PURE MAGAZINE #1

Page 64

/

Arte

Armanda Duarte: Combinações e jogos por Francisco Vaz Fernandes O universo criativo de Armanda Duarte parte de princípios conceptuais que mergulham no seu quotidiano próximo. A artista constrói um universo sensorial que mesmo inserido num quadro social, nunca se conforma com uma reacção imediata ou tentativa de representação simplista do real. O seu trabalho apela sempre a uma construção poética dessa realidade e ao discernimento de sentimentos universais partilháveis em qualquer contexto cultural. A artista inscreve-se no meio dos acontecimentos que geram a sua ordem poética apelando mais ao seu ser que à sua presença. Nessas circunstâncias, é difícil falarmos do seu trabalho a partir de uma perspectiva formal e técnica quando se olha para o conjunto da sua obra. Ela varia muito de trabalho para trabalho, com opções materiais e formais ao serviço da poética das ideias. O que vigora em cada projecto são jogos de relações, por isso, os materiais, formas e expressão são convocados conforme as necessidades de cada projecto. O que resulta é uma interrogação sobre a possibilidade de uma representação do real mais complexa. Ao abordar o trabalho de Armanda Duarte, dou ênfase ao seu mais recente trabalho que se encontra exposto na Plataforma Revolver, em Lisboa e aproveito para fazer uma pequena retrospectiva do seu percurso através de algumas das suas obras emblemáticas. Relativamente ao trabalho exposto na Plataforma Revolver abordo mais directamente, como exemplo da sua actividade artística, o trabalho que se intitula, “Uma Bata e uma Combinação”. Composto por círculos de barro que contêm água, esta obra resulta de várias referências. Da memória de uma viagem, em que tecidos enrolados ao lodo serviam para estancar e conduzir a turbulência da água da enxurrada, e parte ainda da lembrança dos vasos de flores que se perfilam nos pátios portugueses, nomeadamente dos pratos que reservam a água debaixo deles. No entanto, o que conduz este trabalho não é tanto o retrato dessas duas realidades imediatas nem as questões socio-culturais implícitas, mas a observação de um gesto de cuidado de manutenção com um valor mais amplo, universalista e abstracto. Para além da plasticidade do trabalho, o que se requer é a manutenção diária das formas circulares de barro. Este lado performativo é manifesto diariamente por cinco eleitos do seu círculo de amigos, denominados “Os Vigilantes”, título doutro trabalho exposto. Uma vez por dia, um deles passa pela galeria para verificação e manutenção da obra. Têm ao seu dispor, no próprio espaço expositivo, à vista do público, todos os

elementos necessários para os seus cuidados: água para preencher os contentores, assim como uma tesoura e uma bata que pode ser retalhada para o caso de ser necessário vedar as gretas que se possam gerar nas paredes de barro. A enumeração dos elementos é uma das constantes na obra da artista que nos faz lembrar a preocupação de uma objectivação do trabalho artístico fora de qualquer tentativa de transcendência. Seria a presença dos “Vigilantes” que daria, então, origem a um segundo trabalho a expor na Plataforma Revólver. O projecto começou com a solicitação de um desenho em torno da idade de cada um dos participantes que, posteriormente, deveria enviá-lo pelo correio. Na sequência, a artista desenhou com um certo realismo cada um dos projectos enviados para, depois, expor numa prateleira. De certa forma, são cinco desenhos de desenhos explorando a sua tridimensionalidade. São igualmente a oportunidade de registar outras presenças. Armanda, neste como em outros trabalhos, tem abordado a possibilidade de uma comunicação dialógica entre ela e os assistentes. Esta prática vem de uma certa relação que a artista estabelece com o projecto em si. Cada projecto constitui-se como um enunciado que estabelece, à partida, uma ordem e uma perspectiva de desenvolvimento. Podem autonomizar-se seguindo as premissas muitas vezes de ordem lógica ou matemática. Daí que, momentaneamente, possam estar à deriva, sob efeito de factores exteriores, que tanto podem ser outros sujeitos como outros factores de ordem natural. A organicidade que está em geral presente nos seus trabalhos, prende-se muitas vezes a esta questão da sobreposição de acidentes decorrentes de um desenvolvimento natural das coisas. É como se a linearidade estabelecida pelo enunciado se prestasse a um espaço suficiente para o outro, ao imprevisível e ao disforme que lança o caos regenerador. No caso desta exposição, os contentores encontram-se à mercê das reacções do próprio material, assim como das intervenções dos “Vigilantes” que os vão condicionar provocando diariamente transformações. Em outros trabalhos anteriores verificaram-se vários estratagemas de calendarização e de contabilização que eram sobrepostos a uma outra temporalidade marcada por transformações da organicidade dos elementos convocados.

“Pequena Torre Sem Fim” Trabalho constituído por dedais dourados empilhados fazendo referencia à “Coluna Infinita” de Brancusi e ao interesse comum pela concepção de módulos que se possam estender até a um infinito. Este trabalho realizado cerca de 60 anos depois ganha um sentido de instalação e refere-se a um universo feminino e às tarefas domésticas desse universo, também elas repetitivas até ao seu infinito.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.