Livro Viva Saveiro - Patrimônio Naval da Bahia

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Patrim么nio naval da Bahia | Naval heritage of Bahia


Patrim么nio naval da Bahia | Naval heritage of Bahia C A R L O S R I B E I R O | P E D R O B O C C A | N I LT O N S O U Z A TEXTOS / TEXTS

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Solisluna Design Editora Enéas Guerra Valéria Pergentino TEXTO | TEXT

Carlos Ribeiro Pedro Bocca REVISÃO DO TEXTO | TEXT REVISION

Maria José Bacelar Guimarães DESIGN E EDITORAÇÃO | DESIGN AND PUBLISHING

Enéas Guerra Valéria Pergentino Elaine Quirelli TRADUÇÃO | TRANSLATION

Thais Bocca REVISÃO DA TRADUÇÃO | TRANSLATION REVISION

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Pedro Carlos Bocca VICE-PRESIDENTE / VICE-PRESIDENT

Roberto Bezerra DIRETORIA / DIRECTORS

ildé Paraense Fátima Navarro Marília Barreto Regina Padilha

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Nilton Souza Pierre Verger (páginas 16, 23, 35 e 76) Bel Borba (páginas 38 e 39) PINTURAS | PAINTINGS

Lev Smarcevski (páginas 5, 17 e 56) Carybé (páginas 13, 14, 15, 31 e 53) Carlos Bastos (página 20) Calazans Neto (página 33) Bel Borba (página 39) ESCULTURA | SCULPTURES

Bel Borba (página 38) TRATAMENTO DE IMAGENS | PHOTO TREATMENT

Nilton Souza Elaine Quirelli CONSULTORIA E GESTÃO | CONSULTING AND MANAGEMENT

Júlio César Marques

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R484 Ribeiro, Carlos Viva Saveiro: Patrimônio naval da Bahia / textos de Carlos Ribeiro e Pedro Bocca; Fotos de Nilton Souza. – Lauro de Freitas, BA: Solisluna Editora, 2013. 132 p.: il. Texto em português e inglês. ISBN 978-85-89059-56-5 1. Embarcação – História. 2. Construção Naval. 3. História Naval. I. Bocca, Pedro. II. Souza, Nilton. III. Título. CDD 629.123.15(091) Ficha catalográfica: Ana Valéria de Jesus Moura CRB/5-1734


Caros leitores Este livro concretiza um acalentado sonho da VIVA SAVEIRO. Aliás, mais um sonho realizado. A compra e a restauração do saveiro “Sombra da Lua” foi o primeiro deles. E não paramos mais de sonhar. A restauração total do saveiro “15 de Agosto” e a sua devolução ao saudoso Mestre Joquinha foi o mais emocionante. Receber o Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, atribuído pelo Iphan, como o melhor projeto do Brasil de preservação do Patrimônio Material, em 2010, nós nem sonhávamos! Nossa participação no tombamento do saveiro “Sombra da Lua”, junto ao Iphan, como Patrimônio Histórico e Etnográfico, foi o que mais nos encheu de orgulho. Somos muito gratos a todos os que nos ajudaram a realizar este sonho. Desejamos que ele encha seus olhos e invada seus corações.

Dear readers This book materializes a cherished dream of VIVA SAVEIRO. Moreover, another dream coming true. The acquisition and restoration of the saveiro “Sombra da Lua” was the first. And since, we have not stopped dreaming. The total makeover of the saveiro “15 de Agosto” and his handing over to the wistful master Joquinha was the most emotional dream. Receive the Award Rodrigo Melo Franco de Andrade, given by the Iphan, as the best Project in Brazil for the preservation of Material Heritage, in 2010, was beyond our dreams! Our participation in the recognition of the saveiro “Sombra da Lua,” by the Iphan, as Historic and Ethnographic Heritage, was the one that most filled us with pride. We are very grateful for everyone that helped us to accomplish it. We hope that it fills your eyes and invades your hearts.

Pedro Carlos Bocca Presidente da Associação VIVA SAVEIRO

Pedro Carlos Bocca President of the Association VIVA SAVEIRO


Sumário 8

Salve Saveiro! Salve! Salute the Saveiro! Salute! Carlos Amorim – Superintendente IPHAN – Bahia

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Baía de Todos-os-Santos O MAR DOS SAVEIROS

All Saints Bay - Saveiros’ Haven 31

A Bahia e seus saveiros APOGEU E DECLÍNIO

Bahia and its saveiros - Glory and decline 53

No balanço das águas CAMINHOS DA SUPERAÇÃO

On the rhythm of the waters - The Overcoming Path 83

Mestres saveiristas Masters saveiristas

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Homenagens Tributes

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Agradecimentos Acknowledgments



Salve Saveiro! Salve! Salute the Saveiro! Salute! Carlos Amorim – Superintendente IPHAN – Bahia Superintendent of IPHAN in Bahia

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aior marco geográfico do Brasil, a Bahia de Todos-os-Santos é o mais importante sítio histórico do país. Conhecida como “Cabeça do Brasil”, ela nos releva os fatos e os marcos do que podemos chamar de civilização brasileira, da civilização da cana-de-açúcar. Foi a cana doce e amara que forjou os alicerces desses portentos de nossa história, desses tesouros de nosso patrimônio: Salvador, Cachoeira, São Félix, Maragogipe, São Francisco do Conde, Mar Grande, Madre Deus, Candeias, Itaparica, Santo Amaro e suas ilhas de Maré, do Medo, das Vacas, de Paramana, dos Frades e mais... Por 400 anos, os saveiros têm dominado todos os caminhos desse universo. Sua intimidade inconsútil e seus segredos, vivos e mortos, sepultados em águas plácidas e profundas, ou descobertos à visão de qualquer um; em nudez às vezes suntuosa por sua grande beleza, às vezes chocante na esqualidez do seu esquecimento – que tanto mais decadente, mais desvela o inestimável de sua glória passada e perdida. Por mares desde sempre navegados, múltiplos saveiros singram, com única personalidade, os meandros dessa massa de águas e terras, transportando suas riquezas que insistem em aportar em Salvador da Bahia, metrópole da qual permanecem cativos. Pois é a história desses entes mágicos, os saveiros, com suas invisíveis vitórias aladas armadas na proa, pois é a história dessas criaturas de domínio próprio – Sombra da Lua, Vendaval, É da Vida e tantas outras criaturas domadas por seus mestres –, pois é essa história que aqui se conta. Com imagens e com palavras, aqui as criaturas ganham voz. Este é um livro oráculo, creia! Os sacerdotes da “Associação Viva Saveiro”, Pedro Bocca à frente, protagonizaram o tombamento do Sombra da Lua e conquistaram o prêmio Rodrigo Mello Franco, o mais tradicional e importante do patrimônio histórico sul-americano. E abraçaram a causa do IPHAN de promover o Patrimônio Naval do Brasil. Causa de grande serventia, que nasce marcada por se insurgir contra a tragédia do desaparecimento das embarcações tradicionais do país.

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reater geographic landmark of Brazil, the All Saints Bay is the most important historical site in the country. Known as “Head of Brazil,” it reveals the facts and landmarks of what we call Brazilian civilization, civilization of the sugar cane. It was the sweet and sour cane that forged the foundations of these gems of our history, these treasures of our heritage: Salvador, Cachoeira, São Félix, Maragogipe, São Francisco do Conde, Mar Grande, Madre Deus, Candeias, Itaparica, Santo Amaro and the islands of Maré, Medo, Vacas, Paramana, Frades and more... For 400 years the saveiros have dominated all paths of that universe. Its seamless intimacy and secrets, alive or dead, buried in placid and deep waters, or apparent to anyone; in nakedness sometimes sumptuous for its great beauty, sometimes shocking in the squalor of its oblivion. The more decadent the saveiros become, the more they unveil their invaluable past of glory now lost. On the same seas as always, many saveiros sail, with unique personality, the windy waterways of this mass of land and water. They transport the areas’ riches and persist to dock in Salvador of Bahia, the metropolis to which they remain captive. It is the story of these magical beings, the saveiros, with their invisible winged victories armed at the prow, it is the story of these creatures with their own personalities – Sombra da Lua, Vendaval, É da Vida and others; creatures disciplined by their masters, it is this story that is told here. With pictures and words, here, the creatures gain voice. This book is an oracle, believe! The priests of “Viva Saveiro Association”, Pedro Bocca ahead, staged the recognition of the Sombra da Lua as National Heritage and won the Rodrigo Mello Franco prize, the most traditional and important of south-American historical heritage. And they embraced IPHAN’s mission to promote the Naval Heritage of Brazil. A cause of great service, which from the beginning, has been marked by its rebellion against the tragedy of the disappearance of the traditional boats of the country. Progress always comes with the promise of wealth, it’s what is believed. Pillars of salt.


O progresso vem sempre com a promessa de riquezas; é o que se crê. São pilares de sal. A riqueza maior está em garantir esses testamentos vivos. Sim, porque para quem consegue ver esse mundo das coisas que atravessam tempos, nada é mais importante do que impedir o esquecimento. Os saveiros vivos garantem às gerações futuras não apenas a contemplação da beleza de seu movimento; garantem aos que ainda virão saber nossas escolhas ao longo dos séculos e, enfim, nos julgar. Testemunho e testamento, os saveiros são a liga das igrejas e conventos mui ricos, pois transportavam de cá pra lá os insumos de sua construção; são a liga do sustento dos pequenos, porque levavam suas artes e suas especialidades do interior para a metrópole; são a liga do imaginário, porque faziam festa e transportavam os festeiros ilhéus, da santa do dia ao grandioso Bonfim. Saudar os saveiros é saudar a Bahia – toda ela, sua cultura inigualável e sua beleza que ninguém acaba. Salve Bahia! Salve Saveiro!

The greatest wealth is in ensuring these living testimonials. Yes, because for those who can see this world of things that cross time, nothing is more important than preventing them from being forgotten. The remaining saveiros guarantee to future generations not only the contemplation of their beautiful movement, they also allow those to come to learn about our choices over the centuries, and ultimately judge us. Testimony and testament, the saveiros are the alloy of very rich churches and convents, because they transported from here to there the goods of their construction; are the alloy of the livelihoods of the small, because take their art and food specialties from the interior to the metropolis; are the alloy of the culture, because they took part in festivities and transported the islands’ revelers and the saint of the day, to the grand Bonfim. Saluting the saveiros is saluting the Bahia– all of it, its unmatched culture and its endless beauty. Salute Bahia! Salute Saveiro!

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“Era espetáculo bastante admirado por todos que, dos altos da Cidade do Salvador, nas segundasfeiras, pela manhã, olhando para o vasto golfão, viam a chegada dos barcos, lanchas e saveiros, em número sem conta, como se fossem um enxame de borboletinhas brancas pousadas na água. Vinham do Recôncavo, isto é, de tudo quanto era praia ou riozinho da baía imensa, surgindo como por encanto ao aceno da varinha de uma fada e impelidas por suave terral, deslizando em mar espelhado; vinham fazer a feira, trazendo seus produtos agrícolas, louça de barro, farinha de mandioca etc., tudo o que o Recôncavo produz e que a capital necessita.”

“It was a scene enjoyed by all who, on Monday mornings, looked out on the vast bay from the highpoints of the City of Salvador and saw the arrival of the boats, motorboats and Saveiros. The boats arrived in countless numbers, as if they were a swarm of little white butterflies landed on the water. They came from the Bahia bay region, which is to say, from all sort of beaches or little rivers of the large bay. The Saveiros appeared as a spell cast by the magical wand of a fairy and gently driven by offshore winds, sliding through a mirrored sea; they come to the market, bringing their agricultural products, crockery/clay products, flour of cassava, etc., all things that the bay region produces and that the capital needs.”

Theodor Selling Júnior1

Theodor Selling Júnior1 11



Baía de Todos-os-Santos O MAR DOS SAVEIROS

All Saints Bay - Saveiros’ Haven

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Baía de Todos-os-Santos foi, durante alguns séculos, palco privilegiado para centenas de embarcações que “enxameavam” suas águas, percorrendo os seus 1.052 quilômetros quadrados de extensão, entre numerosas ilhas e povoados, subindo e descendo o rio Paraguaçu na faina diária da pesca e do transporte de carga. A partir da segunda metade do século passado, entretanto, a visão que temos dela não confirma a presença expressiva dos saveiros referida por tantos escritores, navegadores e historiadores. Na bela Kirimurê (nome dado à baía pelos índios tupinambás), já não se vê mais este espetáculo de velas brancas. Apenas em dias especiais, de procissão ou regata, pode-se contemplar parcialmente o que um dia foi a beleza e a magia desta paisagem. Ao sabor dos ventos e correndo com as marés, os saveiros dominaram essa baía como nenhuma outra embarcação o fez, antes ou depois do seu período áureo. Levavam e traziam frutas, verduras, pessoas, mudanças, materiais de construção, animais, enfim, tudo o que precisava ser transportado em uma região dominada pelas águas do mar e dos rios. Sobreviveram aos ciclos do açúcar, do fumo, do gado; construíram o progresso, levando pedras e materiais para todas as obras: piers, portos, pontes, engenhos, igrejas e fazendas da região. Toda a produção do Recôncavo que abastecia Salvador era transportada por essas embarcações cujo habitat incluía diversas cidades, vilas e povoados. Maragogipe, São Félix, Cachoeira, Nagé, São Francisco do Conde, Itaparica, Jaguaripe, Maragogipinho, Nazaré das Farinhas e Santo Amaro da Purificação, no interior da baía e do recôncavo; Itapoã, Valença, Boipeba, Camamu e Morro de São Paulo, ao norte e ao sul, barra-fora, como se diz na linguagem

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he All Saints Bay was, during some centuries, the privileged stage of hundreds of vessels that “swarmed” its waters, navigating its 1,052 square kilometers of area, between numerous islands and villages, up and down the Paraguaçu River, in the daily labor of fishing and cargo transportation. From the second half of last century, however, the view we have of the Bay no longer confirms the expressive presence of saveiros described by many writers, sailors and historians. In the pretty Kirimurê (name given to the Bay by the native Tupinambás tribe) one no longer sees the spectacle of white sails. Only on special days, of cortege and regatta, can one contemplate to a degree what once was the beauty and magic of this landscape. At the will of the wind and running with the tide, the saveiros dominated this bay like no other vessel has done, before or after its golden days. The saveiros took and brought fruits, vegetables, people, furniture, construction materials, animals, everything that needed to be transported in a region ruled by the waters of the sea and rivers. They survived the boom cycles of sugar, tobacco, cattle. And they were a fundamental part of development, bringing rocks and material for piers, ports, bridges, mills, churches and farms of the region. All the production of the Bahia bay region that supplied Salvador was transported by those vessels, whose habitat included many cities, towns and villages. Maragogipe, São Félix, Cachoeira, Nagé, São Francisco do Conde, Itaparica, Jaguaripe, Maragogipinho, Nazaré das Farinhas and Santo Amaro da Purificação, in the bay and its region; Itapoã, Valença, Boipeba, Camamu and Morro de São Paulo, in the North and South, on the high seas, according to the sailor’s language. Until recently, around 13


dos marinheiros. Até recentemente, por volta da década de 1950, dezenas de saveiros descarregavam suas mercadorias na rampa do Mercado Modelo, nas feiras de Água de Meninos, da Barra e da Ribeira. As lentes de fotógrafos, como Bruno Furrer e Pierre Verger, mostram inacreditáveis emaranhados de mastros e velas dos saveiros ancorados na rampa do Mercado Modelo. Hoje restam apenas vinte embarcações para contar uma história de glória e importância histórica. Trata-se de uma triste constatação para quem sabe da importância que essa embarcação teve para a cidade de Salvador, deixando uma marca profunda na sua história, refletida nas artes plásticas, na música, no cinema, na literatura e na fotografia, conforme testemunham as pinturas de Carybé, Jenner Augusto e Calazans Neto; as canções praieiras de Dorival Caymmi; o documentário do cineasta Guido Araújo; os romances de Jorge Amado e os registros fotográficos de Pierre Verger que, por sua plasticidade e beleza, se tornaram atemporais. O saveiro era uma presença efetiva e afetiva, integrando a paisagem, como os coqueiros e as dunas de areia outrora tão numerosas. Originado da Índia, segundo alguns estudiosos da matéria, ele chegou ao Brasil por volta do século XVII, pela obra e graça dos grandes navegadores e mestres carpinteiros portugueses. Aqui se aclimatou, como barco de transporte e pesca. Trouxe consigo um 14

the 1950´s, dozens of saveiros unloaded their goods at the Mercado Modelo ramp, at the Água de Meninos, Barra and Ribeira markets. The lens of photographers such as Bruno Furrer and Pierre Verger show the incredible tangle of masts and sails of saveiros anchored at the Mercado Modelo ramp. Today, only twenty of these vessels remain, to tell a story of glory and historic importance. It is a gloomy realization for anyone who knows the importance that this vessel had in the cultural landscape of the city of Salvador, leaving a deep imprint on its history, reflected in the visual arts, music, films, literature and photos, as witnessed by the paintings of Caribé, Jenner Augusto and Calazans Neto; the summer songs of Dorival Caymmi; the documentary of the filmmaker Guido Araújo; the romances of Jorge Amado and the photographic records of Pierre Verger, that for their plasticity and beauty, became timeless. The saveiro was a practical and emotional presence in the city. It was part of the landscape of the city just as much as the coconut trees and sand dunes which were also once so numerous. Originated from India, according to some scholars of the topic, it arrived in Brazil around the XVII century, by the work and grace of the great Portuguese sailors and master carpenters. Here it was established as transportation and fishing vessel and brought along with it an exceptional nautical knowledge, that developed locally and deserves to be rescued and preserved. This knowledge adjusted to perfection to the conditions of the All Saints Bay, the depth of its waters, its winds and its marine currents. The saveiro is in essence an ecological vessel, as it has only the wind as a mean of propulsion. The saveiro adapts to nature, integrating itself to it with perfection, leaving for its daily labor with the favorable wind, going up river with the rising tide and down river with the ebb tide, following without effort the routes traced by the nautical currents. The saveiro and its master are unified and inseparable; they always know the vagaries of nature, and how to use those vagaries in their favor, meeting with perfection their role of transporting people and goods. When sailed, for the first time, in the calm waters of the second largest bay in the Atlantic, and first in Brazil, the saveiro encountered other vessels already familiar to the place which back then housed the largest export port of the southern hemisphere. Aside from the numerous Caravels and Caravelões (small and rough caravels), there was an abundance of canoes and sailing rafts made and used by the indigenous, which nautical tradition, mixed with the Portuguese, had a great influence in the Brazilian vessels over the coming centuries.


conhecimento náutico especialíssimo, que aqui se desenvolveu e merece ser resgatado e preservado. Este conhecimento se adaptou, com perfeição, às condições da Baía de Todos-os-Santos, à profundidade de suas águas, aos seus ventos e correntes marinhas. O saveiro é por excelência uma embarcação ecológica, pois tem apenas os ventos como meio de propulsão. Adapta-se e integra-se com harmonia à natureza, ao partir para sua faina diária sempre com ventos favoráveis, subindo os rios na enchente das marés e descendo na vazante, seguindo sem esforço as rotas traçadas pelas

Since its discovery by the Portuguese, in the XVI century, until the middle of the last century, Salvador maintained a relationship of dependence with the waters of its vast bay. It was the canoes, rafts, ships (naus), barges, saveiros and caravels that linked the capital to the surrounding ranches, mills and villages. The All Saints Bay was also the location of the main shipyards, becoming the place for the manufacture and maintenance of these vessels. Not by chance, as João Lara Mesquita informs,2

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correntes marinhas. Na unidade indissociável do barco com seus mestres, eles sempre sabem os caprichos da natureza, utilizando-os a seu favor, cumprindo com perfeição sua finalidade de transportar pessoas e mercadorias. Quando singrou, pela primeira vez, as águas tranquilas da segunda maior baía do Atlântico, e primeira do Brasil, o saveiro já encontrou outras embarcações familiarizadas ao local que, já naquela época, abrigava o maior porto exportador do hemisfério sul. Além de numerosas caravelas e caravelões (pequenas e grosseiras caravelas), abundavam canoas e jangadas fabricadas e utilizadas pelos indígenas, cuja tradição náutica, misturada com a dos portugueses, exerceria grande influência nas embarcações brasileiras ao longo dos séculos vindouros. Desde sua descoberta pelos portugueses, no século XVI, até meados do século passado, Salvador manteve uma relação de dependência com as águas de sua imensa baía. E era nas canoas, jangadas, naus, saveiros e caravelas que ocorria a ligação entre a capital e as diversas fazendas, engenhos e povoados. Foi também na Baía de Todos-os-Santos que foram implantados os principais estaleiros, tornando-se este um porto de manutenção e fabricação dessas embarcações. Não por acaso, como nos informa João Lara Mesquita,2

When Salvador became a mandatory stopover of the ship fleets on the Carreira da India, (the “India Run” was the route from Portugal to India of the royal Portuguese armadas) whose golden days were in 1796, the city came to be called the ‘Port of Brazil’ even in documents of the time, as if it was the only harbor of the colony. In that year, Salvador ranked first among the ports of the Portuguese empire.

For this city, the interior navigation was a matter of survival – and because of that, traditional artesian vessels played a fundamental role. All Saints Bay, as well as the endless recesses of the sea and rivers of the bay region, would not only be scenery of lavish shipyards of great fame and credibility, but a prolific naval laboratory. Lev Smarcevski,3 in the already classic Graminho – A Alma do Saveiro, one of the few books published in Brazil about this type of vessel, recounts that:

Quando Salvador passou a ser escala obrigatória para os navios da Carreira da Índia, cujo auge foi em 1796, a cidade chegou a ser chamada de “Porto do Brasil” até mesmo em documentos da época, como se fosse o único ancoradouro da colônia. Nesse ano, Salvador ocupou o primeiro lugar entre todos os portos do império luso.

Para esta cidade, a navegação interior era questão de sobrevivência – e, nela, os barcos tradicionais, artesanais, desempenhavam um papel de fundamental importância. A Baía de Todos-os-Santos, bem como as infindáveis reentrâncias marítimas e fluviais do Recôncavo, seria não somente cenário, mas prolífico laboratório naval, pródigo em estaleiros de grande fama e credibilidade. Lev Smarcevski,3 em seu já clássico Graminho – A Alma do Saveiro, um dos poucos livros publicados no Brasil, sobre essa embarcação, lembra: No recôncavo baiano, por séculos, foram gestados e paridos nos estaleiros de diversas localidades: Massaranduba e Cabrito em Itapagipe, Santo Amaro, São Roque, Cachoeira, São Félix, Ilha de Bom Jesus, Madre de Deus, São Francisco do Conde, Santo Amaro do Catu, Tubarão, Salinas da Margarida, Conceição de Salinas, Itaparica, Caboto, e em outros locais dotados de estaleiros de menor porte. Saveiros construídos, todos eles, com as características comuns aos barcos do recôncavo. 17




O mais célebre e antigo desses estaleiros foi fundado, em 1549, pelo primeiro governador geral do Brasil, Tomé de Souza. Batizado de Ribeira das Naus, resultou no Regimento de Tomé de Souza, publicado pelo rei D. João III, de Portugal, em 1548, que preconizava a defesa das povoações e do litoral contra os corsários que então infestavam a recém-descoberta Terra Brasilis. Diz Lara Mesquita:4 A Ribeira das Naus se tornaria fundamental, entre outros motivos, por auxiliar, nos séculos seguintes, aos navios da Carreira da Índia, a rota entre Lisboa e Goa que se iniciou com a descoberta do caminho marítimo para a Índia, por Vasco da Gama, e durou mais de 300 anos. A partir de 1770 até sua extinção, em 1899, a Ribeira ficou conhecida como Arsenal da Marinha da Bahia. Seja qual for o nome, tornou-se o mais importante centro de construção naval do Brasil colonial.

Devido à sua magnitude, posição geográfica estratégica e diversidade em madeiras da melhor qualidade, perfeitas para a construção de barcos, a Baía de Todos-os-Santos logo ganhou

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For centuries, saveiros were conceived and born in shipyards located in various parts of the Bahia bay region: Massaranduba and Cabrito in Itapagipe, Santo Amaro, São Roque, Cachoeira, São Félix, Bom Jesus Island, Madre de Deus, São Francisco do Conde, Santo Amaro do Catu, Tubarão, Salinas da Margarida, Conceição de Salinas, Itaparica, Caboto and other towns and villages with smaller yards. All these saveiros were built along the same lines as those commonly found in vessels from the bay region.

The most well-known and traditional of those yards were founded in 1549 by the first general governor of Brazil, Tomé de Souza. Named Ribeira das Naus, and resulting in the Tomé de Souza Regiment, published by king D. João II, of Portugal, in 1948, that advocated the defense of the villages and the coast against pirates that back then infested the recently discovered Terra Brasilis. Lara Mesquita states:4 Ribeira das Naus would become important, among other reasons, for supporting, in the following centuries, the ships of the India Run, the route between Lisbon and Goa, that started with the discovery of the sea


o status de porto natural privilegiado cujo fascínio atraía navegadores, colonizadores e piratas. Mais do que isso, de sítio estratégico de defesa da província da Bahia, numa época em que o controle das vias marítimas era uma questão de vida ou morte para os governos e populações que habitavam a colônia. Não por acaso, o antropólogo Pedro Agostinho5 afirma que “Salvador sempre esteve nas mãos dos que tiveram o domínio do mar”, acrescentando que “Nas guerras holandesas, na Independência, na Sabinada mais tarde, para a cidade o ponto decisivo foi perder ou manter as águas da baía, que outro acesso não havia, tão precárias ou inexistentes eram as vias terrestres”.6 A importância estratégica e, mesmo, vital da baía teria uma influência decisiva na multiplicidade de tipos navais e de técnicas e conhecimentos náuticos que resistiram durante séculos e, justamente agora, encontram-se ameaçados de extinção. Conforme Mesquita:7 Apesar de todo o passado glorioso, os barcos-do-recôncavo [tipo específico de embarcação desta região] já não existem mais. Assim como as vigilengas, o perné dos Abrolhos, as baleeiras, as barcaças, a lancha da barra, o bote de lenha... A lista de embarcações que deixaram de existir é grande. Felizmente, o saveiro, descendente do barco-do-recôncavo, luta para resistir.

Dos seis tipos de saveiros registrados por Lev Smarcevski, entretanto, cinco já foram extintos, incluindo todos os que circulavam fora da Baía de Todos-os-Santos. Destes, o saveiro de barra-fora, que vinha de Valença, de Itacaré e até de Ilhéus, trazendo para Salvador o cacau, o carvão, o gado, foi um dos que mais rapidamente sucumbiu. Hoje somente um único tipo de saveiro, que é o saveiro de vela de içar, existe e persiste. As razões desse desaparecimento e as possibilidades de resgate dessas embarcações são temas do próximo capítulo. Por enquanto, podemos dizer, como Pedro Agostinho,8 que Estando, a longo prazo, condenadas, algumas embarcações populares da Baía de Todos-os-Santos poderão sobreviver, e isso por tempo indeterminável, na medida em que se adaptem às novas condições técnicas e econômicas – caso das canoas e dos saveiros de pesca –, ou na medida em que, para elas, se encontrem usos alternativos – casos dos saveiros, de carga ou de pesca, e dos iates de carga.

O desaparecimento das embarcações tradicionais, nos rios e mares da Bahia, é uma espécie de tragédia anunciada, um desses infortúnios que ocorrem gradativamente, ao correr dos anos, sem que deles nos apercebamos devidamente. A morte desses “velhos barcos” – hoje considerados obsoletos foi intensificada a partir

route to India, by Vasco da Gama, and lasted over 300 years. After 1770 until its extinction, in 1899, the Ribeira was known as the Armory of the Navy of Bahia. Whatever it was called, it became the most important shipyard in the colonial Brazil.

Due to its magnitude, strategic geographical position and diversity of great quality wood, perfect for naval construction, the All Saints Bay soon gained the status of privileged natural port whose fascination attracted sailors, colonizers and pirates. More than a natural port, it was known as a strategic site for the defense of the province of Bahia, at a time when control of sea routes was a matter of life or death for governments and populations that inhabited the colony. Not coincidentally the anthropologist Peter Augustine5 asserts that “Salvador was always in the hands of whom had control of the sea”, adding that, “in the Dutch wars, in the Independence, in the Sabinada later on, for the city the decisive point was to lose or keep the waters of the bay, since no other access existed because routes by land were so precarious or inexistent”.6 The strategic, even vital, importance of the bay had a decisive influence on the multitude of types of vessels, naval techniques and knowledge that resisted for centuries and are now endangered. According to Mesquita:7 Despite the glorious past, the vessels-of-the-Recôncavo [specific type of vessel from the Bahia bay region] do not exist anymore. Just like the Vigilengas, the Perné dos Abrolhos, the whalers, the barges, the Lancha da Barra, the Bote de Lenha... The list of vessels that no longer exist is large. Fortunately, the saveiro, descendent of the vessel-of-theRecôncavo, continues the struggle to resist.

Of the six types of saveiros documented by Lev Smarcevski, however, five have become extinct, including all that sailed beyond the All Saints Bay. Of those, the saveiro of high-seas that come from Valença, from Itacaré and even Ilhéus, bringing to Salvador cocoa, coal, cattle, was the one to decline the quickest. Today, only one type of saveiro, which is the saveiro with the hoisted sail, exists and persists. The reasons for this disappearance and the possibilities to rescue these vessels are the themes for the next chapters. For now, we say, in the words of Pedro Agostinho,8 that Being, in the long-term, condemned, some vessels popular of the All Saints Bay may survive, and for an undetermined amount of time, as long they adapt to the new technical and economic conditions – which is the case of the canoes and the saveiros de pesca (for fishing) – or if alternative uses are found for them – in the case of the saveiros, for cargo or for fishing, and of the cargo yachts.

The disappearance of traditional vessels, on the rivers and seas of Bahia, is a kind of foretold tragedy, one of those misfortunes that 21


de meados do século passado, com dramáticas consequências em vários campos da economia e da cultura baianas. Mais do que a preservação física de um determinado número de embarcações, a preservação dos saveiros implicará o resgate de um conjunto de conhecimentos ancestrais de inestimável valor. Estes conhecimentos chegaram até nós, desde a antiguidade, adaptando-se, de forma surpreendente, às características geográficas da nossa costa. Para isto, é necessário que o resgate dos saveiros ocupe um lugar de destaque na nossa política de preservação cultural. Reconhecer que se trata de uma raridade ameaçada de extinção, cujos cascos coloridos, com nomes poéticos e curiosos, grandes velas brancas surpreendentemente ajustadas, e mastros de 16 metros de altura, tem um forte apelo poético com imagens suficientemente intensas para se impor como parte integrante da nossa paisagem cultural. É necessário e urgente que sejam criadas novas atividades e condições favoráveis que possibilitem a sustentabilidade econômica do sistema e a sobrevivência digna dos mestres saveiristas, carpinteiros, calafates e toda a cadeia de artesãos hoje em atividade.

SELLING JUNIOR, Theodor. A Bahia e seus veleiros: uma tradição que desapareceu. Rio de Janeiro: Documentação Geral da Marinha, 1976. p. 16. 2 MESQUITA, João Lara. Embarcações típicas da costa brasileira. São Paulo: Terceiro Nome, 2009. p. 75. 3 SMARCEVSKI, Lev. Graminho: a alma do saveiro. 2. ed. Salvador: Governo do Estado da Bahia; Odebrecht; Centro Náutico da Bahia – CENAB, 2001. p. 27 A. 4 MESQUITA, op. cit., p. 59. 5 AGOSTINHO, Pedro. Embarcações do Recôncavo: um estudo de origens. Salvador: Oiti; OAS, 2011. p. 34. 6 Ibidem, p. 34. 7 MESQUITA, op. cit., p. 77. 8 AGOSTINHO, op. cit., p. 115. 1

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occur gradually, over the years, without our noticing it properly. The deaths of these “old vessels” – today considered obsolete were intensified from mid-century, with dramatic consequences in many areas of the economy and the culture of Bahia. More than the physical preservation of a determined number of vessels, the preservation of the saveiros will also imply the rescue of a priceless set of ancestral knowledge. This knowledge has been passed down to us through antiquity, adapting, in an impressive way, to the geographical characteristics of our coast. That is why the rescue of the saveiros must take an honored position in our policy of cultural preservation. It is necessary to recognize that this is a rarity endangered, whose colored hulls with poetic and curious names, surprisingly large white sails, and 16 meter high masts, has a strong poetic appeal with a sufficiently intense image to impose itself as an integral part of our cultural heritage. It is necessary and urgent that new activities and favorable conditions be created to allow the economic sustainability of the saveiros and the dignified survival of master saveiristas, carpenters, caulkers and the entire artisan network currently in activity.


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