Cultura e sustentabilidade baixa para site

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Participação, informação, comunidade, mobilização, demandas, conquistas, utopia, articulação, acompanhamento, reflexões, representação, justiça, iniciativa, união,1possibilidades, transformações, alianças, militância, participação, informação, comunidade, mobilização, demandas, conquistas, utopia, articulação, acompanhamento, reflexões, representação, justiça, participação, informação, comunidade, mobilização, demandas, conquistas, utopia, articulação, acompanhamento, reflexões, representação, justiça, iniciativa, união, possibilidades, transformações, alianças, militância, participação, informação, comunidade, mobiliz ção, demandas, conquistas, utopia, articulação, acompanhamento, reflexões, representaçã justiça, participação, informação, comunidade, mobilização, demandas, conquistas, utopia, articulação, acompanhamento, reflexões, representação, justiça, iniciativa, união, possibilidades, transformações, alianças, militância, participação, informação, comunidade, mobiliz ção, demandas, conquistas, utopia, articulação, acompanhamento, reflexões, representaçã C U L T U R A E S U S T E N T A B I L I D A D E : O P apel das O r g ani z a ç õ es N ã o Go v erna m entais e a C ultura dos Mo v i m entos S ociais na A preens ã o e I m ple m enta ç ã o de P ol í ticas P Ú B L I C A S

Cultura e Sustentabilidade: o Papel das Organizações Não Governamentais e a Cultura dos Movimentos Sociais na Apreensão e Implementação de Políticas Públicas



Cultura e Sustentabilidade: o Papel das Organizações Não Governamentais e a Cultura dos Movimentos Sociais na Apreensão e Implementação de Políticas Públicas


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Fundação Tide Setubal Rua Jerônimo da Veiga, 164 – 13º andar 04536000 – São Paulo – SP www.fundacaotidesetubal.org.br Conselho FTAS Presidente do Conselho Maria Alice Setubal

Esta publicação é o registro do 3º Encontro de Cultura e Sustentabilidade: o papel das organizações não governamentais e a cultura dos movimentos sociais na apreensão e implementação de políticas públicas, realizado em 15 de maio de 2010, no CDC Tide Setubal, em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo. As apresentações foram registradas em áudio e transcritas. A edição buscou preservar a oralidade das discussões.

Conselheiros Guilherme Setubal Souza e Silva José Luiz Egydio Setubal Marlene Beatriz Pedro Cortese Olavo Egydio Setubal Júnior Rosemarie Teresa Nugent Setubal

Agradecemos à equipe do CDC Tide Setubal e ao Coral Vovó Neusa, do Movimento das Mulheres sem Terra, responsável pela apresentação de abertura. Aos palestrantes: Oded Grajew, presidente emérito do Instituto Ethos e coordenador-geral da secretaria executiva da Rede Nossa São Paulo; Francisco Whitaker, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz e do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral; Silvio Caccia Bava, coordenador-geral do Instituto Pólis e editor do jornal Le Monde Diplomatique Brasil; e Padre Ticão, presidente da Associação da Casa de Pessoas com Deficiência e integrante do Movimento Nossa Zona Leste.

Coordenação-Geral Paula Galeano Coordenação de Cultura Sebastião Soares (Tião Soares) Assistente de Coordenação Douglas Alves Coordenação Administrativa Mirene São José Coordenação de Comunicação Fernanda Nobre Assistente de Comunicação Adriana Lima

Aos participantes e profissionais dos projetos da Fundação que de algum modo contribuíram para a realização deste evento. São Paulo, outono de 2011.

Dados da publicação Coordenação Editorial e Textos Fernanda Nobre e Sebastião Soares (Tião Soares) Edição de Textos Plural Soluções em Conteúdo Editorial e Multimídia Fotos: Veronica Manevy Revisão: Viviane Rowe Projeto Gráfico: SM&A Design

E56p

Cultura e Sustentabilidade (3. : 2010 : São Paulo, SP). O papel das organizações não governamentais e a cultura dos movimentos sociais na apreensão e imple- mentação de políticas públicas / coordenação editorial Fernanda Nobre e Sebastião Soares. – São Paulo, SP : Fundação Tide Setubal, 2011. 52 p. Organização da Fundação Tide Setubal. ISBN 978-85-62058-11-0 1. Organizações não governamentais. 2. Movimentos sociais. 3. Políticas públicas. I. Nobre, Fernanda. II. Soares, Sebastião. III. Título.

CDU 061.2:304 CDD 361.76

(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507)


Sumário

Apresentação: Reflexões sobre a participação e a construção social Maria Alice Setubal

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Introdução: A busca pela autonomia política e a qualidade da participação cidadã Tião Soares 1 | Informação e participação política Oded Grajew

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Mobilizações sociais, utopias e conquistas

Silvio Caccia Bava

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ONGs, movimentos sociais e contexto histórico Francisco Whitaker

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As alianças no processo de mudança: leitura crítica Padre Ticão

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Debate

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Francisco Whitaker, Silvio Caccia Bava, Maria Alice Setubal, Padre Ticão e Oded Grajew (da esquerda para a direita), debatedores do tema



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Apresentação: Reflexões sobre a participação e a construção social Maria Alice Setubal

Maria Alice Setubal é socióloga, doutora em Psicologia da Educação pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e mestre em Ciência Política pela USP (Universidade de São Paulo). É presidente do Conselho da Fundação Tide Setubal e do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária) e membro do Grupo de Trabalho de Educação do Movimento Nossa São Paulo.

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R E F L E X Õ E S S O B R E A P A R T I C I P A ÇÃ O E A C O N S T R U ÇÃ O S O C I A L

Desde o início de suas atividades em São Miguel Paulista, com a missão de contribuir com o empoderamento da comunidade e o desenvolvimento local, a Fundação Tide Setubal tem procurado criar espaços de diálogo e participação entre os diferentes atores da região. Essa articulação busca estimular as construções coletivas, que nascem da atuação e da força de diferentes segmentos: as organizações não governamentais, com experiências práticas e, muitas vezes, inovadoras dentro de cada território, favorecendo a compreensão das demandas locais; a iniciativa privada, com investimento financeiro e apoio técnico; a sociedade civil, com sua capacidade de mobilização e de questionamento de seus representantes; e o poder público, no papel de ampliar e fortalecer a implantação de políticas públicas que atendam às demandas da população. A sociedade do século XXI busca respostas para um novo modelo que tem como eixo a democracia e a sustentabilidade ambiental, social, econômica. Essas mudanças certamente virão de novos arranjos com a participação da sociedade na construção e no acompanhamento das políticas públicas, exigindo maior transparência e prestação de contas. Por acreditar nessa forma de atuação, a Fundação incentiva e articula encontros e ações que possam proporcionar esse exercício de participação, e o Encontro de Cultura e Sustentabilidade é um desses espaços. Anualmente, a comunidade se reúne com diferentes especialistas e todos esses encontros são registrados e transformados em publicações, para que as ideias se multipliquem.

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Em 2010, realizamos a terceira edição desse encontro para discutir O papel das organizações não governamentais e a cultura dos movimentos sociais na apreensão e implementação das políticas públicas. A escolha desse tema está alinhada ao fortalecimento e a institucionalidade de organizações da sociedade civil, um de nossos objetivos. Temos feito isso por meio de apoio financeiro, em editais realizados anualmente, com formações e estímulo à discussão e à construção conjunta. Com isso, contribuímos para uma sociedade civil mais forte, mais capacitada e mais empoderada. Nas próximas páginas, apresentamos exemplos que nascem sob essa nova perspectiva e ganham força na sociedade. A experiência da Rede Nossa São Paulo, apresentada por Oded Grajew, que tem produzido indicadores e informações para ações mais conscientes da população. A construção do Fórum Mundial Social e a caminhada pela aprovação da Lei da Ficha Limpa, dois exemplos fortes de mobilização, apresentados e debatidos por Francisco Whitaker, um dos líderes desses movimentos. O olhar para a capacidade de produção de conhecimento e de avaliação das políticas públicas das organizações sociais, na análise de Silvio Caccia Bava, do Instituto Pólis. Em sua leitura crítica após o debate, Padre Ticão, uma das lideranças da região de São Miguel, destacou a importância de as organizações não atuarem de forma isolada. Em sua análise, reforçou a importância das alianças. Nossa intenção não é apresentar uma fórmula pronta ou um modelo. Mas multiplicar as reflexões, a escuta e a troca de ideias, elementos fundamentais para uma sociedade mais justa e com maior sustentabilidade.



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Introdução: A busca pela autonomia política e a qualidade da participação cidadã Sebastião Soares

Sebastião Soares é doutorando em Ciências Sociais pela PUC-SP e mestre em Educação, membro da Diretoria do Fórum Permanente das Culturas Populares do Estado de São Paulo, membro fundador da Rede Nacional das Culturas Populares e FIC (Fórum Intermunicipal de Cultura), colaborador do Instituto Pólis e professor universitário. Atualmente, atua como coordenador cultural e relações institucionais da Fundação Tide Setubal, em São Miguel Paulista, em São Paulo.



A B U S C A P E L A A U T O N O M I A P O L Í T I C A E A Q U A L I D A D E D A P A R T I C I P A ÇÃ O C I D A D Ã

Quando se pensou na realização deste seminário, buscamos, em primeiro lugar, discorrer sobre as condições da realidade contemporânea dos entes sociais, com a perspectiva de trazer à tona ideias enriquecedoras ao debate sobre o papel dos movimentos sociais, especialmente os movimentos urbanos. O desafio é entendermos a forma como eles são abordados, trabalhados, discutidos, realizados. Com isso, pretendemos iluminar questões de nosso tempo, ou seja, observar como esses movimentos se adequam às novas realidades. Como esses movimentos sociais são entendidos? Na fala de Castells, “eles são o que dizem ser. Suas práticas são sua autodefinição”1. Cremos que os movimentos populares, ou a tentativa de existência e sobrevivência destes, têm se preocupado em definir significados sociais e abrir chances para reconstrução do controle social. A busca de estratégias para agregar cidadãos(ãs) a diálogos abertos sobre temas de interesse comum que afligem a sociedade tem sido, certamente, um baluarte simbólico da luta de algumas organizações pela garantia de um outro jeito de participação popular. Seria a reconstrução de outra filosofia, na qual os(as) cidadãos(ãs) poderiam contribuir para o controle social, exercido pela participação ativa da sociedade e não com uma configuração de legalidades homologatórias. Em outras palavras, que o sujeito fosse parte da ação e esta se estruturasse numa prática social concreta, muito embora, não se possa negar a participação por meio da atuação em conselhos, fóruns e conferências, espaços públicos livres, geralmente ocupados pelas organizações não governamentais (ONGs) e muitas vezes pelas INGs (indivíduos não governamentais), dada a sua importância e legitimidade. 1. Termo emprestado por Manuel Castells, in O Poder da Identidade. Paz e Terra.

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A proposta deste encontro se deteve, entre outros objetivos, em aprofundar essas reflexões que, de certo modo, têm nos trazido preocupação quanto ao papel que as entidades sociais exercem no acompanhamento da implantação das políticas públicas de interesse coletivo já existentes, e das que ainda estão ocultas. Sabemos que a sociedade civil pode e deve ter o controle social e também possui poder de propor novas medidas e acompanhar os recursos disponíveis utilizados para sua execução. Vimos, durante todo o debate, que as reflexões expostas discorreram sobre a pontuação de como as ONGs começaram a se formar nas décadas de 1970 e 1980, ancorando-se nas organizações populares, que tinham por objetivos a promoção da cidadania, a defesa de direitos e a luta pela democracia política e social. Nesse sentido, floresceram em sintonia com as reais demandas e dinâmicas dos movimentos sociais, com ênfase nos trabalhos de educação popular e de atuação na elaboração e no controle social das políticas públicas. Entendemos, então, que a formação de uma ONG é oriunda da vontade livre de um grupo de pessoas que se reúnem em busca de um objetivo social ou com uma causa social em comum. De certa maneira, a criação de uma organização não governamental, como não poderia deixar de ser, pode significar uma constatação ou uma resposta que a sociedade encontra para viabilizar ou realizar ações que os governos não realizam ou, quando realizam, desempenham de forma incompleta. Vale destacar que elas não têm o papel de substituição do Estado. Em hipótese alguma podem ser comparadas ao poder público em suas ações sociais. Elas devem pressionar e se colocar como articuladoras para impulsionar os governos para a realização de suas ações,


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ou seja, a sociedade terá que ter o papel autônomo de fazer valer as práticas da cidadania e, desse modo, o Estado deve retribuir essa exigência. A mobilização da sociedade civil deve conter um vigoroso sentido de pertença, entender que mobilizar não significa, apenas, reunir-se em torno de uma mesa ou de uma comunidade, mas criar formas de sociabilidade e de interesses comuns, em torno de uma causa, nas quais as pessoas tenham voz, sejam ouvidas, auscultadas e, dessa forma, façam parte das ações, gerando PARTICIPAÇÃO, chave da garantia da política de direitos. Assim, ONGs devem se afinar com a discussão de seus objetivos, de sua política e de sua missão, observando o contexto em que está inserida. Uma nova ONG só se justifica como consequência de uma mobilização social que já existe, mas que precisa de ações mais propositivas, com mais força para mudar uma realidade. Com base nessas premissas, defendemos que as ONGs possam constituir e agregar forças de pressão e de ação capazes de influenciar, propor e ajudar a criar políticas públicas democráticas para construção

de uma sociedade mais justa. Deveriam, também, agir como força motriz para a democratização das políticas governamentais para que estas estejam a serviço da sociedade e não ao contrário. Uma política plural, justa e solidariamente compartilhada, pelas mais diversas formas de participação ativa da sociedade, em que possamos melhor compreender o(a) cidadão(ã) como parte da ação de uma atuação consciente e propositiva.


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Informação e participação política Oded Grajew

Oded Grajew é presidente emérito do Instituto Ethos e coordenadorgeral da secretaria executiva da Rede Nossa São Paulo. Idealizador do Fórum Social Mundial e da Fundação Abrinq. Foi assessor especial da Presidência da República (2003).



I N F O R M A ÇÃ O E P A R T I C I P A ÇÃ O P O L Í T I C A

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ste encontro é fundamental porque trata das relações da sociedade com o poder público, o que, do meu ponto de vista, é o assunto mais importante quando falamos de sociedade, de justiça social, de melhoria das condições de vida das pessoas, já que os governos são responsáveis pela educação, pela saúde, pela segurança, pela habitação, pelas condições de vida da população. Essa é a forma de nos organizarmos.

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que passam muita dificuldade é muito grande. As condições dos nossos serviços públicos oferecidos para a população, que deveriam ser de boa qualidade, geralmente não estão à altura do que esperamos: a saúde, a educação, a segurança, a habitação, o lazer, a cultura... Algo não está funcionando. Os governos poderiam dizer: “Gostaríamos muito, mas não temos dinheiro.” Uma boa explicação, se ela fosse verdadeira.

A sociedade escolhe seus representantes para que estes tomem conta do dinheiro, nosso dinheiro, recolhido na forma de impostos, e apliquem-no em benefício da sociedade. Como determina a Constituição e as leis, o objetivo primeiro é reduzir a desigualdade, fazer com que haja equilíbrio maior na sociedade, condições de vida dignas para todos. Essa é a função dos governos, a obrigação dos governos. Eles são escolhidos por nós como representantes para aplicar o nosso dinheiro em benefício da sociedade. Então, vocês veem a importância desse processo, de esse sistema funcionar como deveria funcionar.

Acontece que, no Brasil, o nível dos impostos é igual ou até maior do que em muitos países do Primeiro Mundo: França, Inglaterra, Espanha, Portugal. Os governos – quando digo governos, digo municipal, estadual, federal – têm muito dinheiro. Às vezes, a distribuição entre eles não é a mais justa, mas a população paga muitos impostos. Há pessoas que pensam que não pagam impostos: “Ah! Eu sou isento de imposto de renda, sou isento desse imposto.” Elas não percebem que o nosso sistema tributário é tão ruim e perverso que não mostra como se pagam os impostos. Na hora em que você toma uma água, na hora em que você coloca gasolina no seu carro, na hora em que você compra qualquer produto no supermercado, você está pagando muitos impostos. E estudos mostram que quem ganha menos paga mais proporcionalmente do que aquele que ganha mais. Dinheiro os governos têm e nós elegemos os nossos governantes. O que está errado, por que as coisas não funcionam como gostaríamos que funcionassem? Porque há problemas nesse processo.

Certamente, não estamos satisfeitos com o funcionamento desse sistema, porque, não só em São Paulo, mas em nosso país, permanecem inúmeros problemas. Temos uma imensa desigualdade na sociedade. Em São Paulo, no Brasil, a distância entre aqueles que têm mais recursos, uma vida melhor, e aqueles

Primeiro, imaginamos que a população elege seus representantes de uma forma muito democrática, mas não é bem assim. Quem quer ser eleito, para qualquer cargo, precisa fazer campanha. Agora, para fazer campanha, precisa de dinheiro e quanto mais, melhor. Há mais chance. Dinheiro é muito importan-


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te hoje nas eleições. Isso porque, no Brasil, existe um sistema de financiamento privado de campanhas políticas, quando muita gente acredita – eu também – que deveríamos ter sistema de financiamento público.

nada mudará. Uma mudança real, concreta, transformadora só será feita quando mudarmos o sistema. E qual é a saída para isso? A saída é quando a sociedade se organizar para conseguir mudar as coisas.

E onde o candidato vai buscar o dinheiro? Não é com a população com menos recursos. A busca é nas empresas. E por que as empresas dão dinheiro para a campanha eleitoral? Porque vai trazer retorno. Se for eleito, o candidato defenderá os interesses daquele setor, daquela empresa. Isso acontece na maioria das vezes. Não são todas as empresas que agem dessa forma, mas a maioria é assim. Como é esse retorno? Em termos de benefícios tributários, de acesso a dinheiro público. Então, uma boa parte dos recursos que deveria ir para a educação, para a saúde, para a habitação vai para aqueles que financiam as campanhas. Por isso que, muitas vezes, o governo diz: “Ah! Eu gostaria, mas não tenho dinheiro.” O dinheiro não vai exatamente para onde precisa ir. Vocês veem que todos os escândalos de que se tem conhecimento no Brasil, de corrupção, qualquer um deles, na origem está a destinação de dinheiro público para quem financia a campanha. Esse sistema tributário, fiscal, privilegia quem tem mais recursos, e outros sistemas são exatamente frutos desse processo.

Informação mobilizadora

Imaginamos que os governantes são ruins, não têm coração ou não têm sensibilidade. O problema não são as pessoas, o problema é o sistema. Você pode mudar as pessoas. É claro que nem todos são iguais, mas, se você não mexer no sistema, será muito difícil ter a melhoria, aquilo que realmente desejamos. Porque o sistema está contaminado pelo sistema político que temos e pela introdução dos interesses econômicos, que tiram recursos e fazem políticas que não beneficiam o bem-estar geral. Se não percebermos esse perverso sistema, se não tivermos essa clareza,

Antigamente, o domínio dos governantes, reis e ditadores sobre a população era pela força, pela violência. Hoje, você não domina apenas pela força, domina pela cabeça, pelo pensamento. Esse é o domínio. Então, a percepção das coisas é a chave, porque, a partir dela, há possibilidade de mudança. Na medida e no momento em que esses tantos se organizam, aí sai de baixo. Vocês viram, agora, a questão do movimento da Lei da Ficha Limpa, um dos líderes está aqui, Chico Whitaker. Quando juntou 1,7 milhão de assinaturas, aquilo que parecia impossível aconteceu. A Ficha Limpa é uma das maneiras de diminuir a possibilidade de entrada de pessoas com crimes cometidos na vida política, que estão lá para fazer as suas atividades criminosas, tirar dinheiro público em proveito próprio. O acesso à informação e as mudanças no pensamento que são importantes. O que faz, por exemplo, o Rede Nossa São Paulo? Fornece informação à população. Qual a primeira atitude de qualquer ditadura? Quando a ditadura se instalou no Brasil, em várias ocasiões, o que ela fez? A primeira coisa que faz a ditadura é instalar a censura, não é isso? Cortar as informações, dominar a comunicação. Por que qualquer ditadura não abre mão de manter o controle sobre as informações, como queimar livros, censurar rádio, televisão, jornal, não permitir encontros como este, onde circula a informação? Porque é a ferramenta da revolução, das mudanças. É com a informação que você faz a mudança, que você muda as coisas e se confronta com domínios ditatoriais ou de poucos. A informação


I N F O R M A ÇÃ O E P A R T I C I P A ÇÃ O P O L Í T I C A

é básica, é fundamental. Por exemplo, a informação sobre a situação da cidade que expõe a desigualdade em São Paulo. Por isso, no Rede Nossa São Paulo, uma das primeiras coisas que fazemos é mostrar os indicadores da cidade: como está a educação, a saúde, a habitação, a renda, a violência, a cultura. Mostrando a desigualdade, o quanto uma região da cidade é melhor ou pior do que outra, as pessoas tomam conhecimento da situação, de que aquilo não é aceitável. Conseguimos uma coisa fantástica em São Paulo. Mudamos a constituição da cidade introduzindo a Lei das Metas. O que diz a Lei das Metas? Diz que, de agora em diante, cada prefeito eleito, a começar pelo atual, tem três meses, 90 dias, para apresentar um plano de metas para a cidade, para todas as áreas da gestão pública – educação, saúde, habitação, cultura, esporte –, para cada subprefeitura e cada distrito. Não adianta ter um número médio para a cidade porque ele não diz muita coisa. A média pode ser dez, mas numa região você tem um e na outra tem mil. As metas têm que conter todas as promessas de campanha, têm que reduzir a desigualdade, promover o desenvolvimento sustentável pela função social da propriedade. Há uma série de requisitos, não são quaisquer metas. O prefeito apresentou as suas metas. São 223 que espero que todos vocês conheçam, é importante. Não são as metas de que gostaríamos, faltaram muitas por distritos, por subprefeituras, faltaram números em várias áreas da educação, da saúde, mas aceitamos porque é a primeira vez, vamos aprender com o processo. Há metas importantes. Como o prefeito prometeu na campanha não ter mais nenhuma criança fora da creche e fora da escola até o final desta gestão, essa é a meta. A promessa está na lei: não podemos ter nenhuma vaga solicitada e não atendida, em creche e em préescola. No final do mandato, qualquer prefeito ou

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prefeita de São Paulo dirá a todo mundo se cumpriu ou não cumpriu as metas, fez o que prometeu ou não fez. Isso fará com que o peso do dinheiro nas campanhas seja menor e com que a Prefeitura seja avaliada por cumprir ou não cumprir as metas. Não porque fez um filminho ou uma propaganda. As metas que nós propusemos eram um pouco diferentes. Por exemplo, se na cidade de São Paulo a mortalidade infantil na melhor região, no melhor distrito, é “x”, essa deveria ser a meta para todas as regiões da cidade. Se em Pinheiros a mortalidade infantil é “x”, a meta deveria ser esse “x” – já que foi atingida não em Zurique, Amsterdã ou Nova York, mas em São Paulo – para todas as regiões da cidade. Outra coisa, nenhum distrito de São Paulo poderia ter zero de equipamento público. Instituímos na cidade o indicador chamado Irbem [Indicador de Referência para o Bem-Estar do Município], que mede a qualidade de vida de quem mora aqui. Esse indicador de percepção mostra como as pessoas percebem a sua qualidade de vida. Isso foi construído com a população. Questionamos o que as pessoas acham importante para a sua qualidade de vida, para o seu bem-estar – posto de saúde perto de casa, biblioteca perto de casa, trabalho perto de casa, uma renda digna e assim por diante. Foram construídos vários indicadores. Depois perguntamos qual é o grau de satisfação para saber, se ao longo da gestão de um prefeito, de uma prefeita, a qualidade de vida melhorou ou piorou. Isso está sendo acompanhado passo a passo. Existe uma lei na cidade de São Paulo que obriga o prefeito a publicar os indicadores da qualidade dos serviços públicos. É uma lei que a Prefeitura não cumpre. Vou dar alguns exemplos: quanto tempo uma pessoa es-


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pera no ponto de ônibus até ele chegar, como é a limpeza dos ônibus? Qual é o tempo de espera no posto de saúde, para realizar um exame, uma operação? Isso nos permite saber como está a qualidade dos serviços públicos, obrigação do governo. Nesse levantamento com a população, chegamos a números absurdos. Por exemplo, as pessoas demoram cerca de um mês para fazer um exame e um ano para fazer uma operação. Quer dizer, elas morrem no caminho. Essa informação chega pouco à população. Quando acontece, ela se conforma e acha que é de graça e não reclama. Não é de graça nada! Nós pagamos! Qual é a maneira de a sociedade agir e se contrapor ao sistema atual? Ter conhecimento, saber se o governo está cumprindo aquilo que se espera, para na hora de mudar, nas eleições, todo mundo saber o que aconteceu. Se foram cumpridas ou não as promessas e as metas, se a vida melhorou ou piorou, se a desigualdade foi combatida, diminuída ou não. Assim, teremos um voto mais consciente, que levará em conta os resultados e não a propaganda, o poder econômico. Quando governos em geral, representantes nossos, souberem que estamos todos de olho, a coisa poderá mudar. Eles perceberão que, para ganhar as eleições e continuar na política, não bastará arrumar dinheiro para a campanha e levar a vida como sempre, porque a população vai ficar de olho para saber se melhoramos ou não a vida das pessoas, se combatemos a desigualdade, se cumprimos ou não as metas. Na hora em que essas informações chegarem a todos, para a maioria, a coisa poderá mudar. O Rede Nossa São Paulo tem essas informações. Temos os indicadores da cidade: evasão escolar; mor-

talidade infantil; habitação – região por região. Temos o “desigualtômetro”, representando a diferença entre melhor e pior região para visualizar a desigualdade; o indicador de referência para o bem-estar do município, que vamos acompanhar para ver se melhora ou não melhora a qualidade de vida; as metas da Prefeitura, do plano de metas; e as metas de referência, aquilo nós achamos que são as metas. A cada ano, no aniversário de São Paulo, atualizaremos os indicadores da cidade e do bem-estar da população e, no final de cada gestão, o resultado será mostrado. Assim, poderemos dizer para o candidato: “Você quer ser eleito? Quais são as suas metas? Aqui, estão os indicadores, quais são as suas metas? Queremos saber qual será a renda média do distrito, quais serão os indicadores de violência, qual será o número de creches e crianças na pré-escola e assim por diante.” Essa ferramenta está no site do Rede Nossa São Paulo. Todo mundo tem acesso e pode saber. Essa é uma maneira diferente de relacionamento da sociedade com o poder público e acredito que ela tem um poder transformador, uma possibilidade de mudança muito grande. Aliás, isso já aconteceu em outras cidades do mundo e, quando realmente se expandiu na sociedade, as mudanças foram muito grandes. Aconteceu na Colômbia. Bogotá era uma cidade falida, violenta, com qualidade de vida muito baixa, e esse tipo de processo a mudou totalmente. Vimos, na prática, o que um processo como esse pode produzir numa cidade e eles estão querendo levar em nível de país. Trata-se de pensar como podemos transformar essa relação, hoje perversa, entre sociedade e poder público, em uma relação virtuosa, que realmente faça com que governos cumpram o que a sociedade demanda deles. É para isso que foram eleitos. É para isso que pagamos os impostos. Muito obrigado.


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Mobilizações sociais, utopias e conquistas Silvio Caccia Bava

Silvio Caccia Bava é sociólogo e mestre em Ciências Políticas pela USP (Universidade de São Paulo). É coordenador-geral do Instituto Pólis e editor do jornal Le Monde Diplomatique Brasil.

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M O B I L I Z A ÇÕ E S S O C I A I S , U T O P I A S E C O N Q U I S T A S

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uero primeiramente agradecer o convite para estar aqui com vocês, agradecer à Maria Alice, ao Tião, à Fundação Tide Setubal. Acho muito importante esse tipo de discussão. Para falar deste tema – movimentos sociais, ONGs e políticas públicas –, fiquei pensando que não precisaria sair de São Miguel Paulista. Foi aqui que começou o SUS e muito poucos sabem que por trás do Sistema Único de Saúde, sustentando-o, há toda uma mobilização, uma luta que começa com o movimento de saúde e os médicos sanitaristas, no começo dos anos 1980, com o controle da qualidade do posto de saúde do bairro. As mobilizações acontecem porque a situação não está boa. Porque o serviço público é deficiente, porque faltam creche, ônibus, escola, lugar para morar. Se estivesse boa, não haveria mobilização.

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Está aqui o padre Ticão, que acompanha o movimento de moradia e participa dele há mais de 20 anos. Essa luta é outro exemplo que saiu de São Miguel. O movimento de moradia vai conquistar o capítulo da Constituição Federal sobre política urbana, a lei geral contra a especulação imobiliária, o Estatuto da Cidade. Todo esse processo dá visibilidade aos conflitos urbanos, gerará a própria proposta do Ministério das Cidades, gerará os sistemas participativos de Conselhos e de Conferências de avaliação das políticas públicas em níveis municipal, estadual, federal. Essas conquistas não saíram da vontade dos técnicos do governo, saíram da mobilização da cidadania organizada. Se não tivesse um movimento de saúde, não haveria o SUS. Se não tivesse as ocupações e o Movimento de Moradia, não haveria o sistema das cidades. Mas eu acho que temos que tentar ver além da reivindicação específica. Quer dizer, tem gente que luta por creche, tem gente que luta por moradia, tem gente que luta por saúde melhor. E como é que isso se junta? Nosso querido geógrafo Milton Santos dizia o seguinte: “As cidades não são as coisas que a gente vê: a ponte, o prédio, a rua, o viaduto. É um erro dizer que a cidade é isso. As cidades são as relações que a população tem com esse espaço físico. As cidades são as formas pelas quais se constrói uma convivência de maior ou de menor qualidade.” Quer dizer, a alma da cidade é o seu povo. Então, se nós formos falar das melhorias, não poderemos falar das propostas técnicas e ponto; temos que perguntar para quem vai bancar essa mudança. Porque ideias boas nós temos. Há mais de 20 anos, teve uma discussão na Paróquia de São Miguel sobre um curso para formação da


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cidadania. Havia a preocupação de como discutir o que é cidadania. Falar de teoria não adiantava. Então, surgiu uma ideia: vamos contar a história das revoluções sociais no Brasil, como Canudos e outras, para mostrar que as situações políticas podem mudar, que a mudança depende da capacidade dos cidadãos se organizarem em defesa de direitos. Isso ocorreu no mundo inteiro, não é novidade, nem é algo original do Brasil. As condições sociais, a qualidade de vida na Europa, vieram basicamente da luta dos sindicatos. As conquistas desses direitos, como saúde, educação e transporte público para todos, vieram da mobilização dos cidadãos; assim como as 40 horas de trabalho e o salário-mínimo. Portanto, ou a sociedade ou os grupos de cidadãos se organizam na defesa de direitos, se juntam e se mobilizam, ou as coisas não mudam. Bom, se tomarmos como referência as conquistas que mudaram políticas públicas, criaram o Sistema Único de Saúde e o Sistema das Cidades, vamos ver que foi preciso 20 anos para isso acontecer, às vezes A alma da cidade é o seu povo. Então, se nós formos falar das melhorias, não poderemos falar das propostas técnicas e ponto; temos que perguntar para quem vai bancar essa mudança. Porque ideias boas nós temos. até mais. Mas a persistência e a mobilização geraram essas mudanças, e temos que reconhecer que os movimentos de São Miguel fizeram parte disso. Movimento social, como a própria palavra diz, é um movimento, não é para durar a vida inteira, é um movimento que busca atingir um objetivo, conquistar uma ampliação de um direito. E o que sustenta o movimento? Nos anos 1980, a principal organiza-

ção que sustentou os movimentos aqui foram as comunidades eclesiais de base. Elas se juntaram, depois, com as Associações de Moradores, com o Sindicato dos Químicos, com voluntários, que vieram da universidade e estavam comprometidos com esse ideário de transformação, inclusive eu estava entre eles. O que quero dizer é que o movimento não brota de graça, tem que ter um nível de organização, como, por exemplo, este centro de associações de moradores. Quero trazer o exemplo da luta pela moradia, da luta pelo direito à cidade, a experiência do Fórum Nacional da Reforma Urbana. É um fórum que, desde 1987, antes da atual Constituição, se mobilizou nos comitês pró-constituinte populares, se mobilizou em discussões no Brasil inteiro, pelo direito à cidade. Nós sabemos o que vivemos, e essa é a razão das mobilizações. Vivemos numa cidade dividida: temos os bairros com todos os equipamentos, segurança, escolas, bom transporte; e metade da cidade, ou mais, de ocupações ilegais, de loteamentos clandestinos, onde não tem nada e os moradores têm que lutar arduamente para ir construindo aos poucos, conquistando aos poucos, o que é um direito de todos. Esse Fórum Nacional da Reforma Urbana tem uma característica que abre espaço para fazermos alianças com os diferentes. Quem normalmente participa nesses 20 anos do Fórum Nacional da Reforma Urbana? Participam o Sindicado dos Arquitetos; o Sindicato dos Trabalhadores do Meio Ambiente, que mexe com lixo e esgoto; os movimentos de moradia. Participam ONGs e outros movimentos. É uma aliança mais ampla, com o objetivo de conquistar a melhoria de vida na cidade. Esse fórum, uma rede horizontal, está organizado em várias regiões do país.


M O B I L I Z A ÇÕ E S S O C I A I S , U T O P I A S E C O N Q U I S T A S

Não podemos juntar as organizações e entendê-las pela sua natureza, se é uma ONG, uma associação de moradores, um sindicato. Porque tem sindicato bom, tem sindicato ruim; tem ONG boa e tem ONG ruim; tem movimento bom e tem movimento que não é tão bom. E como é que cada organização participante dessa rede contribui, de maneira singular, para fortalecer o movimento coletivo? Os movimentos trazem a força da mobilização, trazem a base, trazem o bairro, trazem o cidadão. Já o sindicato do pessoal da água e do esgoto trouxe muita informação sobre a carência do equipamento, o custo de implantação, os programas de governo. E as ONGs? Acredito que aqui precisamos abrir um parêntese e dizer que nem todas as ONGs são iguais, porque temos períodos históricos diferentes. Nos anos 1980, tivemos uma geração de ONGs voltadas à defesa dos direitos, da justiça, da igualdade social, da busca da equidade. Já nos anos 1990, a maior parte das ONGs se formou para prestar serviço para o governo, elas não têm o mesmo foco das ONGs dos anos 1980. Acho que não vale a pena discutir a relação dos movimentos sociais com as ONGs em geral, temos que diferenciar. Uma professora da Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], a Evelina Dagnino, tem um conceito muito interessante, ela diz o seguinte: “A gente não pode juntar as organizações e entendê-las pela sua natureza, se é uma ONG, uma associação de moradores, um sindicato. Porque tem sindicato bom, tem sindicato ruim; tem ONG boa e tem ONG ruim; tem movimento bom e tem movimento que não é tão bom.”

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Por isso é importante identificar as organizações pelo que elas fazem, pelos seus trabalhos, pelos seus compromissos expressos na prática, assim encontraremos um elemento comum: a luta pelos direitos. Podemos dizer que, nos anos 1980, com toda a expectativa de mudança, depois da ditadura, tínhamos uma utopia e pensávamos em construir um Brasil mais igual, mais justo. A própria Teologia da Libertação falava na construção de um mundo melhor, não dizia como, porque ficava nos valores, mas, de alguma maneira, também abriu muito espaço para esse debate. Quando nos identificamos nessa chave dos direitos, as alianças se dão entre aqueles que estão comprometidos com essa luta, definimos um campo político na sociedade, de afinidades, de propósitos comuns. Um campo de ação coletiva articulada e democrática, para que a democracia se amplie para todos. Não apenas para o cidadão se reapropiar dos instrumentos de governo, da cidade, mas para passar a controlar o governo, a participar do planejamento. Tem um colega meu que diz assim:


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Na Rio 92, há 18 anos, achávamos que a sociedade civil não seria capaz de fazer um diagnóstico da situação ambiental do Brasil para enfrentar o diagnóstico do governo. Não é que deu o contrário? O diagnóstico feito pela sociedade civil foi melhor, mais consistente e, além disso, crítico, se comparado ao do governo brasileiro. “A gente tem que caminhar para o planejamento participativo, envolvendo a comunidade, definindo metas, para um controle público e social.” Na cidade de Maringá [Paraná], por exemplo, o prefeito, há uns dez anos, botou a mão no dinheiro público e foi um escândalo. Com isso, surgiu a iniciativa de formar uma comissão reunindo Associação Comercial, maçonaria, igrejas, sindicatos. Essa comissão começou a fiscalizar as licitações públicas. Em dois anos, a capacidade de investimento da prefeitura dobrou. Hoje, tem mais de 40 cidades que adotam esse tipo de controle. Vou voltar à questão das ONGs presentes na chave da luta pelos direitos para fechar minha fala. Acredito que a marca principal dessas ONGs é a produção de conhecimento. Elas servem para fazer programa de formação com os movimentos, reunir informação e avaliar a política pública. Em 2008, o movimento de saúde de São Paulo veio ao Pólis e disse assim: “Precisamos entender melhor como controlar o orçamento de saúde.” A partir dessa necessidade, desenvolvemos e realizamos um curso com a participação de duas pessoas do movimento por subprefeitura e a coordenação do movimento. O objetivo do curso foi que todos aprendessem a fiscalizar o gasto da área de saúde na sua subprefeitura.

As ONGs podem oferecer esse tipo de apoio, sistematizar as propostas e também organizar as próprias demandas, acompanhando os movimentos. Nós, do Pólis, estamos, por exemplo, no Conselho das Cidades, no Conselho de Assistência Social, no Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], articulando desde o trabalho local até os momentos de política mais ampla nacional. Na Rio 92, há 18 anos, achávamos que a sociedade civil não seria capaz de fazer um diagnóstico da situação ambiental do Brasil para enfrentar o diagnóstico do governo. Não é que deu o contrário? O diagnóstico feito pela sociedade civil foi melhor, mais consistente e, além disso, crítico, se comparado ao do governo brasileiro. E aí eu me perguntava: “Mas como é possível, se o governo tem técnicos, tempo à sua disposição, todas as informações, e o movimento não tem?” Começamos a descobrir que esse diagnóstico foi feito em conjunto por professores universitários especialistas no tema, ONGs ambientalistas e de desenvolvimento, que, naquela época, ainda tinham essa divisão, e alguns sindicatos. Foi um esforço coletivo que gerou uma análise de qualidade. O segredo é ser coletivo, com cada especialista contribuindo para o coletivo. Precisamos resgatar um pouco a ideia da utopia. Pensar a cidade do futuro, como queremos que seja a nossa cidade, como queremos São Miguel para os nossos filhos, para os nossos netos. Uma vez me perguntaram assim: “Como você quer que São Paulo seja daqui a 30 anos?” Eu pensei, pensei e falei: “Eu quero nadar e pescar no Tietê.” Muito obrigado.


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ONGs, movimentos sociais e contexto histórico Francisco Whitaker

Francisco Whitaker é arquiteto e urbanista, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz e do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, participa da organização dos Fóruns Sociais Mundiais e, em 2006, recebeu o Prêmio Nobel Alternativo (Right Rivelihood Award).


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Agora, mudou o quadro. Mas, naquele tempo, os problemas do latifúndio improdutivo e da quantidade de pessoas que chegavam às cidades expulsas do campo fizeram com que o governo tomasse algumas atitudes. E aqueles que eram os privilegiados no país chamaram os militares e disseram: “Deem um jeito, isso não pode continuar.” E o que os militares fizeram? Deram o chamado Golpe de Estado de 1964.

ascemos e já começamos a aprender. Passamos a vida inteira aprendendo. Tudo o que foi falado aqui continuaremos discutindo em casa, com os amigos. Depois vamos aprender mais e, assim, dirigimos nossa presença no mundo pelo que aprendemos. Há a história de uma velhinha que estava morrendo e, na hora da extrema-unção, hoje chamada de unção aos enfermos, enquanto estava segurando a vela, o padre falou: “Minha senhora, desculpe, mas a senhora vai ter que segurar a velinha com a mão esquerda e não com a mão direita. E ela falou: “Morrendo e aprendendo.” É isso! A vida é isso.

A partir de 1964, vivemos muitos anos numa situação em que quem reclamava corria risco de vida, e os que se opunham ao sistema eram devidamente presos, torturados e assassinados. Isso ainda acontece em muitos países do mundo, mas nós vivemos esse problema de 1964 até entrar em 1980. Nos anos 1980, os problemas não se resolveram. Pelo contrário, muitos se agravavam porque o modelo econômico adotado pelos militares era concentrador de riqueza, excluía. Um modelo que determinou a expulsão de ainda mais gente do campo, para encher as favelas da cidade onde não tinha emprego. Esse processo estava ficando tão complicado que um dos generais de turno – os nossos ditadores foram muito vivos, em vez de ter um ditador, um Pinochet 15 anos no Chile, eles revezavam; a cada quatro anos, vinha outro –, durante um evento, disse que a economia estava bem, de 7% a 8% de crescimento, mas o povo estava mal. Ele deixou isso escapar porque estava percebendo que a situação social não era uma maravilha, como a tal da economia.

Quando começamos a pensar nos problemas do Brasil, dizemos: “Nossa, como tem problema!” Nós tivemos, no país, um momento em que havia tanta mudança a fazer que os presidentes e os governos daquele tempo resolveram esticar mais a corda, fazer coisas absolutamente necessárias, que ainda são até hoje, como, por exemplo, a reforma agrária.

Bem, dito isso, eles tiveram que ceder. O general que pensava toda a teoria do governo militar dizia: “Nós temos que funcionar como o coração, sístole, diástole; sístole, diástole; concentra, desconcentra; concentra, desconcentra. Tivemos um tempo de concentração de poder e, agora, temos que passar por uma desconcentração, senão o coração vai estourar.”


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Eles chamaram essa desconcentração de abertura lenta, gradual e segura. Segura para eles. Quando esse processo começou a ser chamado de redemocratização, iniciou-se uma nova fase política, sem assassinato, sem tortura, começou a haver um pouco mais de liberdade. Mas muita gente ainda morria de medo. Medo porque, nos tempos da ditadura, o sujeito se reunia com três na esquina e já era considerado subversivo, já era preso. Mas, de forma lenta, gradual e segura – para eles –, começamos a entrar de novo na política. Pessoas como eu voltaram O movimento não é uma estrutura jurídica, tem um objetivo reivindicatório geral, de mudança, e quanto mais gente reunir, melhor. para o Brasil e começaram a fazer política. E política nunca fazemos sozinho. Para mudar alguma coisa na sociedade, temos que nos unir com outros. E o modo que tínhamos naquele tempo para nos reunir era nos partidos. A forma de participar politicamente era entrando em um partido. Isso aconteceu logo no começo da redemocratização. Também começamos a nos candidatar a vereador, a prefeito... O nosso trabalho era identificar as pessoas boas a serem eleitas e os partidos realmente interessados em melhorar a situação do país. Depois, começamos a verificar que não bastava eleger, era preciso ir um pouco mais longe. Era preciso começar a controlar, ajudar e fiscalizar os eleitos, a se organizar de outra forma. Nesse momento, as ONGs e os sindicatos iniciaram uma etapa de participação política diferente do puro envolvimento partidário. Existem diferentes tipos de ONG. Qual é a característica principal da ONG? O nome dela já diz: organização não governamental, organização da sociedade,

não é governo. Cada ONG pode ser fundada por três pessoas, basta definir um objetivo, o tipo de trabalho a ser feito e ter registro em cartório. E qual a característica fundamental da ONG? Ser uma organização sem fins lucrativos. Não é feita para ganhar dinheiro, mas para prestar um serviço social para a sociedade. O grande drama de muitas ONGs que existem hoje é que elas têm fins lucrativos. Existe ONG criada por deputado, porque há uma série de distorções terríveis no Brasil, como as famosas emendas parlamentares, uma forma de o deputado colocar no orçamento uma determinada destinação de verba. Então, ele destina verba para uma ONG cuja presidente é a mulher dele. Existem milhares pelo Brasil feitas para desviar dinheiro. Há ONGs criadas para defender interesses específicos antibrasileiros, como aquelas com raiz nos Estados Unidos, por exemplo. Mas existem muitas ONGs. Temos uma associação, da qual Silvio Bava é um dos fundadores, chamada Abong – Associação Brasileira de ONGs –, que reúne aquelas que querem mudar as coisas. Eu participo de pelo menos umas quatro ou cinco ONGs pequenas e grandes. Tem uma que presta um serviço interessantíssimo há 30 anos, ajudamos na Constituinte, no combate ao desemprego. Também estou na ONG ligada à igreja, da Comissão Brasileira de Justiça e Paz. Além das ONGs, existem os chamados movimentos, que são completamente diferentes. O movimento não é uma estrutura jurídica, tem um objetivo reivindicatório geral, de mudança, e quanto mais gente reunir melhor. Na ONG, já é diferente. Às vezes, para funcionar, é formada por um grupo relativamente pequeno. Hoje, também existe o que não é nem ONG nem movimento, como o nosso Fórum Social Mundial, criado pelo Oded Grajew. É um grupo de ONGs e movimentos que se reuniram e


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disseram: “Vamos criar, mundialmente, um espaço para a discussão dos grandes problemas do mundo e de grandes saídas, superando a lógica do lucro que domina o mundo atualmente. Vamos fazer o mundo funcionar segundo a lógica do atendimento das necessidades das pessoas e não a lógica do crescimento econômico puro e simples. Vamos continuar aprendendo, descobrindo e inventando pelo resto da vida. Quem não está contente com o que acontece tem que começar a acreditar que um outro mundo é possível. Não é só possível como é necessário, é urgente. Nesse processo, cada um de nós faz o que pode. Eu, por exemplo, deixei de ser vereador. No tempo em que fui vereador, achava que podíamos trabalhar na Câmara Municipal. Mas, depois, vi que a relação entre o custo e o benefício era desequilibrada. O custo de trabalhar dentro daquela casa era enorme e o benefício social era mínimo. Então, decidi sair, voltar para a sociedade civil, que é um mar de possibilidades. Nesse mar de possibilidades, tivemos agora mais uma experiência notável: a Lei da Ficha Limpa, que é um processo. Eu escrevi para o jornal Le Monde Diplomatique um artigo que tinha como título: “Participação popular, a cada dez anos um passo”. Muito devagar, a cada dez anos. Mas, objetivamente, o que aconteceu? Na Constituinte, quando a abertura lenta, gradual e segura exigiu uma nova Constituição no Brasil para eliminar as leis autoritárias, foram criados três instrumentos de participação popular: a iniciativa popular de lei, o plebiscito e o referendo. A iniciativa popular de lei consiste em dar à população a possibilidade de apresentar projetos de lei ao Congresso Nacional, desde que assinados por pelo menos 1% do eleitorado. Essa foi uma conquista, na Constituinte, por meio das emendas populares.

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Participei exatamente da apresentação da emenda pela qual esse instrumento de participação entraria na Constituição como iniciativa popular de lei. Os deputados achavam que não conseguiríamos nada e estabeleceram que as emendas precisariam de, no mínimo, 30 mil assinaturas. Só essa nossa emenda obteve 400 mil assinaturas. O pessoal estava mobilizado, era um movimento. Em 1988, a Constituição Brasileira, chamada de Constituição Cidadã, foi feita com muita participação popular e introduziu vários direitos, como esse da iniciativa popular de lei. Em 1992, o Movimento de Moradia apresentou a primeira iniciativa popular para o Congresso com 700 mil assinaturas, naquele tempo 1% do eleitorado era mais ou menos isso. Surgiu a questão da verificação das assinaturas, o que levaria mais de três anos, porque teríamos que enviar cada uma para o cartório para provar sua veracidade. Impossível. Então, teria que ser iniciativa parlamentar, ou seja, algum deputado teria que patrocinar a iniciativa popular. O Movimento de Moradia pediu para um deputado. Um mineiro muito bom, Nilmário Miranda, uma pessoa muito bacana, assinou e virou o patrono daquela ação. Sabe quanto tempo levou no Congresso para ser aprovada a lei correspondente? Dezessete anos. Saiu uma lei boa, bem trabalhada, baseada no projeto do Fundo Nacional de Moradia. Em 1997, quase dez anos depois da Constituinte, com a Campanha da Fraternidade de 1996, Fraternidade e Política, nós identificamos um problemão no Brasil: a famosa compra de votos. Quer dizer, o candidato é eleito com distribuição de cestas básicas, óculos, dentaduras, ou seja, com dinheiro que compra votos. A essa altura, não eram mais 600 mil assinaturas, era necessário 1 milhão, em 1997. Lan-


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çamos a bendita campanha, levamos um ano e meio coletando, chegamos ao Congresso com 1 milhão de assinaturas. O impacto foi tão grande que, em sete semanas, não em 17 anos, conseguimos aprovar a lei, a famosa Lei 9.840. Sabem quantos vereadores, deputados e prefeitos já foram cassados desde que essa lei foi aprovada? Quase mil. Acabamos fazendo uma lei que diz: para ser deputado, tem que ter ficha limpa. Se não contrato um advogado que roubou, por exemplo, como vou contratar um representante político que já tem penas nas costas, de crime doloso, quando a pessoa pratica o crime intencionalmente? A pressão da sociedade criou, então, um movimento de combate à corrupção eleitoral – do qual eu também faço parte – que, agora, conquistou a Lei da Ficha Limpa. E, para a Ficha Limpa, não precisávamos de 1 milhão de assinaturas, precisávamos de 1,3 milhão! Levamos os mesmos dois anos para chegar lá e o entusiasmo do pessoal foi tão grande que entregamos ao Congresso quando comemoramos dez anos da promulgação da primeira. Por isso digo: a cada dez anos um passo. Acabamos fazendo uma lei que diz: para ser deputado, tem que ter ficha limpa. Se não contrato um advogado que roubou, por exemplo, como vou contratar um representante político que já tem penas nas costas, de crime doloso, quando a pessoa pratica o crime intencionalmente? Ou seja, a lei é muito rígida e, ao mesmo tempo, muito cuidadosa. Vivemos uma experiência riquíssima nesse processo porque, em vez de pedir para um deputado assinar, abrimos para todos que quisessem, e 33 deputados assinaram o projeto de lei. Chamamos

todos para várias reuniões sucessivas, para melhorar a lei e deixá-la cada vez mais amarrada. Foram sete meses de trabalho no Congresso. A proposta começou a ser trabalhada por um grupo especial, depois foi retrabalhada na Comissão de Constituição e Justiça. Então, o que aconteceu? Na Câmara Federal, ficou impossível votar contra a lei, embora houvesse no mínimo um terço contra a aprovação. Perguntávamos para os deputados, como essa minoria mandaria na maioria? Isso criou uma tamanha pressão que o projeto saiu direto da Comissão de Constituição e Justiça, sem ser votado, e foi para o plenário para votação. O interessante dessa história é que nós, do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, estávamos lá no Congresso. Fomos em comitiva falar com o Sarney [senador José Sarney – presidente do Senado]. Falamos que agora era com o Senado, que queríamos a mesma celeridade, sem alterações, porque, se houvesse mudança, voltaria para a Câmara. Depois, em conversa com o Temer [deputado Michel Temer – presidente da Câmara dos Deputados], dissemos que a experiência tinha sido tão boa, o entrosamento com os deputados foi tão intenso, que já havia clima, ambiente e massa crítica para a experiência seguinte, a reforma política. Dissemos: “Preparem-se para discutir esse problema. O movimento quer trabalhar uma nova iniciativa popular que mude o que precisa ser mudado.” Nesse processo, o que mais aprendi foi em relação ao poder do Legislativo. Ele tem um poder enorme, segura qualquer prefeito, qualquer governador, qualquer presidente. E nós, infelizmente, estamos longe ainda de descobrir que, na hora de uma eleição, temos que pensar em quem votar para presidente, para governador ou prefeito, mas pensar dez vezes mais em quem votar para deputado e vereador. Aí está o


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poder, a fonte da corrupção e a fonte da impossibilidade, por exemplo, de fazer uma reforma política. Toda mudança depende da nossa capacidade de mobilização. Ou nos mobilizamos, nos juntamos e fazemos o que tem que fazer, ou ficaremos sempre sonhan do com outro mundo possível, porque realmente Na nossa estrutura, o que precisamos é de uma reeducação dos partidos políticos. O jovem precisa entrar lá e tentar fazer com que o partido funcione com outro tipo de comportamento. É possível. os donos do poder vão sempre empurrar mais para adiante, porque eles são privilegiados pelo sistema.

Reeducação dos partidos políticos Faço parte daqueles desencantados com partido político. O drama, na minha opinião, é que ele existe para tomar o poder e essa dinâmica se repete internamente. Ele acaba se transformando numa arena de pessoas querendo o poder dentro do partido, o que torna as alianças muito difíceis. Mas, na nossa estrutura política, você só pode ser candidato se estiver num partido. Não é a mesma coisa em outros países, onde o candidato deve ter o apoio de um certo número de cidadãos. Assim, ele pode criticar o partido com esse grupo, ser candidato e eleito. Na nossa estrutura, o que precisamos é de uma reeducação dos partidos políticos. O jovem precisa entrar lá e tentar fazer com que o partido funcione com outro tipo de comportamento. É possível. No Fórum Social Mundial, quando estabelecemos a carta de princípios, abrimos para a participação de todos, exceto para governos e partidos políticos.

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Isso porque criaria uma competição interna pelo domínio daquele espaço, o que acabaria com o fórum. O princípio do fórum é a horizontalidade, é não ter direção, ninguém que mande, todo mundo é igual e tem a mesma importância. É possível fazer essa horizontalidade, desde que se tenha uma noção de poder diferente. É uma questão de reeducação. E a reeducação interna dos partidos é muito mais violenta, muito mais forte, mas precisa ser feita. Quem entra no partido político tem que viver a vida partidária. Mas, uma vez vivendo, pode perfeitamente exigir. É difícil, porque é o caminho para o poder, e tem uma quantidade enorme de gente que se engaja nisso para ter o próprio poder. As ambições pessoais interferem fortemente na maneira como a pessoa atua. Quem tiver paciência entre, mas sabendo que é preciso introduzir outra ética. Caso contrário, caímos no mesmo problema de luta pessoal pelo poder.



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As alianças no processo de mudança: leitura crítica Padre Ticão

Padre Ticão é presidente da Associação da Casa de Pessoas com Deficiência, integra o Movimento Nossa Zona Leste e realiza trabalhos comunitários na zona leste desde 1978.

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AS ALIANÇAS NO PROCESSO DE MUDANÇA : LEITURA CRÍTICA

“As mudanças acontecem nesse esforço e cada um faz como uma acupuntura, colocando as agulhinhas.” Cada ONG, cada organização, cada liderança é essa agulhinha que faz um tratamento e a pessoa vai se sentindo melhor. No social, acredito que cada um é como um poste que ilumina e nos faz caminhar melhor.

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a minha opinião, uma coisa importante são as alianças. Às vezes, temos uma caminhada muito fragmentada, as entidades ficam isoladas. O que estamos fazendo aqui é justamente refletir em conjunto. Sabemos que mudança exige ampla participação e, agora, estamos num clima de criar alianças, articulações, para descobrir os melhores caminhos. Minha questão é sobre o que Chico Whitaker abordou em relação aos partidos políticos: nossa democracia é centrada nos partidos políticos e esse é o único caminho para chegar ao poder.

Há um encanto das pessoas em participar dos movimentos, das entidades, das discussões, mas há um desencanto diante dos partidos políticos. Não tenho receita, mas precisamos de uma metodologia, de um caminho, que faça com que os partidos se comprometam mais publicamente. Nós caminhamos, avançamos nos movimentos e deixamos de lado os partidos políticos. Há um encanto das pessoas em participar dos movimentos, das entidades, das discussões; mas há um desencanto diante dos partidos políticos. Estamos, há meses, refletindo um pouco sobre isso: como criar uma metodologia que envolva mais os partidos, para que eles assumam compromissos. Não tenho receita, mas precisamos de uma metodologia, de um caminho, que faça com que os partidos se comprometam mais publicamente. Eles estão distantes, há um desencanto da população, dos movimentos, das entidades. Os partidos políticos parecem viver em outro mundo. Mas como a democracia é centrada no partido político, temos que incentivar o interesse, o encanto da população em entrar no partido político também. Como fazer isso? Quais os caminhos?

Acredito que as organizações sociais – nós – tiveram um avanço muito grande aqui na região da zona leste, onde vivemos. Outro dia, Jaime Lerner2 dizia: 2. Jaime Lerner é arquiteto e urbanista. Foi governador do Paraná por duas vezes e prefeito de Curitiba por três vezes.



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Debate

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Walter: sou membro do Fórum de Desenvolvimento da Zona Leste e professor de História em São Miguel Paulista. Comecei a dar aulas há 25 anos. Sou filho de operário que trabalhou mais de 20 anos numa fábrica de papel, para fazer livros e jornais, e morreu analfabeto. Li vários livros que meu pai não pôde ler. Com base nessas leituras, quero apresentar umas questões para a mesa. Estamos juntos no Movimento Nossa São Paulo, ajudando a construir o Movimento Nossa Itaquera. Sabemos da importância dessa aliança. Temos uma longa caminhada. Para dialogar um pouco sobre o que foi falado, Milton Santos, citado durante uma das apresentações, foi um dos maiores intelectuais brasileiros e falava muito sobre o poder do dinheiro e da informação. Milton Santos também falava da perversidade. Mas acredito que, talvez, seja conveniente lembrar que esse sistema perverso tem um nome: capitalismo. Hoje, temos uma grande ideologia que Milton Santos chamava de pensamento único, que esconde o capitalismo, esconde a luta de classes. Parece que não existem mais classes, não existe mais classe trabalhadora. Meu pai foi o último operário? Será que não existe mais operário aqui em São Paulo ou no Brasil? Precisamos sempre lembrar que existem contradições muito sérias e a questão ética da política individual, mas não podemos esquecer a ética de um sistema que é, na base, injusto, desumano, o sistema capitalista. Como as nossas ONGs consideram as desigualdades das classes sociais? Esse assunto de fato está enterrado, é do século passado, do outro milênio, ou é um assunto que permanece atual? Ana Martins: sou da União Brasileira de Mulheres. Aos 70 anos, ainda busco o melhor caminho para construirmos uma nova sociedade. Nós temos a missão de construir algo que vá além do que existe,

porque isso não nos satisfaz. Uma grande parte da população ainda é conservadora, mas não é à toa, porque as instituições são conservadoras. A justiça é conservadora. As universidades são conservadoras. Quanta riqueza existe dentro dessas universidades e elas estão fechadas, bloqueadas, sem nenhuma interação com a população? A igreja também é conservadora. A igreja que nos fortalece e nos ajuda a fazer avançar é a progressista. Fico procurando na história, sempre para me reanimar, para tocar a nossa luta para frente, o que nos aponta sinais positivos e nos ajuda a avançar. Se João XXIII estivesse aqui, ele diria que o Fórum Social Mundial foi um sinal dos tempos, porque buscou a unidade de tudo aquilo que tinha de melhor para refletir sobre os problemas do mundo, porque sem unidade não tem avanço. O que aconteceu com os partidos políticos no Brasil? A sua grande maioria é conservadora e os novos, que surgiram dos anos 1980 para cá, passaram a repetir a prática conservadora, que prejudica a população fazendo clientelismo. O que se constrói com profundidade, gerando justiça e mudança, exige tempo, participação. Por isso, queremos dos partidos um programa que trabalhe os grandes interesses do povo e do país, capaz de fazer avançar a consciência política da população, para que ela não caia nas mãos de políticos aproveitadores. Aqui, na nossa região, é triste quando setores evangélicos e católicos aceitam dinheiro para levar políticos a missas e a cultos. É preciso combater o conservadorismo. Quero sugerir a construção de um debate entre partido político e movimento social. Eu sei, Chico Whitaker, o quanto é difícil participar da Câmara Municipal e da Assembleia Legislativa, como vereador e deputado. Mas o Legislativo, como você bem disse, tem um poder importante, com capacidade para ajudar os movimentos sociais a promove-


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rem algumas transformações e avançar. Temos sinais positivos: as lideranças que surgiram nessas instituições, mesmo que conservadoras. Por que existe a Associação de Juízes pela Democracia? Isso não é um sinal dos tempos, no raciocínio de João XXIII? Por que existe um Ministério Público democrático? Não são os promotores que têm um compromisso com a população? Por que existem um Ticão e outros padres que também se comprometem com o movimento social? Por que existem lideranças de ONGs que querem compromisso e não se aproveitam do poder? Por que existem militantes de partidos políticos que são incentivadores dos movimentos sociais? Isso tem que crescer, tem que avançar. Por isso, não podemos opor o povo ao partido político. Temos que opor aos vícios, aos conservadorismos, à política do toma cá da lá. Não podemos ter militância em ONG, em partido e na igreja sem comprometimento com os movimentos sociais, porque são eles que constroem o novo, trazem inovações e vão ajudar a construir uma nova sociedade. Cada um tem a sua opção, defende o que acredita ser melhor, mas uma sociedade justa e fraterna nós somos e temos a capacidade de continuar persistindo e ajudar a construir uma nova sociedade. Para mim, a socialista. Mas, se tivermos uma alternativa, vamos construí-la. Luis França: sou do Movimento Nossa São Paulo, do Movimento Nossa Zona Leste e do Jornal Voz da Comunidade. A grande utopia hoje, aqui na zona leste da cidade de São Paulo, como militantes, é a gestão administrativa da cidade. É inadmissível, numa cidade com 11 milhões de habitantes, apenas uma pessoa definir seus rumos. Coloco essa questão para nossas ONGs, para nossos movimentos. A administração da cidade deve ser novamente colocada no debate político, senão não avançaremos. É preciso descentralizar o poder político de São Paulo para pro-

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pormos isso para um novo Brasil também. De repente, mais para frente, sonharmos com a descentralização política do estado e do próprio governo federal. Aqui na zona leste, estamos propondo um debate. Inspirados no Nossa São Paulo, denominamos como Projeto de Planejamento Zona Leste 2022. Estamos criando, a partir de ações das políticas públicas na região, o caminho para colocar a zona leste no foco do debate político até o ano 2022, procurando melhor qualidade de vida para a população da região. As entidades, os movimentos, as lideranças têm que fazer parte desse contexto, senão a coisa não acontece. Não adianta esperar. São as lideranças que alavancam e estimulam o povo a participar do debate. Temos governos que são eleitos e não governam com o povo, se acham donos da verdade e falam que vão fazer coisas para o povo. Não pode ser para o povo, tem que ser com o povo. Por isso, as entidades, os movimentos, as lideranças têm que estar presentes. No projeto da Zona Leste 2022, corremos atrás de patrocinadores para lançar uma revista com 50 mil exemplares, para que a maioria das lideranças, das escolas e das entidades faça parte desse debate e acompanhe o desenvolvimento dessas propostas. Focamos muito nessa questão do planejamento por causa do projeto Parque Várzeas do Tietê, na zona leste. Somos favoráveis, mas esqueceram de fazer o projeto habitacional para a população do entorno. Isso se chama falta de planejamento, falta de sentimento e de carinho com o povo. E mais um detalhe sobre esse programa da várzea do Tietê: tivemos as enchentes deste ano, o caso foi muito comentado pela imprensa e, depois, não apareceu mais nada nos jornais. Na próxima enchente, o governador não aparece, o prefeito não resolve nada, o problema é esquecido e a população, de novo, perde. Então, temos que fazer parte do debate político, sempre pontuando essas questões.


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É importante debater o poder da comunicação aqui no Brasil. Temos políticos envolvidos nos maiores grupos que formam a opinião pública. Lá nos Estados Unidos, o New York Times tem definida sua posição ideológica, a população sabe qual é. Aqui, os meios de comunicação escondem para quem trabalham e ainda utilizam-se do poder para fazer a cabeça da população. Para finalizar, quero falar que concordo com você, Chico Whitaker, sobre as dificuldades para participar de partido político, mas o modelo político no Brasil exige partidos políticos. O partido político, as igrejas, as ONGs têm que privilegiar as pessoas de bem. Se as pessoas do mal estão ocupando espaço das pessoas de bem, nunca vamos melhorar a nossa sociedade. Então, não adianta sair de um partido político sem provocar um debate interno. Alessandra: faço parte da Associação Amigos de Bairro da Cidade Nova. Sou diretora da creche Golfinho Dourado. A questão de o prefeito ter 90 dias para apresentar novas metas para a educação, no caso da creche, fica muito fácil. Isso porque é feito um convênio com uma entidade, que fica com a responsabilidade de arcar com 60% da despesa. Assim, a Prefeitura investe 40% do recurso. Ela paga parte da alimentação, o aluguel da casa e a folha de pagamento. Porém, todo o material pedagógico, os brinquedos, a proposta cultural e de educação ficam para a entidade. Por isso que muitas creches abrem e, depois de seis meses, fecham. O motivo é esse. Convido a todos para participarem do debate dessa questão das creches em São Paulo. JB: tenho uma pergunta para o Oded Grajew em relação ao plano de metas para a cidade de São Paulo, sobre os indicadores, que são maravilhosos e nos

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norteiam. Queria dar o exemplo do Jardim Helena, um dos IDHs [Índices de Desenvolvimento Humano] mais baixos da cidade de São Paulo. Qual a expectativa, com todo esse trabalho, para um distrito que tem 160 mil habitantes e uma precariedade muito grande na questão da saúde? Célia: sou secretária de movimentos do PT, do Partido dos Trabalhadores. Queria ressaltar a fala do Silvio Bava. Ele resgatou nossa história de São Miguel Paulista, especialmente a questão da saúde. Temos militantes que fizeram essa história, mas que também podem contribuir ainda mais para melhorarmos a questão da saúde. Espero que consigamos fazer mais dessas reuniões e pensar na questão de um fórum social da zona leste. Precisamos realmente constituir uma relação e o fórum talvez seja o caminho. Proponho aos integrantes dessa mesa que nos ajudem a fazer esse fórum social e a pensar na construção de uma outra zona leste. Esse momento de debate é importante e temos que continuar. Cláudio Gomes: participo de um grupo de teatro com pessoas de mais de 60 anos e do IPDESH (Instituto de Pesquisa em Desenvolvimento Social e Humano). Acho fundamental que cada instituição presente aqui, cada grupo, coloque na sua pauta o trabalho com os jovens. Como trazer os jovens para assumir os destinos da nossa sociedade. Porque quando todos nós, há 17 anos, estávamos começando a participar desses movimentos, tínhamos os nossos 25 anos. Quem vai construir um mundo novo são os jovens, isso é claro para todos. Outra questão: cada um deve assumir o desafio de pautar em todas as ações das instituições a criação de instrumentos de informação, de comunicação. Nós precisamos discutir cultura, tecnologia, arte e informação. Esses são os dois desafios que sugiro que coloquemos nas nossas pautas daqui por diante.


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RESPOSTAS Silvio Caccia Bava: precisamos entender como o sistema funciona hoje para podermos compreender como se dão essas contradições. Se vocês olharem, por exemplo, para o começo dos anos 1980, havia uma força enorme do operariado, que se expressou nas greves metalúrgicas do ABC e depois foi se alastrando pelo Brasil inteiro. O que foi um impulso para sairmos da ditadura e entrarmos no processo de redemocratização. Nesse caso particularmente, essa liderança operária se fez presente e foi muito importante, determinante. Agora, estamos vivendo uma transformação muito grande no mundo. A categoria dos bancários, por exemplo. Ela foi reduzida enormemente por conta do caixa eletrônico, da internet, dessa tecnologia que dispensa mão de obra. Hoje, as fábricas modernas de automóveis têm muito robô e menos trabalhador, operário. Hoje em dia, o setor de serviços é maior do que o de trabalhadores em fábrica. Mudou muita coisa, o mapa dos conflitos ganhou novas configurações. Então, começamos a perceber que existem novos movimentos e lutas, como a do MST [Movimento dos Trabalhadores Sem Terra] pela reforma agrária. Vocês ouviam falar dos Quilombolas cinco anos atrás? Há cinco anos, não tinha esse assunto, temos novos atores. Há dez anos, a primeira Parada Gay em São Paulo reuniu 10 mil pessoas, hoje são de 3,5 milhões a 4 milhões. Nós precisamos entender que os movimentos contra as discriminações tiveram um grande avanço durante esses últimos dez anos, como o movimento negro, por exemplo. Não é só o operário, não é só a dona de casa, não é só o negro, é todo mundo junto. Recentemente, participei de uma pesquisa na América Latina, de uma

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rede de ONGs, que mostra o mapa dos conflitos hoje, passando, por exemplo, pela defesa dos recursos naturais e do meio ambiente, pela universalização de alguns bens que são privados e deveriam ser públicos. A água, por exemplo, tem que ser um bem público. É um absurdo pagar pela água, para tomar água. Há políticas que precisam mudar. Tomem um exemplo: o transporte no Brasil, o seu financiamento é custeado pela tarifa paga pelo usuário, pela passagem. Em muitos países, o financiamento dos transportes sai dos impostos gerais. Então, não apenas temos exemplos de fora para identificar alternativas para os conflitos, como temos que fazer uma leitura desses conflitos: quem está brigando, quem está lutando por direitos, quais alianças estão sendo feitas e como essas alianças nos fazem avançar para uma cidade mais justa, mais democrática. Quero ressaltar a importância de desenvolver iniciativas de discussão sobre a zona leste no futuro. A ideia da utopia não é uma discussão de ideias soltas. É botar em marcha um processo que convide as pessoas para participarem e discutirem como elas querem o futuro. A formação é isso. Formação não é dar um curso sobre a sociedade ou sobre como se produz a desigualdade. A informação deve dialogar com as aspirações e os problemas de cada região, de cada território, e dizer assim: como resolver isso coletivamente, como apresentar nossas demandas de descentralização, de participação, de conselho de representantes, de planejamento participativo, de controle social sobre o que vem sendo feito em cada subprefeitura, para que possamos nos sentir participantes da construção de um futuro. Obrigado. Oded Grajew: quero fazer algumas observações. Primeiro, Chico Whitaker falou com muita


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propriedade da questão dos partidos políticos e da cultura do poder que contamina os partidos, fazendo com que o poder seja mais importante do que as suas missões. Mas isso não é exclusividade dos partidos políticos. A cultura da competição e do poder é reinante hoje na sociedade. Ela perpassa todos os segmentos da sociedade – os sindicatos, as ONGs – que competem entre si, o sistema econômico e, certamente, as relações humanas. Então, há essa cultura do poder e da competição versus a cultura da solidariedade, da alteridade, da fraternidade, da horizontalidade. Isso está levando o mundo a uma situação de impasse. E, se acreditarmos nos cientistas, há o risco da própria extinção da espécie humana, o processo pode resultar irreversível, como o câncer, em pouco tempo. Podemos acreditar ou não, mas acho melhor acreditar. Então, temos pela frente um desafio enorme que pode ser resolvido pela prevenção. Depois que as coisas acontecerem, poderá ser tarde demais. O Instituto Ethos fez recentemente uma conferência sobre responsabilidade social empresarial. Foi muito interessante. Vieram representantes do governo cubano, da sociedade, do partido comunista. Fizemos um encontro, inclusive, com algumas fundações norte-americanas que têm enorme interesse em mudar as relações dos Estados Unidos com Cuba. E eles estão com a mesma perplexidade, requestionando o sistema, não do ponto de vista de seus valores, mas do seu funcionamento. Como fazer, ao mesmo tempo, uma sociedade socialista e democrática? E como construir um sistema econômico socialista com eficiência econômica e respeito ao meio ambiente? Questionando todo o sistema, todo o modelo. Da mesma forma que temos um sistema capitalista que está levando a catástrofes e que não resolveu o problema da desigualdade nem da sustentabilidade do planeta.

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Nós temos vários avanços e Silvio Bava colocou alguns bem interessantes e importantes, inclusive exemplares. Mas precisamos de algo muito mais forte e com muito mais gente, como disse Chico Whitaker. Precisamos de uma mudança de modelo cultural, de pensar a sociedade, porque vivemos atualmente o que nunca foi vivido pela humanidade. Nunca ninguém imaginou que o planeta tivesse limites. Isso nunca foi levado em conta. O planeta provinha qualquer coisa – água, ar, comida. A Terra nunca foi ameaçada. Muita gente morre de fome, na guerra, mas a espécie humana nunca foi ameaçada. De repente, algo novo está acontecendo, ameaças concretas para a existência da espécie humana: mudanças climáticas, esgotamento dos recursos e das riquezas naturais, transformação de terras férteis em desertos. Isso é absolutamente novo. E, se continuarmos do mesmo jeito, não sabemos onde isso vai dar. Temos uma oportunidade de repensar tudo, não repensar valores, nem justiça social, nem direitos humanos, não é nada disso. Esses são valores eternos. Mas de pensar neste novo contexto, no que almejamos em termos de sociedade. É um desafio enorme que temos pela frente. Um desafio que, às vezes, faz com que fiquemos paralisados. O que fazer diante de tudo isso? É muito importante pensar no local, no que está ao nosso alcance, porque muita ação localizada, na sua multiplicação, se torna universal pela sua exemplaridade, pela experiência que pode resultar em ações concretas. A ideia é montar conexões e relações de redes para que ações locais, que estão ao alcance das pessoas, não causem paralisação diante da grandiosidade do desafio. Fazer no local para entender que está conectado numa rede. Por exemplo, as decisões são tomadas quando você distribui os recursos. É como na vida da gente, na nossa casa, no


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orçamento, o que faço com meus recursos – tempo, dinheiro e assim por diante. É aí que as coisas são decididas, é o exemplo concreto para definir prioridades e ações. O debate e a discussão orçamentária pública no Brasil pela sociedade são pífios. Quando se decide o orçamento da cidade de São Paulo, o acompanhamento é feito apenas por aqueles que se interessam, geralmente aqueles que querem abocanhar o orçamento público. Vocês viram que, na campanha eleitoral, o setor imobiliário colocou muito dinheiro na candidatura de vereadores, prefeito. Por quê? Porque eles querem retorno. Na Marginal Tietê, foram colocados R$ 2 bilhões para alargar as avenidas para os carros passarem e distanciar ainda mais o rio da população, que está querendo nadar e pescar. Você consegue chegar ao rio, mesmo poluído? Não! Enquanto isso, foi anunciado aos quatro ventos que R$ 1 bilhão foi colocado no Metrô. O que foi privilegiado? O transporte coletivo, para a maioria da população, ou uma obra feita rapidamente para o transporte individual? Mas isso foi decidido, tiraram do orçamento, e a cada ano é discutido o orçamento da cidade de São Paulo. Para onde vão os recursos? Para a saúde, para a educação, para o transporte público ou para pontes e avenidas, obras de interesse de algum financiador de campanha? O orçamento é decidido em audiências públicas, na Câmara Municipal. Os vereadores decidem, mas é importante eles sentirem que a população está em cima e sabe o que vai ser discutido e votado. Por isso, uma mobilização importante da sociedade, uma tarefa muito importante para a comunidade, é participar da decisão sobre para onde vão os recursos. É muito importante fazer uma discussão geral, colocar as coisas em prática e ao alcance das pessoas e fazer com que isso seja possível.

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A Lei da Ficha Limpa foi possível porque as pessoas entendem, sabem da necessidade e estão em rede – 1,7 milhão de assinaturas não foram recolhidas uma a uma, existiu uma rede. A tarefa importante do Fórum Social Mundial é a construção das redes, é ligar as pessoas, conectar as organizações, formar uma infraestrutura social que permita que iniciativas isoladas possam se tornar grandes, universais, nacionais, regionais, municipais. A tarefa de se conectar de forma generosa, sem querer tomar conta das redes, é a cultura do poder. Permitir que as redes funcionem de forma espontânea e voluntária, quem quer se unir com o outro não precisa pedir autorização para ninguém. Ninguém chega lá e manda todo mundo seguir uma direção. As redes e os encontros são feitos espontaneamente, voluntariamente, por afinidade. Essa arquitetura social é uma tarefa importante para nós. É diferente da piramidal, hierárquica, autoritária, da arquitetura do poder que queremos combater. Quanto à questão do Jardim Helena, o próximo prefeito ou prefeita terá que apresentar metas. É importante que vocês se reúnam e cheguem a um consenso das metas a serem estabelecidas na próxima eleição para o Jardim Helena. Vivemos em novos tempos, se fala muito em educação de qualidade para todos, não é isso? O desafio hoje é reformular todo o sistema educacional, o currículo, para preparar as pessoas para serem cidadãs, para atuarem nesse outro mundo possível. Como um engenheiro pode fazer construção sustentável, como o médico pode ser o médico no sentido amplo das terapias e como cada um deve ser um cidadão acima de tudo? Por exemplo, como introduzir o Jardim Helena no currículo escolar? Quem conhece o Jardim Helena? Você acha que o Jardim Helena é ensinado nas escolas públicas ou privadas e na escola chamada de qualidade em São Paulo? Vamos lá à escola de quali-



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dade perguntar o que eles conhecem sobre o Jardim Helena, o que conhecem da sua cidade. Então, um desafio enorme é reformular as coisas diante desse novo mundo que temos. Depende de nós. Obrigado pela oportunidade de estar aqui.

Padre Ticão: hoje, muitas “agulhinhas” estão nas nossas mãos e muitos “postes” podem iluminar melhor. Com o Movimento Nossa São Paulo, estamos em articulação. Podemos, em cada subprefeitura, organizar mais o Movimento Nossa Zona Leste, conectado com o Movimento Nossa São Paulo, porque não adianta ficar isolado. Hoje, refletimos bastante sobre como superar essa fragmentação, esse isolamento. A segunda questão é a da universidade sobre a que Oded Grajew falou. A USP Leste, com o apoio da Fundação Tide Setubal, está começando um cursinho preparatório para mil jovens aqui na zona leste. Então, poderíamos discutir um pouco o que Oded falou. Como fazer para que esses jovens possam conhecer e se envolver em questões como a do Jardim Helena? Sabemos que é um desafio, mas é possível. Francisco Whitaker: há tanta coisa para falar, mas pegarei o ponto do Fórum Social da Zona Leste, uma outra zona leste é possível. A ideia está lançada. É interessante porque o método do Fórum Social Mundial é exatamente trazer todo mundo que queira aprender uns com os outros, para descobrir convergências e seguir em frente. Como disse anteriormente, não é nem uma ONG nem um movimento, mas um espaço em que se cria, que aqui, em São Paulo, está amadurecendo. Já temos a ideia

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de criar um fórum de São Paulo no ano que vem. Já existe na zona sul o fórum social. O fórum tem sido uma ocasião de muita atração para os jovens e, nessa perspectiva, entra o aspecto da cultura, das atividades culturais, que também são uma maneira de se exprimir politicamente. Então, digo força e coragem, para frente, que somos muitíssimos. Mas muitos de nós estamos adormecidos, precisamos acordar mais gente e fazer com que acreditem na nossa utopia de outro mundo possível, necessário e urgente.


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