Camila e o espelho

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Lilia Gramacho

ilustrações

Ju Castelo




Camila e o espelho Copyright texto © 2018 Lilia Gramacho Copyright ilustrações © 2018 Juliana Castelo

EDIÇÃO E DESIGN

Enéas Guerra Valéria Pergentino PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO

Valéria Pergentino Elaine Quirelli REVISÃO DO TEXTO

Maria José Navarro

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Vagner Rodolfo CRB-8/9410

G745c Gramacho, Lilia Camila e o espelho / Lilia Gramacho ; ilustrado por Juliana Castelo. Lauro de Freitas - BA : Solisluna, 2018. 64 p. : il. ; 15cm x 21cm. ISBN: 978-85-89059-97-8 1. Literatura infantojuvenil. 2. Adolescência. 2. Meninas. 3. Pré-adolescência. I. Castelo, Juliana. II. Título. 2017-558

CDD 028. 5 CDU 82-93 Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infantojuvenil 028.5 2. Literatura juvenil 82-93

Todos os direitos desta edição reservados à Solisluna Design Editora Ltda. 55 71 3024.1047 | 3369.2028 www.solisluna.com.br | editora@solislunadesign.com.br contato com a autora: liliagramacho@hotmail.com


Lilia Gramacho

ilustrações

Ju Castelo



amila olhou-se, demoradamente, no espelho. Olhou. E mais uma vez não gostou nada, nada do que viu. O corpo comprido, as pernas finas e os pés... Meu Deus! Será que eles nunca iriam parar de crescer? – pensou. Tudo era tão estranho como se aquele corpo não lhe pertencesse. Lembrou do tempo que gostava de invadir o guarda-roupa da mãe e escolher roupas, brincos, sapatos... Enormes. Ficava engraçado. Guardava, desse tempo, algumas fotos. Camila gostava tanto que resolveu prendê-las na moldura do espelho. O mesmo espelho que agora lhe revelava esse corpo vários números maiores do que ela mesma. Era grande, desajeitado, como se, na verdade, viesse emprestado de alguém e não lhe pertencesse. Exatamente como as roupas da mãe. As roupas da mãe... pensou, enquanto soltava a pequena foto da moldura, onde estava vestida dos pés à •  5  •


cabeça com os adereços maternos. Camila olhou atentamente para a foto, como se fosse a primeira vez. E não se reconheceu nela. Olhou para a outra Camila, a do espelho, e também não se reconheceu. Esta já não tinha os pés perdidos dentro dos sapatos altos, como na foto. Isso – imaginou, inspecionando, mais uma vez, a foto nas suas mãos – isso foi há muitos e muitos anos. Ou terá sido ontem, como costuma dizer a minha mãe? Sim, Camila havia crescido. O seu corpo era a maior prova disso. Ainda que estranhasse aqueles pelos sobre a pele, ou mesmo as dores no seio que insistiam em crescer, incomodando sempre que ela ia dormir de bruços, ainda assim, ela sabia que essas transformações faziam parte dela e a levariam a algum lugar. Mas aonde? Por mais estranho que fosse, aquele corpo era seu e de mais ninguém. Por isso, tantas horas gastas diante do espelho. Tantas horas tentando entender o que se passava. Meu Deus, o que está acontecendo comigo? – pensava, lá no fundo, Camila. Isso o espelho não respondia. Estava ali há anos, acompanhando-a desde pequena. Exatamente como sua mãe havia imaginado, quando o comprou numa feira de antiguidades e o prendeu na parede do quarto. Vai ver você crescer, filha – disse sua mãe. Camila sorriu. E não conseguiu •  6  •


imaginar que algum dia poderia crescer tanto a ponto de ficar da altura do próprio espelho. Agora, estava ali diante dele: eram exatamente do mesmo tamanho. Um tamanho que a destacava do restante da turma, em especial da turma dos meninos. Se, na terceira série, tivesse apostado uma corrida de estirão, sairia na frente. Mas ser maior que a maioria dos meninos da turma não lhe agradava nem um pouco. Os meninos gostavam de ser maiores e mais fortes que as meninas. Os meninos... De repente, Camila percebeu que a opinião dos meninos tinha passado a ser importante para ela. Queria saber o que eles pensavam, do que gostavam, o que preferiam... ser menino parecia ser bem mais fácil. Meninos. Deu uma volta, depois outra, como se estivesse medindo milimetricamente cada detalhe do seu corpo. Não era bonita, pensou. Fez pose. Prendeu os cabelos no alto da cabeça. Eram tão lisos que escorregavam. Soltou-os. Tentou uma tiara de contas coloridas. Achou que a deixava com o rosto de bebê. Tirou. Fez um rabo de cavalo, mas esse também não agradou. Ah! Lembrou da presilha prateada que ganhou de presente de aniversário de sua madrinha. Procurou, procurou... lá estava ela, junto com a caixinha de batom, presente de •  7  •


sua melhor amiga. Camila não resistiu. Puxou uma parte dos cabelos prendendo-os displicentemente no alto da cabeça, deixando o restante solto e caído sobre os ombros. Gostou. Abriu o batom e pintou, cuidadosamente, os lábios. É, nada mal – disse Camila para a outra Camila. Estavam, assim, paradas frente a frente. Uma admirando a outra. E, de repente, ela não resistiu: foi se aproximando, lentamente, cada vez mais, até beijar a própria boca. As duas Camilas de olhos fechados.

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spelho, espelho meu, existe alguém mais feia do que eu? – disse, ironicamente, Rafa, da porta do quarto, ao mesmo tempo em que fugia da escova de cabelos atirada com toda a força por Camila, em sua direção. – Sai do meu quarto, seu idiota! – Telefone pra você, Magrela – gritou Rafa do meio do corredor. Camila detestava quando invadiam seu quarto sem pedir licença. Rafa, o irmão mais novo, adorava invadir o quarto de Camila sem pedir licença. Diversão pegar ela no flagra se olhando no espelho. Pirralho. Enxerido. Imagina se ele a pega beijando o espelho? Um beijo no espelho. Beijo. Beijo na boca. Beijo de língua. Beijo, assim, Camila nunca havia dado. Digo beijo de verdade. Daqueles •  9  •


que a gente vê nas novelas entre os casais apaixonados. Olho no olho. Boca na boca. E então, como num passe de mágica, os lábios se tocam, o chão desaparece e a gente fica meio que flutuando, rodopiando no ar, rodopiando. Beijar o espelho era uma forma de treinar. Ensaiar para, no dia, não passar vexame. Beijar o espelho e chupar picolé. Foi assim que Carol fez. E deu certo. Além disso, era preciso exercitar os músculos. Camila tinha lido numa revista que, para beijar, a gente usa vinte e nove músculos. Sempre que pensava nisso, e Camila sempre pensava nisso, às vezes se imaginava nos braços de algum colega da escola, outras vezes, eram seus artistas prediletos. Imaginava. Ria sozinha. E, para isso, bastavam quatorze músculos. – Alô? – Oi, Mila. Tudo bem? – Oi. – Mila, preciso te contar uma coisa. – Então, conta. – Jura que não conta pra ninguém? – Juro. Mas conta logo. – De pés juntos e dedos descruzados? – Juro, Carol. Mas conta logo de uma vez. – Bem... é que... eu fiquei menstruada. •  10  •


– O quê?! – Ei, fecha esse bocão antes que o linguarudo do seu irmão escute e saia espalhando para a escola inteira. – Então conta como foi? Dói ou não dói? – Ah, isso depende de cada um. Eu estava sentindo, assim, uma dorzinha de barriga, por isso nem te liguei ontem de noite. Então, quando acordei, hoje pela manhã, tava lá. – Tava lá o quê, Carol? – Tava lá. Uma mancha de sangue no lençol. Levei um baita susto, cara. Você nem imagina! – E aí, o que você fez?! – Pus um absorvente, ora! Mila, você esqueceu tudo que a gente leu? Tá tão estranho. Parece que todo mundo tá me olhando. Eu já disse a minha mãe que amanhã não vou pra escola. Tá escrito na minha testa, Mila, assim: Carol está menstruada. Ai que vergonha! (silêncio) – Mila, fala alguma coisa. – Puxa, Carol, por que tudo sempre acontece com você primeiro? – Porque eu sou mais velha. – Dois meses, Carol. Dois meses! Camila também queria se sentir cada vez mais mulher. •  11  •


Embora, quando pensasse nisso, sentisse um frio percorrer a sua espinha. Quantas transformações! Fechou os olhos e imaginou o óvulo de Carol fazendo sua pequena viagem pela trompa de falópio em direção ao útero. E depois, como um míssil atingido em combate, se desintegrar em mil pedaços e escorrer como sangue entre as suas pernas. Nossa – pensou Camila – que coisa mais esquisita! – Mila, tá viajando? – Oi, Carol. – Relaxa, qualquer dia vai acontecer com você também. – É. – Olha, eu tenho outra coisa pra te contar. – Segredo também? – Não. Sabe o irmão da Renatinha, o Beto? Aquele que brigou com a mãe e foi pra São Paulo, dizendo que ia morar com o pai? Acho que não deu muito certo. Ele tá voltando. Vai morar novamente com a mãe. E Renata resolveu fazer uma festa para comemorar a volta dele. Não vamos perder, não é? – Não sei não. Aquele Beto é um chato. – Um gato, você quer dizer. Beto. Por alguma razão ainda não identificada, aquele garoto mexia com os humores de Camila. Um gato?! •  12  •


Não, nada disso. Um chato. Só porque todas as meninas da escola suspiravam por ele, ficou assim, pensando que tinha um rei na barriga. – Ah, Carol, Beto acha que tem um rei na barriga. – Para com isso, Mila. Vai dizer que você nunca pensou em ficar com ele? Se ele é rei eu quero ser rainha! Decididamente não estava dando para conversar com Carol. Mesmo sendo a sua melhor amiga, nem sempre elas se entendiam. Muitas vezes Camila se sentia incapaz de ser compreendida. Ninguém conseguia entender exatamente o que ela sentia, e às vezes, por conta disso, batia uma baita tristeza. Isso é uma fase, filha – dizia a sua mãe. Para a mãe de Camila, tudo não passava de uma fase. Rafa está na fase da pirraça. Ai, meu Deus, está naquela fase! – suspirava a mãe todas as vezes, e não eram poucas, em que elas se desentendiam. E isso a irritava ainda mais. É verdade que ela não estava vivendo um dos momentos mais tranquilos. O mundo parecia grande demais. Sedutor, assustador e ao mesmo tempo uma chatice. – Tchau, Carol.

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