Iêda Marques – lembranceiras, imaginário e realidade

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iĂŞda marques l e m b r a n c e i ra s , i ma g i n ĂĄ r i o e re a l i d a d e


BAHIA 2012


iêda marques: lembranceiras, imaginário e realidade Texto e fotografias © Iêda Marques 2012 © Solisluna Design Editora 2012 EDIÇÃO

Enéas Guerra Valéria Pergentino DESIGN E EDITORAÇÃO

Valéria Pergentino Elaine Quirelli TRATAMENTO DE IMAGEM

Vicente Sampaio Elaine Quirelli REVISÃO DO TEXTO

Maria José Bacelar Guimarães COLABORADORES

Ana Corbisier Benjamim Almeida Célia Aguiar Ciana Sagrilo Gustavo Falcón ilde Elisa Almeida Isabel Gouvêa João Bosco Ramalho João MacDowell Jonatas Santos Santana José Welington Santos Ovidio Brito Souza Filho Pablo Lacaze Casella Sálua Chequer Sandra Filippo Tiago Moreira

A impressão deste livro teve o apoio financeiro do Fundo de Cultura do Estado da Bahia através do Edital de Demanda Espontânea 2011, da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Marques, Iêda Iêda Marques : lembranceiras, imaginário e realidade. -- Lauro de Freitas : Solisluna Editora, 2012. ISBN 978-85-89059-46-6 1. Antropologia visual 2. Chapada Diamantina (BA) - Descrição 3. Chapada Diamantina (BA) Fotografias 4. Fotógrafas - Brasil 5. Fotografias Retratos 6. Paisagens - Chapada Diamantina (BA) I. Título.

12-01389

CDD-779.3681422

Índices para catálogo sistemático: 1. Antropologia visual : Chapada Diamantina : Fotografia 779.3681422



AGRADECIMENTOS

À luz que me guia e ao encanto da clareza das palavras. À minha grande família e aos amigos, pessoas diversas, dos campos e das cidades, de dentro e de fora do país. São tantas que, ao citá-las, correria o risco de esquecer alguma. A todas as pessoas que aparecem nas fotografias, a todos os que colaboraram para concretizar o sonho e também à equipe que o tornou real. Meu trabalho é resultado da magia do coletivo.


À memória viva do meu pai Chico Moreno que me inspira. Dedico este livro a minha mãe Rosalina, que sempre me ensinou e me ensina amor e bondade, e aos meus filhos, parceiros preciosos, Ciana & Tiago.






Geografando os caminhos da luz interior TIAGO MOREIRA

A arte fotográfica de Iêda Marques é um trabalho em movimento, pelos caminhos do mundo e da Bahia, em busca da luz interior, da valorização, da ligação entre cultura e educação na luta pelo meio ambiente. Por esses caminhos, o olhar lírico e crítico se admira e se espanta com as coisas que retrata, sempre de forma intensa. Nas suas andanças, Iêda, minha mãe, se depara com as rotas do passado: as dos pré-históricos da Chapada Diamantina, as rotas dos tropeiros, do engenheiro Teodoro Sampaio pelo curso do rio São Francisco e pela região da Chapada; a rota percorrida pela Coluna Prestes no território baiano. Tempos históricos distintos, com realidades geográficas diversas, um olhar atual sobre as marcas deixadas na paisagem do sertão, no modo de vida de seus personagens, pelo interior do sertão. Cada uma dessas rotas fez e faz parte da história de diferentes regiões, deixando marcas culturais e reflexos ambientais em suas paisagens. Da relação dialética e dialógica entre as várias rotas e suas diferentes forças motivadoras surge a percepção de que tudo se comunica, entre diferentes dimensões (cultural, ambiental, política e econômica), pelo diálogo entre os vários tempos e espaços. Ao mesmo tempo, surge também a percepção de que muitas dessas marcas históricas, da permanência de muitas culturas sertanejas, têm sido atropeladas pelo ritmo acelerado do motor do desenvolvimento globalizante. Em resistência a essa lógica pós-moderna, Iêda busca dar luz e voz à identidade sertaneja, através da sua fotografia, do seu olhar de sujeito daquilo que retrata, de alguém que vive a vida com arte, que usa a arte para mudar sua própria vida e a do próximo, para fazer o seu ambiente um pouco menos insustentável. Este é um trabalho que

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liga o conhecimento científico ao conhecimento tradicional, ora de maneira consciente e intencional, ora de forma instintiva, buscando quebrar barreiras de classe, aproximar as pessoas e seus saberes e, sobretudo, estimular o olhar artístico de cada um de nós. O mestre Paulo Freire dizia que o trabalho do professor-pesquisador deve ser pautado pela ética, mas também, na mesma importância, pela estética. E é com a ética sertaneja e a estética apurada, lapidada ao longo de anos, como o brilho dos diamantes da Chapada, que Iêda busca revisitar a antiga rota do seu saudoso pai, meu avô Francisco Deoclides de Almeida, o Chico Moreno. Nessa trilha de leste a oeste da Bahia, saía-se das planícies e tabuleiros litorâneos do Recôncavo, seguindo em aclive até alcançar as terras altas da Chapada Diamantina, para depois prosseguir em declive até chegar à grande Depressão Sanfranciscana. Na última etapa da viagem, novamente em aclive, alçava-se o Planalto Central Brasileiro, no seu trecho entre a Bahia e o Goiás, atual Tocantins, chegando ao Vale do Jalapão. Esse grande roteiro de comércio itinerante empreendido pelos tropeiros percorria diferentes regiões do estado da Bahia, com contextos ambientais diversos e realidades socioeconômicas, culturais e políticas diferenciadas. Esse trajeto cruzava por locais vários, e em cada um desses lugares ouviam-se as estórias dos viajantes, as memórias dos tempos idos, a cultura de cada região. E eis que esse viajante ia formando sua personalidade e sua bagagem cultural na forja da mistura de cheiros, sabores, sons, imagens, paisagens e sensações. Este trabalho busca as marcas do passado, das


permanências e das mudanças ocorridas no interior em quase um século, num esforço que procura conhecer essas marcas para entender o presente e pensar o futuro. Um futuro que garanta uma vida equilibrada para as próximas gerações, uma cultura múltipla e democrática, e um mundo menos capital e mais interior. Sendo filho dela, e ao mesmo tempo seu amigo, assistente de campo, interlocutor e, humildemente, assessor para assuntos técnicos, já que venho construindo um caminho na academia, bem como revisor literário, pois, assim como ela, também sou um apaixonado pela literatura, e também me arrisco pela seara da escrita, sempre pude ter o privilégio de acompanhar de perto o seu processo criativo. Orgulha-me ser seu filho, mas orgulha-me mais ainda ser seu parceiro de jornadas e seu colaborador nos trabalhos, pois sempre aprendo muito a cada nova empreitada que compartilhamos por esses caminhos do Sertão. Com Iêda foi que apreendi a paixão pela literatura, pela fotografia, pelo cinema e pela poesia, coisas que ela sempre estimulou em mim, tanto que escolheu o meu nome em homenagem ao grande poeta amazonense Thiago de Mello, nascido coincidentemente em uma cidade chamada Barreirinha, nome homônimo do bairro no qual Iêda, com os frutos de sua arte, construiu uma casa, na cidade de Barreiras (BA). O meu xará poeta dizia: “Escrevo esta canção porque é preciso, se não a escrevo, falho com o pacto que tenho abertamente com a vida.” É este pensamento que norteia os nossos caminhos, pois temos um pacto com a vida, não só com a vida humana, mas também com as formas de vida animal e vegetal; temos um pacto com a história dos nossos

antepassados, um pacto com a cultura sertaneja e com os sujeitos e sujeitas que lutam para mantê-la viva. Nesse processo, temos um pacto conosco, pois não podemos negar tudo isso que citei, senão estaremos negando a nós mesmos. Fazemos parte do ambiente no qual vivemos e também da cultura popular que tanto valorizamos e, sendo a continuidade dos nossos antepassados, fazemos parte também da sua História; podemos dizer que somos Tropeiros Pós-Modernos, artesãos da Arte, em um mundo com uma Arte cada vez mais padronizada e massificada. Valorizamos o faça você mesmo, primamos pelo que é feito à mão, pelo que é feito com o coração. Seguimos a máxima do mestre Glauber Rocha, nosso conterrâneo: “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça.” Somos feitos da mesma matéria, somos pedra do mesmo veio, forjados no mesmo cadinho e, juntos, vamos fazendo a Geografia Cultural dos nossos caminhos. É um prazer e uma honra poder dar esta pequena contribuição ao seu belo trabalho, a este seu novo filho, meu irmão em forma de livro! Que ele abra as portas e janelas das nossas casas e voe alto, pra ganhar o mundo; que ele abra o coração e o olhar das pessoas para a Cultura Popular Sertaneja, mas que instigue também a consciência alheia para a forma como essa e outras Culturas vêm sendo tratadas, para a maneira como o nosso ambiente vem sendo corroído pela rapinagem do capital. Estamos juntos para todo e todo o sempre! E que venham os novos caminhos, os novos desafios, as novas empreitadas, pois, como diz o nosso querido amigo e Mestre Sinhozinho do Mulungu... “nós num é fraco não negona”! Te amo Nena!

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Há Deus, bem como vai?

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PABLO LACAZE DE C. CASELLA

Desde as primeiras vezes em que vi Iêda Lúcia, a ladainha era sempre a mesma: “moço, Boninal também tá no entorno do Parque2. Tem uma pontinha só, mas tá lá.” A insistência era para que pelo menos um órgão do Governo Federal desse as caras no município que ela tanto divulga. A vontade de ver alguma ação governamental que ajudasse a proteger o restante do ambiente natural do lugar podia confundir algum desatento, podia fazer crer que se tratava apenas de uma ambientalista engajada. Mas o engajamento dessa moça, felizmente, transcende a alcunha da moda. Se, à moda alemã, quiséssemos compor uma palavra para designar o engajamento da Iêda, sairia algo como: sociopopularculturambientalista – e não tenho muita certeza da ordem das palavras nesse palavrão. “O sertanejo, antes de tudo, é um forte”, ela gosta de citar provocativamente. Mas a frase, mesmo, na boca da fotógrafa, não é apenas de elogio. Essa força sertaneja se manifesta, sim, em muita beleza, em cultura deliciosa, mas também, por certo, é a fonte de tristes ações, resultantes, por exemplo, nas tragédias humanitárias e ecológicas que assolam a região. Em suma, nada diferente do que o humano faz e é. Em geral, a Caatinga, o Sertão, a Chapada Diamantina, só emprestam uma incrível moldura para essa forma de manifestação das vicissitudes humanas. E se a moldura já vem pronta, só faltava fotografar. Essas fotos, entretanto, não pongaram3 nas belezas naturais, no cenário deslumbrante da Chapada – tentação fácil para um fotógrafo cair. Começaram com retratos, no sentido mais prosaico que o Sertão pode prover. Fotos das pessoas nas suas vilas, em suas roças, em suas casas e, sobretudo, nas cozinhas. 18

Porque tantas fotos de cozinhas? Muitos poderão especular, como eu, que na cozinha acontece o mais íntimo contato das pessoas com seu ambiente. E, se assim for, é ali, perto do fogão – ou da trempa4 – que literalmente o recurso natural, produzido, coletado ou extraído, se adentra nas pessoas. Não só do ponto de vista simbólico, mas com boca, língua, dentes e saliva. Quanta riqueza o ato de devorar o ambiente pode trazer! E assim, tanto as fotos, quanto a fotógrafa, se deparam e expõem a Caatinga, a Chapada, o Sertão, dessa saborosa forma indireta. Método digno desse bioma complexo, porque intrinsecamente ligado ao modo de uso que os humanos fazem dele. Senão, como imaginar a Caatinga sem o pastoreio do gado, sem o uso da lenha ou sem as improváveis roças de aipim, milho, feijão, palma...? Com confessado juízo de valor, no entanto, pode-se apontar para um futuro desalentador da Caatinga. Aos que não creem nas mudanças climáticas globais que tantos falam, bastaria, como informação agourenta, os dados atuais que tratam dos reflexos nefastos (ao ambiente natural) da espantosa ocupação humana do Bioma – temos aqui o semiárido mais populoso do planeta, com cerca de 20 milhões de pessoas. Aos que creem no aquecimento global vindouro, o semiárido brasileiro terá um destino severo, com o provável agravamento das secas que já atualmente marcam uma grande parte do ano. Muito possivelmente, passaremos a ser uma região de clima árido, inviabilizando em grande parte a agricultura e, assim, a permanência de tantas pessoas na área. Além do prejuízo social, este cenário causaria uma mudança drástica na ecologia da Caatinga.


Para um bioma surgido há cerca de 10 mil anos, tal alteração nos próximos 100 anos seria equivalente à morte de uma criança. Enquanto todos os olhos (dos poucos que miram as questões ambientais) se voltam para a Amazônia, para a Mata Atlântica, às vezes para o Cerrado, quase nunca se preza pela Caatinga. Quem soube, por exemplo, que entre os anos de 2002 e 2008 foram perdidos 16.576 km2 (mais de um milhão de hectares) de Caatinga? Isso equivale a 236.800 hectares por ano, média equivalente ao desmatamento da Amazônia – que é cinco vezes maior. Ou seja: proporcionalmente, o bioma amazônico perde cinco vezes menos área do que seu primo sertanejo. Da extensão original do bioma nordestino – 844.453 km2 –, quase a metade (44%) já foi desmatada (apesar de muitos considerarem que desmatamento é relativo aos ambientes florestais, de mata, ocorrência rara na Caatinga). Nesta área de Caatinga perdida caberiam os estados do Maranhão e do Rio de Janeiro juntos. E o restante, não nos iludamos, não se trata de vegetação virgem, original, sem perturbações. Como se sabe, poucas porções da Caatinga de fato restam sem alguma forma de degradação humana. No entanto, os dados oficiais, em sua grande maioria, são obtidos com base em imagens de satélites e essas não acusam diversos tipos de degradações que são feitas nesse Bioma, como os relevantes impactos da caça sobre a fauna, o pastoreio de animais soltos e a utilização de lenha sobre a flora. A Caatinga ainda é tratada pelo país como o patinho feio da fábula ambiental brasileira. Em 2010, por exemplo, a Caatinga tinha 7,4% da sua área em unidades de conservação (federais,

estaduais ou municipais), mas somente 1,1% da área (9.600 km2) em unidades de proteção integral5. Que tristes cozinhas teremos no futuro próximo? O fogão à lenha funcionará, ainda? As roças cultivadas com tanto sacrifício e cuidado poderão fornecer o cuscuz, a farinha, o arroz vermelho ou a palma? E haverá o requeijão e a manteiga feitos de leite com sabor de pasto nativo? Sinceramente, não gostaria que as lindas fotos, da linda cultura sertaneja-caatingueira, se tornassem documentos de museu. Que precisássemos falar, em breve, em resgate cultural dessa cultura. Que seja viva, hoje, e que, para se manter viva, saiba, mais uma vez, conviver com as asperezas do ambiente acrescentando um toque de modernidade: convivência com o cuidado para que a Caatinga, até ela, não bata asas do Sertão.

Há Deus, bem como vai? O mesmo que: existe Deus entre nós, eu estou bem e você como vai? É uma antiga saudação ainda usada pelas pessoas mais velhas da zona rural na Chapada Diamantina. 2 Parque Nacional da Chapada Diamantina. Boninal tem uma minúscula parte de seu município em uma faixa de 10 km a partir do limite do Parque que, à época, era considerada seu entorno. 3 Pongar é termo regional que quer dizer “pegar carona”, “se aproveitar de”. 4 Trempa é um sistema antigo de fogão, composto por um tripé que sustenta uma panela sobre o fogo; na Bahia, trempe. 5 Dados do Cadastro Nacional de Unidades de Conservação do Ministério do Meio Ambiente. A Resolução nº 3 da Comissão Nacional de Biodiversidade (Conabio), de 21 de dezembro de 2006, em consonância com os compromissos assumidos pelo Brasil junto à Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), recomenda que se tenha, no mínimo, 10% de um bioma em unidades de conservação. 1

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Rotas, lugares, destinos e olhares JONATAS SANTOS SANTANA

Entre o Cerrado e a Caatinga há muita arte e poesia que narram muitas histórias nas lendárias rotas dos tropeiros e navegantes remeiros, nos destinos cheios de ritos, mitos e lendas. As matas formam verdadeiras sinúsias que se embrenham pelas várzeas, alagadiços, lameiros, que marcam a vertente dos rios. No Cerrado, as águas seguem um caminho formado por grutas embrenhadas nos subsolos, escoam por várzeas e fertilizam a terra de uma agricultura familiar genuína. Na Caatinga, o rastro da seca está impresso no chão e no Tempo Seco1, que canta chocho que dá dó, anunciando mais um período de chuva ou seca. Da Caatinga, a seca, jurema, imbuzeiro, imburana, braúna. Do Cerrado, a vereda, bonina, buriti, pequi, jatobá. Assim, transita-se entre esses ecossistemas, mundos de água e chão. Cerrado e Caatinga, entranhados, como de mãos dadas, vivem lado a lado: um permanece com os rastros do outro que se ampliam pelas águas dos córregos, dos riachos e das lagoas dos gerais aos sertões. Esses dois ecossistemas, com seus mundos de água e chão, se separam e se unem periodicamente, não apenas pelos nomes, mas por sua dinâmica natural. Por isso, vale lembrar o poeta Manoel de Barros2: Desde o começo do mundo água e chão se amam e se entram amorosamente e se fecundam. Nascem peixes para habitar os rios. Nascem pássaros para habitar as árvores.

Com muita água, o Cerrado consolida essa discreta umidade que sustenta e se amplia em pulsos de água que inunda a Caatinga, como visto na poesia de Osório Alves de Castro3. Nesse pé as coisas ali se repetiam com as mesmas feições: o tempo das enchentes e o das vazantes; o tempo das plantações e o das colheitas; continuando com as circunstâncias que poderiam 22

ser lembradas ou sentidas, as crianças crescendo como a relva no varjame e os velhos deixando o pouco que lhes restava.

Nessa fluidez dos rios também navegam ribeirinhos, barranqueiros e remeiros com as suas barcas que, na lisura dos ventos, impulsionam, nas suas proas, carrancas, como as do imaginário do Francisco Biquiba dy Lafuente Guarany, o Mestre Guarany, que emociona o mundo pela sua arte popular. Ao encontrar Iêda pela primeira vez, nos deparamos com as carrancas do Mestre Guarany e, consequentemente, fui remetido à carta emocionada e delicada de Liliane Bedel4, que foi oferecida ao velho carranqueiro de Santa Maria da Vitória, residente do Cerrado, que morou nas barrancas do rio Corrente, e diz: Nas águas do São Francisco navega uma multidão de corações de carrancas às quais você deu vida, autor do maravilhoso. [...] O imaginário de uma terra desconhecida, tão, tão longe, com as múltiplas harmonias de suas origens na correnteza das nuvens, azul e negro, e vermelho índio.

Essas palavras evidenciam os arranjos culturais situados no Cerrado, expressados pelas carrancas. Foram-se índios, negros, biquibas, guaranys, kaiapós, tapuios5, pankarus e muitos outros que andaram entre suas rotas diversas por essas bandas do Oeste da Bahia, um abrigo do Cerrado no Brasil, esse mundo de água e chão e todas as criaturas, coisas e objetos, o Além São Francisco. É importante conhecer que o rio São Francisco é extremamente dependente do Cerrado. Apesar de ocupar 47% da área da Bacia Hidrográfica do rio São Francisco, é responsável, segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA)6, por 94% da água que flui superficialmente. Por outro lado, é triste saber que desde 2009


cidades da Bahia, como Correntina, Jaborandi, Formosa do Rio Preto, São Desidério, Riachão das Neves e Barreiras, contribuem com o uso e a ocupação desordenada do solo e da água, gerando e agravando um quadro de conflitos no campo, preocupante, no que se refere à situação socioambiental das comunidades locais, as populações tradicionais desse riquíssimo bioma brasileiro, no qual tem sido ameaçada de extinção a sua cultura e a sua biodiversidade, a sociobiodiversidade. Nos retratos de Iêdinha são visíveis muitas das possibilidades de representar os territórios desses povos e comunidades, o modo de vida dos sujeitos (individuais e coletivos) com símbolos de diversos lugares, muitos dos quais foram ou são ocupados por grupos socioculturalmente específicos, como pode ser visto na trajetória dessa mulher retratista e em seus registros. Concluímos que é necessário salvaguardar o saber dessas populações, que foi promovido ao longo de gerações e, por sua vez, guardam expressões singulares, muitas das quais remanescentes de povos diversos que se hibridizaram culturalmente após o contato com povos indígenas, quilombola, campesino (barranqueiro, ribeirinho, geraizeiro, reizeiro) e cigano. Por essas e outras razões, o bioma acumula muitas ameaças à qualidade e quantidade das águas para toda a população, sobretudo as tradicionais que aí residem. A Caatinga também encerra ligações culturais e linguísticas entre os povos do Cerrado. Desta forma, é preocupante saber que a Bahia (com 27% de sua área coberta por Cerrado) acumulou, entre 2002 e 2008, um desmatamento próximo de 6% (que abrange uma área equivalente a 9.266 km2), o que pode ameaçar também a estabilidade dos solos e recursos hídricos para a população do Cerrado7. Nesse universo contraditório de violência socioambiental, perde força a cultura da pesca artesanal, o extrativismo de pequi e buriti entre outras práticas tradicionais e populares que ocorrem no Cerrado, pois aí, segundo o MMA,8

existe também uma rica biodiversidade de ervas, arbustos, árvores e cipós (12.356 espécies) que, muitas vezes, são manejados (por extrativismo etc.) e domesticados para subsistência humana, a segurança alimentar das populações. Além disso, das 11.627 espécies de plantas vasculares que ocorrem no bioma, perto de 44% são exclusivas do ecossistema. Podemos destacar árvores como jatobá, cagaita, pitomba, barriguda, buriti, pequi, e também peixes como pirá, mantrixã, surubim, pacu, piau, que circulam pelas águas do Cerrado em busca de alimento e abrigo, além de servir de comida para populações locais. Diante desse riquíssimo patrimônio cultural, os territórios desses povos estão envolvidos por expressões do cotidiano pertencentes à vida social das comunidades, que é permeada por tudo aquilo que integra o mundo contemporâneo desses rincões do planeta, as pessoas, as coisas e os objetos, que consolidam a cultura, economia e meio ambiente das populações locais inseridas no Cerrado e nas suas áreas de transição ecológica. 1

Tempo Seco é um pássaro que, segundo os pescadores da Bacia do Corrente, indica qual o regime de chuva durante o ano.

BARROS, Manoel de. Menino do mato. São Paulo: Leya Brasil, 2010. p. 21. 3 CASTRO, Osório Alves de. Maria fecha a porta pra o boi não te pegar. São Paulo: Símbolo, 1978. p. 10. 4 MEMORIAL FRANCISCO BIQUIBA DY LAFUENTE GUARANY. Carta de Liliane Bedel – Curadora do Museu Paris, França – a Francisco Biquiba dy Lafuente Guarany. Paris, 11 maio 1985. Disponível em: <http:// oficinafranciscodlafuenteguarany.blogspot.com/2009/07/cartade-liliane-bedel-curadora-do.html>. Acesso em: 27 jan. 2012. 5 ETCHEVARNE, Carlos. Escrito na pedra: cor, forma e movimento nos grafismos da Bahia. Rio de Janeiro: Versal, 2007. A Gruta dos Tapuios é um Sítio Arqueológico Indígena pouco conhecido, assim como A Pedra Escrita, ambos situados no Território da Bacia do Corrente. 6 BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado – PPCerrado. Brasília, set. 2009; BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado (PPCerrado): “conservação e desenvolvimento”. Brasília, set. 2010. 7 Idem, 2010. 8 Ibidem. 2

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O olhar da retratista SÁLUA CHEQUER

Meu primeiro contato com o universo dos retratos de Iêda foi através de uma folhinha (calendário) com imagens de jogos e brincadeiras. Fiquei encantada com a sensibilidade e a delicadeza dessa retratista. Assim era chamada a pessoa que, uma vez na vida e outra na morte, aparecia pela cidade do interior para bater “uma chapa” de algumas famílias. A gente se ajeitava depressa, a mãe arrumava os cabelos, a roupa e, como estava pela rua brincando e não dava tempo de tomar banho, passava um pano molhado nos braços, rosto e pernas; os pés não apareciam, estavam imundos... eu vivi essa realidade. O trabalho de Iêda me remeteu a este universo encantador da fotografia, que, depois de batida a chapa, a gente botava pra esperar a volta do retratista, para se deliciar com a imagem no papel. Em geral preto e branco, mas muitas poderiam vir coloridas a mão. Iêda me volta depois de alguns anos para fincar em mim seu olhar, dessa vez com as cozinhas do interior... me apaixonei perdidamente por esse olhar, pela geografia poética que encharca cada registro. É muita informação dentro de uma singeleza do cotidiano, por essa mulher olhado, enxergado, visto e sentido. Trabalho integrado com o sentimento, com o ser, com a essência da vida; um olhar que passa além da imagem fixada. Cada fotografia aqui mostrada é uma grande aula que não tem academia que propicie, pois é banhada de sensibilidade, saberes, cores, luzes, formas, sombras de um sentir especial que precisa ser

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visto, conhecido e reconhecido como nosso patrimônio – nós somos isso tudo aí. É necessário que se torne pública tanta beleza; é um agregar de valores que deve circular também nas escolas para ser vista. O universo urbano tem de conhecer essa riqueza cultural, pois ela respalda muitos saberes e fazeres na cidade grande... é uma troca de sentimentos, de olhares, de valores. De Iêda não vem só “a luz do interior”, vem um interminável sentimento que move e eterniza muitas manifestações, a exemplo dos Reisados, onde fica claro o prazer dos participantes/reiseiros, adultos e crianças, que, imbuídos de fé e alegria, deixam transparecer o imaginário nos adereços, figurinos, cantigas e instrumentos. Tudo, de alguma forma, se celebra entre as pessoas do interior. Este livro é uma vida, é a vida de Iêda. Ela é o livro. É um trabalho profundo, que expressa o seu olhar sobre as pessoas, os lugares, suas manifestações e o respeito a tudo isso. Os casos, não por acaso, ilustram o caminhar e a coragem dessa criatura. O embornal de Iêda tem de um tudo: história, poesia, literatura fina, soma dos saberes, a geografia dos caminhos vividos, as subidas e descidas, travessias por rios e riachos (com a “percata” enfiada nos dedos das mãos), o descansar sob a copa dos arvoredos, o acariciar dos bichos e o amor à gente. É uma grande cantoria de vida e memória, envolvida em cheiros, cambraias, chitas, cores, “lembranceiras”, celebração da vida, da arte, do amor, da luz e olhares. Muitos olhares. Iêda é luz. Um bocapio entupetado de cheiros para você.


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Luz do interior

Lembranceiras, imaginário e realidade IÊDA MARQUES

Mãe, que é uma meizinheira, diz que arte é tudo aquilo que a gente faz bem feito, até traquinagem. Acreditei que a minha sina já veio traçada desde nascença; era assim com todos que nasciam no meio da secura, por que não seria comigo? Acreditei também que o mundo ia acabar, assim como muitos no sertão acreditavam e acreditam até hoje. Havia uma preparação contínua e permanente para a vida e para a morte. Acredito que o acabar é constante. Imagine uma infância cheia de sonhos, pensamentos, desejos, histórias, estórias, práticas, tudo isso regido pelo silêncio! Não se podia falar, só ouvir. Hoje, que falo muito, persigo o silêncio na certeza de que me fará bem.

Vivíamos em rodas de contadores de histórias dentro e fora da família. Gostava de sentar para ouvi-las. Quando comecei a ler, as palavras vistas, além das ouvidas, me provocavam a criar imagens no juízo. Dizem que eu era uma criança que vivia a sorrir. A realidade se misturava com o imaginário, a geografia com os sentidos; havia sempre longas caminhadas por serras, morros e travessias de grandes rios. As palavras possuíam uma ligeireza própria. Lembro-me de coisas que me deixavam encafifada, por exemplo, “invurtar”. Por algum motivo sério, que precisasse soverter, sumir, desaparecer, a pessoa poderia “invurtar”, Rosalina Marques Almeida


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