Antologia Brasil, 1890-1930

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de distância; sobe ao Tibete e desvenda os seus templos misteriosos; vai ao polo Norte e assiste à implantação da bandeira estrelada; desce à galeria da mina mais profunda e ascende aos astros. Acompanha o homem onde quer que ele vá. Todos quantos têm o hábito de ler revistas agora se regalam cada dia com os mais interessantes aspectos que as suas páginas encerram. Alguns deles não são propriamente regalos, no que esta palavra significa de divertido e amável, como as páginas na verdade dantesca do flagelo da peste na Mandchúria. Há uma delas que nunca mais poderei esquecer. É um fosso de incineração de cadáveres, em Kharbin. A cidade está abandonada, inteiramente sob a neve. De espaço a espaço eleva-se uma coluna de fumo. Mas não é o risonho penacho que indica uma cozinha em um lar tranquilo. É a impetuosa fumaça do incêndio que sobe em rolos pelo ar. A casa não tem habitantes. Todos morreram. Na estrada, que é apenas um sulco mais fundo e menos alvo na brancura da paisagem, roda um carroça puxada por enormes cavalos. Sinistra carga transporta: cadáveres em pilhas irregulares, como fardos mal dispostos. Os cemitérios estão abarrotados. E que não estivessem! Já não há coveiros para dar sepultura às vítimas da peste. Morrem por dia centenas e centenas de criaturas. O recurso é o fosso. E eis o fosso, grande, profundo, para dentro do qual são os corpos jogados como sacas para o fundo de um porão. Caem ao acaso. Este caiu de pé, em um estranho equilíbrio, a cabeça levemente inclinada para trás, como se desafiasse o Nada com o seu ar de macabro orgulho. Este outro estendeu-se a fio comprido e parece dormir. Há uma criança ao lado, de pé, a fisionomia ainda nítida. Apoia-se em uma mulher que ficou inteiramente torcida. Deverá ter quatro ou cinco anos. Traz o vestido curto pelo joelho e o gorro de frio à cabeça. A dois passos dela, também em equilíbrio apavorante, um velho asiático apruma as esgrouviadas pernas na direção do céu. E outros, em estado de decomposição mais adiantado, espatifaram-se na queda. Um funcionário do corpo de saúde vai inflamar o petróleo, cautelosamente, do alto da cova. Isto não é uma gravura, não é nenhuma composição da fantasia de um desenhista hábil da magazine. É um documento fotográfico. É uma página de verdade palpitante, de incontestável interesse, mas do mais amargo paladar.

A semana, 1 911


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