Antologia Brasil, 1890-1930

Page 289

A semana

Um abrir desmesurado de olhos; uma exclamação confusa, um grito rouco de horror supremo; uma parada súbita de sangue ― a síncope ― e uma calefrio completo... E o golpe veio. A imaginação repele o monstruoso atentado como uma coisa impossível. Entretanto, aí está o fato divulgado, primeiro em telegramas ainda transidos de pasmo, depois em notícias mais copiosas nos jornais paulistas. Mas ninguém conversa sobre o caso dessa desgraçada mãe que, pela manhã, certo dia, deixou o seu leito, o seu quarto, e, em um passo mudo, em um passo já de quem pisa uma câmara ardente, penetrou no quarto da filha, abeirou-se do leito onde a moça dormia e, com a mesma doce mão que ainda na véspera afagara, matou-a a tiros de revólver. Há um recuo unânime, misto de repugnância pelo sacrilégio e de respeito pela dor infinita da tresloucada mãe, certamente a mais infeliz de todas as mulheres. Não há comentário possível. Poucos têm a coragem de abordar o assunto, poucos também o toleram, ninguém se detém a examiná-lo. Todos os crimes têm um lado estético. Este, se o tem, não encontra quem o fixe, menos pela dificuldade de desenhar uma atitude, uma expressão fisionômica, um gesto, do que pela invencível repulsa que provoca. Mesmo os jornais, sempre ansiosos de sensacionais aspectos, correndo todos um sleeple-chase [corrida de cavalos] desabalado à cata da minúcia, do pormenor, têm manifestado louvável discrição nas notas que fornecem ao público. Parece que a reportagem fotográfica não foi mesmo além da reprodução de antigos retratos das protagonistas. E sabe Deus até onde vão os recursos da fotografia moderna! A objetiva repórter que se preza surpreende o roubo ou o assassinato, apanha um tigre de Bengala, em um furioso arremesso para a frente, a dois metros

Antologia Brasil, 1 890-1 930

285


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.