PURE MAGAZINE #1

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estilos de vida

Mergulhos no lixo - “O freeganismo” por Patrícia Boto Cruz Os vegan não comem carne, nem vestem peles de animais, bem sabemos. Já os freegan vivem completamente fora do mercado. Nos Estados Unidos e Inglaterra há mais uma sub-cultura para a qual a prioridade é não participar na economia de consumo, nem como trabalhadores nem como consumidores. Crentes na máxima de que nada se perde, tudo se transforma, recusam-se a pagar para suprir necessidades básicas como alimentação, casa, vestuário, transportes e serviços. Como? A principal maneira é através do dumpster diving, uma espécie de mergulho, mas agora no lixo. Isto passa-se nas traseiras do comércio, quando acaba o dia e há pessoas a remexer nos caixotes a resgatar tudo o que ainda é “comível”. Como se sabe, se uma caixa de iogurtes expira para a semana, não é comprada; se numa embalagem de ovos um se parte, a caixa vai fora; se uma maçã tem uma mancha, escolhemos a do lado. Restam-nos duas opções: ou tudo vai acabar em lixeiras, poluir o ambiente e gerar mais custos, ou é comido por freegans. A imagem de alguém a escolher legumes do lixo está normalmente associada a uma estratégia de sobrevivência de pessoas no limiar da pobreza, mas o que aqui está em causa, na verdade, é uma nova moral na relação com os bens posta em prática por pessoas que não tendo necessidade, escolhem viver assim. É uma forma de afirmação política contra a sociedade do usa (e não é preciso usar muito) e deita fora. Mais do que o resto da humanidade, estas pessoas sentiram-se irreparavelmente culpadas e egoístas por desperdiçar. Lembraram-se como os nossos antepassados eram felizes sem sofrer do vício da compra nem da vontade permanente de deitar fora para depois substituir. Neste quadro, é possível levar uma vida mais simples, reagir contra a economia moderna e o lucro inerente, e cuidar daquilo que em nome destes conceitos é preciso sacrificar. Tendo em conta que na produção da maioria dos bens que adquirimos, inclusive nos produtos vegetarianos, se realizam atentados sobre direitos dos animais (morte ou testes neles realizados); ambiente (poluição e errado aproveitamento dos recursos naturais) e sobre os direitos humanos (nos casos drásticos de exploração de mão-de-obra), este grupo não aceita participar nesta cadeia. Por isso, simplesmente não compra como tentativa de desconstruir o sistema. E vão mais longe. A maior parte deles desemprega-se, aprende e ensina este modo alternativo de vida. Da contracção das palavras free e vegan, os freeganistas estenderam o conceito a toda a sua existência. Voltando às traseiras do supermercado… temos de tudo. Os que chegam em grupos organizados e fazem “trash tours”, ou seja percursos previamente definidos pelo lixo da cidade (há sites com os “melhores lixos”, horários de saída dos trabalhadores das lojas e da passagem do camião do lixo). Os mais afoitos, tomam balanço e disputam o melhor

mergulho enquanto se fotografam, porque apanhar um balde ou um contentor é a diferença entre apenas submergir um braço ou o corpo todo. Sucede que todos respeitam os mandamentos para esta prática: equipar-se com luvas e lanternas; não levar consigo o que seja alvo de dúvida; deixar o local como o encontrou, para não desmotivar futuros freegans e lavar em casa tudo muito bem antes de confeccionar. Não se pense que estas práticas são escondidas, porque é já socialmente aceite a romaria ao caixote. Embora confessem que a primeira ideia que lhes ocorreu ao ouvir falar nisto foi de nojo, depois de verificarem a segurança dos alimentos (alguns devidamente embalados antes de colocados fora dos espaços onde eram vendidos) e comprovarem as suas propriedades nutritivas, não se imaginam, garantem, a voltar à vida antiga. E no caso de apanharem bactérias não faz mal, porque se tratam com as ervas medicinais que plantam nas suas casas para não entrar na farmácia. Surgem igualmente jardins comuns onde cultivam alimentos biológicos e “medicamentos”, em maior escala. E depois da recolha feita no lixo? Partilham. Através de grupos a que chamam “food not bombs” (expressão que visa sensibilizar governantes para a circunstância de que o que gastam em guerras dava para alimentar muita gente), preparam refeições quentes que distribuem aos sem abrigo. A questão alimentar fica assim resolvida, mas há que satisfazer o resto das necessidades básicas. Então, o tal ideal anti-consumo é alargado a tudo quanto é “restos”: mobília, louças, livros, sapatos, roupa, electrónica, livros, música etc, recolhidos nos passeios, caixotes, grandes contentores e aterros. A cara do movimento, o activista, Adam Weissman, aproveita as entrevistas e palestras que dá pelo mundo ou os manifestos sob a forma de panfletos que distribui, para reforçar a ideia de que tudo o que aos outros já não assentava bem, não estava fresco ou simplesmente não fazia mais falta, é bom para eles viverem e ainda distribuirem pelos mais pobres. Regularmente promovem free markets nos quais, para além de trocarem e concertarem os bens encontrados, também repartem conhecimentos que facilitam o dia-a-dia, como cursos de reciclagem de roupa, de bicicletas e aulas de cozinha, onde é proibido o uso de moeda. Acresce o facto de não quererem comprar casa, resolvendo o problema com a reabilitação e ocupação prédios devolutos. Defendem que o direito a uma habitação se sobrepõe ao da propriedade privada (dos que dela não cuidam). Nalguns desses prédios montam escolas, infantários e o que demais acharem necessário. No seguimento das preocupações ecológicas, obviamente não usam transportes. Andam nas bicicletas, patins e skates que encontraram ou consertaram e só em situações inevitáveis dividem boleias de carro. Verdade ou não, os mais criativos, convertem carros a diesel para trabalharem com os restos de óleo de cozinha que sobra

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e 2 Fotografado Fotografado por Fotografado por Fotografado por

por Mischa www.mischaphoto.com / Elizabeth A. Miller / Michael Falco / Circe

do restaurante. O desentendimento que por vezes surge entre os proprietários das lojas e freegans motivou uma decisão judicial que se fixou no facto de apesar dos caixotes serem propriedade pública, não há lei que proteja direitos privados sobre bens deitados fora. Assim, o dumpster diving é legal até que seja expressamente proibido por normas estatais ou locais. Por entretenimento organizam concertos e “freegan fashion shows” onde são exibidos os modelos feitos à mão a partir de roupas ou tecidos achados, na perspectiva de que o que é natural é mais elegante. Porém, até nestas pequenas culturas há facções que acabam por ser criticadas pelos freegans puros. Como é o caso dos que regressam a um estilo de vida tão primitivo que se alimentam dos animais que matam e dos que sob o pretexto de ser aproveitado do lixo, também comem carne (são os meagans, de meat e vegan). Entre freegans e consumidores tradicionais, já vimos coexistências melhores. Os últimos acusam os freeganistas de total hipocrisia, porque interpretam tanta moral como a maneira fácil de viver “à pala”, e na sequência de insultos tomam medidas mais enérgicas como inutilizar a comida antes de a deitar fora, forçar a desocupação de casas e destruir os jardins que aqueles clandestinamente ocuparam ou construíram. Por cá há bastantes associados no freecycle.org, encontros de mercados livres onde em vários pontos do país se troca de tudo. Mas ninguém dá mergulhos? Só em casos muito pontuais. Parece que os nossos vendedores e compradores, neste caso provadores, estão tão envolvidos nesta causa que nas prateleiras de alguns supermercados é possível encontrar embalagens de comida já abertas. Alguém antes de nós assegura que quem vier a seguir não vai comprar nada estragado. À cautela.

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