PURE MAGAZINE #1

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Cinema

Ousmane Sembène: a queda do príncipe africano por Carlos Natálio A pureza artística, hoje expressão cínica caída em “desgraça”, merece contornos de revitalização quando olhamos a obra do senegalês Ousmane Sembène, “pai do cinema africano”. A sua morte, na passada Primavera aos oitenta e quatro anos, abre uma infeliz visão retrospectiva do que foi o cinema do “terceiro mundo” nos últimos cinquenta anos. Citando Fredric Jameson, nome incontornável do pensamento contemporâneo, o intelectual do “terceiromundo” está sempre condenado a ser um intelectual político, cuja agenda é ditada pela experiência e necessidade de um povo. Esse destino inevitável é uma evidência no percurso de Ousmane Sembène. O contacto inicial com as regiões mais pobres do Senegal, em que passou os primeiros anos de vida, nunca o deixaram. Aos catrorze anos, após ter sido expulso da escola, o seu pai envia-o para Dakar onde passou por inúmeros trabalhos manuais. Seis anos depois combatia pela França na segunda Guerra Mundial e pouco depois contra esse próprio país, nas forças de libertação do Senegal. Em 1947, na continuação da sua aprendizagem na “escola da vida”, muda-se para França. Aí, trabalha numa fábrica da Citroën em Marselha e integra-se nos movimentos sindicalistas locais. Este é o momento da descoberta do activismo político, juntando-se com naturalidade ao partido comunista e ao CGT (Confederation Générale des Travailleurs). Aos poucos a sua vitalidade intelectual, permitiu deixar para trás a vida de trabalhador assalariado, conquistando o estatuto de humanista e pensador do movimento trabalhista. A par da actividade política, na qual luta para liberar a sociedade francesa do estatuto iliterado e apolítico dos trabalhadores africanos, Ousmane desenvolve uma carreira como romancista. As suas primeiras obras fundem a tradição do romance burguês do século XIX com experiências pessoais. São os casos de “Le Docker Noire” (1956), relato ficcionado de um africano trabalhador nas docas de Marselha, ou a sua sequela “Ô Pays, Mon Beau Peuple” (1957). A partir daí, nas suas obras estará sem-

pre presente uma dimensão de crítica social, de uma perspectiva materialista. A crítica inicial de Sembène repousa sobretudo nos abusos de poder colonialista e dos seus efeitos ao nível da distorção dos valores culturais e das jovens sociedades africanas em formação. “Les Bouts de Bois de Dieu” (1960), romance sobre a segunda grande greve de caminhos de ferro no território da África Ocidental dominado pela potência francesa, é disso bom exemplo. Aos quarenta anos, Sembène, já no Senegal, agora independente, dá-se conta que o cinema é a arte que lhe permite ultrapassar a iliteracia do seu povo. Ao longo de quatro décadas realiza apenas nove longas metragens, todas elas partindo da transposição do literário ao fílmico. “La Noire de...” (1966), a sua primeira obra é um retrato realista, com influência estilística da Nouvelle Vague, dos efeitos nefastos do colonialismo. Dois anos depois, “Mandabi”, filmado em Wolof a língua local do Senegal, confirma o cinema populista e recto de Sembène. A cada novo filme vão-se sucedendo os entraves à produção e divulgação. “Ceddo”, uma re-escrita da história do Islão no Senegal, foi censurado em quase todo o mundo. Consequência: dez anos sem filmar. “ Le Camp de Thiaroye”, vencedor do grande prémio do júri em Veneza e proibidíssimo em França, retrata um episódio de massacre das autoridades gaulesas dos soldados africanos regressados da Segunda Grande Guerra. Sembène fecharia o século com dois filmes sobre a luta pelo estatuto da mulher africana: “L’Heroism au Quotidien” e “Faat Kiné”. “Moolaadé” de 2004, a sua última obra, premiada um pouco por todo o mundo, critica o costume da excisão feminina em países africanos. A obra irreverente que Ousmane Sembène nos deixa tem uma preocupação única: esbater diferenças entre mundos. A fusão do político e do pessoal, a indegenização do “medium” e a denúncia são batalhas que, com o artista, começam a ser travadas, a partir de “dentro”.

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Ousmane Sembène

Imagens retiradas do filme “Moolaadé”.


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