Notícias do Mar n.º 317

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Notícias do Mar

de tempo. É como se ouvíssemos Beethoven com protetores auriculares. Então, tentemos conhecer o rio que navegamos; tentemos percebe-lo como coisa viva da qual dependemos; tentemos, pelo menos, recordar umas quantas tradições feitas dele, folheando algumas páginas que nos falam da sua cultura, para melhor o defendermos. Porque o rio não é só aquele que passa, é também aquele que fica criando hábitos de grande riqueza cultural e definindo-o como suporte histórico inestimável. Recomendamos Maria Micaela Soares, José Quitério e Carlos Salgado, como um pequeno contributo para a consciencialização de quem não respeita o velho rio e abusivamente desfruta da sua generosidade depauperando-o enfática e serenamente, perante a criminosa indiferença de todos nós. E foi com esta convicção e o gosto desportivo de o desfrutar, que surgiram, há anos a esta parte, além das estruturas náuticasdesportivas, outras organizações com o intuito de tirar partido deste universo primordial para vida

da comunidade; de promover o conhecimento a essa comunidade inequivocamente voltada de costas para a realidade histórica de que dependemos, do ponto de vista económico, cultural e turístico. Património a preservar e promover. Património que, quer queiramos, quer não, faz parte da vida de cada um. Generoso e belo, os poetas o compreendem e o vulgo o pressente. O Cruzeiro do Tejo foi uma dessas organizações e, durante várias décadas, permitiu o concurso de várias modalidades náuticas, numa única prova água acima, com embarcações de todas as classes e a participação simultânea dos antigos barcos de trabalho típicos do Tejo. Além de permitir o cruzamento de todo o tipo de embarcações numa jornada fim-de-semana, era um encontro dos que amam a natureza com os desportistas das várias modalidades náuticas, seus familiares e amigos, num cenário privilegiado de comunhão e empatia. Poderia não ter uma grande repercussão nacional subir e descer o rio entre valados ribatejanos mas, para

a região, era economicamente interessante e turisticamente importante, por envolver muitas centenas de participantes com grande impacto nas populações envolventes. Esta manifestação do A. S. C. foi, no seu género, inquestionavelmente, uma das provas mais populares do calendário nacional. O Cruzeiro do Tejo foi também uma primeira oportunidade para as escolas de vela poderem lançar novos marinheiros em provas de meiofundo e assim cativar o seu interesse para novas aventuras. Por outro lado, era um palco privilegiado onde se via ao vivo uma competição náutica inegavelmente espetacular. Com efeito, dezenas de embarcações maiores, à vela (fragatas, varinos e canoas, de Lisboa, Montijo, Barreiro, Seixal e Vila Franca de Xira) e a motor (de recreio e de trabalho; traineiras, bateiras e botes, dos pescadores do rio), levavam centenas de acompanhantes a desfrutar esta aventura, da bacia ribatejana até Salvaterra ou Azambuja. A noite anfitriã era de outros tempos com os barcos típicos varados na margem com as tripulações em festa; o arraial, a largada de toiros, a sardinhada, o folguedo entre os salgueiros da margem, o convívio na vala até madruga-

da! Quem esquece a alvorada, a descida na calma sedosa do dia nascente? As calmarias no regresso! Da gastronomia era pilar da ementa a “sopa de pedra” na mesa corrida de mais de 600 pessoas no jantar da primeira regata, ou a referência lapidar da “caldeirada à fragateira do Manel Gomes” na tarde da chegada para distribuição dos troféus? Tudo era consequência deste viver o rio. Mas ver o rio por dentro olhando-o para fora das suas margens era um dos nossos objetivos. Depois, quem vê o rio, nunca mais o esquece. E só quem conhece, ama. E só quem ama, respeita. Então poder-se-á sentir o deslizamento à forma poética quando se vai lentamente entre barcos de braço dado ocultos na sombra e o espirito se corrompe naquilo que o espirito é pronto a querer. Enfim… Tudo tem o seu tempo. Todavia, merece a pena tentar uma nova versão do ex-libris dos desportos náuticos em Alhandra, mesmo que se tenha de inventar motivações mais adequadas ao rigor critico desta geração, para não o deixar morrer por fraqueza de ânimo. Porque o rio não morre e é preciso vivelo.

2013 Maio 317

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