma multidão, percorrendo as principais ruas de Cachoeira. Aquela comemoração marcaria para sempre a vida de Tranquilino Bastos. Para ele, viver a intensa emoção daquele dia fora uma dádiva que iria recordar para sempre. Segundo depoimento de seus familiares, já velho, ficava emocionado cada vez que se referia ao 13 de maio de 1888, que ele passou a cultuar como “a maior e mais solene data de nosso Brasil”, a ponto de defender que viesse a ser transformada em feriado nacional. Mais tarde, em louvor, compôs o Hino ao 13 de Maio, uma de suas composições preferidas. Já idoso e doente, confidenciou certa vez ao amigo e conterrâneo Maciel Júnior (1894-1935), conforme relato que o poeta e jornalista publicou no jornal A Ordem (12/01/1933) de Cachoeira: “É por isso que ele, na intimidade que comigo mantém, e que dela muito me orgulho, me confessou que, quando morrer, em lugar de tocarem à beira do seu túmulo a marcha fúnebre de Chopin, toquem o seu Hino ao 13 de Maio, ou o Hino Abolicionista, que certamente o seu espírito se sentirá muito mais satisfeito”. O Hino Abolicionista foi composto por Tranquilino Bastos em 18 O SEMEADOR DE ORQUESTRAS


Cachoeira, com poesia de Fortunato Tinoco, Bingre e Thomé, outros abolicionistas cachoeiranos. Foi executado pela primeira vez em 1887, numa das muitas manifestações abolicionistas em Cachoeira. Foi elaborado no calor da luta abolicionista e nele há referências a dois baianos que, quando chefes do governo parlamentarista, tiveram papel decisivo para a aprovação de importantes leis que beneficiaram os escravos: o Visconde do Rio Branco, responsável pela aprovação da Lei do Ventre Livre, e o Conselheiro (Souza) Dantas, que deu grande impulso ao abolicionismo, quando também presidiu o Conselho de Ministros e encaminhou a primeira proposta da Lei dos Sexagenários. O hino executado pela Euterpe Ceciliana nas comemorações do 13 de Maio em Cachoeira possui a seguinte letra:

Hino Abolicionista1 Brasileiros, cantai liberdade! Nossa pátria não quer mais escravos Os grilhões vão quebrar-se num povo De origem somente de bravos! Em tudo inspira a santa voz da liberdade No mar, na selva, na imensidade E já no céu se vê escrito em letras d’ouro Redenção ao cativo! É seu tesouro! O jugo do servilismo Role em pedaços no chão Pise altiva a liberdade! Sobre o pó da escravidão Abaixo a crença do velho atraso Que dos cativos venceu-se o prazo Quebrem-se os ferros da tirania Sejamos todos livres um dia Nosso trono há livre e altaneiro Alvorar o liberto perdão E Dom Pedro sentado no trono Bradará liberdade à nação JORGE RAMOS

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Rompa-se o verso infamante À custa de esforços mil Deus não quer, nós não queremos Que haja escravos no Brasil De Rio Branco2 surgiu a ideia De Souza Dantas3 a epopeia Pedro Segundo, tua equidade Seja a coroa da liberdade Mais tarde, Traquilino Bastos escreveu: “Cantemos! Cantemos o seu hino em comemoração à vitória da abolição do crime e da exumação do direito e da justiça!” Treze de Maio Nós te saudamos Por tanta glória Nós te louvamos Cantai hosanas Brasil e povo Que nossa pátria Nasceu de novo Segundo o pesquisador Juvino Alves, cuja tese de doutorado em música pela Universidade Federal da Bahia (Ufba) foi a obra de Tranquilino Bastos, “esta peça foi escrita em quatro versões: para 1° e 2° sopranos, coro e banda, para 1° e 2° sopranos e piano, para banda e para 1° e 2° sopranos, coro e banda mista de câmara” (texto extraído do encarte do CD Cartas Musicais, contendo essa e outras composições de Tranquilino Bastos. O CD ganhou o Prêmio Copene de Cultura e Arte e foi organizado, coordenado e gravado por Juvino Alves). 2 José Maria Paranhos, Visconde do Rio Branco (1819-1880), era baiano e foi senador pelo Mato Grosso. Ministro dos Negócios Estrangeiros, ele presidiu o Conselho de Estado em 1867, quando apresentou importante parecer intitulado Trabalho sobre a Extinção da Escravatura no Brasil. Sancionou em 28 de setembro de 1871 a Lei do Ventre Livre, que dava liberdade aos filhos de escravos que nascessem após aquela data. 3 Manoel Pinto de Souza Dantas (1831-1894) também era baiano e foi deputado e senador. Foi ministro de Estado e presidiu o Conselho de Ministros. Como senador, apresentou ao parlamento o primeiro projeto da lei dos sexagenários, que concedia liberdade aos escravos que completassem 60 anos. Defendeu também o aumento do fundo destinado ao resgate de escravos. Líder do Partido Liberal na Bahia, ele foi patrono político de um jovem advogado a quem praticamente conseguiu os votos necessários para elegê-lo deputado. Era Ruy Barbosa, que integrou a sua equipe de trabalho quando chefiou o ministério. 1

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