A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples

Page 1

Universidade de São Paulo Escola de Comunicações e Artes Departamento de Artes Cênicas

A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples

Relatório Científico Final

Orientando Graduando em Artes Cênicas

Lucas Freitas Peixoto Paz

Orientação Professor Doutor

Antônio Carlos de Araújo Silva

Campo de Pesquisa Projeto de estudo e pesquisa da área de Artes Cênicas

Pesquisa Específica Projeto de estudo e pesquisa sobre a arte da performance investigada em espaços públicos Projeto de Pesquisa sob amparo FAPESP a Iniciação Científica

São Paulo 2012 1


SUMÁRIO RESUMO

3

RESUMO EXPANDIDO

4

INTRODUÇÃO

7

1 DA REFLEXÃO TEÓRICA ENTRE ARTE, MÍNIMO GESTO, AÇÃO SIMPLES E COTIDIANO

13

1.1 TROPEÇANDO COM LATÊNCIAS ARTÍSTICAS NO DIA-A-DIA 1.2 REPENSANDO O ESPAÇO URBANO COMO TRÂNSITO DE RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS 1.3 A ARTE INSERIDA NO FLUXO: “VALOR DE USO” OU “VALOR DE TROCA”? 1.4 ROTINA: PEQUENOS RITUAIS DO DIA-A-DIA

13 16 25 36

2 A PERFORMANCE EM ESPAÇOS PÚBLICOS A PARTIR DO MÍNIMO GESTO OU DA AÇÃO SIMPLES COMO LINGUAGEM ARTÍSTICA 39 2.1 DEFINIÇÃO TENTATIVA DE TERMOS 39 2.2 DOS PROCEDIMENTOS PRÁTICOS UTILIZADOS 49 2.3 ARTISTA-EXPOENTE DO MÍNIMO GESTO E DA AÇÃO SIMPLES: A PERFORMANCE DE FLÁVIO DE CARVALHO NO MODERNISMO BRASILEIRO 61 2.4 EXPERIMENTOS PRÁTICOS 86 2.3.1 EXPERIMENTO I: VIA PÚBLICA- TÚNEL PAPA JOÃO PAULO II 89 2.3.2 EXPERIMENTO II: PATRIMÔNIO PÚBLICO, MONUMENTO HISTÓRICO – THEATRO MVNICIPAL 113 2.3.3 EXPERIMENTO III: INSTITUIÇÃO PÚBLICA - CEPEUSP 151 2.3.4 OUTROS EXPERIMENTOS PRÁTICOS SOBRE O MÍNIMO GESTO E A AÇÃO SIMPLES EM ESPAÇOS 165 PÚBLICOS PARTICIPAÇÕES EM CONGRESSOS E SIMPÓSIOS

180

CONSIDERAÇÕES FINAIS

200

REFERÊNCIAS

205

ANEXOS

209

OBSERVAÇÃO IMERSIVA E PROTOCOLO OBSERVACIONAL 209 ENTREVISTAS COM PROFISSIONAIS E PARTICIPANTES DOS EXPERIMENTOS PRÁTICOS 245 ENQUETES REALIZADAS COM PÚBLICO DO EXPERIMENTO III: INSTITUIÇÃO PÚBLICA-CEPEUSP 325 REGISTROS FOTOGRÁFICOS DOS TRÊS EXPERIMENTOS PRINCIPAIS DA PESQUISA 341 CONCEITUAÇÃO DE AÇÃO E GESTO POR PAVIS EM DICIONÁRIO DE TEATRO 425 ARTIGOS REFERENCIAIS 432

2


RESUMO Este é um estudo qualitativo acerca da crescente privatização e desincorporação do espaço público, suscitando em seguida a possibilidade de se repensar a construção e manutenção deste através de um viés artístico, para além de questões exploradas pelo urbanismo. Neste caso, explorando a performance através de ações simples e mínimos gestos no espaço público, como forma potente de estabelecer trocas intersubjetivas em espaços do cotidiano de fluxo constante.

3


RESUMO EXPANDIDO O projeto de pesquisa intitulado A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples tem caráter qualitativo. Foi realizado um estudo acerca da crescente privatização e desincorporação do espaço público suscitando em seguida a possibilidade de se repensar a construção e manutenção do mesmo através de um viés artístico, para além de questões exploradas pelo urbanismo. O estudo explorou a relação teórica e prática entre performance, mínimo gesto ou ação simples e espaços públicos, observando de maneira imersiva 1 as diversificadas dinâmicas sociais características de três espaços públicos da cidade de São Paulo -Túnel Papa João Paulo II 2 , Teatro Municipal 3 e CEPEUSP 4 , atentando para os diferentes graus do caráter público que se estabelece em cada um deles. Essa relação foi construída com artistas e cidadãos (passantes e habitantes de vias, monumentos e instituições), através do desenvolvimento de ações artístico-performáticas que se fundem ao cotidiano por uma expressividade sutil. Se não encaradas como um ruído quase invisível, é possível perceber que carregavam um efeito em potencial de estranhamento da realidade na relação intersubjetiva estabelecida entre performers e cidadãos, ao trabalhar sobre aspectos como duração, repetição e dilatação extra-cotidiana das ações simples e dos mínimos gestos no tempo e no espaço. Foram realizadas entrevistas com cidadãos e artistas, dentre os quais: a professora doutora Helena Bastos, do Departamento de Artes Cênicas da USP, com pesquisa sobre a escuta corporal e a sutileza dos movimentos na dança contemporânea; o professor doutor e ator pesquisador do LUME, Renato Ferracini, com pesquisa em curso sobre micropercepção; o grupo OPOVOEMPÉ, com pesquisa em intervenções urbanas, teatro e performances através de uma linguagem que explora o mínimo de elementos e ações. Realizamos também entrevistas e observações dos participantes e espaços envolvidos no estudo, descrições detalhadas das dinâmicas sócio-espaciais e dos procedimentos utilizados, e análises das práticas realizadas.

1

Como o fazem as correntes etnográficas contemporâneas, buscando se inserir e se relacionar com o contexto observado ao invés de uma observação distanciada. 2 Via pública. 3 Monumento histórico e patrimônio público. 4 Instituição desportiva vinculada a USP

4


Como procedimentos e métodos de criação para as práticas artísticas utilizamos: escrita em fluxo de pensamento, roteirização, “práticas cruas” 5 , entrevistas, assistir filmes, espetáculos, exposições e ler livros relacionados aos nossos temas, inscrição e escritura corporal no espaço, procedimentos de dança, programa de ação, improvisação e vivências. Para coleta e análise de dados estabelecemos quatro filtros: observação imersiva, autoria, silêncio, ação. Aqui foi relevante debruçar-se sobre algumas obras do artista Flávio de Carvalho, para em seguida analisá-las comparativamente às práticas realizadas, e mapeá-las através de um fluxograma com critérios adotados para a divisão e os agrupamentos, de acordo com os aspectos relevantes à investigação proposta: relação espaço-temporal estabelecida no espaço público (data, lugar, observação imersiva, inscrição e escritura corporal, duração, repetição, ritmo, energia), relação intersubjetiva proposta entre performer e cidadãos (performatividade, presença, “valor de troca”), trabalho sobre o mínimo (gestos, ações, elementos e signos). Como promover com mais recorrência experiências artísticas nos espaços públicos que apontem para um “valor de troca” que esteja pautado não numa relação econômica, mas social, filosófica, intersubjetiva? Este é o ponto central de nossa investigação. Como o mínimo e o simples no campo da arte podem atravessar a complexidade, a extravagância e o excesso da vida urbana espetacularizada? A hipótese com a qual trabalhamos para responder a este questionamento foi a de investir sobre aspectos que denominamos como contra-fluxos do espaço público urbano: invisibilidade, dilatação, silêncio, sugestão simbólica através do corpo e dos elementos utilizados, ações cotidianas que deslocadas de seu contexto original revelam sua potência artística. Através do próprio fazer artístico nos experimentos práticos realizados, efêmero diante da rotina dos espaços públicos em questão, a provocação reflexiva que lançamos é: Como re-incorporar a cidade? Quais as possíveis maneiras de habitar o espaço público de modo a ultrapassar as relações instrumental e funcional que lhe são próprias para construir relações sociais, encontros, trocas de experiências? O material resultante desta pesquisa com lente teórica investigativa pautada na área de conhecimento das artes cênicas e performativas, tangencia algumas noções de arquitetura e urbanismo e da antropologia, ao se debruçar sobre os ritmos, as formas de apropriação dos espaços, as relações sociais e culturais estabelecidas entre os passantes, habitantes, usuários e trabalhadores próprios destes mesmos espaços. 5 Ações

a serem realizadas sem ensaio prévio.

5


Palavras-chave: Performance; mínimo gesto; ação simples; Investigação artística de espaços públicos; Inscrição e Escritura corporal no espaço; Espaço urbano; Entre-lugares; Relação efêmera com espectadores; Repetição.

6


INTRODUÇÃO “Entre” “Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização” (DELEUZE e GUATTARI, 1997, p. 51-53, apud FERRACINI, 2010, p.19; JACQUES & JEUDY, 2006, p.122). “Do lugar onde estou já fui embora” (BARROS, 2010, p. 348).

Na condição de viajante, de nômade é que me vejo. Ser em mutação a cada segundo. Ser que busca no outro, no desconhecido, no devir a si mesmo. É assim que após sucessivos “partires” e “adeuses” retorno a cada vez a mim, habito o “entre”, constante trânsito “entre” lá e cá. Assim foram, ficaram em meu corpo-cidade, Fortaleza, Europa, Argentina, Austrália, Campinas, Bertioga, universos inteiros que me passeiam o ser corpográfico6, o qual habita por ora este “país” São Paulo. Nesta travessia de cada dia, ao ancorar por aqui haveria de descobrir um possível campo de jogo para a arte (vida) que me permite renaScER em mim e no outro, a performance. É descobrindo o trabalho de grupos e artistas como Marina Abramovic, Flávio de Carvalho e La fura dels Baus - os quais se lançam com dedicação e consciência dos riscos que correm para problematizar questões e propor novas possibilidades de existência - que me desafio enquanto artista a sair do lugar comum o qual já reconheço em mim e no trabalho artístico que realizei ao longo de 18 anos, para experimentar este “entre-lugar” que a performance me instiga a compartilhar, de experiências com outras pessoas de maneira não necessariamente mais direta, mas mais próxima entre seres. Antecedentes Ao analisar esta minha trajetória eu diria que a performance já estava presente no meu primeiro trabalho artístico no teatro. Aos meus seis anos (1995) eu ERA o Power Ranger Azul, minha imaginação me assegurava que sim. Para minha certeza de criança não vestia um personagem, esta era senão uma de minhas tantas facetas, simplesmente agia. E não para minha surpresa, no meu primeiro espetáculo7 éramos convidados pela diretora a ser quem 6

Ambos os termos, tanto corpo-cidade, como corpográfico são de autoria de Paola Berenstein Jacques (2006) Teatro Baú da Fantasia do Colégio Cooperativo de Fortaleza, chamado “É tempo de ouvir histórias”, sob direção de Socorro Machado. 7 No

7


éramos em cena, estes eram nossos “papéis”, contando diversas histórias que passeavam pelo nosso imaginário, não sem nosso próprio texto autoral por ela adaptado e por nós decorado. Esta ocasião lembra-me um pouco “Pirlimpsiquice” de Guimarães Rosa, em que brincar de ser já é simplesmente ser, reinventar-se a cada segundo em relação com estes outros que habitam dentro e fora de mim. Eu, Power Ranger Azul na vida real, ia como eu mesmo para o faz de conta da peça de teatro, não havia como ser diferente de VIDA. “sua imaginação que cria o que quer” (Stefan Brecht, The Theatre of Visions, p. 222 apud GALIZIA, 1986, p.18). Durante alguns anos o irmão de minha amiga, que assistiu a peça também tinha esta certeza que eu era o Power Ranger Azul. Onde morava esta certeza? Simples imaginação da criança? Acreditamos que mora na performatividade, de não separar ser e agir, mora na ação, esta metamorfose ambulante, eu ERA o Power Ranger Azul. Outra ocasião que hoje identifico a performance entrando em minha vida, antes que a chamasse por algum outro nome que não a própria vida em cena (em ação, em relação), foi um exercício cênico proposto pelo professor Joca Andrade, da disciplina Interpretação do Curso de Artes Dramáticas da UFC (Universidade Federal do Ceará) em 2007. Seguindo o programa proposto, dentre uma seleção de frases escolhidas pelo professor, uma seria sorteada ao acaso para cada ator. Fui sorteado com a frase: “O Calvário do Inocente que habita em mim”, e apresentei as seguintes respostas ao exercício8: >Explosão de ideias sobre o tema: A devassidão, o desespero por abandonar o velho e se deparar com o novo: nu, cru, sem invólucros. Enterrar-se no desenterro da carne. Arrancar as raízes. A redoma de vidro quebrada. Mumificação, aprisionamento, sufocamento, incapacidade, tentativa de se inocentar, invalidez. Trapos atados à boca, ao sexo, às mãos, aos pés, apela para que tirem o trapo da boca, para que ele fale, está de cabeça para baixo. Creio em Deus Pai sem o “amém” (“amém” significa “que assim seja”). Posição fixa de desconforto com pernas apontando para frente e braços abertos lateralmente em cima de “altar de isopor” passando instabilidade e tortura. Olhar fixo chamando, implorando socorro. >Compreensão da frase: A partir da mesma pude identificar duas leituras: *o sofrimento, a morte, o expurgo ao inocente que habitava nele, o esquecimento ou a superação de um passado em que ele se arrependeu por ter sido bom, inocente, “bobo” demais, o início de uma nova fase. * Leitura da qual me apropriei e explorei: alguém sendo duramente julgado por suas atitudes, por seu comportamento, por suas crenças, por seu ser. Sendo apontado negativamente. E ele tenta com a última de suas energias, com toda a sua força provar que ele não tem que provar nada, que ele é para ser feliz do jeito que ele é, sem ter de satisfazer a vontade alheia, numa posição de total fraqueza e

8

Quem vos falava àquela época era um garoto de 18 anos de família cearense de classe média.

8


quase de submissão, mas resistindo à entrega, ele deseja não ser julgado, quer provar sua inocência. >Concepção cênica definitiva: Um homem com vestes brancas que cobrem o sexo e papel higiênico cobrindo a boca encontra-se desacordado e de cabeça para baixo apoiado pela cabeça e braços sobre um pedaço de isopor (da realização da “cena” eu fiquei somente com a cabeça apoiando o resto do corpo, com os braços abertos em cruz, punhos cerrados e pernas na vertical, crucificado de cabeça para baixo, referência bíblica). Abre os olhos vagarosamente e se depara com um ambiente estranho cheio de pessoas, quase como um “rei dos tolos” exposto em praça pública. Depois de começar a compreender a situação ele tenta erguer-se pelos braços (ainda de cabeça para baixo apoiado sobre a cabeça e contra a parede, necessidade que só se revelou quando do evento, pois o programa não havia sido testado ou ensaiado antes), mas seu corpo fraco e mutilado não permite. Após inúmeras tentativas e acessos de fúria, ao bater (com as mãos) no chão seguidas vezes (tão somente na tentativa de erguerse pelos braços, sem sucesso), suas pernas vão descendo lentamente em posição fetal enquanto ele recita o “Credo”(de maneira acelerada até perder o fôlego, condição só definida durante o fazer e não previamente) engasgando em “donde há de vir a ...” sem conseguir dizer a palavra “julgar”, por fim cai e quando pensam que está “morto” ele volta e diz um amém sofrido e outro enfático, forte, quase demoníaco. >Sensações despertadas no ator: Achei uma experiência super válida e diferente do habitual.

Se àquela época a experiência afigurou-se para mim como diferente do habitual, uma pulsão de vida, de presença em cena que jamais havia experienciado, hoje vejo o quão intenso dados de performatividade se faziam presentes: forte sensação de autoria, alterações psicofísicas reais -olhos vermelhos pela posição do corpo, desequilíbrio, alteração da modulação vocal pela posição corporal, fraqueza na sustentação muscular ao progredir da posição vertical para fetal-, senti-me “presente”, “verdadeiro”, eu mesmo em situação. Pois, em ambiente acadêmico desde 2008, ao longo de quatro anos de curso, filtrando e analisando a trajetória percorrida retroativamente, já experimentando praticamente algumas das inquietações ao longo desses anos, selecionamos áreas de interesse despertadas por matérias da grade curricular: i) em Cenografia e Indumentária II- ao ler publicações e entrar em contato com o trabalho de Marina Abramovic e Tehching Hsieh, estabelecer um interesse pela performance e uma busca pelo “mínimo” (sempre tendi a uma grande profusão e justaposição simbólica de elementos, queria experimentar uma outra possibilidade de ainda trabalhar com símbolos, mas de maneira sintética, condensada, “concentrada”); ii) História do Teatro III- ao pesquisar a trajetória artística de Flávio de Carvalho e catalogar algumas de suas experiências performáticas; iii) História do Teatro IV- ao realizar minha primeira performance em espaço público (uma sala de aula da USP) a partir do mínimo gesto ou da ação simples: Tese X Antítese, como parte de um seminário sobre Marina Abramovic, performance e ensino na universidade;

9


iv) Direção II (que seguia o módulo Espaço: do espaço teatral, ao espaço não-convencional, à intervenção urbana)- ao realizar intervenções urbanas no centro de São Paulo, estudar e trabalhar com textos de Gertrude Stein de maneira performática em espaços públicos diversos e realizar entrevistas com Luis Paëtow, artista estudioso da autora. É nesta mesma matéria que o título da pesquisa tem origem. Após realizar na Universidade Estadual de São Paulo, na Universidade Estadual de Campinas, em algumas cidades do Brasil e da Europa alguns experimentos práticos em consonância com essa pesquisa, finalmente inicio o trabalho de sistematização e desenvolvimento de conceitos e os apresento sob a forma de um seminário para a aula de Teoria II, de onde tiro a conclusão de que o tema merece ser investigado mais a fundo gerando uma teoria mais consistente e que possa vir a interessar outros artistas e pesquisadores. Encontro aí a motivação necessária para acreditar na potência e enriquecimento deste estudo para a literatura, e buscar um projeto de iniciação científica em que possa aprofundar pensamentos e questionamentos, sob orientação de Antônio Araújo. A tentativa aqui é a de esquematizar, estabelecer parâmetros e teorizar sobre uma pesquisa empírica, determinada pela práxis, apoiando-se em literatura existente e em fenômenos sociais identificados ao longo do processo, por exemplo, as formas de utilização dos espaços públicos e formas de relação estabelecidas entre as pessoas nesses mesmos espaços. Creio que a performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples também dialoga com outros grupos e artistas, por exemplo, algumas performances de Marina Abramovic, as intervenções urbanas do grupo OPOVOEMPÉ e do teatro de invasão de André Carreira, as micro-ações de Renato Ferracini, as proposições de re-habitar o espaço urbano de Paola Berenstein Jacques, os experimentos radicais de Tehching Hsieh. O leitor percorrerá um trajeto de leitura ao longo de dois capítulos em que o primeiro capítulo apresenta o embasamento teórico, histórico e o contexto prático que dão origem ao nosso recorte de pesquisa. São os motivadores, os gatilhos de pesquisa que ajudaram a construir um raciocínio e estabelecer este objeto de estudo a partir dos seguintes vetores: performance, o mínimo e espaço público. Este capítulo discutirá em quatro tópicos sobre: arte presente no cotidiano, construção histórica do espaço público urbano, valor e função da arte, rotina cotidiana composta de ações simples como processo mítico identitário. Já o segundo capítulo dedica-se a uma reflexão sobre a prática e como parametrizá-la como possível linguagem artística. Para tanto definiremos os termos com os quais estamos trabalhando, compartilhamos os procedimentos utilizados para criação artística e análise

10


criativa, entrecruzamos nossa linguagem com o trabalho de Flávio de Carvalho e refletimos sobre os experimentos realizados. Seguindo adiante, o leitor testemunhará a relevância da participação em congressos e simpósios para uma verticalização da pesquisa, sucedida por nossas constatações e apontamentos após a realização do estudo proposto. Há a chance de aproximar-se do objeto de estudo de maneira mais intensa através dos produtos gerados pela pesquisa: os protocolos observacionais tanto do pesquisador quanto de participantes convidados, entrevistas realizadas com artistas contemporâneos, enquetes com público dos experimentos, registro audiovisual e fontes referenciais que direcionaram a visão do pesquisador.

11


1 DA REFLEXÃO TEÓRICA ENTRE ARTE, MÍNIMO GESTO, AÇÃO SIMPLES E COTIDIANO

“Um homem escala uma montanha porque ela ali está. Um artista faz uma obra de arte porque ela ali não está” (Carl Andre, Minimal Art)

12


1 DA REFLEXÃO TEÓRICA ENTRE ARTE, MÍNIMO GESTO, AÇÃO SIMPLES E COTIDIANO 1.1 Tropeçando com latências artísticas no dia-a-dia Perceber a latência artística presente no espaço público urbano tanto quanto nas ações cotidianas que ele abriga foi fator determinante para o estabelecimento da pesquisa proposta. Uma vez que percebemos, por uma ótica sensibilizada para arte, que a arte, mesmo que “invisivelmente”, já se dê no espaço público através de ações cotidianas realizadas por “pessoas comuns” (capturadas pelo olhar do artista-pesquisador), por que não fazer do espaço público o próprio lugar para se estar? Para que a arte se configure, nasça, seja criada em “comuna”9? É assim que resolvemos, pelo menos por ora, abandonar as “caixas pretas e brancas” (edifícios teatrais e galerias) para fazer e buscar arte nos espaços comuns de convívio social, as ruas, os espaços públicos, a malha urbana. A investigação processual, o ensaio em si já se constitui enquanto ato artístico, ambiente forjado dentro do espaço público para o possível estabelecimento de relações intersubjetivas, encontros. Logo, uma das primeiras medidas tomadas para desenvolver nossa investigação é a saída da sala de ensaio, desse enclausuramento criativo. Carregamos esse nosso artista para a vida por entender que somos atuadores, performers, artistaspesquisadores, não só das 8:00h-18h de segunda a sexta, ou de 18:00h-23:00h de sexta a domingo, mas diariamente, o tempo todo, pela ótica que enxergamos o mundo, da mesma maneira que o médico o faz, ou o executivo, o padre, o voluntário social- “ensaio in progress”. Então aqui os ensaios, a criação se constituem sim enquanto atuação artística. Como é criar sob interferência do mundo, de tudo que nos cerca- pessoas, animais, clima, geografia?- E como interferir nele, quer ensaiando, quer trocando com os outros esse material desenvolvido a partir do ensaio? Até que ponto o ambiente externo atrapalha ou favorece? Essas foram algumas das questões levantadas sob as novas condições de trabalho combinadas. É a partir deste pôr-se no mundo, e parar para observar mais os eventos e acontecimentos cotidianos que nos cercam, que começamos a capturar ações simples e mínimos gestos cotidianos ricos em valor simbólico e com potencial valor artístico (uma vez que destacados do frenético fluxo citadino feito de velocidade, excessos, absurdos e

9

Na idade Média, cidade emancipada que passou a governar-se. Ou poder revolucionário instalado em Paris, em 1871.

13


esquecimentos), e trabalhá-los em novo contexto, a partir de uma proposição artística que escolhe ao mesmo tempo isolá-lo - enquanto evento estranhado da realidade - e inseri-lo num todo, neste limiar entre visível e invisível - o que se escolhe dispender ou não atenção num contexto que chama para um trânsito eterno sem direito a paradas. Algumas imagens fortes que se impregnaram em nossa mente logo no início da investigação e que servem como exemplo para tangenciar o que tem nos interessado capturar do cotidiano, são as seguintes: Um dia, ao transitar de carro, saindo da universidade, vejo um homem sentado em um banco de cimento próximo a agências bancárias, de olhos fechados, e uma mulher que trafega com suas mãos no entorno de todo seu corpo, mas sem tocá-lo, como se o estivesse purificando, limpando-o de algum “mal”, renovando-o. Outro exemplo é o de uma mulher que retirava um a um os objetos de sua bolsa, agachada ao asfalto no meio de uma rua sem trânsito. Buscava algo, que não conseguia achar de maneira nenhuma, revirava a bolsa inteira repetidas vezes, determinada a achar o tal molho de chaves do carro. Um grupo de pessoas reunidas em círculo dançando a noite no canteiro central de uma via asfaltada. Um jovem que deita-se num banco lendo um livro em frente a uma livraria recémreformada (a qual recebeu ares de nova e moderna), e já tão logo, após três meses de sua reabertura, recém-interditada por tempo indeterminado para reformas outras no mesmo prédio. Enquanto artista perseguimos a seguinte inquietação: por que a arte se distanciou ou deixou de fazer parte de nossas vidas de maneira cotidiana? Os simples exemplos supracitados, para nós inusitados, despertaram nosso olhar para uma fabulação ou estranhamento da ocorrência daqueles eventos em lugares públicos. Os mesmos nos instigaram a uma motivação artística que poderia servir de provocação à nossa inquietação: Como trabalhar determinadas imagens cotidianas simples ou mínimas a partir de sua potência simbólica latente, até elevá-las ao plano do absurdo ou não convencional, conferindo-lhe uma “esquisitice”, despertando curiosidade e possível reflexão? Identificamos que aqueles exemplos “banais” que nos sensibilizaram no cotidiano estavam imbuídos de duas características: Pareciam estar descontextualizados, ou fora de seu contexto original ou apropriado. Afiguravam-se para nós como atividades a serem realizadas em espaços outros, de repente de

14


natureza privada, ações com caráter “reservado” e não de compartilhamento com outros (cúmplices, vouyers), e que supostamente não se “encaixavam” em ambiente público por não terem como finalidade a priori serem vistas, ou mesmo por “atrapalhar” o fluxo comum a esses espaços, criando ruídos no cotidiano. Ou ainda, o evento “colava-se” ao ambiente de maneira contrastante (alguém que simplesmente escolhe ler em frente a uma livraria interditada), de maneira a revelar contradições entre as formas de relações sabidamente impostas ou esperadas e as formas de relações de fato instauradas naquele presente, naqueles lugares. O evento, a ação em si, trazia um quê de pertencimento e não-pertencimento àquele ambiente, absorvendo e construindo novas características junto com o espaço em que se dava, abrindo o campo para repensar novas possibilidades de apropriação desses espaços públicos em questão. Tínhamos então os elementos necessários para dar início às nossas pulsões de pesquisa artística: Compartilhar experiências entre pessoas através da arte Arte presente no cotidiano das pessoas, arte na rua Ações simples e mínimos gestos colhidos do cotidiano transformando-se em atos artístico-performáticos a partir de modificações espaço-temporais em suas características originais, explorando com veemência o plano simbólico-sensorial. Para versar sobre a vontade em fricção com a realidade (Inscrição e escritura corporal no espaço - apreensão e autoria, termos que desenvolveremos no tópico dos procedimentos práticos utilizados) primeiramente faz-se necessário refletir historicamente sobre as possiblidades de relação travadas no espaço público.

15


1.2 Repensando o espaço urbano como trânsito de relações intersubjetivas "Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar" (Zygmunt Bauman)

Entendemos ou constatamos o espaço urbano10, até os dias de hoje, como trânsito majoritária e imprescindivelmente de capital 11 , de moeda de troca, com valor econômico agregado. Quando o foco de exploração passa a ser não só de dominação de território, mas de exploração de seus recursos particulares para troca com outros povos, e assim a criação de novas demandas e necessidades, aí está o advento das polis como entendemos hoje. Globalização é uma ideia antiga, basta tomar como exemplo as trocas mercantis já adventícias do gigantesco império romano desde o séc. V a.C., que movimentavam mercadorias - e não deixavam de estabelecer uma forte ponte cultural - entre várias partes do globo (África, Europa e Ásia), as feiras e rotas comerciais insurgentes a partir das Cruzadas na Idade Média (séc. XI-XIII), ou mesmo o Mercantilismo (séc. XV-XVIII) em que as potências do “velho mundo” exploravam os recursos de suas colônias espalhadas pelo globo, numa competição por acúmulo de ouro e prata. Desta maneira, dando um salto para a atualidade, as antigas embarcações e feiras foram substituídas por aviões, correios, ambulantes contrabandistas, motoboys e comércio virtual. Hoje a noção de cidade como já constatava Roy Ascott em 1994, se expande do universo real para o virtual. Arquitetura, transações, cibercepção e telepresença, todos: partes de um novo mundo que se abre num campo impalpável e parcialmente visível virtual, de paredes, janelas e nuvens invisíveis. Como o objetivo maior em jogo é a circulação em detrimento da permanência, o fluxo jamais interrompido de capital (esta abstração ainda dominante das relações, mas cada vez mais invisível), a espetacularização em favorecimento da lógica da mercadoria saltou do plano do “real” para o virtual como estratégia de aceleramento dos processos de transporte e comunicação. Somos regidos por um bombardeamento imagético e nos encontramos mesmo num momento de crise entre linguagem, pensamento e vida.

10

Como se configura desde o período de transição entre as classes feudais e os burgos a partir do séc. XI, com a ascensão da classe burguesa no séc. XVIII, ou mesmo desde o escambo entre as primeiras civilizações até VII a.C. (com as trocas de cevada, gado, sal e outros produtos tomados como moeda). 11 A palavra capital, que designa patrimônio ou cidade-sede de um Estado, vem do latim capita (cabeça - de gado).

16


Nossa cibercepção 12 nos impulsiona a receber, absorver um mundo pautado por imagens, referências das mais diversas partes do globo e fragmentos de informações, e planificá-los indistintamente, substituí-los, torná-los resíduos de memória. Teixeira Coelho em seu livro “O que é ação cultural?” enfatiza que uma época a qual não consegue distinguir as coisas, diferenciar algo do seu contrário, é uma época de completa barbárie. Passamos por esse processo de relativização, de livre associação, de novas conexões jamais dantes imaginadas. Os livros são um algo a ser esquecido, as enciclopédias que o digam! Já decretaram seu estado de falência. A rapidez da informação e da busca de referências permite novas, falsas verdades a cada segundo, bem argumentadas inclusive. Se antes a “construção de conhecimento” ou a busca e desenvolvimento de determinado assunto era algo demorado, difícil e restrito, hoje em dia podemos conversar e tirar dúvidas ao vivo a respeito de qualquer assunto de qualquer parte do globo, o “conhecimento é acessível a todos!”, mas a construção de pensamento é que pode ser bastante discutida, e essa sim pode ainda ser considerada limitada, em atraso no acompanhar o ritmo do que se entende por conhecimento hoje. Ainda temos bastante dificuldade em desenvolver um raciocínio fragmentado, de associações que se desenvolvem em rizomas, em redes. Expressamo-nos majoritariamente de maneira classicista, academicista, com início, meio e fim bastante determinados. Da esquerda para direita, sem pausas ou cortes repentinos. É mesmo de se estranhar que apesar de tudo, nossos aparelhos de educação, nossas mentes, nossos prédios não se adaptaram de todo a essa nova percepção do mundo, onde a espetacularização dos meios sociais torna a possibilidade de experiência cada vez mais rara e preenche nossas vidas de momentos liminóides13, falsos instantes eternos, doses pontuais de expurgo anestésico. Vivemos um choque de futuro e passado nas estruturas e desconhecemos o agorasempre atemporal (termo de Hakim Bey). “Escavamos em busca de mundos perdidos”. (BEY, 2003, p. 6). Seguimos no fluxo das ondas deste mar urbano, caos controlado, hipnotizados, destituídos do aqui-agora. Onde tudo escorre, tudo se dissolve e se confunde14. Nesse sentido, de pensar o poder do capital na fundação e organização de cidades e na relativização de valores e conhecimento num processo de dominação de massas, é necessário 12

A qual seria a possibilidade de ampliação da consciência para além de uma capacidade genética, mas agora altamente influenciada pelos aparatos tecnológicos que se tornam extensões de nossos corpos e relações ligados em rede. 13 TURNER,2005. Termo desenvolvido por Turner em contraste com situações sociais de liminaridade, as quais se caracterizam por processo de crise, ruptura e transformação. O liminóide seria uma falsa experiência de liminaridade. 14 Para aprofundar nessas questões: liminaridade, modernidade líquida, relativização de valores sociais e de mercado sugerimos: Turner, 1974, 2005; Debord, 1997 ; Bauman, 2001; Coelho, 2001; Bey, 2003; Fortes, 2006.

17


ter ciência que a estruturação das cidades tal qual a vivenciamos hoje é reminiscência e reflexo da nova ideia de urbanismo que surgia à época do modernismo francês no fim do séc. XIX e início do séc. XX. Ao

pensar no usufruto dos espaços públicos atualmente não podemos esquecer

exemplos históricos como o processo de urbanização instaurado em Paris em 1860 pelo então prefeito Barão Haussman, com sua “visão pinturesca e estética”15 de modo a criar perspectiva e mise-en-scènes na paisagem urbana da cidade-luz. A cidade nesta época ainda carregava aspectos bastante medievais abrigando guetos e vielas, e quarteirões insalubres. Sob suas novas condições de industrialização e ascensão da classe burguesa, passa por um processo radical de redesenho urbano, o qual primava pela harmonização, organização e funcionalidade. O objetivo era criar um só monumento em que todas as partes se articulavam. É assim que Haussman dirige várias demolições em todo o perímetro urbano com dois focos: insalubridade e circulação - velocidade no sistema de transportes e informações. Imperava uma lógica racional que atendesse aos diferentes fluxos. Assim Paris passa a ser uma cidade com vias alargadas e bem iluminadas interligadas por praças, parques e jardins que atendiam à classe burguesa. Os operários do centro foram expulsos para as regiões periféricas da cidade, favorecendo um processo geográfico de marginalização e segregação social, parte da higienização. Essa nova conformação, com largos boulevards de cruzamento, de ligação norte-sul, leste-oeste e os periféricos que delimitavam o espaço urbano - por onde entravam as mercadorias necessárias à cidade, permitia um fluxo mais eficiente de mercadorias, visava garantir a segurança nacional contra ataques externos e controle de insurreições populares internas, e promover a higiene com uma reforma no sistema de saneamento. Os novos edifícios, monumentos, cafés e boulevards, nesse processo de embelezamento da cidade, acabaram por privatizar de certa forma o espaço público urbano em favor de uma patrimonialização pública da história e da arte a serviço de uma classe burguesa em ascensão. Em resumo a finalidade principal da “Haussmanização” era abrir grandes passagens para garantir a ordem capital. Já no final do século XIX, “apesar dos ímpetos saneadores, foi patente a tendência de preservação das malhas urbanas representativas dos tempos passados. Tal inclinação deveu-se

15

GUIMARAENS, 2010, p.16.

18


não apenas às resistências conservadoras à industrialização crescente e aos movimentos progressistas, mas também à expansão e difusão da história da arte, da arqueologia e da etnografia”. (GUIMARAENS, 2010, p.5) Segundo GUIMARAENS (2010, p.8) “as ideias e as contradições dos processos de destruição das cidades pré-industriais e da configuração funcionalista do urbanismo moderno, a partir de 1860 e até meados do século XX, resultaram da “batalha” entre história e historicidade. Ou, em outras palavras, entre a inércia e o dinamismo”. Entre museificação (“fazer” a história) e musealização (garantir a historicidade das coisas e dos lugares). Haverá então um processo um tanto contraditório nesse século XX entre construir “cidades funcionais” que priorizam a modernidade (dinamismo, originalidade e novidade), e defender patrimônios históricos em nome de um processo de identificação social e preservação histórica, que em tese serviria para uma promoção cultural e garantia da “coletividade”. Uma vez que nesse campo de conhecimento reconhece-se “a importância da dimensão física na constituição do espaço social” (GUIMARAENS, 2010, p.3). Uma proposta revolucionária da Carta de Atenas é que toda a propriedade de todo o solo urbano da cidade pertenceria à municipalidade, sendo, portanto pública. Em 1933 a Carta de Atenas é então redigida por Le Corbusier como um manifesto urbanístico resultante da reunião de arquitetos e urbanistas no IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna. Diagnosticando a estruturação de trinta e três cidades estes, majoritariamente europeus, propõem-se a chegar à configuração ideal de cidade que atenderia internacionalmente a qualquer país. Ainda bastante contaminados dos princípios de harmonia e funcionalidade de Haussman, eles discutem sobre patrimônio público e a construção de uma “cidade funcional”. Pensada como organismo ela priorizaria o bem-estar e a natureza a partir da separação das áreas de habitação, trabalho e lazer, substituindo as áreas de adensamento tradicionais pela Cidade Jardim, edifícios em áreas verdes pouco densas. Buscava unir racionalidade urbana e beleza. Contudo, este documento determinante na urbanização de cidades de todo o globo, inclusive do plano-piloto da Brasília de Lúcio Costa, apresenta consideráveis fragilidades que se refletem ainda hoje na desincorporação do espaço urbano em favor de uma espetacularização, rápida decodificação de símbolos de ordem e constante fluxo: grande dependência de veículos, relativização da construção memorial e identitária do coletivo, por uma seleção arbitrária do que permanece e do que é apagado da História (em se

19


tratando de patrimônio públicos), poucas possibilidades para os pedestres transitarem e maior expansão urbana. A modernidade é um caos organizado. Em princípio o raciocínio daqueles urbanistas visava a uma valorização da História e da Arte como patrimônios culturais sociais, garantidos através das áreas de lazer, mas o que vemos é um processo de embelezamento do cenário urbano dando lugar ao aparecimento cada vez mais recorrente de “não-lugares” 16 , “entre-lugares” 17 ou “noplaceness” 18 , todos estes lugares que não permitem a permanência, a construção social, identitária ou memorial, ou a incorporação. Verdadeiros buracos, “fantasmas”, vazios que à primeira vista não convidam a fruição. Nosso desafio enquanto artistas-pesquisadores (e centro de fervoroso debate atualmente: “Onde está nosso solo comum quando o espaço que ocupamos não se soma a um lugar que possamos definir?” 19 ) é como burlar ou reverter as estruturas que condicionam nosso pensamento, para a construção constante de novas fruições e relações com o espaço público, desafio este que os urbanistas também se impõem a partir dos preceitos e reanálises na Nova Carta de Atenas (2003), configurando novas perspectivas que enfocam o cidadão como protagonista da construção e desenvolvimento da malha urbana. Não se trata de simplesmente ir contra-fluxo, contudo descobrir no fluxo, formas de resistência, de desmecanização das relações, de instauração de debates públicos acerca do que queremos enquanto sociedade. Como nós artistas podemos fazer isso? Cresce cada vez mais as tentativas de diálogo direto entre arte, artistas, cidadãos e cidade, basta observar as programações de espetáculos e exposições contemporâneos. Flávio de Carvalho, justamente no início do século XX, já nos dava algumas pistas, já buscava alternativas visionárias e provocativas. Realizava estudos e projetos arquitetônicos, como as casas antropomórficas. Vários projetos arquitetônicos que repensavam a cidade como organismo, como corpo humano, organizada de maneira concêntrica em diversos anéis, do núcleo para as margens, com um fluxo entre passagens que priorizava e respeitava em graus de importância o bem social em primeiro lugar, para além das questões do fluxo de capital. Projetos arquitetônicos já em si performáticos, todos recusados nos diversos concursos públicos municipais, estaduais e federais dos quais participou, inclusive da construção de Brasília.

16

termo de Marc Augé. termo que utilizo para lugares de passagem, lugares que ligam pontos da cidade, de não permanência. 18 “nenhum lugar”, termo recente utilizado por Atlanta Art Now um coletivo de artistas de Atlanta, in CULLUM, 2011. 19 Tradução minha de trecho da capa traseira de Noplaceness, CULLUM, 2011. 17

20


Se há esse desejo de intervir no espaço público, há, enquanto artistas, que conhecer e estudar bastante uma determinada realidade para ver seus diferentes aspectos, incongruências, dialéticas, harmonizações e trabalhá-los de maneira a suscitar questões no público, assim como Brecht propunha, revelando plurifocalmente as contradições. Realizar uma etnografia urbana 20 buscando compreender as múltiplas relações de ver e ser visto, agir e receber, perceber onde se está e o que se faz, para assim pensar em uma experiência vivida por indivíduos de maneira coletiva, com a atuação de todos. Ainda refletindo sobre: a força dos símbolos urbanos figurados pela arquitetura sobre a construção do ser social (e vice-versa), o espaço urbano vinculado a uma construção de mercado, e possíveis formas de ruptura das relações impostas já absorvidas, gostaríamos de partilhar os pensamentos de estudiosos de períodos diferentes, Roy Ascott (texto de 1994), Paola Berenstein Jacques, Fabiana Britto (2006) e Walter Benjamin (escritos organizados em 2006 na coleção Passagens). Roy Ascott em “Arquitetura da Cibercepção” conclui que uma nova percepção humana do mundo exige nova arquitetura sem maquiagem, sem espetacularização, sem representação: Talvez o desafio mais radical às velhas ideias arquitetônicas advenha das consequências da tele-presença, do self disseminado. Enquanto a identidade humana está ela mesma sofrendo transformações, e enquanto a mente colaborativa e a consciência conectada estão substituindo a mente unitária e a consciência solitária da velha ordem de pensamento ocidental, a arquitetura tem de buscar novas estratégias se quiser trazer ideias úteis sobre viver e interagir no mundo. A tele-presença é o território do self distribuído, de encontros remotos no ciberespaço, de um viver online. (ASCOTT, 2002, p. 37, grifo nosso). A arquitetura contemporânea e o shopping se tornaram mais ou menos a mesma coisa. A arquitetura, ao virar as costas para a necessidade de respostas radicais às realidades do tele-self e da presença distribuída, é pouco mais do que um carrinho de compras, com uma grande quantidade de pacotes embalados, dando voltas pelas zonas estéreis de uma cultura de shopping center. Cada construção é um produto petrificado e embalado, cada componente é mandado pelo correio e escolhido a partir de um catálogo. O código do “tenha um bom dia” da prática da construção pôs a conciliação com a tradição na frente da colaboração com o futuro. Mas a necessidade de uma arquitetura de interfaces e de nós não desaparecerá. Viveremos cada vez mais em dois mundos, o real e o virtual, e em muitas realidades, tanto culturais quanto espirituais, independentemente da indiferença dos designers urbanos. (ASCOTT, 2002, p. 37, grifo nosso).

20

No nosso caso através do procedimento de Observação Imersiva.

21


Apesar de concordar em parte com suas colocações feitas há dezoito anos atrás, enquanto Ascott defende um novo pensamento arquitetônico, em tom quase messiânico, para esses seres humanos ciberceptivos da “nova era”, penso que a modernização, em constante “evolução” desde aquele período até agora, como se apresenta em nosso cotidiano, só reforçou ainda mais uma estrutura urbana espetacularizada que impede a instauração de relações intersubjetivas - foi feita para ser vista, não vivida -, ao invés de a cidade caminhar para “ser transparente em suas estruturas, objetivos e sistemas de operação em todos os níveis. Sua

infra-estrutura

e

sua

arquitetura[...]‘inteligentes’

e

inteligíveis

publicamente,

compreendendo sistemas que reajam a nós.” (ASCOTT, 2002, p. 35). Sim, vemos hoje grandes castelos de vidro, aparentemente convidativos e transparentes em seu fins, mas que sob a incidência da luz do sol, espelham-se um a um em reflexos infinitos da cidade num movimento alucinante, alienante, gerando corpos-reflexos, escondendo por trás de si as paredes de concreto sustentadas pelos “anões corcundas invisíveis” (BENJAMIN, 1987), os quais na quebra de um dos espelhos, rapidamente eles os substituem por outros. Já Paola Berenstein, arquiteta, e Fabiana Britto, dançarina, tendo como palavras-chave coreografia, cartografia, corpo-cidade, deriva, errância, experiência, desenvolvem o conceito de “corpografias urbanas” para propor estratégias de reincorporar o espaço urbano já espetacularizado, camuflado, maquiado, desincorporado, vitrine, que esconde veias-entrelugares, que funciona como cenário cheio de não-lugares, de obrigação à passagem, não permanência, essa arquitetura do não-lugar de ‘praças sem bancos’. Como nós, viciados a um ritmo invisível, imposto e já intrínseco, voltarmos a viver, nos por em relação mais ativa, redescobrir e recosturar esses elementos do espaço urbano, até retornar ou criar novas estruturas para experienciá-lo (as pessoas, os fluxos e as coisas) mais efetivamente numa relação de pertencimento, descobrir novos pontos de vista que não estamos acostumados. Walter Benjamin (2006, p. 560) aí nos inspira com o trecho [P 2, 2] •Antigüidade• do arquivo P de Passagens, que reflete bem sobre essas ideias. De não deixar o cotidiano te esmagar, te sufocar, mesmo num ambiente que se pressupõe de “conforto e descanso” que é o lar, revelando que os “gonzos estão fora dos eixos”, e que podemos nos deixar arrebatar pelo desconhecido numa relação de descoberta, apropriação, prazer, risco, dor, numa reinvenção de si mesmo e desse corpo que abriga tantas cidades: “Quem quiser saber o quanto estamos nos sentindo em casa nas vísceras, deve deixar a vertigem levá-lo pelas ruas, cuja escuridão tanto se assemelha ao colo de uma prostituta”.

22


Acreditamos que a cidade, a metrópole, como um todo, em sua macroestrutura, representa estratégias estruturais para circulação de capital da maneira mais eficiente. O trabalho do performer neste caso de investigação compreende de sobremaneira realizar o que chamamos de laboratórios ou vivências - verdadeiros estudos etnográficos, imersões em determinados universos, experiências com dada matéria de estudo antropológico - para atuação em uma realidade específica de maneiras: extremada, vista sob lente de aumento, retratista, transformada em outra matéria, simbolista. Assim, buscando esse desafio da arte através do mínimo ou do simples no espaço público, como desestabilizar o cotidiano urbano, deslocar o fluxo comum, repensar as relações sociais (mesmo algumas da ordem do privado) em ambientes públicos, nas ruas? A fim de entender as subsequentes restrições de uso que o espaço público vem sofrendo ao longo da história, mais especificamente envolvendo a malha urbana de São Paulo e a possibilidade de uso artístico destes espaços, é que optamos por explorar a arte aplicada em naturezas distintas do que se classifica como “público” numa cidade. Dessa maneira, analisar em sua complexidade, através da proposição de ações artístico-performáticas, os conflitos pertinentes a cada um desses espaços, que representam em suas particularidades distintos caracteres públicos. Conflitos estes consequentes da tentativa de permanência e instauração de relações intersubjetivas através da arte em espaços a princípio destinados a este fim, de convívio social, mas os quais revelam contradições, no momento em que suas limitações de usufruto saltam, pelo próprio fazer artístico, pelo próprio agir nesses espaços públicos. Tendo como base os estudos bibliográficos realizados apontando alguns denominadores comuns do que constituiria o espaço público urbano, a estratégia tática para apalpar concretamente o que antes se dava num plano das ideias, a qual estipulamos para fins de pesquisa, foi a exploração de três noções de espacialidade que compreenderiam em maior abrangência esta nomenclatura, “espaço público”: i) uma via pública; ii) um patrimônio público; iii) uma instituição pública. Atribuindo a cada um deles um experimento prático pautado num processo metodológico de inscrição e escritura corporal no espaço, utilizando procedimentos que trabalhavam com observação imersiva, silêncio, ação e autoria. Como referência que reforça nossas crenças, buscas e indagações anexamos aqui um breve artigo, que trata, entre outros assuntos, da interdisciplinaridade, da troca entre áreas de conhecimento como possibilidade de constante repensar e refazer social:

23


Folha de São Paulo. Caderno Ilustrada QUARTA-FEIRA, 28 DE NOVEMBRO DE 2012 Para urbanistas, artistas inspiram direito à cidade DE SÃO PAULO Ações culturais que ocupam o espaço público são sempre bem-vindas, defende o diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, Valter Caldana. "Hoje, a cidade faz cada vez mais parte do nosso cotidiano. Deixaremos de viver em casa para viver mais tempo na rua. O século 21 é o século do espaço público", defende o urbanista. A retomada de áreas degradadas não é um fenômeno exclusivo de São Paulo. Processos similares ocorreram em toda a Europa. "Mas não com as dimensões trágicas da cracolândia", diz ele. O urbanista considera que situações em Nova York nos anos 1980 se assemelham mais ao que houve aqui. "E os movimentos culturais foram atuantes lá também", diz. A degradação do espaço urbano acontece por deficiência do uso, explica Caldana. "Se há apenas um tipo de uso [só escritórios, por exemplo], esse lugar passa a ter problemas." O urbanista aprova a criação de um polo cultural na região da Luz pelo Estado, mas aponta que equipamentos como a Sala São Paulo e a Pinacoteca carecem de um projeto de integração. "Falta um elemento ali, que é o uso do espaço público. Eu vou à Sala São Paulo, mas saio dali e vou embora, não fico no bairro", explica. FESTAS Segundo Ermínia Maricato, urbanista da FAU-USP, ações culturais podem incluir a realização de festas, como as que o núcleo Voodoohop tem produzido na avenida São João e no Minhocão. Maricato lembra que "estamos em um momento em que o espaço tornou-se mercadoria". "Cada metro hoje é disputado", diz. "A arte tem a capacidade de lembrar que temos direito à cidade", diz. (GF)21

O artigo nos chama atenção por enfatizar o dado de que vivemos cada vez mais nas ruas e que o espaço público precisa ser visto pelos urbanistas e governantes não como mercadoria sob especulação, mas como o principal espaço de atuação social. O artista aparece aqui como figura que chacoalha as certezas e acomodações, e através de intervenções artísticas tem a possibilidade de alertar e mesmo transformar não-lugares, áreas degradadas em áreas de permanência por meio de um fazer sociocultural. O urbanista aqui apela para arte como meio de devolver a cidade aos cidadãos. E não seria isso que estamos buscando? Arte mais presente no cotidiano das pessoas, pessoas mais integradas aos espaço públicos, mais trocas intersubjetivas de ordem sociocultural se dando na malha pública urbana.

21

Para urbanistas, artistas inspiram direito à cidade. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 nov. 2012. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/80454-para-urbanistas-artistas-inspiram-direito-acidade.shtml>. Acesso em: 29/11/2012.

24


1.3 A arte inserida no fluxo: “Valor de uso” ou “valor de troca”? Como discutir questões e elaborar proposições que digam respeito ao público de maneira mais próxima, de modo a aguçar veementemente os sentidos, um pensamento através do corpo, dos corpos em diálogo direto, na tentativa mesmo de tornar estas experiências coletivas? Uma possibilidade seria através de jogos e imagens que envolvessem das mais variadas formas a visão, os sons, o tato e um “novo sentido”: Risco, comprometer-se física e eticamente com aquilo que se presencia, assiste, participa. Apostamos na Arte como potente disparadora desses processos de relação intersubjetiva no espaço público em que o fim não esteja focado numa troca econômica. A arte, cujo radical seria ou a artesania ou o artifício de transformar, de entender a realidade, existe desde a existência do ser humano e desde então nasce e se caracteriza como algo público. É o que nos separa de outros seres, é o que nos torna humanos, é a criação, é a possibilidade de criação, de trocar ideias, sentimentos e sensações com as pessoas, uma troca entre sujeitos, entre seres que agem, uma troca intersubjetiva. Matteo Bonfitto, em seu livro o Ator-Compositor dirá que nós temos três formas de perceber o mundo, de apreender o mundo. Seria pelo intelecto, pelo afecto e pelo percepto. Essas três formas de apreensão ou expressão do mundo passariam pelo campo da arte. Logo, não estaríamos falando da construção de pensamento, de uma criação, de um relacionar-se com o meio apenas através de um raciocínio lógico (do pensamento traduzido em número ou em palavra), mas através desse não-dito, desse indizível, que é por onde a arte também transita. Um autor para nós mestre dos indizíveis seria Manoel de Barros, ou o pintor Van Gogh, eles conseguem manifestar em nós essa ligação neuronal de não-ditos que a arte toca. Há esse lugar que Denis Guénoun no texto “A exibição das palavras: uma ideia (política) do teatro” se referirá especificamente sobre o teatro22, mas acreditamos também que se estende para qualquer campo da arte. É o fato de ela ser em princípio um lugar político de debate, de fórum, de discussão, de fomentar discussão, de provocação, de busca de entendimento, pela troca, pela fricção de pensamentos, portanto é pública, tem esse caráter público imbricado.

22

“O teatro é, portanto, uma atividade intrinsecamente política. Não em razão do que aí é mostrado ou debatido embora tudo esteja ligado - mas, de maneira mais originária, antes de qualquer conteúdo, pelo fato, pela natureza da reunião que se estabelece”. (Denis Guénoun, A exibição das palavras: uma ideia (política) do teatro, 2003, p.15).

25


O homem faz, manifesta-se, seja numa roda de fogo, num quadro ou num espetáculo para alguém, para uma alteridade, para esse outro que existe. A arte engloba todos os meios de pôr-se no mundo, participar da vida pública, posto que o ser humano carrega em sua natureza essa característica relacional de perceber, inteligir e afetar-se pelo meio. O homem tem essa “estranha” necessidade de “estranhar” as coisas que o rodeiam para que assim possa explicar-se a si mesmo. Desconhecer-conhecer-reconhecer-criar (processo espiralado de aprendizagem). O que é o conhecimento senão o compartilhamento de ideias convencionadas para determinado meio? O ser humano descobre e se reinventa em relação a cada segundo. Quer seja dos desenhos rupestres, rituais de caça, lavoura e fertilidade da pedra lascada (período paleolítico), à pedra polida (período neolítico), ao helenismo (culto e acúmulo do que é considerado belo e grandioso), à democracia grega, às dionisíacas (grandes assembleias públicas para discutir os rumos da cidade, da polis: as pessoas criticavam, escarniavam, satirizavam o próprio fazer social ali, naquele momento do evento artístico, em assembleia pública), ao teatro elisabetano (em que apesar de segregados em setores de diferente valor monetário, todas as classes sociais se reuniam num mesmo edifício teatral, alimentavam-se, discutiam e, novamente, criticavam em torno do fazer teatral diante de seus olhos), ou à commedia dell’arte (que levava às feiras e praças públicas os modelos, conflitos e tipos sócio-políticos do âmbito do público e do privado para serem postos à prova pelo riso reflexivo ou expurgador - de aprovação, desaprovação, identificação ou distanciamento das situações retratadas em cena a céu aberto). É dessa maneira que acreditamos também nesse poder da arte que acompanha e constrói civilizações ao longo dos séculos. Ao nos reportarmos a esses diversos períodos ao longo da história, nos perguntamos: O que é que está acontecendo com a arte? E com (a formação das) as pessoas? Esta forte ligação à qual nos referimos entre arte e cotidiano está cada vez mais, em nosso entender, se distanciando, não é algo costumeiro em se tratando de maiorias, não parece ser este natural constituinte do ser social contemporâneo. Aparece, dependendo de civilização a civilização contemporâneas, como mero detalhe dentre tantas outras “necessidades” humanas. É algo que de certa maneira parece não fazer mais tão parte como outrora já fizera, algo que não “está”, que tem de ser procurado. Entrevistei profissionais tanto da área da dança, quanto do teatro e da intervenção urbana. Uma descoberta que fiz ao entrevistar um deles, Renato Ferracini, me alargou a compreensão do que seria espaço público. Porque a partir de meu entendimento sobre o estudado estipulei três categorias de espaço público a serem analisadas: uma via, um

26


patrimônio público e uma instituição. E nesta entrevista o referido pesquisador23 me trouxe a compreensão do corpo como espaço público. Se a princípio penso no espaço diretamente, uma configuração espacial na cidade, ele retorna ao primeiro ambiente constituinte do ser humano, ao primeiro ambiente constituinte da arte, o que gera tudo, que seria o próprio corpo. Então que espaço público é esse que estamos falando? O que me provoca e motiva o desafio ao longo da pesquisa é perceber este curioso distanciamento das pessoas tanto da arte quanto do próprio espaço público. Se a arquitetura enquanto área de conhecimento começa a se modificar e essa noção de estruturação da cidade se modifica por conseguinte: alargar vias para que as coisas fluam, as vielas e espaços de criação e convívio vão sendo suprimidos para dar espaço a uma dinâmica, a uma velocidade, a um tráfego constante, a uma segurança nacional, pois os governantes e estruturadores das cidades começam a se preocupar com os ataques de guerra e ter um planejamento urbano específico. Então tanto a arte quanto o espaço público vão sendo suprimidos da nossa vida de alguma maneira. Damos o velho exemplo sobre as “praças sem bancos”, praças que não são mais habitadas. Só temos direito a circular no espaço público. Assim aquele objetivo primeiro da arte de troca intersubjetiva ou que seria o objetivo social, da arte e destes espaços, de troca entre as pessoas, um espaço de debate, um espaço de fricção de ideias já não acontece mais, pois a arquitetura simplesmente não permite que eles aconteçam: nos deparamos a todo momento com obstáculos, placas, caixas. A arquitetura vai perdendo sua justificativa primeira que é sócio-espacial, para ganhar um caráter simbólico, de símbolos que indicam o fluir, o atravessar, o passar. Arte e espaço público estão cada vez mais desincorporados dos seres humanos por um voraz modus operandi mercadológico imposto à vida, o qual nos incute “nossas necessidades” de maneira tão veloz que não nos sobra tempo nem de pensar sobre elas. A partir deste levantamento, identifico no campo da performance um lugar de tentativa enquanto artista-pesquisador de que a arte (vida) esteja mais presente na vida das pessoas de maneira mais “descompromissada”, mais próxima, mais “casual”, mais cotidiana, que ela esteja ali acontecendo tanto quanto o trabalho, quanto o fluir, quanto uma atividade que se desempenha normalmente nesse espaço público. Pois acredito que a arte não está, não deveria estar limitada aos artistas, ou para os artistas, como vem acontecendo.

23

Renato Ferracini é ator do grupo LUME de teatro, sediado em Campinas.

27


Assumindo enquanto artista-pesquisador o viés de exprimir um ponto de vista talvez bastante pessoal, unilateral e generalizante o que identificamos a partir de nossas observações é: a maioria das salas de espetáculos e programações artísticas são preenchidas e frequentadas por quem já faz arte. Há muitos programas artísticos de caráter e acessibilidade públicos que atendem um público já especializado, ou estão esvaziados por motivo de falta de informação ou “desinteresse” - de onde brota esse “desinteresse”? - , ou o fim social se sobressai ao fim de formação artística. As salas de espetáculo frequentadas por um público composto em sua maioria de “não artistas” geralmente têm valores comerciais que restringem a acessibilidade e a temática recai sobre sexo, melodrama ou humor em que o público vai não necessariamente para se repensar através da troca que se dá, mas para “aliviar-se” do dia-a-dia, para “não pensar em nada”. A presente pesquisa defende a partir de seu recorte que a arte poderia ser feita por qualquer um em gestos simples ou ações simples. Neste sentido o Grotowski falará dessa “consciência” do performer que não estaria encarnando um personagem, mas seria uma pessoa com uma questão que está lançando-a para outras a fim de suscitar debate, construção, reafirmação ou reanálise de ideias. Ele coloca a imagem, a metáfora do pássaro que bica e do pássaro que observa. Como você ao mesmo tempo que propõe uma ação, tem consciência daquela ação? Como

você consegue se

perceber com o entorno e dialogar com esse entorno? Não se valer de um roteiro que está externo a você e que você simplesmente executa, você é senhor da sua criação também. “O Performer, com maiúscula, é o homem de ação. Não é o homem que faz o papel do outro. É o dançante, o sacerdote, o guerreiro: está fora dos gêneros estéticos. […] Pode compreender apenas se faz. Faz ou não faz. O conhecimento é um problema de fazer.”24 Esta citação não me deixa esquecer o texto de Schechner, Between Theater & Anthropology, que apresenta vários pontos de contato, quando associa a figura do performer a toda e qualquer atividade cultural e religiosa pautada na realização de ações que se repetem ao longo de gerações. O que fazemos, que histórias nos contamos para lembrar a nós mesmos, sociedade, quem somos? “Nunca se produziu tanto pensamento, tantas teses em arte, mas para quê? Para quem?”25 Arte para qualquer parte? Qual é o valor da arte? Elaboramos a seguinte pergunta aos participantes deste processo investigativo (atores, não-atores, performers, diretores e dançarinos), a qual nos interessa compartilhar: a Arte seria 24 25

Jerzy Grotowski. El Performer. Revista Máscara, n. 11-12, p. 78. Fala de Sérgio de Carvalho em mesa redonda na V ABRACE, USP, 2009.

28


ou visaria uma “troca” de experiência? O “valor de troca” da arte é social ou econômico? Qual a diferença entre “valor de uso” e “valor de troca”? Transcrevemos aqui alguns trechos das entrevistas realizadas relativas a essas questões: Renato Ferracini (Professor Doutor e ator do LUME) R – Eu não vejo como nenhuma das duas coisas. Eu vejo seu valor como valor sensível. Também não é troca de experiências. Ela deve gerar um campo de experiências onde os encontros possam acontecer nesse lugar, e aí pode-se trocar afetos, percepções, sensibilidades. Há compartilhamento de sensibilidades, uma partilha de sensibilidades. É difícil falar da arte em geral. Algumas manifestações artísticas têm como objetivo – mais potente, a meu ver – esse compartilhamento de outras formas de ver, de tocar, de sentir o mundo. Claro que isso é transformado em valor de venda, como nosso espetáculo (Os Bem Intencionados) coloca. Todo mundo precisa de patrocínio, vender espetáculo, um SESC que compre...mas comprar o quê? Justamente, a nossa crítica engloba tudo isso. O que está em questão é: essa obra de arte potencializa afetos, encontros? Pra mim só pode ser chamado arte se houver e se conseguir efetuar esse tipo de encontro aumentativo de potência. Eu não vejo como troca de experiência, não é a experiência do artista que está sendo trocada com o público, nem o contrário. Nesse campo você aumenta a potência criativa de todo mundo que está dentro. Lugar de criatividade. O público tem que criar junto com você. E também não vejo a arte só como lugar de crítica, esta vem no bojo dessa relação, é quase uma consequência natural. A partir da criação desse espaço você gera outras maneiras sensíveis de ver o mundo, e para isso precisase gerar uma resistência ao modelo estabelecido de sensibilidade. Então naturalmente a relação crítica vem, ela é consequência e não objetivo, apesar que sempre presente se a arte se efetua de fato. Qualquer compartilhar de sensibilidades hoje é um ato absolutamente de resistência política, mas a resistência política vem como consequência do partilhar a sensibilidade. L – Às vezes vemos trabalhos de artes visuais que classificamos como “pura forma”, algo que não nos toca de maneira nenhuma, então me pergunto onde está a crítica... R – Para mim, se eu faço arte consequentemente faço crítica, mas eu não busco a crítica na arte. Para mim o objetivo é compartilhar sensibilidades, para isso é preciso resistir a uma sensibilidade dada a priori, e isso é um ato político, um ato de resistência. Quando você conscientemente quer ser crítico, geralmente o espetáculo sai ruim. Você começa a adentrar as fórmulas de crítica, começa a contrapor um modelo a outro modelo. L – Porque dessa maneira se impede aquela multiplicidade da qual falávamos ontem.

29


R – Exatamente. Modelo contra modelo cria outro modelo que vai se tornar hegemônico como esse. A revolução russa foi isso. Criou um modelo hegemônico em contrapartida a outro modelo. Até que ponto isso é interessante, eu me pergunto. Meyerhold foi assassinado pelo regime dito democrático. Até que ponto não temos que criticar todos os modelos? Se você faz arte você está fora de todos os modelos, compondo com todos eles. Hoje você só faz arte com patrocínio, Petrobras, SESC, universidade, e todos eles fazem parte dos modelos hegemônicos. Ou você compõe com isso, fissura isso, e através disso você faz, ou eu não sei como seria possível para fazer de outro jeito. Senão é só discurso, ideologia vazia. E concomitantemente consome-se Coca-Cola, em seu Volkswagen, vai à Blockbuster, aluga um filme hollywoodiano, compra vinho de grandes potências europeias, numa taça Nadir Figueiredo. E assim o mundo caminha. L- Na conversa do bar. R- Sobre quão nós devemos ser resistentes a tudo isso. A arte busca outra coisa, senão é muito hipócrita. Helena Bastos (Professora Doutora e dançarina do MUSICANOAR) H- Aí você já está indo para uma linha de economia cultural, não é? Economia criativa. Eu reconheço a arte como produção de conhecimento, é como eu entendo. Hoje em dia, no contexto das políticas públicas, estamos começando a discutir, a arte tem determinadas particularidades. Penso que é importante esses editais de fomento, logicamente eles acabam dando visibilidade a determinados pensamentos e sobrevivência a determinados pensamentos criativos. Por outro lado começa a haver uma onda inversa desses grupos que acabam sendo fomentados, por exemplo, eu atualmente sou uma fomentada, digamos assim. De gerar também... Esse circuito vai se fortalecendo, você começa a ver que há um certo rodízio, uma hora você está dentro, outra hora você está fora. Os grupos começam a ficar reféns desses jogos do editais. Estão aparecendo outros tipos de problema, não estou falando que sou contra as leis de incentivo, mas temos que pensar também esses outros lugares da arte. Há um grupo que estou fazendo assessoria em Ribeirão Preto e a princípio meu combinado com eles era de ir aos sábados. Ele ganharam proAc e, quando comecei, a diretora mudou para segunda-feira. Eu perguntei por que e ela alegou que era o dia de descanso deles. Tudo bem, também somos trabalhadores, mas essa relação na hora que entra conceitos de bens materiais... é um campo que precisamos discutir, porque eu vejo nesse momento muitas incoerências também. Vejo avanços, por exemplo, eu mesma não consigo produzir se não houver um respaldo

30


econômico, mas sou de uma geração que vendia meu carro para pagar as coisas, a geração “quebra pedra”. Vejo pessoas saindo da universidade falando já da “minha pesquisa”. Agora depois de trinta anos que estou começando a entender a minha pesquisa. Sua geração, sinto que tem um discurso bastante potente, mas percebo também ser um discurso muito desencarnado. Uma coisa é o que você fala, tem aquela potência, mas eu quero perceber esta potência também no corpo.26 L- Você estava falando do gerar conhecimento também no fazer, não é? H- Senão vira retórica. Ou este grupo de Ribeirão é super legal e todos os bailarinos vieram de condições difíceis. Gerados desse âmbito do social, há um lugar muito precioso no trabalho que se está fazendo nessa companhia. Ao mesmo tempo me choco, pois pegam as leis trabalhistas, não sei se estou sendo incoerente, mas se você é um artista... é um outro jeito que eu produzo, que eu penso a ideia de trabalho. Temos que garantir esse chão, mas não posso me colocar igual a um metalúrgico, e não estou fazendo uma questão de valoração. Mas a arte em si, se tem (deveria ter) algo de atravessamentos, rupturas, então (a partir do exposto) começa a ser uma arte muito conivente com as regras do sistema. L-Que para acontecer tem que ser sempre mediada por uma condição... H- É. L- Se não tiver fomento, “não rola”. H-Exatamente. Mas também tem uma série de questões que, por exemplo, eu até estou lendo uma tese. Dança é tida como o 4o lugar dentro das perspectivas de programas de cultura. Deixa eu até ver para não falar bobagem: “São poucos que sabem que se trata de um campo em expansão. No Brasil, teve no primeiro panorama estudado em 2006, quando o IBGE apurou que as famílias gastam 4,4% do seu orçamento em cultura”. Cultura é o 4o lugar L- É o quarto lugar dos gastos numa família? H- Isso. É um ambiente, e não sabemos disso... L- Você sabe quais os 1o ,2o 3o ?

26

Posterior crítica reflexiva minha enquanto artista-pesquisador que passou pela experiência do bacharelado em artes cênicas na universidade: isso se deve à produção e pensamento em arte como vem sendo disseminado e construído em ambiente acadêmico, ao qual estamos o tempo todo sendo convidados, a definir nosso discurso, nosso campo de ideias, muitas vezes antes de se lançar a uma investigação prática. Por outro lado percebe-se ao longo desses anos que os alunos universitários aspirantes a artistas quando interpelados pelos professores não apresentam questões consistentes ou fortes pulsões, não mostram consciência das problematizações incorporadas em seu fazer.

31


H- Olha: “Habitação, alimentação, e transporte” quer dizer a saúde vem depois da cultura. Isso é um dado do IBGE, está vendo?27 Já estamos em 2012, mas não é tão longe assim. A dança, se não me engano nessa questão da cultura, não sei se é a primeira...tenho que ler mais. L-Qual é essa tese? H- Da Dora Alice Leão “Uma fábrica de mentiras: A incomunicação da economia da dança”. Essas suas perguntas convergem bastante com as questões de sustentabilidade, de divulgação da cultura, de formação de público. Isso tudo gera um ambiente. Eu sinto que hoje as leis de incentivo acabam demarcando um panorama que vai mapear os que estão dentro. E os que estão fora? Cristiane Zuan Esteves (jornalista formada e Diretora do OPOVOEMPÉ) C – No mundo ideal o ato artístico deveria acontecer sem trocas econômicas e no âmbito do homem com o homem. Nosso trabalho no mercado jamais se sustentaria, teríamos que cobrar caro para sustentar contra-regra, é uma mobilização muito grande. A arte acontece na experiência do outro. O valor social dela é uma consequência, penso. Se a arte tenta somente ser social ela não chega no cerne, pois está muito mais próxima da filosofia, da religião. É no âmbito do inefável, do indizível. Então às vezes tem ações sociais que se valem de procedimentos artísticos, por exemplo trabalhar uma coisa educativa de arte com crianças, elas vão desenvolver um potencial artístico na relação com o mundo. Porém a arte tem esse poder e não somente o trabalho social. É muito difícil fazer as coisas assim, você tem que fazer as pessoas se perguntarem e se colocarem em movimento. Já o âmbito econômico é onde precisamos ganhar dinheiro para sobreviver, comprar livros, pagar os outros. Mas nosso trabalho não visa isso, sempre fizemos com muito pouco dinheiro. Quando ganhamos o fomento isso significava muita responsabilidade mas também muita liberdade. Não precisávamos fazer um espetáculo que desse bilheteria. Eu sou a favor de que ações nãocomerciais sejam apoiadas pelo poder público.

27

Posterior reflexão minha enquanto artista-pesquisador diante do dado: mas o que significa de fato a saúde vir depois da cultura? Pensando em gastos a nível familiar, as condições de saúde estão melhores se comparadas a outras épocas? Pessoas prescindindo menos de gastos com saúde ou não? Por que razões a cultura se enquadra antes da saúde com relação aos gastos familiares e o que está sendo tomado como ‘cultura’ na avaliação estatística?

32


Ana Luiza Leão (atriz do OPOVOEMPÉ) A – Eu tenho uma imagem aqui. Essa obra de arte gera algo para quem vê. A arte toca o ser objetivamente no profundo do ser, esse conceito é o da arte objetiva, do Peter Brook. E em que medida eu também não alimento isso, além disso me alimentar. Eu não saberia dizer em que proporção se dá a troca. E eu não vejo a arte financeiramente, isso é um jeito que ela está sendo trabalhada hoje. Há outros jeitos. Quando eu falo de moeda, por exemplo, que para mim é energia. E se você guarda o dinheiro a energia para de circular. O consumo está num lugar muito raso, a posse é “excessivamente importante”. Achei a definição de espetáculo aqui, é olhar atentamente. Você precisa de um tempo para se dedicar àquilo. Quando propomos para o público em uma de nossas intervenções, Parada para respirar, pôr o pé na grama, a pessoa sai diferente daquela experiência. E tem muitas pessoas que não dão abertura pra nós. L – Elas estão esperando o espetáculo social (merchandising), talvez. Virou como o ‘compro ouro’ para as pessoas. A – É, e realmente eles não falam com o rapaz que compra ouro. Mas eu não saberia por onde pensar valor de uso e valor de troca. Por princípio a arte só existe se alguém olha. A troca existe, com tempos diferentes. Às vezes eu assisto uma peça que foi escrita há mil anos atrás. Também há a troca como energia. Dentro do tempo não há nada parado. A princípio a troca é social mas também se insere no econômico, é inerente. É social, é político e também é necessariamente econômico. E dentro disso você vê os valores, que são questionáveis. Depende de como julgamos os valores hoje. É difícil porque penso em manifestações mais ancestrais, como dança, pintura, teatro. As pessoas precisam de coisas que as reflitam, que as façam questionar. Eu não conseguiria pensar num teatro comercial hoje. Otávio Oscar (formado em direção teatral) O – A arte é como engenharia ou ciência, pode ser usada para diversos objetivos, como a bomba atômica, ela foi idealizada para outros fins que não o que vimos acontecer. Ela foi idealizada para criar energia. A arte também, pode ser altruísta, provocar, melhorar, por outro lado também pode ser usada para vender ideias, para fixar pontos de vista, e até mesmo para fazer as pessoas se acomodarem. Eu penso no teatro do Padre Anchieta, que era feito para catequizar os índios. L – O que seria da publicidade sem a arte? O – É. Só o ‘beba Coca-Cola’ não seria suficiente. A novela também, tem sua estética consolidada, e faz com que você esqueça a realidade ao seu redor. E a arte pode ter um valor

33


de troca, pode ser usada para produzir, potencializar, e o valor de uso depende dos objetivos que se tem. Hoje está muito associado ao valor e econômico. Então se você não gera lucro com a arte, fica difícil fazer mais arte. Você é menos valorizado. Essa dimensão da arte provocadora, por contextos sociais, está em baixa. O sistema produtivo determina esse valor. Hoje a arte mais voltada para o lucro está mais triunfante. A arte consumível. Não se entende como experiência, sim como produto. E a mídia também constrói isso. A maioria dos performers do mundo são marginais, mas pensando-se na Marina Abramovic, o trabalho dela gera muito lucro, fala-se muito dela. Tem grande valor de troca. Para um museu isso é interessante, atrai mais pessoas. Mas para mim o maior potencial é o provocativo, mesmo. Thais Lucena e Vanderson de Sousa (graduanda em relações públicas, atriz, não-dançarina/ formado em biologia, mestrando em biologia, graduando em ciências sociais, não-dançarino) T – Tudo é uma troca, a arte visa a troca de experiência, sim. Isso constrói as pessoas e as pessoas constroem a arte. V – Se você faz uma peça, tem um valor de uso, pode ser o lazer. Para você, que trabalhou, é um valor de troca. Mas o público te dá de volta em troca? Uma platéia com cem e com uma pessoa é a mesma coisa? T – Sim, o público responde, corresponde, dá calor. E é muito diferente a relação entre as duas platéias, até o calor muda. V – Se a peça só tem valor de uso para a plateia, não há valor de troca. Se é indiferente para o artista. T – Acho difícil que não aconteça troca. A presença ou ausência das pessoas tem significado. V – No contexto de hoje sempre tem a troca cultural e econômica. Mesmo que não seja com o público, você precisa ganhar dinheiro. A economia é a base da execução. Realmente, quando as pessoas já visam o lucro desde o início, o valor é econômico. T – Se a pessoa só trabalha com isso ela precisa se preocupar com o dinheiro, claro. V – A peça ‘Trair e Coçar’, por exemplo. Não deixa de ser arte, mas eles visam a bilheteria. É diferente da cia. de teatro que atua na zona leste. T – Mas também não é um problema querer crescer e ganhar dinheiro. V – Não é, mas é diferente. L – E a diferença entre valor de troca e de uso? V – Cada objeto tem valor de uso e o valor de troca é a relação entre todos os valores de uso. Um quadro do Picasso hoje, no começo talvez só tivesse valor de uso para quem conhecia e sabia sobre, e hoje tem um valor de troca altíssimo.

34


T – O valor de uso talvez seja mais sobre o que a arte pode transformar na vida das pessoas, e isso se estabelece pela troca. V – Quando uma pessoa se dispõe a ficar duas horas vendo uma peça, é o valor de uso. T – Mas é inacessível para o público, porque não se sabe direito como se vai usar aquilo. V – Sim, como ler um livro, é um trabalho de decodificação. Patrícia Bispo (graduanda em artes cênicas) P – Tem trabalhos que têm valor de troca muito mais econômico. L – Qual a diferença entre valor de uso e valor de troca? P – O valor de troca está mais ligado ao valor econômico e o valor de uso a outras questões, como o que se espera da arte, no sentido de que se possa apreender algo de um trabalho. Acho que a arte deveria estar dentro do valor de uso. Quando fazemos arte não é só pra nós mesmos e não necessariamente para vender. L – E você acha que a arte busca essa troca de alguma coisa? P – Depende de quem faz, mas no geral, sim. Após esses diversificados pontos de vista, muito mais do que concluir ou responder a essa pergunta, instiga-me a busca. Que caminho (e que escolhas ao longo do caminho) traçarei enquanto artista diante do reconhecimento histórico dos fluxos nos quais estamos inseridos, para viabilizar questões prementes apontadas em nossa sociedade (e reconhecidas em outras tempos e outras sociedades), captadas por meus percepto, afecto e intelecto, e traduzidas esteticamente a uma experiência intersubjetiva com outrem, instigando estes outros percepto, afecto e intelecto particulares e passíveis de transformação em via dupla. Foram apontados o valor da arte enquanto campo de sensibilidade e potencialização criativa, enquanto produtora de conhecimento, enquanto ofício passível de reconhecimento econômico ou financiamento público ou privado (mecenato), enquanto campo cognitivo de atribuição de sentido, enquanto campo antropológico necessário do que não tem explicação, enquanto produto gerador de lucros, enquanto campo próximo à filosofia e à religião, enquanto campo de ligação e troca de energia entre os homens, campo de experiências. Nesse caldeirão criativo, aponta-se um solo fértil sobre o qual atuar. Ainda estamos falando de trocas sensíveis entre seres humanos.

35


1.4 Rotina: pequenos rituais do dia-a-dia Refletindo sobre o distanciamento entre arte e cidade, salta a mente as palavras mito, rito e rotina. O ser humano é um ser altamente ritual, cria seus pequenos rituais diários, para se reconhecer, ter identidade. Sabe quem é pelo que faz (e se faz, faz em relação a um ambiente de convívio, o que envolve ancestralidade e mito), pelo que pensa que é e pelo que os outros pensam que é. Este é um processo de negação: eu sei o que sou, muito mais por criar consciência do que não sou, e essa consciência só se torna possível pelo ambiente, pelo outro, pela noção intrínseca ao ser humano de alteridade. A partir do momento que me percebo distinto do outro por certos aspectos, é que formo minha própria identidade. Recentemente ouve-se: “a sociedade contemporânea do séculos XXI é uma sociedade fragmentada, sem mitos” “Os homens de hoje vivem numa sociedade em que impera uma relativização de valores, amoralidade, a pulverização dos mitos”. Discordamos dessas colocações quando defendem de maneira generalizada e generalizante que o ser humano não é mais regido por mitos. Seria simplório pensar que os mitos, tais quais foram concebidos para explicar e lembrar ao homem quem ele é, se mantêm intransponíveis e determinam puramente a existência humana, como simplório seria acreditar na morte dos mitos. As sociedades se transformam e os mitos sofrem alterações, estão passíveis a transformações, rupturas ou novas criações de acordo com as questões sociais que configuram particularmente cada povo e cada época. Mas relacionar-se com o ambiente e com o outro é parte da natureza humana, logo, seres em constante mutação, estaremos sempre forjando novas regras de convívio e formas de permanência. O que seria então a rotina senão a estruturação de pequenos ritos diários? É assim que identificamos a cultura de um povo, ou de uma classe, ou de um indivíduo, a partir do reconhecimento da particularidade de seus costumes, hábitos, eventos, ações, repetições. O ser humano é um ser de repetição. À luz da compreensão que Marina Abramovic nos traz, nossa rotina ou as alterações em nossa rotina, as mais simples ações diárias é que determinam nossa cultura, nosso modo de se comportar, nossa troca intersubjetiva, é o que criamos para justificar nossa existência. Reconhecer essas repetições do dia-a-dia e torná-las evidentes de maneira artística através de um jogo entre visível e invisível no espaço público é uma possibilidade de chacoalhar percepções acostumadas ou viciadas a um determinado comportamento, e de

36


repente, interromper por instantes um fluxo já conhecido para que se pense sobre sua própria condição dentro deste fluxo. Se os mitos revelam para uma sociedade seus valores éticos, morais e comportamentais, se cada grupo social opera sob certa rotina específica: regras, vestimentas e se imbui de determinados símbolos para reconhecer-se, criar identidade num todo, citamos algumas formas de ritualizar o dia-a-dia, que partem do fazer de alguns artistas: Marina Abramovic com sua crença de que o que move o mundo e as relações nele estabelecidas é um constante fluxo e administração de energias, propõe a implantação de cristais rituais na arquitetura dos cômodos das casas ou em lugares públicos estratégicos para que as pessoas, a partir da aproximação de seus chacras a eles, revitalizem-se, reequilibrem-se energeticamente, criando assim uma nova possibilidade de jogo incorporada à rotina diária das pessoas. Vestimenta ritual- convencionei para o meu fazer artístico em trabalhos de performance, no que concernem as questões levantadas por essa pesquisa (trabalhar a partir do mínimo ou do simples explorando seus caracteres simbólicos), utilizar sempre uma mesma vestimenta que por si só (de maneira visível ou invisível, subliminar) revela uma forte questão provocadora, o grande espetáculo no qual estamos socialmente inseridos, seria esta minha camiseta verde com o escrito: “Grand Theater” (Grande Teatro), utilizada na maioria de minhas performances. Outro exemplo disso seriam as roupas e chapéus pontiagudos monocolores que variam de cor para cada dia da semana, que Marina também institui como possibilidade ritual dentro da rotina diária, ou ainda o “new look” de Flávio de Carvalho sempre utilizado por Zé Celso em suas apresentações. É o cotidiano com valor simbólico. Como pescar do cotidiano estes símbolos e tornálos arte? BAPTISTA vem a nos dar suporte em nossa exploração ao reforçar a ideia de que rotina, ritual e cultura estão intimamente ligados: Entende-se cultura como cotidiano vivido onde estão presentes as manifestações artístico-culturais, os modos de vida e as marcas que essas pessoas deixam no espaço, no processo de produção e reprodução da vida.(BAPTISTA, 2011, p.5)

37


CAPÍTULO2: A PERFORMANCE EM ESPAÇOS PÚBLICOS A PARTIR DO MÍNIMO GESTO OU DA AÇÃO SIMPLES COMO LINGUAGEM ARTÍSTICA

“A inércia é meu ato principal” (Manoel de Barros, Livro sobre Nada)

38


2 A PERFORMANCE EM ESPAÇOS PÚBLICOS A PARTIR DO MÍNIMO GESTO OU DA AÇÃO SIMPLES COMO LINGUAGEM ARTÍSTICA

2.1 Definição tentativa de termos “Não gosto de palavra acostumada”. “Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção”. “Tudo que não invento é falso” (BARROS, 2010, p.345)

Para este tópico buscamos um cerceamento teórico pautado na bibliografia lida, no significado direto dos termos utilizados como encontrados no dicionário Aurélio da língua portuguesa, nos conceitos confrontados com pontos de vista de alguns contemporâneos, estudantes e profissionais da área do teatro, da intervenção urbana, da dança e da arquitetura através de entrevistas e a partir da própria experiência e repertório do artista-pesquisador enquanto proponente dos termos a serem definidos. Nos propomos a definir os termos mínimo gesto e ação simples como enriquecimento da literatura no campo das artes cênicas, como mais uma contribuição vocabular para pesquisas de outros artistas e interessados nesta vertente dentro da performance, que já é possível de ser identificada pelo artista-pesquisador antes da origem deste estudo em específico, mas que encontra aqui espaço de organização, definição, desenvolvimento e manifestação. Termos como performance, espaço público, entre-lugar são termos que já encontraram ambiente mais favorável à discussão ao longo dos últimos anos e são uma base teórica deveras importante para nossa investigação, portanto também são motivo de debate e cerceamento a partir de uma construção coletiva colhida desses variados olhares de artistas contemporâneos (pois nos interessa de sobremaneira não só o conhecimento que colhemos dos livros, mas essa investigação de uma bibliografia brasileira, viva, e próxima de praticantes e pensadores da arte atualmente em ação neste cenário da arte pública em São Paulo), para consultá-los leia as entrevistas em anexo. Antes de partirmos para as definições de ação, simples, mínimo e gesto compartilho com o leitor frases de outros autores sobre dois importantes aspectos da linguagem artística que desenvolvo: performance, por Marina Abramovic, e Duração e Tempo, por Newton e Bérgson, que me fazem a cada dia relembrar os motivos e objetivos pelos quais continuar minha pesquisa artística.

39


Performance: Na minha opinião performance é uma construção física e mental feita na frente do público na qual o artista entra e perform. Pra mim performance sem o público não existe, sentir-se bem é um dever, mas não pode ser o dever da arte porque arte não é uma farmácia, no meu trabalho estou interessada em estabelecer uma relação entre meu corpo e o corpo do planeta. Vamos inundar a terra com arte. (ABRAMOVIC, 2002, grifo nosso)

Nesta breve fala Marina consegue traduzir de maneira essencial a relação entre performance, papel da arte, vida e alteridade. Performar é viver por intermédio da arte uma troca de experiências que nutre e transforma retroativamente os corpos envolvidos através dos fluxos de energias compartilhadas. Esta construção através da arte visa senão estabelecer relações intersubjetivas.

Duração e Tempo: Newton nos Principia “O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, em si mesmo e por sua própria natureza, decorre uniformemente sem relação a algo exterior, e com outro nome é chamado de Duração”. Bérgson, em L’Évolution Créatrice: “o universo dura. Quanto mais nos aprofundarmos sobre a natureza do tempo, melhor compreenderemos que duração significa invenção, criação de formas, elaboração contínua do absolutamente novo”. Doravante essas duas dimensões se articulam em vez de se excluírem. O tempo hoje reencontrado é também o tempo que não fala mais da solidão, mas sim da aliança do homem com a natureza que ele descreve. (PRIGOGINE; STENGERS, 1997, apud BASTOS, 2006, p.117, grifo nosso)

A noção de tempo e duração carregam em si uma ambivalência complementar de concretude e abstração construindo o que chamamos de realidade. Este dito tempo passa, ao mesmo tempo, independente e co-dependente de nós, pois transformação é ação no tempo. Independente porque a matemática que inventamos para quantificar o mover do universo existe independente de nós, e co-dependente pois é justamente a partir de nossas invenções, imaginações, criações e relações estabelecidas em ação que existe moção e transformação. Pensando nos movimentos do mundo, acreditamos que performar sobre ações simples e mínimos gestos sob uma duração extra-cotidiana é uma das possíveis invenções que possibilitaria resgatar essas relações intersubjetivas no espaço público, rompendo fluxos viciados e aflorando possíveis formas de humanidade latentes ou adormecidas pelo cotidiano. Passaremos às definições como trazidas por Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira:

40


Ação: [Lat. actione] sf. Ato ou efeito de agir, atuar; atuação, ato. 2. Manifestação de uma força, uma energia, um agente. 3. Maneira como um corpo, um agente, atua sobre outro. 4. Capacidade de agir. 5. Comportamento, procedimento. 6. Ocorrência, acontecimento. 7.Econ. Título de propriedade, negociável, representativo duma fração do capital, numa sociedade anônima. 8.E.Ling. Expressão de processo ou atividade 9.Jur. Faculdade ou exercício do direito de invocar o poder jurisdicional do Estado para fazer valer um direito que se julga ter. (FERREIRA, 2010, p.8)

Curioso perceber que o campo de significação da palavra ‘ação’ envolve o plano do movimento do tempo, do espaço, da propriedade, espaço privativamente habitado ou de posse, e o direito jurídico sobre algo ou alguém. Ação pressupõe imprescindivelmente relação. Simples: [Lat. simplice.] adj2g2n. 1. Que não é duplo ou desdobrado em partes. 2. Não constituído de partes ou substâncias diferentes. 3. Sem ornatos; singelo. 4 sem complexidade ou dificuldade; singelo. 5. Sem luxo ou aparato; singelo. 6. Mero. 7. Único, só 8. Simplório (FERREIRA, 2010, p.700)

O simples para nós encontra maior adequação em nosso recorte quando pensamos em algo único, uno, sem desdobramentos na execução, algo repetitivo, cíclico, delegando às leituras de outrem a possibilidade de desdobramentos. Simples para nós definitivamente não se emparelha com simplório. A palavra mais recorrente aqui foi singelo ou singeleza e nos remete a sutileza, delicadeza, suavidade, pequeno, economia, mínimo.

Mínimo: [Lat. minimu] adj. 1. Superl. de pequeno; que é o menor, ou que tem quantidade, valor ou grau muito baixos. 2. Que não é maior ou superior (em grau quantidade, valor) a nenhum outro de um grupo; menor ou inferior a todos os demais. 3. Que é o menor possível ou admitido (em tamanho, valor, etc.) (...)sm. 5. Pequeno na porção, quantidade, valor ou tamanho.6. Aquilo que é menor ou inferior que os demais. (FERREIRA, 2010, p.507)

A relação de significado que nos interessa para ‘mínimo’ aproximar-se-ia de nossa compreensão desdobrada sobre singeleza, que por sua vez conecta-se ao ‘simples’. O mínimo gesto seria o menor gesto possível de acordo com o contexto, mais especificamente, de acordo com as necessidades identificadas de transformação da “movência” do contexto. Já um gesto mínimo seria um gesto de valor ou grau muito baixos. A compreensão que buscamos não aproxima-se, contudo, em nada com a noção de inferioridade. O ditado aqui pareceria por demais óbvio, mas cabível perfeitamente como desafio em toda essa nossa busca: “Menos é mais”.

41


Gesto: Gesto1 [Lat. gestu] sm. Movimento do corpo, esp. da cabeça e dos braços, para exprimir ideias ou sentimentos, ou para realçar a expressão. Gesto2 [Fr. Geste, do lat. gestu.] sm. Ação, ato (ger., brilhante). (FERREIRA, 2010, p.378)

Sob a legitimidade de Ferreira gesto se trataria de um movimento necessariamente expressivo, portanto estabelecido a partir de uma relação com o ambiente, ou propriamente ação, sendo bastante cabível pensar a proximidade conceitual e prática entre mínimo gesto e ação simples em nosso estudo. Veremos adiante, porém, sutis diferenças no entendimento entre cada um destes conceitos. Já Pavis fará uma detalhada categorização e sufixação das distintas maneiras de se compreender e praticar os termos ‘ação’ e ‘gesto’ no teatro. Colocamos nos Anexos os trechos que mais nos chamaram atenção e destacamos aqui o que mais se aproxima com o que desenvolvemos: AÇÕES Ao contrário das ações teatrais, simbólicas e representadas do comportamento humano, as ações de artistas de performance ou de body art, como de Otto MÜHL ou de Hermann NITSCH, do grupo Fura dels Baus ou do circo Archaos são ações literais, reais, muitas vezes violentas, rituais e catárticas: elas dizem respeito à pessoa do ator e recusam a simulação da mimese teatral [...]. As ações ao recusarem a teatralidade e o signo, estão em busca de um modelo ritual da ação eficaz, da intensidade, visando extrair do corpo do performer, e depois, do espectador, um campo de energias e de intensidade, uma vibração e um abalo físicos próximos daqueles que exigia Artaud ao reivindicar uma “cultura em ação que se torna em nós como que um novo órgão, uma espécie de segunda respiração”. (PAVIS, 2007, p. 2-7) ACONTECIMENTO Constituir uma presença humana entregue ao olhar do público. Relação viva entre ator e espectador é que constitui a base da troca. Algumas formas atuais de teatro (o happening, a festa popular, o teatro invisível de BOAL, 1977) a performance buscam a versão mais pura da realidade ligada ao acontecimento: o espetáculo inventa a si mesmo negando todo projeto e toda simbólica. (PAVIS, 2007, p. 2-7) GESTO b. O gesto como produção [...]gestualidade do ator (ao menos numa forma experimental de interpretação e de improvisação) como produtora de signo Grotowski recusa-se a separar pensamento e atividade corporal, intenção e realização, ideia e ilustração. Produção-decifração de ideogramas: “novos ideogramas devem ser constantemente pesquisados e sua composição parecerá imediata e espontânea. O ponto de partida dessas formas gestuais é a estimulação e a descoberta em si mesmo de reações humanas primitivas. O resultado final disso é uma forma viva que possui sua própria lógica” (Grotowski) [...] fonte e finalidade do trabalho do ator. Impossível descrevê-lo em termos de sentimento ou mesmo de posições-poses (Meierhold) significativas. Hieróglifo= Signo icônico, tanto objeto simbolizado como o símbolo.

42


1. Rumo a uma tipologia e a um código gestual a. Tipologia O gesto pode [...] recusar a imitação, a repetição e a racionalização discursiva. [...] hieróglifo a ser decifrado “o ator, diz Grotowski, não deve mais usar seu organismo para ilustrar um movimento da alma; ele deve realizar esse movimento com seu organismo” [...] ideogramas corporais , segundo Artaud “uma nova linguagem física à base de signos e não mais de palavras” tudo assume valor de signo e os gestos, qualquer que sejam a categoria a que pertençam entram na categoria estética b. Problemas de uma formalização dos gestos [...] difícil uma decupagem em unidades gestuais. A ausência de movimento não é critério suficiente para delimitar o início ou o fim do gesto. Toda descrição verbal do gesto do ator perde muito das qualidades específicas dos movimentos e das atitudes; decupa o corpo de conformidade com unidades semânticas linguísticas quando se deveria exatamente estudar o corpo segundo suas próprias unidades ou leis- se é que existem Gestualidade teatral como hieróglifo do corpo humano e do corpo social. (PAVIS, 2007, p.184-187).

De todos o trechos selecionados o que gostaríamos de enfatizar é que nossa pesquisa artística sobre o mínimo gesto e a ação simples em espaços públicos interessa-se numa investigação do corpo que preze por ações e gestos reais com valor simbólico os quais estabeleçam um acontecimento, um ambiente de troca de sensações, energias e pensamentos no espaço público. Ao trabalhar com o mínimo e o simples como linguagem não se pretende determinar ações e gestos através de decupagem como estruturas elementares fechadas. O corpo a cada instante se redescobre e se reinventa em jogo com o ambiente, é, portanto, um produtor de signos. Os artistas entrevistados apesar de pertencerem a áreas diferentes dentro das artes (teatro, performance, dança e intervenção urbana) trabalham diretamente com o corpo e curiosamente apresentaram similitudes entre seus diversos depoimentos. Segundo Ana Leão e Helena Bastos a definição de termos como ‘mínimo gesto’ e ‘ação simples’ exigiria necessariamente descobrir suas diferenças e particularidades pela prática, pela investigação corporal, pela experiência, ao que concordo, uma vez que essa pesquisa nasce de uma pulsão de descobertas empíricas advindas da experimentação prática ao longo de meus anos na academia. Mas arriscam que o ‘mínimo gesto’ pode ser refletido partindo essencialmente da pulsação do coração como motivação originadora de todo o resto dos sistemas que movem o mundo, inclusive da organização social. Ainda com relação a esses micro-movimentos sutis Helena pensará na metáfora do ‘fremir de asas de borboleta’. Esta metáfora assemelha-se à colocação de Cristiane Esteves ao refletir sobre ‘o mínimo gesto capaz de (mover)’ e nos remete à frase “um rufar de asas de borboleta num extremo do globo é capaz de gerar um furacão em seu extremo oposto”.

43


Renato Ferracini e Ana Leão entrariam em concordância quando associam o mínimo gesto a uma percepção e trabalho internos, um trabalho micro-muscular, uma micropercepção. Já encontram divergência quando Ana e Helena associam o mínimo gesto a um trabalho com partitura corporal e escalas, e Renato acredita que o mínimo gesto não se trataria de uma divisão do gesto em escalas, mas numa condensação que é o próprio todo. Não se trataria portanto de uma relação metonímica da parte representando o todo. Ainda pensando em quantificação o mínimo gesto teria na visão de Thaís Lucena, Vanderson de Sousa e Helena Bastos uma relação com amplitude espacial. Já para Renato Ferracini o mínimo gesto seria um gesto condensado não se tratando portanto de analisá-lo por um viés de escalas, unidades básicas ou estruturas elementares, como o fazemos com a gramática. O mínimo gesto para Renato Ferracini, reforçamos pois acreditamos que se assemelha mais com o que desenvolvemos ou desejamos, não é a parte pelo todo, é o todo condensado, como almejavam os minimalistas, capturar a essência. Cristiane Esteves, por sua vez, fará uma ressalva no mínimo interessante de ser considerada: o mínimo gesto capaz de transformar ou mover, dependendo do contexto, talvez não seja necessariamente pequeno, ou invisível, ou sutil. Assim como a ação simples, o mínimo gesto, nesse âmbito da performance em espaços públicos, só se daria em relação. Portanto “o mínimo gesto capaz de” depende do contexto. Partindo para a compreensão que os entrevistados construíram sobre ‘ação simples’ esta, segundo Cristiane Esteves, Ana Leão, Otávio Oscar e Patrícia Bispo, poderia ser identificada em meio à “dança do cotidiano”, estaria relacionada a essa constante orquestração de fluxos na paisagem urbana. Realmente a visão que apresentam é também o que me motiva quando busco capturar arte dentro do cotidiano e revelá-la através do agir essas ações simples identificadas na malha pública urbana. Portanto, concordando com Thaís Lucena, Ana Leão e Cristiane Esteves, a ação simples entendida no campo da performance não necessita de psicologização ou demonstração de intenções, trata-se de agir com presença, preenchendo cada instante, consciente de ser-estar, uma ação que existe por si, acredita no seu poder de ação, de transformação. Seria uma ação física realizada com pequenos músculos, para Otávio Oscar, Renato Ferracini e Ana Leão. Otávio Oscar e Helena Bastos defendem que o ‘mínimo gesto’ e a ‘ação simples’ estão fortemente atrelados a uma ideia de recorte, restrição, redução, a enxugar aparatos e recursos (o que para mim se assemelharia a economia, essencialização, ou a tradução estética mais apropriada para determinada questão através da ótica do mínimo e do simples). São gestos ou

44


ações pontuais e repetitivos – numa longa duração (estabelecendo aí uma relação direta com o minimalismo e também com uma característica que foi identificada, amplamente copiada e rotulada do trabalho de Pina Bausch no Tanztheater Wuppertal). Cristiane Esteves e Otávio ressaltarão que um mesmo gesto ou ação mudam dependendo do contexto sociocultural, e valendo-se deste conhecimento, acreditam, em acordo com Ana Leão, que o mínimo gesto e ação simples se apresentam como forte possibilidade de ampliar, acentuar, revelar o espaço público e suas contradições. Pensando na fricção entre performance, espaço público e minimalismo dois desafios que se apresentam é ter consciência de que pensar ou agir o simples já é em si algo extremamente complexo (Renato Ferracini, Helena Bastos, Vanderson de Sousa e Thais Lucena), posto que o simples é síntese, condensação (Renato Ferracini e Helena Bastos). Em se tratando de sua realização, do ponto de vista da investigação corporal do performer, o que importa é o que me move na experiência, na ação, é a presença, é a questão que impulsiona a ação, é o grau de urgência da ação segundo Ana Leão e Helena Bastos. Pois “A Arte” aí já não é domínio do performer, mas está no olhar de quem vê, na forma de se relacionar, perceber e associar as coisas, de acordo com os pensamentos de Ana Leão, Otávio Oscar, Cris Esteves e Patrícia Bispo. Após essa sondagem de possíveis significados e conceituação para os termos que estamos utilizando como parâmetros de criação sugerimos, em consonância com nossa prática, o que sejam ‘mínimo gesto’ e ‘ação simples’: Para nós o gesto pode ser cotidiano: social (ex. aperto de mão)- particular, específico, ou geral, universal; de necessidade biológica (ex. coçar nariz)- consciente ou inconsciente, voluntário ou involuntário. Como também expressivo: revela emoção, sentimento, interjeição. A ação é um mover com determinado propósito, é relacional. Debatendo sobre os termos de pesquisa foi comum aos entrevistados pensar em decupagem, síntese restrição, condensação, redução, mas acredito que a estrutura elementar da linguagem, as palavras, a gramática, só responde até certo ponto o que se descobre em relação, em experiência, em empirismo, portanto o indizível e mesmo o “invisível” está em jogo nessa tentativa de definição. Pois “decupagem” por exemplo parece não contemplar de maneira apropriada o solo de investigação que queremos pisar. O ‘mínimo gesto’ é um gesto condensado, uma síntese, um gesto de fato necessário para exteriorizar uma ideia ou símbolo, essencial para comunicar, trocar, mover. O mínimo gesto seria então considerado sutil ao provocar uma interferência mínima, invisível diante do fluxo?

45


Como as gentilezas trata-se aqui de uma percepção aguda das sutilezas, uma abertura para escutar e se transformar. O mínimo que na verdade é o máximo de percepção, atenção, relação com o meio, síntese, condensação, invisível, tirar os excessos, acreditar no poder do mínimo gesto em si mesmo, a necessidade de troca. Um gesto motivado pelo externo, pela relação com o meio, mas que parte de uma necessidade trabalhada muito internamente e de como seria a forma mais simples ou essencial de expor essa necessidade, essa urgência, essa questão. Performar mínimos gestos e ações simples a partir de um propósito claro, de uma urgência e instaurando presença, através da construção de uma percepção aguçada pela relação constante com o espaço, significa fazer escolhas a todo instante e relembrar-se a todo instante de qual é a questão que move o performer naquele presente contínuo. Por conseguinte aqui não seria apropriado pensar em demonstração, exibição, simulação da intenção ou psicologismo. As questões que se faz em relação a certa problemática identificada na realidade de determinado espaço público hão de ser consideravelmente complexas, de difícil resolução, dialéticas, apresentar contradições: as “respostas” ou provocações artísticas do performer proponente, pelo contrário. Este há de buscar para elas, as questões, uma formalização estética (proposição de fruição, provocação ou “resposta”) de natureza simples, mas a ser lida, desvendada, jogada, decifrada, articulada, dialogada, construída em camadas pela relação com outrem. A ‘ação simples’ está mais ligada a ações cotidianas que adquirem status ou significado novo pelo deslocamento contextual ou acentuação. Externamente trata-se de uma ação visivelmente simples, sem revelar complexidade ou virtuosidade para se dar, mas o invisível: o grau de atenção, a presença, a pulsação interna, os micro-músculos, o que preenche a ação, pode revelar uma grande complexidade combinatória de fatores. Por exemplo, correr é simples, mas se deslocarmos essa ação simples para outro contexto: correr atravessando um túnel de carros (como no caso de uma das proposições artísticoperformáticas do Experimento I) envolve uma complexidade de atenção em que a ação é simples, mas engloba e ativa refinados mínimos gestos para que externamente ela venha à tona imbuída de sua “simplicidade” e com as devidas organicidade e apropriação construída em relação com o espaço. A ação simples também não seria uma ação minimalista, se esta for entendida a partir de uma amplitude de ocupação espacial. Exemplificamos: No Experimento III havia ações simples como correr em repetidos ciclos distâncias de 50m ou pular de uma altura de 10 m. O

46


ato em si é simples, se considerado pelo viés dos fatores visíveis e concretos, trata-se de mover as pernas em sucessão, ou dar um passo à frente, mas sua amplitude espacial é grande (como os grupos musculares partícipes também), envolve um grande deslocamento espacial, tem grande impacto na ocupação do espaço. Por sua vez tocar piano com “destreza”, por exemplo, já não se trata de uma ação simples, envolve uma combinação sensório-motora e neuromuscular de ativação da musculatura fina, de alta precisão e coordenação motora no tempo e no espaço. Aqui tratar-se-ia, portanto, levando em consideração escalas espaciais, de movimentos mínimos, pequenos espacialmente, mas de altíssimo grau de complexidade, não se tratando de uma ação simples ou cotidiana, de acordo com a forma que entendemos e recortamos para fins de pesquisa. Logo o que define a ação simples não é a amplitude de sua ocupação espacial, mas o seu grau de “cotidianidade” ou o que se afigura visivelmente como simples, aparentemente “sem virtuose”. O mínimo gesto por princípio já apresentaria características que habitam mais o campo simbólico, estetizado, que envolvem grande complexidade de micro-movimentos, mais internos do que visíveis aparentemente, para se dar. Em excluindo do recorte feito gestos involuntários, o gesto de maneira geral (e aqui o mínimo gesto, filtrado por um campo estético e artístico, convergindo bastante com a ideia de hieróglifo ou ideograma, da forma como Grotowski e Artaud defendiam28) estaria sempre ligado a um campo relacional de decodificação, algo a ser decifrado ou reinventado por um repertório de outrem: social, cultural, sensível, perceptivo, afetivo ou intelectual. O material para mim é brincar de combinar, a partir do repertório pessoal de cada um, de suas vivências e histórias de vida, os próprios símbolos e ações simbólicas. Ações simples são ações cotidianas que pelo deslocamento do contexto ganham caráter simbólico. O mínimo gesto diz respeito a uma decodificação de um gesto cotidiano ou estetizado, que significa por sua mera repetição ao longo de uma duração prolongada, dilatando a noção espaço- temporal cotidiana. O Mínimo gesto é um pequeno gesto, gesto que corre risco da invisibilidade, gesto sutil, gesto condensado, mínimo gesto capaz de mover, transformar; menor gesto possível de acordo com o contexto. Pode ser cotidiano ou expressivo, e social. Em síntese as ações simples e os mínimos gestos são ações e gestos únicos (não se desdobram em outros) que viram símbolos, geram multiplicidade de significação pela duração e pela repetição ao longo da duração. A repetição por sua vez pode gerar justaposição,

28

ver p.47,48 deste trabalho

47


acúmulo ou destruição de elementos físicos e significados. A questão mora no corpo de quem faz, a fabulação mora no corpo de quem vê/sente e ambas se transformam pela relação intersubjetiva. A ação simples ou o mínimo gesto nos espaços públicos são pontuais em sua execução, mas é possível fazer um ponto se desdobrar infinitesimalmente no espaço num presente contínuo de instantes eternos, de “agoras”, de “aquis”. Este ponto, este ponto, este ponto, este ponto, este ponto repetido e único a cada vez, abre infinitos campos de significação. Uma única ação que por ventura pode vir a ser uma ação única, repetidas vezes até mudar(-se) (de cor). Trata-se de algo que ‘está acontecendo’ (não acontece simplesmente) com energia extra-cotidiana, inserido nos fluxos da realidade cotidiana, está sempre em devir, como uma paisagem que sofre constantes alterações de ordem micro ou macroscópica, transformações mais ou menos perceptíveis, mas todas componentes do que se chama ‘real’. “Tudo que não invento é falso” (BARROS, 2010, p.345), “sua imaginação que cria o que quer” (BRECHT, The Theatre of Visions, p.222, apud GALIZIA, 1986, p.18). Dois artistas que parecem traduzir na prática esta nossa compreensão sobre “sonhar acordado”, paisagem, presente contínuo, devir, dilatação extra-cotidiana, pensamento em fluxo, ações simples e repetição são Gertrude Stein e Bob Wilson.

48


2.2 Dos procedimentos práticos utilizados “A simplicidade da forma não é necessariamente simplicidade de experiência” (Robert Morris)

Este tópico é fundamental para o entendimento de como ocorre praticamente a aplicação das ideias e hipóteses levantadas teoricamente, fundamentadas em leituras e experiências práticas anteriores. É aqui também o solo fértil de experimentação que ora confirmará nossas hipóteses, ora nos fará redirecionar os caminhos utilizados em direção às nossas buscas. É através dos procedimentos utilizados que podemos compartilhar os métodos de criação que alimentaram os diferentes processos criativos e de pesquisa desenvolvidos ao longo do projeto. No início do projeto de pesquisa já contávamos com alguns procedimentos experimentados em práticas anteriores relacionadas ao mesmo tema de pesquisa, dos quais acreditávamos lançar mão como métodos de criação. Eram estes o Viewpoints, Escrita em Fluxo de Pensamento, Roteirização, “Práticas cruas”. O Viewpoints foi um método de criação bastante simples e revelador que vivenciei ao longo do segundo semestre de 2009 com a orientação de Miriam Rinaldi em Interpretação II do bacharelado de artes cênicas da USP. A inventora destes procedimentos de criação é Anne Boggard, profissional da área da dança que se tornou também diretora de teatro em Nova Iorque. Ele consiste basicamente na relação concreta entre corpo tempo e espaço(premissas dadas da vida-teatro). Reúne uma série de exercícios simples para liberar o campo criativo e relacional de quem age, tornando-o mais consciente de sua própria criação e buscando uma construção criativa que se dá em fluxo de maneira a trabalhar a presença e a percepção. O tempo inteiro chamando o corpo à desmecanização e a relacionar-se incessantemente com o espaço e o tempo em que se insere, num processo de redescoberta e atenção para os detalhes. Para isso há a subdivisão de alguns elementos: topografia, forma, arquitetura, cor, distância, duração, repetição, velocidade, resposta kinestésica, dentre outros. Como a composição em coro de desenhos geométricos no espaço (linha, diagonal, círculo, quadrado, losango) e o exercício de raias (cada ator transitando em uma raia em composição rítmicoespacial com os outros atores trabalha com ações extremamente simples como andar, correr, pular, deitar). Estes são alguns exercícios utilizados do Viewpoints que destaquei, pois através de escolhas ao longo da experiência que vivi, percebi uma relação muito potente, simples e concreta entre criação e vida. Era como lançar questões do artista no espaço através do corpo sem necessitar do intermédio de um personagem, ou de psicologização, apenas do corpo em

49


ação, em relação com o meio, despertando e-moção, simplesmente através da variação rítmica e gestual de moção. Me parecia a preparação ideal para um performer. É do viewpoints que surgirão para mim as noções de ação simples, inscrição e escritura corporal no espaço, por sua vez de autoria, a importância da repetição e da dilatação do tempo. O Viewpoints orientou fortemente de maneira aplicada as experiências práticas anteriores relativas a este mesmo tema que constam nos anexos de pesquisa. Já nos três experimentos propriamente ditos aqui investigados ele entra de maneira mais indireta, mais pelas noções despertadas e filtradas deste repertório anterior. Assim como as relações do corpo se dão em fluxo com o meio que se insere, julguei fundamental que o pensamento através da linguagem verbal também se manifestasse dessa forma para alimentar a criação com menos filtros entre pensar e agir, com o mínimo possível de intervalos entre o pensamento e a palavra. Bastante influenciado por Gertrude Stein, Bob Wilson e Luiz Paëtow, refletindo sobre o presente contínuo, preenchido de sucessivos “agoras” de modo a criar uma paisagem que constante e fluidamente se move, se modifica, pensando sobre a invenção da realidade e como esta não passa de imaginação (imagem em ação), daquilo que nós mesmos criamos e assumimos como real. É desta maneira que adoto como procedimento inicial de qualquer processo de investigação a Escrita em Fluxo de Pensamento (processo de escrita bastante utilizado por Gertrude em seus textos pílula misteriosos). Este procedimento é bastante revelador de fato do pensamento em presente contínuo do performer, revela seu ser e estar atuais (presente, futuro e passado juntos) e muito me interessam como: disparadores da criação, norteadores da investigação, registro de processo ou mesmo dramaturgia, contendo uma forte noção de autoria, pois é daí que saltam as questões mais prementes de cada um ou do que cada um é, quer. Consiste a partir de palavra, frase, questão ou tema livre lançado registrar tudo no papel durante tempo determinado com menor intervalo possível entre o pensamento e seu registro no papel. Este procedimento foi utilizado na fase inicial de todos os três experimentos práticos. A Roteirização apresenta duas vertentes ou a de criar uma estrutura composicional para agir sobre (programa de ação, “trabalho pensado” ou resposta cênica) ou a de organizar a criação advinda diretamente do corpo em relação ao espaço (pelo processo de dança pessoal, improvisação, vivência, inscrição e escritura corporal, resultados colhidos dos programas de ação e “trabalhos pensados” ou resposta cênica) numa estrutura posterior. Trata-se de roteiros de ação mais detalhados ou menos detalhados dependendo da performance/evento em questão. Nos experimentos 1 e 2 a roteirização se dá a priori, no experimento 3 ela vem a

50


posteriori. Mais um procedimento utilizado que reforça a noção de autoria, uma vez que parte tanto do diretor quanto dos performers. Práticas Cruas: Trabalhamos com a ideia de que a ação se dá em devir. Por mais que algumas ações exijam preparação e treino psicofísico elas são “cruas”, nunca estão prontas, finalizadas ou completamente assimiladas, sempre haverá um espaço para sua crueza, por mais simples que sejam, e este é o objetivo aqui. “Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.” (BARROS, 2010, p. 345). Práticas que só estão idealizadas no papel, sem ensaio prévio, mas sob grande apropriação de ideias, e que acontecem como evento original, só se concretizam a partir do momento de sua realização. Até o seu oposto: a ação (ou o conjunto de ações) mais meticulosamente treinada e sob tal domínio do performer que permite a possibilidade de uma surpresa perceptiva tanto do próprio performer como do público, a partir dessa noção de repetição e de relação intersubjetiva. Já especificamente para este estudo a ser realizado estipulamos a priori e em processo procedimentos e métodos de criação até então inaugurais para nós na específica relação com o tema de pesquisa proposto. A saber: Entrevistas, Pesquisa de campo (assistir filmes, espetáculos, palestras, exposições, eventos, e ler livros relacionados), Observação Imersiva, Inscrição e Escritura Corporal, Dança Pessoal (silêncio, ação, observação e autoria), “trabalhos pensados” ou respostas cênicas, programa de ação, improvisação, vivências, repetição exaustiva. Entrevistas: Como a pesquisa se propõe a construir pensamento, e levantar questionamentos a partir de uma multiplicidade de pontos de vista históricos, sociais e culturais, julgamos de relevância ímpar contar com a contribuição de profissionais contemporâneos de cada uma das áreas das artes cênicas (teatro, dança e performance) que se alinham a nosso ver por algum quesito particular às questões apresentadas por nosso projeto. Entrevistamos também os participantes de cada um dos experimentos e inclusive alguns passantes dos espaços públicos abordados. O formato da entrevista se deu de maneira presencial contando com um protocolo de entrevista geral, que apresentava variações com algumas perguntas específicas mais direcionadas à área ou pesquisa particular de cada entrevistado. Cada entrevista foi gravada em áudio com capturas parciais em vídeo. Acreditamos ser esta uma forma muito instigante e potente de construir conhecimento a partir de “bibliografia viva”. Foi um procedimento muito importante para a definição tentativa de termos e fricção de ideias ora convergentes, ora divergentes sobre determinado

51


assunto tratado. A única entrevista que não conseguimos realizar dentre as programadas foi com Marcelo Maia, arquiteto, autor de Práticas Sensíveis sobre o espaço comum. Marcelo reside em Belo Horizonte e atualmente dedica-se ao doutorado. Ainda assim após a conclusão desta fase inicial de pesquisa, fica-nos o desafio de colher entrevistas com advogados e arquitetos a respeito do usufruto do espaço público, matéria que enriquece e alarga nossos meios. Além da bibliografia indicada compartilhamos com os participantes de Moacir: Filhos da Dor algumas fontes que complementaram nossos estudos dentre livros, artigos, filmes, espetáculos, vídeos exposições e eventos, compondo nossa Pesquisa de Campo: i) Livros: i.1) Iracema - José de Alencar. i.2) Os processos criativos de Robert Wilson - Luiz Roberto Galizia. i.3) O povo brasileiro - Darcy Ribeiro. i.4) A inconstância da alma selvagem - Eduardo Viveros de Castro. ii) Artigos: Shakespeare na selva - Laura Bohannan. iii) Espetáculos: iii.1) Duas memórias - Cia. Damas em trânsito e os bucaneiros. iii.2) Peças - Luiz Paëtow. iii.3) Abracadabra - Luiz Paëtow. iii.4) A última gravação de Krapp - Bob Wilson. iii.5) Marulho, o caminho do rio – Redimunho. iii.6) Lugar do outro - Cia. Damas em trânsito e os bucaneiros. iii.7) O Grande espírito da intimidade - Andreah Dorim. iii.8) Bom Retiro 958 metros - Teatro da Vertigem. iii.9) Noturnos - Fiandeiros de Teatro. iii.10) Lulu - Bob Wilson e Berliner Ensemble. iii.11) O farol, uma contemplação da velocidade – OPOVOEMPÉ. iii.12) O Espelho, uma contemplação da vida e da finitude – OPOVOEMPÉ. iii.13) A festa, compartilhar um agora – OPOVOEMPÉ. iii.14) Aqui dentro, aqui fora – OPOVOEMPÉ. iii.15) Macbeth - Bob Wilson. iv) Filmes: iv.1) O povo brasileiro. iv.2) A última tempestade.

52


iv.3) Iracema, uma transa amazônica. iv.5) Pina. iv.6) Apocalypto. iv.7) Absolut Wilson. v) Vídeos: Yvonne Rainer Trio A. vi) Exposições: Harald Schultz – Olhar Antropológico- Caixa Cultural. vii) Eventos: vii.1) Visita à reserva indígena Rio Silveiras. vii.2) Visita ao laboratório de abelhas do instituto de biologia da USP. vii.3) 12o Festival Nacional da Cultura Indígena em Bertioga. vii.4) III Seminário de Pesquisa da ECA (com destaque para A interação entre natureza e ciência na arte contemporânea de Hugo Fortes). vii.5) Patrimônios Culturais e Povos Indígenas - Caixa Cultural - palestra de Luís Donisete Benzi Grupioni. vii.6) Semana do meio ambiente Rio+20, Instituto de Biologia da USP. vii.7) Rio+20 e Cúpula dos Povos. Inscrição e escritura corporal no espaço: Aqui estão dois dos mais importantes conceitos de trabalho, que envolvem diálogo, apropriação e intervenção no espaço. Em se tratando de espaço público, o desafio nos parece ainda maior e provocante, diante de tamanho grau de exposição e possibilidade de troca com o ambiente. Considera-se aqui corpo e espaço público ambos folhas em branco e canetas, ambiente de jogo, de devir, quanto mais desertos, mais povoados (FERRACINI, 2010). Estes dois termos encontram contiguidade com: a teoria do corpo mídia e do corpo ecológico (Mark Johnson e George Leicov, citados por BASTOS, 2006), a própria relação entre corpo e ambiente desenvolvida por BASTOS (2006), são fruto do meu treinamento em Viewpoints com Mirian Rinaldi na ECA-USP (2009), do módulo de Espaço que tive com meu orientador Antônio Araújo: espaço teatral, espaço não convencional, intervenção urbana, na matéria de Direção II na ECA-USP (2010) e de Técnicas Corpóreas: Dança, com Verônica Fabrini na UNICAMP (2010), onde mais importante que agir e impor no espaço uma dinâmica é primeiro ter consciência de que nenhum espaço é neutro e todo espaço abriga uma latência de jogo e passa por constantes transformações de uso (Schechner em O Futuro do Ritual e Milton Santos). Como é então absorver as dinâmicas do espaço público, onde o tão buscado ‘público’ do artista já trafega, para trazer a ele indagações sensíveis (Cristiane

53


Esteves em entrevista anexa), outras formas de sensibilidade (Renato Ferracini em entrevista anexa)? Identificamos um processo de criação bastante semelhante com o grupo OPOVOEMPÉ em suas intervenções urbanas quando decidimos primeiro nos inscrever no espaço (observando e absorvendo os fluxos), para depois escrever (desenhar com o corpo, propor uma intervenção artística no local que revele algo premente ou inusitado nele). A inscrição corporal no espaço busca através de uma série de procedimentos adentrar, conhecer, descobrir um “espaço novo” dentro dos espaços explorados, quer sejam familiares ou desconhecidos ao performer. Como se colocar de maneira porosa e capturar através da percepção ampliada do corpo inteiro os diferentes aspectos que compõem um certo espaço? Há possibilidades de se capturar as relações políticas e socioculturais, a arquitetura, os fluxos, a memória, a história, a geografia, as leis, a demografia, depende dos procedimentos de pesquisa utilizados. Cada experimento apresentará uma necessidade diversa do outro. Aqui nos experimentos I e II utilizamos a observação imersiva como procedimento (com a escrita em fluxo de pensamento, observações dos participantes e espaços envolvidos no estudo, descrições das dinâmicas sócio-espaciais, entrevista, visita monitorada ao espaço, foto e filmagem). No experimento III colhemos autorizações para pesquisar durante 7 meses ininterruptos no espaço (mesmo no período de fechamento ao público), com frequência de três vezes por semana e oito horas por dia, utilizamos a observação imersiva (observações dos participantes e espaços envolvidos no estudo, descrições das dinâmicas sócio-espaciais, entrevista, foto, filmagem), a dança pessoal (silêncio, ação e observação), vivências, improvisação. Já a escritura corporal no espaço busca por meio de outra série de procedimentos atuar, agir, apropriar-se corporalmente do espaço, em diálogo constante com ele, desenhando, desafiando-se e desafiando com o corpo as dinâmicas presentes impostas, costumeiras, involuntárias e inusitadas. Como instaurar relações das mais diversas ordens, inclusive intersubjetivas, no espaço público através de uma ação simples ou um mínimo gesto, de uma proposição artístico-performática que diga respeito a uma questão coletiva e não a ilhas flutuantes, que não se torne uma apropriação privativa e individualizante deste mesmo espaço, que compartilhe fruições e fluxos? No experimentos I e II trabalhamos com a noção de autoria (só possível neste caso após processo de inscrição corporal no espaço), roteirização (programa de ação e prática crua) e relação intersubjetiva, quando favorável. No experimento III trabalhamos com a dança pessoal (silêncio, ação, observação e autoria), “trabalhos pensados” ou respostas cênicas, improvisação, vivências, repetição exaustiva, ensaios, treinos

54


físicos e aulas, ocupação de área reservada a luz, som, cenário e figurino, temporada com doze apresentações. Observação Imersiva: Propõe a ser um método de observação tanto do pesquisador quanto dos participantes de modo a inserir-se de fato no contexto do espaço público explorado, habitar, permanecer, vivenciar aquele entre-lugar (espaço efêmero, de passagem, que liga pontos, feito para se permanecer momentaneamente). Uma observação não distanciada, mas pelo contrário, que busca cada vez mais apropriar-se das dinâmicas características de cada lugar. Essa observação envolve uma longa duração que permita que esta experiência ocorra de fato e se possa absorver os fluxos e relações instaurados. Aqui nos valemos de descrições das relações sócio-espaciais realizadas através do método de escrita em fluxo de pensamento, buscando uma captura da maior quantidade de detalhes possíveis, visita monitorada ao Theatro Mvnicipal e museu do Theatro Mvnicipal, fotos, filmagens, entrevistas aos passantes, habitantes e usuários dos espaços envolvidos, dança pessoal. O experimento I dedicou dois dias à observação imersiva:

cinco horas

realizada no 1o dia pelo pesquisador e duas horas realizada no 2o dia pelo participante ao túnel Papa João Paulo II, o experimento II dedicou quatro dias de observação imersiva sendo onze horas de observação realizada pelo pesquisador e duas horas e meia de observação realizada pelos outros participantes. O experimento III dedicava principalmente através da dança pessoal a primeira hora de ensaio com especial enfoque à observação imersiva, agregada ao silêncio e à ação por parte dos participantes. E ao pesquisador e proponente das atividades um constante estado de observação imersiva que durava as oito horas de ensaio. Procedimento levado ao cabo de sete meses de processo. Dança Pessoal: Procedimento principal adotado como preparação artístico-corpórea dos participantes-performers no experimento III no CEPEUSP. Como nenhum dos dois apresentava formação técnica em dança e por buscarmos desenvolver uma dança de ações simples e mínimos gestos colhidos do cotidiano ou descobertos em ação pela própria dinâmica particular de cada corpo, resolvemos investir neste procedimento. Todo início de ensaio criativo se dava por uma hora de dança pessoal, 30 minutos fora d’água, 30 minutos dentro d’água, em que o participante-performer com sua fonte sonora própria (dias de silêncio absoluto, ou dias com mp3 e fone de ouvido) redescobria o seu próprio corpo e suas possibilidades de moção, o tempo todo em relação com o espaço público que temporariamente habitava e cada vez mais ao longo do processo se apropriava.

55


Por sua vez a cada ensaio isolávamos uma parte do corpo a ser trabalhada nesta investigação29 e daí realizávamos a cada dia um processo decorrente de criar um vocabulário de ações e gestos para cada parte do corpo30. Criamos um vocabulário corporal a partir da manifestação da dança particular de cada um daqueles corpos em relação ao espaço e não necessariamente atrelados a uma técnica específica, mas a uma técnica forjada em ação que dava sustentação à manutenção, adaptação e lapidação das ações e gestos criados “in progress”. Era uma “dança simples” em que não se tinha enfoque no virtuosismo, mas buscava-se sim uma precisão e limpeza da ações. A dança pessoal usava três palavras como norteadoras diretas para os participantesperformers desta investigação corpórea no espaço: silêncio, observação imersiva, ação, portanto ela enquadra-se tanto nas noções de inscrição como de escritura corporal no espaço. Palavras estas que eram lembradas e acompanhavam também os performers a cada dia de apresentação do espetáculo resultante do processo, MoAciR: Filhos da Dor. A autoria obviamente está intrinsecamente ligada a este procedimento de descoberta das manifestações espaciais internas e externas do corpo, e a como o corpo lança questões, problematiza o espaço. Observação Imersiva- dedicado simplesmente a habitar aquele lugar. No tentar entender quais são esses fluxos, o que é que se permite, quais são as formas de atuar, de agir nesse espaço. A observação imersiva insere-se no contexto da Inscrição Corporal no Espaço, muito mais receber daquele lugar. Autoria- aqui pelo contrário, a partir dessa absorção dos fluxos começar a ver que possibilidades existem para a arte naquele lugar. Como se começa a dialogar com as pessoas, de novo fomentar um lugar de troca, de diálogo, de fricção de ideias de maneira estetizada, a partir de uma questão lançada, insere-se no contexto da Escritura Corporal no Espaço. Silêncio- espaço necessário para que algo aconteça. Estado de atenção, foco e concentração no que se vive no presente contínuo explorado e não em outros fatos externos àquela experiência que se dá aqui-agora em determinado contexto. Ação- Estaria de maneira mais simples no campo do fazer, do desenvolver algo, se envolver com algo corporalmente, a ação mora também na “inação” (“inércia”, “imobilidade”).

29

O corpo inteiro, as mãos, os braços, os ombros, a cabeça, a coluna, a bacia, as pernas, os joelhos, os pés, o corpo inteiro. 30 Três ações ou gestos dentro d’água e três ações ou gestos fora d’água.

56


Estas quatros palavras também serviram ao pesquisador enquanto filtro na coleta de dados. Programa de ação: Roteiro estrutural em desenhos, esquemas e/ou palavras das ações que se desdobrarão no espaço. Esta nomenclatura aplica-se mais devidamente aos experimentos I e II, pois a determinação desta estrutura sem ensaio prévio, estabelece os passos e elementos (objetos, adereços, ações e gestos) das performances. Entendemos que o experimentos III trabalhou com roteiros de ações que ora estruturados com ações que surgiram em ensaio, ora imaginado com ações inéditas a serem exploradas, vinham tanto da direção quanto dos performers e compunham uma complexidade maior no encadeamento, na riqueza de detalhes, na quantidade e na duração das ações e gestos. Já os programas de ação são estruturas sintéticas, breves descritivos para as performances. Tanto os programas de ação, quanto os roteiros de ação compõem o procedimento de roteirização das práticas cruas, improvisação, vivências, dança pessoal, trabalhos pensados ou respostas cênicas. Há aqui uma forte presença autoral. Trabalhos Pensados ou Respostas Cênicas: Duas nomenclaturas utilizadas para um mesmo procedimento. Este termo, trabalho pensado, surgiu como alternativa retraduzida de um termo que se usa em teatro: workshop. Numa tradução nossa indevida, ao invés de trabalho-work + compra(do)-shop, preferimos pensar em trabalho pensado. Que seria uma composição cênica ou de ações, uma estruturação cênica ou de ações, ou uma cena, ação dirigida pelo próprio participante-performer em resposta a uma frase, provocação ou questão lançada pela direção. Diferencia-se da improvisação, da vivência, da dança pessoal, pois envolve um tempo fora de ensaio, uma estruturação racional e corporal de elementos utilizados (som, objetos, cenário, luz, figurino, ações, textos e inclusive pode pressupor a presença de outros performers) a ser compartilhada com os outros participantes e declaradamente envolve uma exposição de um pensamento o mais íntimo, pulsante e autoral. No processo do experimento III MoAciR: Filhos da Dor. Lançávamos uma provocação ou questão a cada semana e os participantes-performers tinham o intervalo de uma semana para compor e apresentar suas respostas cênicas (como denominamos o trabalhos pensados neste processo em específico, tendo como referência também os procedimentos e termos utilizados por Pina Bausch). Cada pergunta lançada correspondia a uma parte ou ato do espetáculo performático que criamos, totalizando em nove perguntas. Improvisação: A improvisação é um procedimento de trabalho utilizado logo na fase inicial de criação e investigação de movimentos no corpo para MoAciR: Filhos da Dor. Procedimento de livre exploração do corpo em relação a si mesmo e aos outros corpos e

57


elementos do espaço. Lemos e colhemos todas as ações dos personagens presentes em Iracema. E em seguida os atores passaram por uma fase de ensaios dedicado a improvisar sobre a narração da obra. Eu lia os capítulos em voz alta enquanto eles exploravam a área das duas piscinas utilizadas do CEPEUSP (olímpica e de saltos) com as ações físicas dos personagens. Houve também improvisação sobre roteiros de ações que eu propunha e uma improvisação com a narração do prólogo, alguns objetos e figurinos que deu origem ao primeiro ato do espetáculo. Vivências: Também conhecidas no teatro como laboratórios, as vivências propõem experiências que envolvem certo grau de risco, acaso, dificuldade e contato com algo novo ou distante em ambiente externo ou nos próprios lugares de ação, ensaio. A própria observação imersiva pode ser entendida como uma vivência à medida que inserir-se numa nova realidade por tempo prolongado requer um constante diálogo, negociação e adaptação dos corpos com os outros corpos e elementos de cada espaço. Extensas horas num túnel de carros no vale do Anhangabaú, no perímetro do Theatro Mvnicipal convivendo de fato com moradores de rua e passantes, no CEPEUSP convivendo de fato com usuários, salva-vidas, técnicos de manutenção, portaria e direção, e todas as dinâmicas próprias a cada um desses lugares abrem novas compreensões e aprendizados nos corpos e mentes dos envolvidos. Além destes assistimos filmes, peças, palestras e exposições juntos. Visitamos uma reserva indígena, fizemos vivências na praia de Barra do Una (caminhar de olhos fechados por dez minutos, “ver com os ouvidos” por quinze minutos, “ouvir com os olhos” por quinze minutos, ser enterrado vivo em enterro ritual por duas horas, caminhar de um ponto a outro em uma hora, desvestir-se em quinze minutos, deixar o corpo ser dançado pelas ondas do mar: dança através de uma força externa por uma hora), participamos do 12o Festival Nacional da Cultura Indígena, da semana do meio ambiente e da Rio+20. Em outra vivência os atores tiveram de colocar numa mala e “afogar” ou presentear os objetos que lhe eram mais caros e que constituíam em seu íntimo tudo o que os performers precisavam para serem quem eram naquela época. No caso dos experimentos I e II atravessar um túnel de carros sucessivamente por uma hora e deitar no chão em frente ao Mvnicipal por três horas e meia também foram fortes vivências. Estes foram exemplos ao longo de cada um dos experimentos. As vivencias constituem grande desafio, grande envolvimento físico, emocional e mental concretos, reais. A repetição exaustiva é um procedimento de grande potência criativa na medida em que desperta um intenso trabalho psicofísico sobre tempo, espaço e energia. Está fortemente ligado em nosso caso a dilatação extra-cotidiana do tempo, invisibilidade e velocidade, para

58


que o detalhe seja revelado: se por um lado pode estabelecer uma relação efêmera, por outro permite tempo e espaço para apreciação das minúcias, dos “esquecidos”, das sutilezas, para que relações se instaurem e de fato aconteçam. Daí uma mesma ação ou gesto explorado em processo de repetição ganha redes de significação, transforma-se, adapta-se em relação a tempo, espaço e energia, redesenha-se, amplia-se ou reduz-se, condensa-se ao essencial, ao mínimo (máximo) necessário para mover(-se). Este procedimento é fortemente utilizado nos três experimentos presentes neste relatório, tanto nas criações, nas vivências, nos exercícios, como nas performances e apresentações. Ensaio: A noção de “ensaio” só aparecerá no experimento III mesmo assim agregando a ideia de que os ensaios já constituem-se como ato artístico uma vez que interferem diretamente nos uso e nas relações inserindo-se e alterando o espaço público. Os ensaios dividiram-se em ensaio físico (uma vez por semana) e ensaios artísticos (duas vezes por semana). Os ensaios físicos eram treinamentos físicos estruturados para conferirem resistência ao corpo dos performers que estariam expostos no espetáculo a ambiente aquático por duas horas e meia de duração. Tratou-se de fato de uma construção e adaptação física. Os treinos eram estruturados com exercícios de natação, deep running, pólo aquático e salto em trampolim. Tivemos orientação e auxílio em horários extras com aulas de professores de pólo aquático, deep running e salto em trampolim. Os ensaios físicos tinham cinco horas e meia de duração. Os ensaios artísticos dedicavam-se à criação e tinham nove horas no sábado e seis horas no domingo. Iniciávamos com a dança pessoal e depois nos dedicávamos ou à improvisação, ou às respostas cênicas, ou à vivências e testes de ações, ou ao treino repetitivo de roteiros de ações e lapidação de partes. Há dois meses de estreia só “passadões” gerais do espetáculo e testes noturnos de luz e som. É importante frisar que os ensaios não foram interrompidos, tivemos duas semanas de recesso. Como para nós arte não é outra coisa senão vida, ensaiamos sob todas as condições climáticas de frio, vento, chuva e sol, com muitos ou nenhum outro usuário, sempre acompanhado de funcionários do CEPEUSP e salva-vidas. Da mesma forma os experimentos I e II se deram sob “condições adversas” de barulho excessivo, chuva e sol intenso. Temporada: O experimento I durou dois dias, com um dia dedicado a performance pública, o experimento II, quatro dias, com dois dias dedicados a performance pública, o experimento III oito meses, com um mês dedicado a doze apresentações públicas, todos gratuitos.

59


60


2.3 Artista-Expoente do mínimo gesto e da ação simples: A performance de Flávio de Carvalho no modernismo brasileiro Escolhemos Flávio de Carvalho, para um estudo de caso de suas performances, como artista potencializador e exemplo convergente com nossas aspirações e crenças artísticas. Este artista é figura de importância singular e paradigmática para nosso percurso de pesquisador na área artística. Sabia como ninguém explorar a potência do mínimo e do simples como forma de intervenção no espaço público. Flávio de fato nos serve como referência modelar que nos inspirou através de sua práxis a estabelecer a compreensão sobre o recorte de pesquisa aqui apresentado. Fazemos aqui um panorama de seus trabalhos com caráter artístico imbricado para em seguida classificar algumas de suas performances numa tabela comparativa com os parâmetros para modo de criação e realização que estabelecemos para nossos experimentos. Flávio Rezende de Carvalho (1899-1973), oriundo de família tradicional do Vale do Paraíba fluminense e educado em sistema de internato desde a infância até o período universitário em Paris e Londres (tendo cursado Engenharia e Belas-Artes), retornou às origens bem a tempo de ser um dos importantes “escritores” da História do modernismo brasileiro. A escolha por este artista foi tamanho interesse investigativo em uma figura singular no cenário brasileiro como um todo, ainda pouco conhecida das maiorias, e especificamente por agregar duplamente em sua trajetória características que convergem coincidentemente com os interesses principais deste estudo. Flávio demonstrava não só forte interesse, mas seu próprio ofício também concernia diretamente à cidade e ao espaço público, arquiteto e edificador que era. Este interesse no público transborda revelando um potente campo de exploração da performance a partir do simples e do mínimo. Apesar de o próprio artista não ter nomeado suas ações de performáticas (mas experiências, o que para nós já aponta bastante significância) ou não necessariamente ter escolhido conscientemente recortá-las pelo viés do simples ou do mínimo, percebemos,

ao realizar a análise de algumas de suas experiências, certas

recorrências características capazes de agregar em valoroso exemplo ao que exploramos e desenvolvemos em nossa pesquisa. O que mais nos impressiona: não lembrar de sequer ter esse nome citado em aulas de História ou Literatura, e a partir das pesquisas descobrir que, de fato, Flávio marcou época com grandes feitos e uma história de vida no mínimo curiosa.

61


Flávio conheceu os surrealistas parisienses e ajudou através de suas deambulações urbanas na circulação dessas ideias no Brasil, porém ficou mais conhecido por suas pinturas e obras arquitetônicas do que por suas errâncias e performances. O jovem Flávio (diferente do que tenderíamos a pensar sobre ele baseados nos seus feitos em terras brasileiras) não deixará de ser envolvido por uma certa tradição empírica e racionalista, principalmente frequentando um curso de edificadores, “construtores do concreto”. Porém a Europa dos anos 20 lhe servirá de farta inspiração, especialmente na vanguarda expressionista. Ao lado das técnicas de construção de formas materiais no espaço, ele buscava os meios de exprimir sua apreensão subjetiva do mundo. Emergirá daí o artista domador de espaços e comedor de emoções (referência direta ao título do livro e filme inacabado de J. Toledo e obviamente à tão popularizada ideia de deglutição antropofágica divulgada pelo movimento modernista brasileiro). Interessam-lhe a psicanálise e a psicologia de massas, multidões, fundamentos do Flávio experimentalista, pesquisador da fé e dos comportamentos coletivos. A arte aparece-lhe como expressão de tais pesquisas, através do desenho, do teatro e da literatura. À psicanálise soma-se o interesse pela música atonal, pelo teatro de vanguarda e pela dança moderna. Sua atenção volta-se para a antropologia de Frazer e Malinowski, estudando ritos mágicos e a vida sexual de diferentes povos. Um estilo às vezes pragmático vai restar como seu tempero britânico. Porém seu lado de artista, Dionísio, falará mais alto do que seu lado de engenheiro, Apolo. Poderá ser entendido como um verdadeiro subversor das representações tradicionais e da ordem cotidiana. Em oposição à concretude, buscará uma diluição das formas, o abstracionismo ligado à retomada do espaço geométrico. Com o status de engenheiro e com uma bomba futurista na cabeça ele desembarca em Santos em 1923, instalando-se em São Paulo recém-saída do susto modernista. As vanguardas (Expressionismo-1905-25; Futurismo-1909-Itália/Anos30-Rússia; Dadaísmo- 1915-23; Surrealismo- 1924) que passaram por sucessões lógicas compreensíveis no contexto europeu (ciência, indústria, desenvolvimentismo, I Guerra Mundial, crise do progresso positivo) vieram importadas ao Brasil por artistas estrangeiros (como Lasar Segall) ou artistas brasileiros financiados por mecenas.

62


O termo escolhido para englobar tudo antropofagicamente e vomitar-retomar “a cara do Brasil”, foi Modernismo. Com mais ênfase em umas e menos em outras vanguardas. Um “banho de Modernidade” contra a acanhada pré-metrópole de São Paulo. Para nossa abordagem sobre os trabalhos de Flávio de Carvalho é importante saber que atuou como arquiteto, engenheiro civil, decorador, empresário, escultor, cenógrafo, figurinista, iluminador, artista plástico, jornalista, radialista, escritor, dramaturgo, estudioso da moda, ator performático, dotado de ousadia futurista, de arte expressionista, abstrata e surrealista, crítico da moral (pautada no cristianismo) e dos “bons costumes” provincianos, crente no progresso, na mudança, na eficiência e funcionalidade (certamente bem influenciado pelo contexto do modernismo europeu) como indutores da felicidade. Durante toda sua carreira, quer participando de concursos públicos para projetos arquitetônicos e monumentos, quer inaugurando exposições e fundando clubes (Clube dos Artistas Modernos - CAM), quer realizando peças e performances, sempre teve o dom de chamar a atenção de três grandes instituições: a imprensa, a polícia e a igreja. Poderíamos escrever páginas e mais páginas sobre as grandes aventuras desse idealista utópico do mundo, desse humanista determinista que teoriza a relação existencial entre “Casa, Homem e Paisagem” (como o homem influi no meio e como o espaço ao longo dos anos está carregado de formas, linhas e cores que comunicam sua relação com a ancestralidade através do inconsciente). Mas por ora escolhemos nos deter a fazer um registro suas experiências teatrais e performáticas. Flávio, com a apresentação de seu projeto “Eficácia”, foi considerado o primeiro arquiteto modernista brasileiro, sendo esta manifestação pioneira num quadro de ruptura que se estabelecia no modo de entender a arquitetura no Brasil. Poderíamos também render-lhe o título de primeiro performer brasileiro? Uma coisa é certa, Flávio seria pioneiro em diversos segmentos a se desenvolverem no Brasil, seja no campo teórico-científico, seja no campo artístico. O conceito de performance art começa a surgir e a maturar como ideia a partir dos anos 60-70. De fato terá suas origens plantadas a partir das vanguardas européias, a destacar o surrealismo e o dadaísmo (uma das vanguardas mais radicais que já dá vazão sim ao happening e à performance, ou a experimentos performáticos). Portanto, as ações de Flávio, a partir dos anos 30, podem sim hoje em dia ser entendidas como performances, “arte de ação”, embora naquele período essa nomenclatura ainda não fosse usual.

63


A arte performática é entendida e apontada por Lehmann (2007) e Féral (2009) como uma “arte conceitual” ao propor uma experiência real (levando em conta tempo, espaço e corpo), uma “produção de presença” que não deve ser compreendida a partir dos registros da interpretação hermenêutica, da mimese ou da representação. Na performance, a princípio, da forma como foi concebida (se é que se pode falar em ‘forma’ ou modelo a ser seguido), ou na ideologia em que está fundada, não há personagem, não há narração, há uma recusa da catarse. Não se trata aqui da encarnação de um personagem, mas da vividez, da presença provocante do homem. Segundo Lehmann (2007, p. 224-225) o performer oferece à contemplação sua presença, pairando nos campos da não-atuação e da atuação simples 31 . A não-atuação corresponderia a “uma presença na qual o ator não faz nada para reforçar a informação transmitida por sua atividade”. Já a atuação simples ocorre quando há uma “participação emocional clara, uma vontade de comunicar[...] com declarações que procedem, que não são ficções.” “O corpo do performer não é usado somente como sujeito do manuseio, mas também como objeto, como material significante, não há distanciamento estético” (LEHMANN, 2007, p.228)32, sua presença é seu material estético primordial, nas visões do artista e do público. A relação se dá através do olhar, o que se olha e por que se olha, há a intensidade de uma comunicação ‘face a face’, há a imediatidade de toda uma experiência compartilhada por artista e público. O procedimento em si com o público apresenta mais valor do que uma possível obra “objetivamente” apreciável. O processo que se dá em ação, na troca, é mais importante do que a ideia de obra acabada. Não se fala, portanto, em ensaios. O artista não está protegido de qualquer reação do espectador, aliás todo o valor da experiência depende dos próprios participantes, pautando-se não por critérios prévios, mas por seu êxito na comunicação. E aí o público tem poder decisivo sobre isso, sendo a efemeridade e o subjetivismo fatores determinantes dessa arte. Arte que mexe com questões éticas do espectador (quando ele através de suas escolhas legitima certas ações) e o faz interrogar-se sobre sua própria prática de espectador.

31 Não-atuação

e atuação simples são termos de Michael Kirby, utilizados por Lehmann. da ideia de gesto: ideograma hieroglífico de Grotowski, em que o próprio corpo simboliza e é o objeto simbolizado através do gesto

32 Lembramos

64


De acordo com Lehmann (2007, p. 229) O performer do teatro não quer transformar a si mesmo, mas transformar uma situação e talvez o público. A transformação e o efeito da catarse permanecem virtuais, voluntários e futuros, há aqui a ideia da possibilidade de repetição de momentos únicos; já o ideal da arte performática é um processo real, que se propõe único e de autotransformação, que impõe emoções e acontece aqui e agora. Féral com sua polêmica problematização acerca da performance (Que ainda resta da performance?) julga ter havido um total corrompimento do que se tinha por performance. Não existe mais o valor transgressor pelo qual ela surgiu. Adquiriu alguns valores do modernismo. Aquilo que a seu ver não dava para ser um evento repetido, recusando-se a ideia de guardar memória, hoje em dia já é registrado por fotos e vídeos e é inúmeras vezes repetido. Os artistas já carregam suas performances de sentido, personagens e discursos, limando e escondendo do espectador as aberturas para um processo. Está em voga o individualismo e o narcisismo contemporâneo. Apontamentos de Lehmann que me chamam particularmente a atenção e permitem um diálogo com a prática de Flávio de Carvalho: “Torna-se impossível até mesmo definir performance – por exemplo, o limite a partir do qual haveria meramente um comportamento exibicionista e extravagante. O último recurso não pode ser outro senão a compreensão do próprio artista: a performance é aquilo anunciado por aqueles que a apresentam.” (2007, p.227) “[...]destacar de modo geral o aspecto ritual ou quase ritual nas formas teatrais e na performance. [...] o recurso aos elementos arcaicos, a reflexão sobre os limites dos comportamentos codificados pela civilização e a adaptação de formas de comportamento cerimoniais se tornaram objetivamente produtivos do ponto de vista artístico e, ao mesmo tempo, sustentaram a resistência contra a tentativa de comprimir a arte radical nos moldes das regras estéticas tradicionais.” (2007, p.230) “Toda experiência estética possui esta bipolaridade: confrontação com uma presença, “súbita” e segundo o princípio aquém (ou além) da reflexão que se rompe e se duplica; elaboração reflexiva dessa experiência a partir da lembrança posterior.” (2007, p.237) “O presente é necessariamente erosão e escapada da presença. Ele designa um acontecimento que esvazia o agora e nesse mesmo vazio faz brilhar a recordação e a antecipação.[...]Ele tem mais a ver com a morte do que com a tão evocada “vida” do teatro” (2007, p. 240, grifo nosso)

Se analisarmos bem e fizermos um entrecruzamento do que se entende por performance com o material apresentado sobre os atos artísticos de Flávio, concluiremos que a Experiência nº 2 figuraria assim entre as grandes performances da História brasileira baseada em uma ação simples, ocupando lugar significativo. Ela e muitas outras que estariam por vir. Alguns exemplos do que teriam sido esses atos performáticos ao longo de nossa História são dados por Antonio C.R. Moraes, como:

65


i) O dia do Fico, de D. Pedro I - 9 jan 1822.33 Eu gostaria de destacar a abolição da escravatura com a Lei Áurea34. ii) A Semana de Arte Moderna de 192235. iii) Batalha de Itararé - 193036. iv) Experiência nº 2 - 193137. v) Parangolé - 196038. Encarando a performance com a possibilidade de ser uma experiência lúdica e contestatória, a Experiência nº2 se encaixa muito bem nessa classificação e segundo Moraes “era performance para dadaísta nenhum botar defeito. Arte de pirar Marcel Duchamp. Ineditismo total em terras brasileiras. Modernismo militante radical. [...] algo único no panorama das artes brasileiras na época.[...] contudo folclorizada por falta de um rótulo que a enquadrasse no arquivo dos críticos contemporâneos.” (MORAES, 1986, p.33). Inclusive o subtítulo de seu livro sobre Flávio é o performático precoce. Flávio procurava sempre escudar com uma teoria seus procedimentos mais insólitos e até agressivos. Suas teorias, via de regra consideradas extravagantes, não eram, contudo, nem gratuitas nem alienadas: resultavam de pesquisas e longos estudos. Os títulos que descrevem cada uma das experiências ora são os títulos originais da própria experiência, ora são títulos figurativos atribuídos livremente por nós a partir do recorte que estabelecemos. Experiência 1 Sangirardi Jr. afirma saber, tendo ele mesmo perguntado ao Flávio qual teria sido a experiência 1, visto que a famosa mesmo foi a 2. Flávio fingiu que estava se afogando e gritou desesperadamente por socorro. O acontecimento teria se dado na fazenda de um parente dele. Mas não deu certo, fracassou.

33 Ah,

se realmente fosse para o bem geral de todos e da nação... pela princesa Isabel em 13 de maio de 1888. Tendo o Ceará aderido à abolição quatro anos antes, rendendo-lhe o subtítulo de Terra da Luz, por José do Patrocínio, dando ânimo aos abolicionistas no resto do Brasil e sendo saudado diretamente da França por Victor Hugo. 35 Um acontecimento 100 anos depois do que para Moraes teria sido a “primeira performance brasileira”. Houve aí um choque, uma comoção, um impacto, “um descabelamento da platéia”, um evento carregado de um quê performático. 36 Foi anunciada e estava para ser conhecida como a batalha “mais sangrenta da América do Sul” entre as tropas de Washington Luís e as de Getúlio Vargas, mas nunca ocorreu de fato. 37 Que veremos a seguir mais detalhadamente. 38 (Experimentos de Hélio Oiticica, com diversos materiais de modo a constituir diferentes esculturas móveis, reveladas e modificadas a partir do movimento). 34 Assinada

66


Flávio preferia esquecê-la, sempre fugia do assunto quando interpelado sobre ela, não entrava em detalhes, nem lhe dava a menor importância. Ou um mínimo de importância lhe dava, e Freud talvez explique, pois do contrário a experiência nº 2 não seria então assim chamada, se a anterior fosse simplesmente desconsiderada. Experiência 2 ou “Um incidente” (título de nota do Estadão) A partir daqui é que deslancha ruidosamente. Antes disso, só havia feito a maquete de O Último Abraço, participado da XXXVIII Exposição Geral de Belas-Artes e até então, desde sua chegada, se dedicado inteiramente a sua profissão de engenheiro civil e arquiteto. 8 de junho de 1931, na esquina da rua Direita com a praça do Patriarca. Uma verdadeira experiência de psicologia das multidões. Flávio com seus aproximadamente 1,90m resolve cruzar uma procissão de Corpus Christi no sentido contrário, com um boné na cabeça. A sua atitude começa a chamar atenção e a revelar arrogância diante do gozo e culto totêmico ao Deus invisível. Causa perplexidade ante as irmandades de pessoas mais idosas, que erguem os olhos aos céus numa afirmação de fé e gesto de piedade. Ao passar pelas filhas de Maria flerta inicialmente com duas bonitas e duas feias e depois com todas elas. Ao atravessar um setor de homens mais jovens, surgem esporádicos e pouco incisivos, os primeiros protestos: “Tira o chapéu!”. “Tira! Tira o chapéu! ” Aos gritos: “Pega! Lincha!” Um amigo leva-o para o canto da calçada pede que tire o boné e desista daquela loucura. Inútil. Ameaçadores: “Pega, mata, lincha!” Alguém arranca o boné mas logo depois é devolvido. Encurralado apela: “Abri meus braços num gesto patriarcal e patético e expliquei com doçura: ‘Eu sou um contra mil.’[...] O meu apelo ao raciocínio tinha fracassado por completo. A massa tinha reagido pela emotividade ancestral e não pelo raciocínio.” Correu pela procissão em ziguezague, sempre perseguido, penetrou na Leiteria Campo Belo, Rua de São Bento, cheia de fregueses. Na cozinha, ante os cozinheiros atônitos, subiu numa pia e passou por uma clarabóia após ter arrebentado a tela de arame. Saiu num pequeno pátio, pôde analisar sua sensação de medo, como se pudesse ver fora de si a criatura sendo linchada e desossada, em sangue.

67


Foi preso sem resistência, o que surpreendeu a polícia. Saiu numa “viúva alegre” rumo à delegacia, enquanto a procissão seguia acalmada pela ação congregacional dos cânticos religiosos. Na delegacia foi logo acusado de comunista e de atirar bombas na procissão, acusação última sob a qual protestou violentamente. Desfeito o equívoco, é dispensado. Manchete do dia seguinte: “Na procissão uma experiência sobre a psicologia das multidões resultou em sério distúrbio” (O Estado de São Paulo, 9 de junho de 1931). Através de uma experiência-controle e de uma hipótese procurou formular uma teoria. Trabalhava com a seguinte margem: Procurou inteirar-se da capacidade agressiva de uma massa religiosa à resistência da força das leis, civis, ou determinar se a força da crença é maior do que a força da Lei e do respeito à vida. A experiência deu origem a um volume de 183 páginas com desenhos surrealistas e expressionistas do próprio autor, 8 diagramas de análise psicológica (sua e da massa) (laços afetivos = pares antitéticos) e várias fórmulas de ambivalência ódio-adoração. Faz uma análise com base na psicanálise, na antropologia e na etnologia, com fortes influências de Darwin, Freud (Totem e Tabu) e Frazer (The Golden Bough). Especulações com a Moda e Experiência 3 A partir do incômodo que a roupa masculina lhe traz, rotinizada pela moda, não adaptada ao clima tropical e ao cotidiano metropolitano, Flávio discorrerá sobre um estudo da moda ao longo dos anos, em 39 artigos semanais, pelo Diário de São Paulo, numa série intitulada ‘A moda e o Novo Homem’. Flávio faz uma evolução histórico-filosófica do invólucro ambiental para o invólucro corporal. Procura entender por razões sociológicas, psicológicas e etnográficas o que a moda representa na sociedade: defesa anímica, produto da inteligência, reação à inferioridade, necessidade de um povo para a estabilidade mental, articuladora do homem com a história (por exemplo a calça, o colete e a casaca sobrevivem desde o século XVII, as cores escuras e sombrias são derivações da cor preta imposta à burguesia pela nobreza, como condição depreciativa. E assim podemos estender o raciocínio ao paletó, smoking, gravata e colarinho, que apertam e tiram curvas). Na arquitetura, na escultura, na pintura e principalmente nos trajes as curvas representariam um padrão fecundante, sensual, de apogeu, as retas paralelas, um padrão antifecundante, de luto, tristeza, procedendo períodos de destruição.

68


Sua tese central defende também que as mutações da moda têm origem nas camadas plebéias, de loucos e personagens de rua, sendo estes os grandes criadores da moda. Em seu mundo próprio de loucura e sonho, os supremos criadores da fantasia humana. Todo esse estudo é mote para sua experiência número 3: 19 de outubro de 1956, sexta-feira quente de primavera. Rua Barão de Itapetininga, nº296. No saguão já se encontram alguns curiosos, a imprensa já está a postos para fazer a cobertura do evento. Às 14:30 h surge Flávio no hall e assim inicia-se o passeio com o traje de mil nomes: traje tropical, traje de verão do “novo homem dos trópicos”, roupa do futuro, traje estival, smoking de baiano, indumentária do futuro, tentativa de revolução na indumentária masculina, new look (diversas intitulações que recebeu entre o criador, a imprensa e populares). Com seu traje bizarro e fora do comum transita pelas ruas do centro velho ao centro novo seguido por uma multidão de curiosos, críticos e adeptos do novo conceito de vestimenta para um “novo homem.” Com uma indumentária que seria seu correspondente ao smoking, ele mesmo explica: “A gola em redor do pescoço é apenas um substituto do colarinho. Pode ou não ser usada, mas não chega a apertar ou incomodar o pescoço, nem impedir a circulação. Tem uma finalidade psicológica de ponto de apoio, para evitar a inferioridade quando ele anda por aí. Nas pernas eu coloquei umas meias de malha de pescador, que hoje chamam de meia de malha de pescador e que realmente era uma meia de bailarina, que eu adquiri numa casa que vende artigos de bailarina. A função das meias de pescador era a de esconder as varizes que certas pessoas têm. [...] A velocidade do fluxo do ar entre o tecido e o corpo é graduada por meio de dois círculos de arame: um na cintura e outro sobre a clavícula”. Descrevendo o traje, tratava-se de sandálias de couro, meias de bailarina, um saioteshort, uma blusa de náilon vermelha, listrada, de estranho corte, um chapéu de pano transparente. A roupa visava o conforto e a circulação de ar, evitava gripes e resfriados e contribuía para uma maior liberdade de movimento. Flávio recebe reações as mais variadas: abraços da Miss Televisão, apoio de Paulo Emílio (“Ridículas são nossas gravatas...”), solidariedade de um motorista da CMTC (“Se a direção da empresa permitir, amanhã mesmo virei trabalhar assim”), piada de um gaiato (“Esse deve ser o tal de smoking baiano”). Aplausos. Toma um cafezinho num bar. Entra no Cine Marrocos mesmo após ser inicialmente barrado pelo porteiro por não vestir gravata, uma

69


das exigências do cinema. Vê um pedaço do filme e retorna às ruas, parando o trânsito. Mais comentários: “será o fim dos crediários e a guerra às vestes cretinas e imbecis do homem atual”. Senador Assis Chateaubriand disse que iria de new look numa reunião do palácio Monroe e o maestro Eleazar de Carvalho regeria a sinfônica com o traje. Após o estardalhaço que o libertário antropofágico causou na imprensa, parte para a Europa onde realiza exposição individual na Galeria L’Obelisco, em Roma, na Itália. Um de seus tios paternos, o médico Custódio Ribeiro de Carvalho, já falecido, conta que vinha com a esposa pela Via Veneto, em Roma, quando viu, na vitrine de um fotógrafo, uma grande foto ampliada, em cores, onde se via um homem alto, de blusa amarela e saiote verde, seguido por um grupo de italianos curiosos e sorridentes. Era Flávio tentando lançar na Itália seu traje de verão. Teatro da Experiência Um dos desdobramentos diretos do CAM, fundado por Flávio de Carvalho em 1933 com a colaboração do cenógrafo (depois cineasta) Osvaldo Sampaio. Um verdadeiro empreendimento performático. Localizado no andar térreo do CAM à Rua Pedro Lessa nº 2, com lotação para 275 lugares. Funcionaria de fato como um laboratório científico: pesquisar com espírito imparcial o desconhecido para promover o progresso. Tinha um caráter essencialmente experimental de tudo que surgisse de vital no mundo das ideias , integrando as artes: cenários, problemas de luz e de som, e sua conjugação ao movimento de formas abstratas, estudo da influência das cores e das formas na composição teatral, modos de dicção, novas formas de expressão, aplicação de testes pré-determinados e análise de seus efeitos no público, realizar espetáculos-provas só para autores, ou focados mais nas vozes, ou nas luzes, despertar o interesse para a escrita teatral (incentivar o aparecimento de novos autores), diminuir ou eliminar a influência humana e figurada na representação (ideia que nos remete diretamente aos experimentos de Craig e sua teoria da supermarionete). Todas essa investigações com o intuito de formar uma base prática da psicologia do divertimento. A programação do teatro incluía seções de “teatro improvisado”, que seriam realizadas à meia noite por Procópio Ferreira e Joracy Camargo. Como realizou-se também espetáculos por “Henricão e sua trupe”, sendo estes uma coletânea de danças com cânticos da época da escravidão. Seções de leitura de textos de Oswald de Andrade e Brasil Gerson. Todavia, a

70


iniciativa que ganhou maior notoriedade, foi a encenação da peça de Flávio: “O Bailado do Deus Morto”. O clube como um todo se tornaria esse laboratório para a arte moderna, um local onde as ideias novas são experimentadas antes de serem lançadas no mercado do grande público. O Bailado do Deus Morto – A saga ou De mudança para a delegacia A procura de uma peça para inauguração do teatro, sem êxito em sua busca, na falta de autores dispostos a colaborar, decide ele mesmo escrever O bailado do Deus Morto. Frente à estranheza do material a analisar, os censores resolvem vencer Flávio pelo cansaço: “Passei dias inteiros na censura procurando convencer o delegado Costa Neto (o censor era delegado de polícia), me faziam esperar horas e horas propositalmente - de uma feita esperei seis horas a fio, cheguei a me mudar para o gabinete de polícia, levei livros, cadernos, régua de cálculo, alimento e lá ficava toda a manhã e toda a tarde procedendo ao expediente do meu escritório, esperando ser atendido. Osvaldo Sampaio ia e vinha em meu auxílio”. Acredite, somente após dez dias de tentativas inúteis, abordando o delegado ao sair do edifício, no meio da rua, Flávio apela para Shakespeare e sua liberdade de linguagem em meio a um ajuntamento de gente, pedindo uma afirmativa do delegado. O delegado atarantado, suado e com pressa se pronuncia verbalmente a favor da liberação, sem nenhum alvará oficial. A peça estreia com um público duas vezes maior que a lotação do teatro em novembro de 1933. Na noite da quarta representação a censura proíbe o espetáculo. O coronel Cabanas que, de repente, apareceu pela primeira vez no Clube ordena a um dos guardas: “Diga ao senhor Costa Neto que o teatro vai funcionar e se a polícia aparecer aqui será recebida a bala!”. Minutos depois, praticamente toda a comitiva do Gabinete de Investigações, invade o teatro. 300 homens fortemente armados dando cobertura ao delegado. Após prolongado silêncio entre Costa Neto e Flávio, o comandante Cabanas faz seus apelos, o delegado suas alegações e Geraldo Ferraz propõe a Flávio que ofereça o espetáculo especialmente ao Gabinete de Investigações. Delegados, guardas e policiais assistem em silêncio. O coronel Luís Alves ao ser interrogado responde que o referido bailado “é uma coisa muito nova e que interessa bastante”. Mesmo assim o teatro é fechado e uma guarda armada é mantida por meses frente ao teatro isolando-o.

71


Flávio move uma ação contra o Estado e perde, é novamente acusado de comunista, a questão chega a ser discutida na Câmara dos Deputados e um abaixo assinado é enviado à Censura. Esse, um verdadeiro manifesto de repúdio à violência praticada contra a cultura e a liberdade de expressão, que talvez pela primeira vez foi assinado por quase todo o meio intelectual modernista, pelo coronel Cabanas e até mesmo por Paulo Prado, então conselheiro de Estado. Logo depois o CAM também seria fechado. Suas armas? O cérebro e a sensibilidade, sempre insuportáveis para as instituições de poder que regem o sistema. O enredo da peça era bem mais simples do que o caos provocativo e até autoritário que gerou: O Bailado do Deus Morto não passa de uma interpretação metalingüística das ideias expostas na Experiência nº2. Tendo como alvo uma das instituições que Flávio acreditava ser a grande responsável por atravancar o progresso e a felicidade do novo homem, a Igreja. O deus animal nasceu na floresta primitiva, gerado pela fome, pelo medo e pelo sexo. A religião tornou-se um fenômeno universal porque o medo da morte é universal. Os homens exigem um destino, através de um anseio de imortalidade. Num mundo sem Deus, sem destino, sem matrimônio, os paraísos artificiais, o mundo mágico panteísta oferecido pelos entorpecentes e alucinógenos, que levam a uma invenção da alma, cumprem bem essa função eliminando o sentido do sagrado. “O primeiro ato trata da origem animal de Deus, o aspecto e a emotividade do monstro mitológico e as razões que levaram a Mulher Inferior a transformá-lo num objeto de dimensões infinitas, apropriado à ira e ao amor do homem. Mostrará de início a vida do Deus pastando entre as feras do mato e os laços afetivos que mantinha com esta. (...) No segundo ato a Mulher Inferior explica ao mundo por que ela seduziu o monstro mitológico e pacato de entre os animais e colocou-o como Deus entre os homens, uma profunda saudade marca a sua entoação e a sua ira contra o Homem Superior”. O deus acaba morrendo e os homens, então, “controlam os destinos do pensamento, marcam e especificam o fim do deus e o modo de usar os resíduos no mundo novo”. Trata-se da morte de Deus pelo homem, de sua materialização e utilitarização. Em matéria que sai no jornal O Século, 26/11/1933 vale destacar o título e um trecho: O “Teatro de experiência”do “Clube dos Artistas (?) Modernos (?)” é um atentado à cultura e à dignidade do povo paulista [...] em matéria de psiquiatria e de obscenidade, S. Paulo nunca viu coisa igual... Pelo “bailado do deus morto” (“deus morto” é hoje Marx) pode um cristão fazer uma ideia aproximada do que é a ação bolchevista, e sobretudo do que é a mentalidade patológica dos que a propugnam (Daher, 1982: p. 45)

72


Os atores, quase todos negros, foram apanhados a esmo nas ruas. Hugo Adami era o ator principal, relapso e racista. Toda a peça tinha caráter experimental, era cantada, falada e dançada. Tinha diálogos desconstruídos e um fio narrativo muito tênue. O texto escrito é cheio de rubricas e indicações, com uma geometrização dos gestos dos atores, parece uma partitura corporal de dança de cunho expressionista. O cenário era composto de um fundo negro, uma coluna de alumínio seccionada de modo a remeter a um totem e uma corrente presa a ela que depois se solta, além de uma pira ou algo do gênero. Os figurinos eram túnicas ou camisolas brancas e máscaras de alumínio. Os efeitos cênicos eram obtidos pelo movimento de luzes sobre esses elementos do cenário e do figurino. A sonoplastia ficava em cargo de som ao vivo com

uma orquestra de

instrumentos de percussão derivados do samba: bumbo, reco-recos, urucungo ou berimbau, cuíca ou puita, tamborins, uquiçamba. Atentando o pudor Vítima de repressão gratuita e de um ódio alimentado pela ignorância, Flávio assistiu ao fechamento do CAM, do Teatro da Experiência. E agora de sua primeira exposição individual, em 12 de julho de 1934 pela polícia, com a apreensão de cinco dos mais de cem trabalhos expostos e deixando um grupamento de agentes em vigília na porta. Resta saber que espécie de risco poderia uma exposição de obras representar para a segurança das instituições. Os quadros expostos tinham crianças rindo e fazendo ginástica ainda no ventre materno (consideradas imorais pelos censores). E nus femininos (constituíam atentado ao pudor). No dia seguinte, os monumentos de São Paulo amanheceram todos vestindo camisolas brancas (ironia ao pudor? Ao puritanismo? Às vestes e máscaras sociais? A uma metroprovíncia ainda adormecida diante do progresso da realidade e do pensamento?). Este ato foi feito na noite do próprio dia do fechamento da exposição, por Flávio de Carvalho e Quirino da Silva. Em 26 de julho, por ordem judicial a exposição é reaberta e as obras apreendidas são devolvidas. O caso com a polícia serviu apenas de propaganda, resultando posteriormente em interrupção do trânsito, lotação da exposição e venda de todas as obras.

73


Estudo do papel higiênico Flávio fará uma viagem que dará origem ao livro Os Ossos do Mundo (1936) (reúne pequenos ensaios sobre arte, psicologia, estética, arquitetura, sociologia, história, etc.). Durante essa viagem ele fez uma pesquisa de campo que consistiu em “uma razoável coleção de papel higiênico dos países atravessados”, já que “o papel higiênico é um índice de elevação do indivíduo e um elemento de estudo para o sociólogo”. “O requinte do papel higiênico representa naturalmente a valorização de um dos locais mais desprezados do corpo humano, mais destruído pelo chiste da palavra e do gesto, possivelmente o mais desprezado de todos e, para mim, um índice que indica o valor do local mais desprezado do corpo era também um dos índices de civilização de um povo e o desejo de elevação do indivíduo.” Dolce Vita Em plena vigência do Estado Novo de Getúlio, Flávio é ‘flagrado’ tomando um banho feliniano na Fonte das Lagostas, na Praça Júlio Mesquita. Não se sabe ao certo, mas dizem que Flávio visava dinamitar a fonte após o banho. E mais uma vez novo passeio na “Viúva Alegre”, nova nota no Estadão, mais uma ruptura do standard posto, mais uma quebra no cotidiano. Sapos ou São Francisco de Assis da Praça da República A turma de Sangirardi Jr. auto-intitulada de “boêmios irrecuperáveis, notívagos turbulentos” nutria grande admiração por Dom Flávio, por sua arte, pelo que dizia e fazia. Certa madrugada, ao passarem já um pouco bêbados pela Barão de Itapetininga, viram a janela de seu apartamento acesa e resolveram subir. Convidaram-no a conhecer o São Francisco de Assis da Praça da República. Ele desconfiado hesitou, mas não resistiu à curiosidade e foi. Diante de um laguinho da Praça, cenário do grande evento, Osvaldo Moles ficou de quatro na beirada da água e começou a coaxar. De repente um sapo respondia, depois outro e mais outro. Assim eles vinham aos montes se aproximando, formando um semicírculo ao redor do encantador de sapos, que também coaxava sem parar. Flávio e sua alma de criança, com os olhos brilhando, ria e sem resistir aplaudia com emoção essa travessura performática que se repetiria outras vezes.

74


Deitando no maior cinema da América do Sul O gigantesco Odeon, na Consolação, tinha duas enormes salas independentes. Eram interligadas entre si pelos halls de entrada, tão grandes que ali se costumava realizar bailes carnavalescos. Em cada hall estavam expostos conjuntos diversos de móveis, isolados por grossos cordões. Uma noite, momentos antes de terminar a sessão mais disputada, a das oito horas, Flávio de Carvalho, Plínio Xavier de Mendonça e Sangirardi Jr. deitaram na cama de casal de um dos dormitórios em exposição. Ficaram os três cobertos pela colcha, apenas com a cabeça de fora. Terminada a sessão, logo a cena começou a juntar gente, e um adeusinho aqui outro acolá agrupou uma multidão de gente se empurrando para ver. Os três caras de semvergonhas atraíram até a polícia (com Flávio de Carvalho no meio, já era de se esperar!) ‐

Que é isso?!

Estamos descansando.

Mas isso não é lugar.

Por que? Está muito confortável.

Nessa cama não pode deitar.

Cama não foi feita para deitar?!

Mas não essa. Essa é de propaganda.

E vocês querem propaganda maior do que essa? Olha só quanta gente. (Sangirardi Jr, 1985, p.96,97)

As pessoas riam e se divertiam. Os policiais sentindo-se ridicularizados decidiram prendê-los, obrigando-os a descer da cama. Mas para fechar com chave-de-ouro, o púbico havia gostado tanto da performance que não permitiu a prisão. E os três mosqueteiros, um na frente e bem mais alto (Flávio) retiraram-se sob uma salva de palmas. Suas performances ora previamente bem embasadas teórico-cientificamente, ora em happenings, de improviso, não passavam de grandes aventuras clarificadoras do comportamento humano, condição primordial para o jogo: desde que fossem lúdicas e, de preferência, contestatórias. Ato Falho Sangirardi Jr. propôs a repetição em São Paulo de uma intervenção que realizou com uns amigos na Ópera O Guarani em Piracicaba. Os “índios” brandindo grossos tacapes de

75


papelão puseram os “portugueses” para fora de cena, ganhando a batalha do terceiro ato e fechando a ópera. Em São Paulo a façanha ganharia caráter internacional uma vez que contava com a participação do tenor Beniamino Gigli. Flávio entusiasmado acrescentou: “No dia seguinte publicaremos um manifesto contra a ópera”. (Na época a ópera O Guarani de Carlos Gomes realizada no Theatro Mvnicipal foi acusada pela imprensa de causar desrespeito à memória nacional). Mas ou por desconfiança e delação ou porque o acontecimento em Piracicaba tivesse ganhado certa notoriedade, a companhia lírica do Mvnicipal só aceitou os comparsas de sempre, já conhecidos. E o sonho foi por água abaixo. Histórico do pé Por volta de 1940, no meio da Rua Barão de Itapetininga, procurando o número de um prédio, foi atropelado no pé direito pela roda de um ônibus. Teve de manter repouso absoluto. Para proteger o pé imobilizado, o carpinteiro japonês fez uma caixa de pinho, com tampa e dobradiças, fechada por uma vistosa fita azul, para o paciente. Apesar de todas as pomadas, ungüentos, folhas, raízes, calor, frio, banhos de luz, nada resolvia. Contou com a ajuda de um cirurgião renomado que recomendou uma operação para incisura em nervo da virilha. Uma rezadeira trazida pela professora Sebastiana de Morais. E por fim, acompanhando Lasar Segall, um medico judeu fugido da Alemanha nazista que examinou restritamente o pé avariado e receitou: “O único remédio é andar”. Aos poucos foi dando alguns passos e medindo a evolução da melhora com um paquímetro. O pé desinflamava, segundo ele, a uma velocidade de 0,56 milímetros por dia. Já de muletas pelo centro da cidade, amigos e conhecidos não paravam de perguntar o causo. Cansado de repetir sempre a mesma história anedótica digna de um conto, mandou imprimir panfletos onde tudo era contado nos mínimos detalhes, sob o título: Histórico do Pé. Agora tente imaginar a cena, um homem (figura pública) de muletas andando nas ruas do centro (nada mais convencional) distribuindo o drama do próprio pé (nada mais original e até clownesco).

76


Cenários Fez decorações para bailes carnavalescos, desde o do Clubinho dos Artistas (1951) e do Circo Piolin (1954) até o do Teatro Municipal de São Paulo (1968) e muitos outros. Criações a partir de linhas e formas geométricas. No teatro sua contribuição cenográfica será notável a partir do famoso O Bailado do Deus Morto (1933) com uma grande coluna de alumínio seccionada (totem) e uma corrente presa a ela. Se destacava pela criação de cenários em que a cor e a luz valorizavam a beleza plástica e conferiam volume, reflexos, sombras e movimento aos bailados. Notando-se características simbolistas e construtivistas, conservando simplicidade, economia de símbolos e poder de síntese. Exemplos disso são o cenário para o grupo experimental de dança Dorinha Costa (1951), com grandes tecidos esticados de modo a criar diagonais, retas e curvas no espaço cênico, e a utilização de fachos luminosos; cenários e figurinos para A Cangaceira Balé do IV Centenário (1954); cenário para Ritmos de Prokofiev – Balé Yanka Rudska (1956); cenário para Calígula - Teatro de Alumínio (1959) e cenários e figurinos para o bailado Tempo em 1965. Anti-performance Flávio teve a maioria de seus projetos de monumentos recusados, talvez por fugirem da rotina, dos padrões estabelecidos. Um, no entanto, foi executado: o monumento a Federico Garcia Lorca, subsidiado pelos antifascistas de São Paulo, na figura de Paulo Duarte, e erigido na praça das Guianas, perto da Avenida 9 de Julho. Inaugurado em 1968 com a presença de Vinicius de Morais e Pablo Neruda (que discursou). Nas palavras de Flávio: “Este monumento encarna em aço a têmpera de Federico Garcia Lorca, simboliza o seu espírito dinâmico que explode num teatro telúrico e numa poesia viva, universal. Seus tubos são flechas lançadas ao espaço, na procura da liberdade que dignifica o ser humano. No seu conjunto, é a própria vida do poeta, que trava a definitiva batalha contra a tirania e a opressão”. Todo esse vitalismo só poderia irritar as forças do obscurantismo reinante. Essa tensão latente, que reflete também um momento político nacional, toma forma no que entendemos, em concordância com Antonio Carlos R. Moraes, ter sido um ato de barbárie, uma antiperformance. Na madrugada de 26 de junho 1969, aproximadamente 30 jovens do ‘Comando de Caça aos Comunistas’, armados de metralhadoras, intimidaram o guarda-noturno e ao som

77


de gritos histéricos e selvagens, serraram e destruíram o monumento ao cabo de 4 horas. Era esse o primeiro monumento do mundo ao poeta fuzilado na guerra civil espanhola. Esse gesto era um “Viva a Morte” pelos nazi-fascistas, os mesmos que fuzilaram Lorca, os mesmos que torturam e matam os que lutam pela liberdade. O monumento teve de esperar os ‘tempos de democracia’, após 11 anos para ser reconstruído por alunos da FAU da USP. É indiscutível o Quê performático de Flávio, sua capacidade de lidar com o aqui e agora, retratar e relacionar-se artisticamente com o presente, com o que lhe diz respeito, no momento em que vive, buscando entendê-lo, transformá-lo e transformar-se nele. Acreditamos que suas ações e propostas interventivas criticavam e revelavam problemas socioculturais de sua época através de meios bastante simples mas que perturbavam a ordem cotidiana imposta. Aplausos e saudações a este grande agitador cultural. “A nova humanidade só pode admitir a arte sob fórmula diversa: ‘Todos fazem, eu não faço’.” Flávio de Carvalho. Apresentamos aqui uma tabela buscando uma aproximação teórica entre a configuração e realização das propostas performáticas de Flávio e os aspectos relevantes à criação de performances em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples. É interessante para nós enquanto pesquisadores perceber e identificar aproximações com o trabalho de outros artistas como forma de enriquecer, contextualizar, aprofundar e parametrizar as características formadoras do nosso próprio fazer artístico. Os parâmetros utilizados foram os seguintes: relação espaço-temporal estabelecida no espaço público (data, lugar, observação imersiva, inscrição e escritura corporal, duração, repetição, ritmo, energia), relação

intersubjetiva proposta entre performer e cidadãos

(performatividade, presença, “valor de troca”), trabalho sobre o mínimo (gestos, ações, elementos e signos).

78


Experiência 1

1

Experiência 2 ou “Um

Experiência 3

incidente” Relação espaçotemporal: Data

_______________

8 de junho de 1931

19 de outubro de 1956. Sexta-feira quente de primavera.

Lugar

Fazenda de parente

esquina da rua Direita

Rua Barão de Itapetininga, nº296. Do

com a praça do

centro novo ao centro velho.

Patriarca. Observação

Fluxos costumeiros de

Procissão de Corpus

Faz uma evolução histórico-

imersiva

relações estabelecidas em

Christi trafegando nas

filosófica do invólucro ambiental

família numa fazenda

ruas

para o invólucro corporal.

Intimidade com o

Adentrar a procissão

Entender por razões sociológicas,

ambiente, conhecimento

rompendo o fluxo

psicológicas e etnográficas o que a

da geografia

comum e esperado

moda representa na sociedade

Promover ação física

Procurou inteirar-se

A partir do incômodo que a roupa

catastrófica sobre si e

da capacidade

masculina lhe traz, rotinizada pela

analisar impacto gerado

agressiva de uma

moda, não adaptada ao clima tropical

sobre os parentes

massa religiosa à

e ao cotidiano metropolitano, desfila

resistência da força

com uma proposição de traje

das leis, civis, ou

masculino que acredita se adequar à

determinar se a força

realidade brasileira.

Inscrição corporal

Escritura corporal

da crença é maior do que a força da Lei e do respeito à vida. Duração

_____

Repetição

______

_______

Ação única com certa

Ação única com certa

Ação única com certa duração

duração

duração

Ritmo

Movimentos rápidos

Lento-rápido-lento

Cotidiano

Energia

Grande liberação de

Gradativa: da

Economia de energia

energia

contenção para a exaustão

Relação

79


Intersubjetiva proposta entre performer e cidadãos: Performatividade

Coordenação motora e

Simples

domínio respiratório

Apesar do performer já ser uma figura pública na época. Concentrava-se mais na relação sígnica entre a indumentária e as pessoas do que no performer

Presença

Não foi capaz de gerar

Grande poder de

Atenção à reação e aceitação das

impacto

observação, preparo

pessoas, colhia seus comentários

físico e interação “Valor de troca”

Ação não foi considerada

Grande impacto sobre

Grande impacto sobre a população

a população religiosa,

civil, gerou reações diversas de

gerou reações diversas humor, revolta e aceitação entre de acordo com os

artistas, celebridades e políticos.

gêneros, faixa etária e instituições Trabalho sobre o Mínimo: Gestos

Gritar por socorro

Flerte às moças

Ações

Afogar-se

Cruzar uma procissão

________ Caminhar

de Corpus Christi no sentido contrário, com um boné na cabeça Elementos

Açude

Boné

New look

Signos

Morte, ausência

Boné, contra-fluxo,

Debate sobre importação e adaptação

flerte

de valores sócio-culturais.

80


“Atentado ao pudor”

2

“Estudo do papel

“Dolce Vita”

higiênico” Relação espaçotemporal: Data

12 de julho de 1934

1936

Vigência do Estado Novo de Getúlio

Lugar

__________

Diversos países

Fonte das Lagostas, na Praça Júlio Mesquita

Observação

Fechamento do CAM, do

Uma viagem que dará

Federação governada por Getúlio

imersiva

Teatro da Experiência. E

origem ao livro Os

Vargas que combinava ditadura,

agora de sua primeira

Ossos do Mundo (reúne

censura e populismo. Conjuntura da

exposição individual.

pequenos ensaios sobre

II Guerra Mundial.

arte, psicologia, estética, arquitetura, sociologia, história, etc.). Inscrição corporal

Apreensão de cinco dos

Realidade apresentada

Qual o espaço do corpo nu no

mais de cem trabalhos

no material analisado

espaço público?

expostos e deixando um

de cada país.

grupamento de agentes em

“o papel higiênico é um

vigília na porta. Os

índice de elevação do

quadros expostos tinham

indivíduo e um

crianças rindo e fazendo

elemento de estudo para

ginástica ainda no ventre

o sociólogo”.

materno (consideradas imorais pelos censores). E nus femininos (constituíam atentado ao pudor). Escritura corporal

Cobrir corpos nus de todos

Faz uma pesquisa de

Ocupação corporal do espaço

os monumentos da cidade

campo que consistiu em público. “uma razoável coleção de papel higiênico dos países atravessados”

81


Duração

_______

Repetição

Elemento repetido

______ Ação única com certa

_______ Ação única com certa duração

duração Ritmo

_______

_______

_______

Energia

_______

_______

_______

Relação Intersubjetiva proposta entre performer e cidadãos: Performatividade

Força estética, de

Simples

Quebra de convenção social

criar ambiente favorável a

Força sociológica de

Coragem de exposição da ordem do

jogo e fruição no espaço

um elemento cotidiano

íntimo, do considerado privado, em

público. Força

usado para higiene

espaço público.

significância e na repetição de um mesmo elemento sobre obras de arte públicas Presença

contestatória. “Valor de troca”

Ação em resposta a

_________

É levado à delegacia, vira nota no

censura. Exposição foi

jornal, mais uma ruptura do

liberada, teve dias lotados

standard posto, mais uma quebra no

e vendeu todas as obras .

cotidiano.

Trabalho sobre o Mínimo: Gestos

Os monumentos de São

________

_________

Paulo amanheceram todos vestindo camisolas brancas (gesto social) Ações

_________

colecionar papel

Flávio é ‘flagrado’ tomando um

higiênico dos países

banho feliniano na Fonte das

atravessados

Lagostas, na Praça Júlio Mesquita.

82


Não se sabe ao certo, mas dizem que Flávio visava dinamitar a fonte após o banho. Elementos

Camisolas brancas

Papel higiênico

Corpo

Signos

Ironia ao pudor? Ao

“O requinte do papel

Questionamento sobre a

puritanismo? Às vestes e

higiênico representa

privatização do corpo, os fins e

máscaras sociais? A uma

naturalmente a

usufruto do espaço público.

metro-província ainda

valorização de um dos

adormecida diante do

locais mais desprezados

progresso da realidade e

do corpo humano (...)

do pensamento?

índice que indica o valor do local mais desprezado do corpo era também um dos índices de civilização de um povo e o desejo de elevação do indivíduo.”

“Deitando no maior

3

“Histórico do Pé”

cinema da América do Sul” Relação espaçotemporal: Data

1940

Lugar

Cinema Odeon, na

Centro da cidade

Consolação Observação

Em cada hall estavam

De muletas pelo

imersiva

expostos conjuntos

centro da cidade,

diversos de móveis,

amigos e conhecidos

isolados por grossos

não paravam de

cordões.

perguntar o causo.

83


Inscrição corporal

Área de propaganda de

Caminhava apenas

produtos em espaço público-privado Escritura corporal

Habitar móveis em stand

Cansado de repetir

de exposição

sempre a mesma história anedótica digna de um conto, mandou imprimir panfletos onde tudo era contado nos mínimos detalhes, sob o título: Histórico do Pé. Distribua os panfletos ao curiosos.

Duração

Ação única com certa

______

duração Repetição

Gesto de acenos repetido

Ritmo

_______

Energia

Entrega de panfletos _______

“Cotidiana”

“Cotidiana”

Performatividade

Simples

simples

Presença

Estado de humor

Estado de humor

“Valor de troca”

Agrupou uma multidão de

Justificativa aos

gente se empurrando para

curiosos.

Relação Intersubjetiva proposta entre performer e cidadãos:

ver, as pessoas riam e se divertiam. Atraíram até a polícia. A ação acabou promovendo com fins de propaganda os móveis em

84


exposição. Os policiais sentindo-se ridicularizados decidiram prendê-los, obrigando-os a descer da cama. Mas o púbico havia gostado tanto da performance que não permitiu a prisão. E os três retiraram-se sob uma salva de palmas.

Trabalho sobre o Mínimo: Gestos

Acenos de adeus

________

Ações

Flávio de Carvalho, Plínio

Um homem (figura

Xavier de Mendonça e

pública) de muletas

Sangirardi Jr. deitaram na

andando nas ruas do

cama de casal de um dos

centro distribuindo o

dormitórios em exposição.

drama do próprio pé

Ficaram os três cobertos

(nada mais original e

pela colcha, apenas com a

até clownesco).

cabeça de fora. Elementos

Cama

Panfletos, muletas

Signos

Transgressão de barreiras

Humor sobre a vida

físicas e sociais de

pública. Fabulação,

proteção de patrimônio

compartilhamento de

privado, relativização e

uma história pessoal.

questionamento do poder da polícia enquanto autoridade pública, promoção e propaganda.

85


2.4 Experimentos Práticos “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro nessa vida” (Vinícius de Moraes). “No atual estágio ‘líquido’ da modernidade, os líquidos são deliberadamente impedidos de se solidificarem. A temperatura elevada — ou seja, o impulso de transgredir, de substituir, de acelerar a circulação de mercadorias rentáveis — não dá ao fluxo uma oportunidade de abrandar, nem o tempo necessário para condensar e solidificar-se em formas estáveis, com uma maior expectativa de vida”.39 “A arte na cidade contemporânea só pode aludir ao que ali nos escapa, ao que ali não tem lugar” (LIMA, 2008, p.122)

Para nós ao praticar a performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples, mais do que as planificações, representações gráficas, ou projeções, interessa-nos as ações, as vivências, os percursos, as apropriações com seus desvios e atalhos, as micro práticas cotidianas do espaço vivido, e estes não precisam necessariamente ser vistos, mas sim experimentados através de todos os sentidos do corpo escrevendo e sendo escrito pela cidade, compondo a complexidade da experiência urbana. É o corpo em movimento que

realiza, transforma ou atualiza o lugar, seus projetos e planejamentos

urbanos. Nossas performances buscam permitir fabulações a partir de estímulos imagéticos: sígnicos, temporais (através de um tempo dilatado, extra-cotidiano) e de ação (cotidiana, mas deslocada para outro contexto passando a ser extra-cotidiana). Buscam desterritorializar um território já familiarmente conhecido, causar um estado efêmero de desorientação espacial, quando todos os outros sentidos, inclusive a visão, se aguçam possibilitando uma outra percepção sensorial do espaço e do que nele ocorre. A espetacularização das cidades contemporâneas desencadeia um processo de criar cidades-logotipo (JACQUES & JEUDY, 2006, p.127) cheias de cenários e espaços espetacularizados, desencarnados, propícios somente para os simples espectadores. Levam a uma diminuição da participação, mas também da própria experiência urbana enquanto prática cotidiana, estética ou artística. Essa redução da ação urbana pelo espetáculo acarretam uma perda de corporeidade, tornam os espaços urbanos “vazios”, meros cenários, como reforça Paola Berenstein Jacques: Os urbanistas teriam esquecido, diante de tantas preocupações funcionais e formais, deste enorme potencial poético do urbano, e principalmente, da relação inevitável

39

BAUMAN, Zygmunt. Entrevista. Istoé, 24 set. 2010. Disponível em: <http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/102755_VIVEMOS+TEMPOS+LIQUIDOS+NADA+E+P ARA+DURAR+?pathImagens=&path=&actualArea=internalPage>. Acesso em 29 nov. 2012.

86


entre o corpo físico e o corpo da cidade que se dá através da errância, através da própria experiência - do se perder, da lentidão, da corporeidade - do espaço urbano, algo simples. (...) No urbanismo contemporâneo, a distância ou descolamento entre sujeito e objeto, entre prática profissional e vivência-experiência da cidade, se mostra desastrosa ao esquecer o que o espaço urbano possui de mais poético, que seria precisamente seu caráter humano, sensorial e corpóreo. O sujeito urbanista, ao se esquecer de se relacionar fisicamente, afetuosamente, com a cidade em si, o seu objeto, se distancia desta e por fim projeta espaços espetacularizados ou desencarnados. (JACQUES & JEUDY, 2006, p. 134)

Os espaços públicos contemporâneos estão cada vez mais privatizados ou não apropriados. São para nós um desafio de reinvenção corporal, carnal e sensorial das cidades. Vemos a cidade como um campo de investigações artísticas aberto a outras possibilidades sensitivas. Acreditamos que através de nossas experiências possibilitamos outras maneiras de se analisar e estudar o espaço urbano, questionar a apropriação desses espaços de forma crítica, poética. Em se tratando de arte contemporânea vários artistas trabalham no espaço público com algum tipo de questionamento teórico. Desde as flanâncias (final do séc. XIX e início do séc. XX), as deambulações (1910-1930), as derivas (1950-60), os happenings (1960-70), ou mesmo nós acreditando nas micro-alterações e possibilidades de transformação no espaço público e de convivência social através do mínimo ou do simples, num processo de inscrição e escritura corporal. O mínimo e o simples são intermédio para encontros entre pessoas e esses encontros por sua vez geram micro-transformações perceptivas, afetivas e de outras ordens. Essa relação íntima entre arte e vida cotidiana passa tanto por “questões corporais como por questões urbanas, chegando numa relação entre a experiência sensorial do corpo e a experiência física da cidade” (JACQUES & JEUDY, 2006, p. 132). Acreditamos que promover ambientes criativos nos espaços públicos os quais possibilitem a participação e fruição do espectador é o antídoto ao espetáculo. É dessa maneira, com os experimentos práticos, que as pulsões e inquietações teóricas encontram seu lugar concreto, a partir da vivência do corpo em relação aos espaços escolhidos40 da cidade de São Paulo. Para que materialize e conclua a partir da experiência os pressupostos e hipóteses levantados com relação à fricção entre arte e vida, arte e relação, arte e cidade. Realizamos, portanto, para esta pesquisa sobre o potencial da performance através do mínimo e do simples na malha pública urbana alguns experimentos práticos, além dos três experimentos previstos. Daremos por conseguinte maior enfoque as esses três experimentos

40

e pessoas

87


evidenciando os diferentes caracteres públicos vivenciados na prática quer numa via, num patrimônio público ou numa instituição pública. Apresentaremos a definição que acreditamos mais se adequar a nossos fins dos termos via, patrimônio e instituição, trazidos por FERREIRA (2010, p.781, 570, 430), ressaltaremos os dados mais relevantes colhidos da observação imersiva

em cada um dos experimentos, faremos uma reflexão acerca da

realização de cada uma das proposições artístico-performáticas e em seguida apresentaremos os pontos de vista do participantes que acompanharam os experimentos através de um protocolo observacional. Faremos também um breve relato dos outros experimentos realizados apenas com o programa de ação constando de informações de lugar e data, ação realizada, questão a ser abordada e imagem do experimento. Cada um dos experimentos constitui-se de duas fases básicas: Observação imersiva Proposição de ação artístico-performática.

88


2.3.1 Experimento I: Via Pública- túnel Papa João Paulo II [Lat. via.] sf. 1. Lugar por onde se vai ou se é levado; caminho. 2. Direção, rumo. 3. Qualquer ducto do organismo. 4. Meio, modo. (FERREIRA, 2010, p.781)

Como vimos as cidades a partir do princípio de harmonia, organização e funcionalidade serão entrecortadas por vias que permitam uma maior eficiência nos meios de transporte e comunicação. Nosso primeiro experimento dedica-se a estudar e perturbar os fluxos presentes no túnel Papa João Paulo II, este entre-lugar arquitetado para tão somente ligar pontos, um lugar de trânsito constante, um meio de passagem, de embarque e desembarque, de não-estada, de impermanência, uma veia escondida da cidade, uma via que para tornar mais eficiente o aproveitamento geográfico da cidade e aumentar as áreas de contato, desbrava o subterrâneo, some da superfície, espaço público imemorial, escuro e nada convidativo. Diante de vários becos e pontos que a cidade esconde e maquia aos olhos, é lá que queremos estar, intervir, buscar ou imprimir vida, perturbar, criar ruídos, nem que “invisíveis” a uma grande mídia, público, ou aparelhos que garantem a ordem da cidade. Esta ação na invisibilidade aparece para nós como recurso a partir do momento em que: Trazer a arte como enfrentamento ao inevitável incrustado na vida ordinária, desacomodando um mundo sem saída, nos oferece a invisibilidade como ação política. O invisível veiculado por meio da arte possibilita a criação de veias multiplicadoras de análises, desdobramentos do pensamento em combate contra um mundo cristalizado em reluzente cartão-postal[...] não a comodidade das metáforas indicadoras de realidades familiares, mas com virtualidades de ações, narrativas incompletas, desassossegos produtores de mundos possíveis ou impossíveis, que têm o corpo da cidade como fundamento singular (LIMA, 2008, p.137)

Pensando na cidade como corpo e a via como qualquer ducto do organismo, ao habitar este entre-lugar público, o túnel Papa João Paulo II, por algumas horas surge-nos a reflexão sobre o que ele momentaneamente abriga: carros. E não podemos evitar as associações entre o que lemos e vivemos, ao notar que o carro não passaria de um não-lugar privado trafegando e ocupando por horas a fio este espaço público, as vias, especial e majoritariamente destinadas a ele. Através do urbanismo enquanto campo disciplinar e profissional, transformou-se “as antigas ruas de pedestres em grandes vias de circulação para automóveis, reduzindo as possibilidades da experiência física direta, através do andar, das cidades” (JACQUES & JEUDY, 2006, p.129). Sendo as vias, portanto, um aparelho público declaradamente a serviço do mercado: ou para

que esta mercadoria, o próprio carro, trafegue, ou para que

89


mercadorias41 sejam deslocadas de um ponto a outro através dos meios de transporte. Ao contrário do que poderíamos pensar há vida sim neste ambiente inóspito, poluído, escuro, cinza e fétido do túnel Papa João Paulo II, há pessoas morando no chão, nas valas, e inclusive nos buracos dos corrimões

de concreto das escadas deste túnel do Vale do

Anhangabaú. Há uma potência vital neste invisível, no subterrâneo do subterrâneo. O ser humano revela-se extremamente adaptável às condições mais adversas e cria formas de resistência, de sobrevivência, de permanência mesmo na impermanência. O vale do Anhangabaú é uma área alagadiça, de pântano, agravada pelas enchentes. Os índios que habitavam este lugar antes de nós já o sabiam. Biologicamente, regiões pantaneiras são altamente anaeróbias, favorecendo o processo de putrefação. Os índios destinavam este lugar ao enterro de corpos, era um cemitério, um vale de mortos. Na crença popular e no misticismo trata-se portanto de um lugar amaldiçoado, assombrado, de forte fluxo energético. O “ser humano civilizado” intervém neste espaço de modo a cobrir e asfaltar esta região alagadiça para aproveitamento de espaços e ampliação da malha urbana, mas o que factualmente constatamos ao longo dos anos é que a cada chuva intensa essa região de túneis alaga

com enchentes, como também um alto número de mortes e suicídios são

registrados nessa região. “Mas talvez ele (o urbanista) teria evitado vários enganos se tivesse se dado o tempo para se abrir, lentamente, às exigências dos lugares que ele deveria tratar, se ele tivesse aceitado ser modestamente um flâneur esclarecido de sua cidade”.(JACQUES & JEUDY, 2006, p. 124) Para este 1o experimento habitamos temporariamente o Túnel Papa João Paulo II por dois dias, totalizando oito horas e trinta minutos dedicados a este experimento. A seguir fazemos uma descrição das atividades realizadas e os frutos colhidos desta nossa experiência. Local: túnel Papa João Paulo II Duração: 2 dias, 8:30 h. 1o dia: Sábado, 08.09.12. Procedimentos: Inscrição corporal, observação imersiva, silêncio, ação42. Duração: 9:00h- 14:30h (5h). Participantes: Lucas Paz e Patrícia Bispo. 41

Presentes, cargas, encomendas, compras. Para qualquer esclarecimento sobre os procedimentos consulte o tópico Dos procedimentos práticos utilizados.

42

90


Atividades realizadas: i) Entrevista à participante convidada com duração aproximada de uma hora43. ii) Ação simples: observação imersiva com duração de quatro horas. iii) Procedimentos específicos: iii.1) Indicações à participante antes da atividade de observação: Introduzimos os parâmetros utilizados para a realização dos experimentos: observação imersiva, silêncio, ação e autoria. Falamos brevemente sobre micro-percepções a partir do exemplo de Leibniz sobre o mar e o barulho do mar, citado por Renato Ferracini em entrevista concedida à pesquisa. Orientamos os participantes a observar os fluxos e contra-fluxos deste espaço e capturar o máximo de imagens, sensações, eventos, através das palavras. Segue parte das indicações efetivamente dadas à participante no dia do experimento: Por enquanto se trata de um exercício de inscrição neste espaço que adentramos, receber dele, simplesmente escutar, com o corpo inteiro e registrar cada detalhe. É um trabalho de imersão e instauração de uma relação espaço temporal extracotidiana. Durante as quatro horas de observação haverá uma transição entre escolher um único ponto de vista a cada hora (escolher um ponto fixo de colocação espacial do corpo para observação), ou fluir continuamente durante a observação, portanto descobrindo um ritmo próprio de adequar trânsito, observação e registro ao longo da duração de uma hora. Exercício de permanência, de habitar temporariamente este entre-lugar (idealmente quatro horas de permanência, quatro horas de livre trânsito para de fato se inserir e perceber a fundo as dinâmicas do lugar). A ação simples seria registrar tudo que observa. É natural que os níveis de atenção ao longo do processo variem, o desafio é se ater e registrar cada detalhe. Viver este ‘lugar’. Perceber as diferenças de fluxo com o passar das horas, o que varia (muda), o que é invariável (permanece inalterado), o que impressiona, o que ‘passa despercebido’, o que é específico daqui? Estamos falando de ruídos, o visível e o invisível.

iii.2) Indicações à participante pós atividade de observação: A sua forma de encarar, perceber o espaço público sofre alguma mudança após esta experiência? De que maneira? Que espaço a arte teria aqui? Como a arte pode estar presente aqui, trocar com este espaço, dialogar com ele, a partir dele? Pense em um mínimo gesto ou ação simples para se inscrever, escrever neste espaço, aqui entra a autoria através da “prática crua”, algo não ensaiado, apenas idealizado e que só é quando acontece.

iii.3) Observação Imersiva de Lucas Paz através de método de escrita em fluxo contínuo de pensamento: 43

Em Anexos

91


Como esmiuçamos em dos procedimentos práticos utilizados a escrita em fluxo contínuo de pensamento é o método que elegemos para absorver com a maior riqueza possível de detalhes e a menor quantidade de filtros todos os aspectos que saltam e se revelam do espaço. Essa fluidez acelerada, sem “quebras” entre o que se vê o que se anota, nos permite inserir-nos em primeira instância no espaço com mais propriedade e abertura ao que este traz como realidade, para daí podermos captar o que seria uma intervenção nele através do mínimo gesto ou da ação simples. Todo este processo de observação e escrita acaba por criar um “proto-roteiro” do que será nossa intervenção artístico-performática, seria para nós uma dramaturgia da cidade, a dança da cidade recortada em determinado momento através das ações registradas em palavras. Por ser parte fundamental para o entendimento do processo de criação das proposições artístico-performáticas anexaremos as observações imersivas ao final do relatório em Anexos. Aqui registraremos os trechos com as impressões mais fortes colhidas do 1o dia no Papa Joao Paulo II, destinado especificamente a esta atividade: 9:21h-10:21h 1a hora ponto fixo (sobre corrimão esquerdo de concreto da escada) Túnel Papa João Paulo II (via escondida de passagem de carros e pedestres do Anhangabaú, centro de SP) Variações rítmicas entre as faixas de carros Patrícia sentada no chão emborrachado (calçada destinada aos pedestres, suja, fedorenta, com vala escoadora de água, forte cheiro de esgoto exalando dejetos, mijo e cocô, não chega a ser insuportável). (Túnel) Bem iluminado com leds

cantar de pneus prenúncio de possível acidente escadas em setas

olhar curioso que desce do ônibus Moça passa por nós e não olha Reconstrução, reparo, manutenção, nova iluminação X mal-cheiro, degradação, escuro arquitetônico Patrícia parada chama muita atenção. Pista do meio geralmente para e pessoas nos observam buscando algum sentido. É possível trocar sabe-se lá o que com esses alguns olhares.

92


Um grito abafado pelo som de carros: Ei. Uma mulher tira foto do túnel, tira foto da Patrícia Turbinas exaustoras parecem estar desligadas, hoje o som do túnel já não parece tão ensurdecedor neste início. -som de fundo constante, um ronco de ar. Olhares que olham demorados ou breves, olhares que seguem. Moto olha brevemente e se distrai no trânsito. O que achamos, o que estamos buscando? Quadrado da escada: buraco, cova, quarto escuro, sossego. Túnel atravessar-se, deixar-se atravessar. O ônibus vai, o olhar se vira e busca ficar desvendando essa presença. Qual o seu/nosso contexto. Pessoas num túnel que anotam. Olhos que observam (casal) e apontam, como que conversando, criando teorias. Por que? O que será? Performar também é permanência, estar, presença, não necessita um algo a mais a se impor, muito mais a observar, a perceber. Pois é natural da relação intersubjetiva, do ser humano, buscar, atribuir sentido, se relacionar, trocar. Assobio para distrair, acompanhar, passar o tempo. Buzina, buzina (notas musicais - pã, pin, buzina que emite som de risada), pin, pin, pin, sinaleiras, piscas, pedir passagem Olho (que busca algo para distrair no meio da mesmice)-seguir-pedir para seguir (buzina/sinaleira) “Risada”(buzina que emite som de risada) novamente - ainda preso no túnel depois de vermos tanta fluência, tantos carros passarem? - Intervenção no trânsito, não usual, torna lúdica a relação interjeição de cansaço âââi som de fundo retorna a percepção. Corrente de ar Não dá para ouvir distinguir as conversas diante dos barulhos Ficar parado diante do movimento parece pedir movimento. Correr. Habitar. Ronco bem alto de moto. -Bom dia. Entrou no buraco da escada. Falou com o outro. Negro, cabelo curto, dentes bons, cigarro na mão. -Pra cá caralho! -Sumiu lá dentro. Mundo sub-sub-terrâneo. A veia da veia. O buraco do buraco. Dentro da escada, no túnel. Repente do trabalhador. 2a hora: 2o ponto de vista (10:21h-11:21h) próximo a entrada do túnel. Sentado (avistando o dentro- de costas para o fora) Ela na outra extremidade em pé. -3 turbinas exaustoras- como canhões, atiradores de mísseis. Concreto, borracha, poeira, folhas, cinza, infiltração, mofo, rastros deixados pela água, teto sanfonado, listras de tinta branca- demarcação de trânsito. Várias bolinhas azuis, textura do cimento no chão

Buzina/motor/buzina/motor Coluna (vertebral) Será que pensam na figura do estudante estudando em lugar adverso? Alguém gravando-me gravando o trânsito Descompressão do ônibus/caminhão (2 vezes) um alívio, um descanso Rádio alto de carro. Alerta de luz alta. Sinfonia de buzinas de motos e caminhão (2) e de carros. Buzina de festa (pensei como intervenção até ela se esgotar, várias) na 25 de Março. Guarda municipal- alguns, 20 mins. atrás.

93


Carro batido, amassado, riscado, arranhado, vidro riscado, fumaça do escapamento. Máscara de respiro Laranja no túnel chama atenção Barulho/ sujeira/chamar atenção (luz, cor, som)/ mal-cheiro/claro x escuro Ronco da moto como alerta sonoro, imposição, estabelecer seu espaço (luz, ou buzina) Máscara, lanterna, buzina, mp3 Propaganda política associada ao facebook (rede social na internet)  Carlos Funakipolítica e mercado ferramentas da publicidade, do marketing, lucroentretenimento e a mudança social onde fica? É preciso estar atento e forte. Abrir os olhos Ambulância Que noção possível de passagem de tempo é essa? Como se dá? Pelo ritmo dos carros? Pois aqui é como se fosse um tempo em que eventos diferentes ocorrem, mas se repetem, como se o tempo fosse “igual” o tempo todo, não passasse pois perde-se parcialmente a noção das horas, de claro de escuro, pois internamente a veia, via, é de uma cor só. A não ser pelas horas vistas no relógio e as luzes do dia nos fins visíveis do túnel. Um constante fluir, fluir, fluir, que estado de (im)permanência é esse? Nós que permanecemos, é possível permanecer ou divagar, filosofar, como se dá essa imersão? Corporalmente sinto de fato uma variação nos níveis de atenção, permaneço de diferentes formas, habito. O tempo simplesmente passa e esse extra... Caos de buzinas algum não fluir ocorre. Atrapalha-se o fluxo, severa punição sonora público-privada ...já me começa a ser confortável, aceitável, familiar, não incômodo, consigo já em pouco tempo relaxar. Diferente da outra experiência vivida neste mesmo lugar. Tenho uma impressão de ser-me já intimo, cúmplice, familiar deste “entre-lugar”. Quantidade interminável de rodas, carros, pessoas. Nesta 2ª hora aparentam mais buzinas, mais próximo do atraso, do compromisso, da hora estipulada ou biológica da fome, do almoço, da pausa, esperada pausa no fluxo, já também bem contada, cronometrada, regulada, sem sesta, sem os seus, sem parar, sem poder parar o fluxo do dinheiro. Nesta segunda hora filosofo mais e observo menos com os olhos, mas com o corpo. Sinto-me meio lesado, anestesiado pelos sons, mas não dói. Placas de trânsito (É proibido estacionar/parada de ônibus) -super possível morar na rua. Mesmo ganhando dinheiro. “Meu pedaço de chão” Fluxo começa a emperrar.11:12h saco de lixo na pista lembrei da capinha de iPhone na pista (trafegando de carro pela Av. Vital Brasil a caminho do experimento avistei uma capinha de iPhone no asfalto). E se tivesse notas de 100 reais na pista? Pararia o fluxo? (fluxo e anti-fluxo, o próprio movedor, o dinheiro, pode ser o que paralisa ou atrapalha o fluxo). Dinheiro na pista 3ª hora escolher fluir constante ou ponto de vista 11:21h-12:21h Mais um aceno. (Antes um mendigo próximo onde Patrícia observava no 2º ponto, próximo a saída do túnel) Alguém grita falando comigo Eu do outro lado da pista, na vala, de frente para a entrada do túnel. Dirigindo rápido e falando no celular. Lixo. Som alto funk. Carros: Vem olhando de longe e ao passar olha nos olhos. Outro desacelera revelando preocupação. Alguém que dorme no carro enquanto alguém dirige. Acena. Buzina: Respostas a “Pra onde você vai?” Que sibilo entre os lábios Tornar-se visto através de um desenho simples, cotidiano do corpo, do olho. Eu no reflexo do carro. Olhou enquanto fechava o vidro. 3 cantadas de pneu.

94


-Pra onde você vai? Olhar para o início e o fim do túnel virando cabeça. Olhar nos olhos dos motoristas com semblante sério, triste - Aonde você quer chegar? Som alto-balada eletrônica -Para onde você vai? -Center Norte. Para São José, quer carona? 3 vezes pergunto, só acena Preto, Branco, Cinza, Vermelho, Azul, Vermelho, Cinza, Branco 11:49h C, P, P, P, C, P, C, C, P, P, C, C, B, C, C, C, P, C, C, C, P, C, P, C, C, C, C, VERDE, P, C, V, B, B, B, ROXO, P, B, C. SOM ALTO AXÉ/ SOM ALTO RELIGIOSO 12:04-12:18 São Paulo, São Paulo, Jambeiro, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Campinas, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Santos, São Paulo, Belém, Angra dos Reis, Sorocaba, São Paulo, Florianópolis, São Paulo. SOM ALTO RAP/ SOM ALTO SERTANEJO está fazendo estatística? One Direction - SOM ALTO (POP) com medo estranhamento Vãos no teto e no chão aberturas que revelam outras camadas. 12:21h-13:21h 4a hora: ele dormindo no vão da escada vejo braço. Outro ele próximo à saída do túnel deitado eu estou gravando, também deitado. Ele me observa desconfiado tenho medo de gravá-lo e sua reação mas continuo, respiração ofegante, cocô, calção, lixo, mosquito, cigarro, isqueiro, sacolas, isqueiro, carteira de cigarro, manta, eu vontade de fazer xixi, leds fortes no rosto, linhas, ângulos, retas, seguir, seguir. Patrícia na metade do percurso não aguenta mais, já não vê mais nada, ultrapassar o limite “tudo” que já observou. Capturar mais detalhes. Correria da vida X sensação de perda de tempo. Habitar o vazio, o nada, a imobilidade e o cheiro de cocô. O lixo parado os carros que seguem. Só os carros que seguem o tempo inteiro, paisagem contínua velocidade imóvel quais os limites de cada lugar. Posso me aproximar da casa dele? As minúsculas e pequenas imperfeições na estrutura. Buzina. Sono, anestesia, desligamento, cochilo, dispersão. “Nada” acontece. -Atravessar de um lado para outro. Ou parar no meio da pista. -Limpar varrer o lugar, lavar. -visível, invisível. (pneu no asfalto, buraco no chão, toupeira (expedição, capacete, escavação tesoura) buscar capturar reação das pessoas o que você vê? Qual impacto de sua ação estabelecido no uso, funcionamento do espaço? Em que planos ocorre o estabelecimento de relações intersubjetivas? Há a possibilidade de relação? Efêmero, breve ou longo? Uma faixa: para onde você vai? Aonde você quer chegar? Jornal, carteira de cigarro, água empoçada, fundir-se ao espaço, sumir. Os que moram ou ficam aqui a polícia não os tira pois repousam, não atrapalham a ordem, o fluxo, não representam risco. A arte já tem maiores dificuldades de habitar, acontecer, permanecer aqui pois, em algum grau, compromete-se o fluxo, fere-se a ordem, representa risco. 13:09h- Pati- limite 4 h. Pão, papelão, brinco

95


Logo, em decorrência da experiência vivida através da observação imersiva, alguns questionamentos floresceram em nós: i) Como pensar numa imagem forte que captura a atenção do passante em poucos segundos, e desloca seu pensamento diretamente do trajeto que seu carro-mente perseguia em meio à “dispersão-focada”, “orientada”, proposta arquiteturalmente, urbanisticamente pelo fluxo urbano? ii) Que impacto psicofísico essas ações, imagens geram nas pessoas? Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo? iii) Que fruição elas tem sobre o visto/vivido? iv) Condição de trânsito, de “Entre” gera dispersão, ausências-fantasmas (Patrícia desiste, ausenta-se de continuar experiência, moradores do túnel: presenças-ausências.) v) No túnel trabalha-se, mora-se, esconde-se, trafega-se, observa-se, buzina-se, desembarca-se, embarca-se, fuma-se crack, caga-se, mija-se. vi) Destacar as formas de utilização dos espaços públicos e formas de relação estabelecidas entre as pessoas nesses mesmos espaços. Esses primeiros questionamentos nos levaram a formalizar questões balizadoras como estratégia de conferir foco ao nosso trabalho de observação e dos participantes que acompanhariam a realização das proposições artístico-performáticas, de modo que as apresentamos a seguir: Protocolo Observacional: Balizadores para observação Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais as formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as pessoas neste mesmo espaço? A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou de mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos? A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por que aspectos? Que impacto psicofísico essas ações/imagens geram nas pessoas? Que fruição as pessoas têm com/sobre o visto/vivido? (se possível interpele-as) Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo? É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria um “estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do performer? Como ocorre, ou o que salta como visível ou invisível?

Após o processo de Observação Imersiva, elegemos a partir dos dados colhidos nesta experiência de habitar e vivenciar o lugar, qual mínimo gesto ou ação simples é capaz de sintetizar artisticamente uma questão, problema, conflito ou realidade do espaço a ser evidenciada (este procedimento vale para todos os experimentos).

96


Assim para o Experimento I: via pública, optamos pela realização de duas proposições artístico-performáticas, uma ação simples em Ir e vir-Pelo direito inalienável de parar e um mínimo gesto em Silêncio ensurdecedor-Buzina até gastar/para gastar a buzina. Descrevemos as atividades do 2o dia de experimento. Em seguida refletimos acerca da concepção e realização deste 1o experimento prático de acordo com a problematização do caráter público e da força de uma linguagem que busca explorar, através do simples, as possibilidades de troca intersubjetiva nestes espaços. E apresentamos as impressões através de protocolo observacional do participante Otávio Oscar, que acompanhou este experimento. 2o dia: Quarta-feira, 19.09.12. Procedimentos: Inscrição e escritura corporal, autoria, ação simples. Duração: 10:00h-13:00h (3h). Participantes: Lucas Paz e Otávio Oscar. Atividades realizadas: i) Entrevista ao participante convidado com duração aproximada de uma hora44. ii) Observação Imersiva e filmagem45: Otávio Oscar iii) Propostas performativas de ação simples e mínimo gesto: Lucas Paz iii.1)Programas de ação das propostas performativas: “Ir e vir - Pelo direito inalienável de parar” (duração: uma hora) Performer cruza túnel horizontalmente e prega no chão cédulas falsas de dinheiro com os dizeres “até onde você vai?” “aonde você quer chegar?”

44 45

Em anexo Idem

97


98


99


“Silêncio ensurdecedor - Buzina até gastar/para gastar a buzina” (duração: uma hora) Performer com máscara farmacêutica de proteção das vias aéreas, headphone, buzina de festa e lanterna estrobo, buzina até a latinha produtora do som esgotar-se.

100


0:54’’

101


0:39’’

Diante do fluxo incessante o motoqueiro parou 15 segundos de seu trajeto para procurar decodificar aquele evento inusitado que testemunhara no meio do caminho. Quanto tempo demoraria para essa imagem-lembrança ser engolida pelo fluxo da cidade em esquecimento? Ou, pelo contrário, essa imagem impregnar-se-ia em sua memória enquanto resistente reminiscência simbólica convidando-o a micro-transformações?

102


Reflexão sobre proposições artístico-performáticas Diante da exposição do estudo teórico feito acerca do espaço público explorado, dos procedimentos utilizados para coleta de dados através de observação in loco, de recorte feito a partir do material colhido, da estipulação de balizadores para observação e da apresentação dos programas de ação das duas “práticas cruas” realizadas, nos propomos a refletir sobre os aspectos geradores da experiência vivida. Das dinâmicas sócio-espaciais O túnel Papa João Paulo II configura-se para nós como um entre-lugar, um lugar de passagem, de ligação de pontos, de impermanência, de fluxo voraz e acelerado de capital. Bastaria um pequeno acidente natural, ao acaso ou provocado (enchente, desabamento, interdição, atropelamento) para causar uma pane, uma interrupção deste fluxo contínuo de mercadoria pelas “veias” que atravessam a cidade e nutrem a economia. O que poderia ocorrer de ação artística que evidenciasse este fluir cego e mecânico? Esta anestesia dos sentidos? Nos deparamos com um espaço “neutro” que existe abaixo da superfície visível da malha urbana, estruturado de maneira a realmente travar relações passageiras, efêmeras, quase de modo a não existir de fato. Angular, monocromático (em tons de cinza), escuro (apesar da iluminação pública), com forte poluição sonora (com o eco das buzinas, motores, cantares de pneus, turbinas exaustoras) exalando forte odor de dejetos humanos misturados à fumaça dos carros, ele se limita à primeira vista a cumprir sua função mais óbvia: conectar, permitir tráfego. Assim conta com atravessamento de diversos meios de transporte e breve embarque e desembarque de passageiros de ônibus e táxis para o Vale do Anhangabaú. Das relações Vemos trabalhadores da prefeitura realizando manutenção dos aparelhos que permitem o tráfego, como o asfalto e as escadarias que conectam o túnel ao Vale do Anhangabaú, por sua vez causando uma pequena perturbação no fluir rotineiro. Vemos o tráfego de transportes. Vemos pedestres e passageiros que embarcam e desembarcam no ponto de ônibus e vemos moradores de rua e usuários de drogas.

103


As relações são dotadas de tamanha brevidade que fica difícil pensar em construção de relações intersubjetivas, sendo este um dos grandes desafios à nossa proposição artístico performática neste experimento. A velocidade, o barulho e a “ausência” de cor nos levavam para uma sensação de ausência de passagem do tempo, ou um tempo que aparentemente não se transformava, seguia linearmente, embriagava-nos numa energia “pesada” e baixa, um presente contínuo em que aparentemente nada acontece ou modifica a paisagem, nada fica, tudo passa. Por este motivo as relações travadas se dão em ambientes privados e íntimos no espaço público: conversas rotineiras entre os trabalhadores, músicas cantadas e piadas para passar o tempo, compartilhamento de drogas entre os moradores de rua, moradores de rua dormindo em meio a insalubridade e perturbação sonora do local, pedestres que se conhecem e trocam meias palavras durante suas travessias diárias, motoristas e passageiros em seus carros conversando, dormindo, ou ouvindo som- alto com vidros abertos, ou sob vidros fechados na tentativa de sobrepor o vórtice sonoro gerado pelo ambiente do túnel. Das impressões Diante do exposto o que nos saltou mais forte da experiência de observação foi a velocidade, a violência que um carro em seu fluir representa enquanto símbolo capital que corta as veias da cidade, a mecanização ou anestesia dos sentidos, os recursos de sinalização, sonora ou visual para chamar atenção num espaço “vazio” ou “neutro”. Em cinco horas dedicadas à observação sentimos em nosso próprio corpo e mente a transformação e adaptação dos sentidos. Depois de certo tempo aquela condição inóspita e quase expulsiva do espaço nos acolhia com tamanha “intimidade e conforto” que chegamos a nos acostumar com o ambiente ao ponto de cochilar por alguns minutos diante da fumaça, do mal cheiro, da sujeira, do confusão de sons e luzes. Todas estas características próprias do lugar pareciam dizer constantemente da possibilidade iminente do seu contrário: o parar, o interromper, o perigo, a insegurança no possível travamento de qualquer natureza de relações, a grande catástrofe, a morte, nos lembrando o enredo de Construção de Chico Buarque: “Agonizou no meio do passeio público / Morreu na contramão atrapalhando o tráfego”. Gostaríamos de relatar que a exposição ao risco sempre está muito presente em todos os experimentos, dado que intervir nos espaços públicos é relacionar-se constantemente com o acaso, com o incerto, com o desconhecido, com o inesperado. E aqui não seria diferente. Os diversos olhares de motoristas, trabalhadores, passantes, moradores, guarda civil, polícia ora

104


nos temiam, nos evitavam, nos buscavam, ora nos ameaçavam. Ao final do dia de observação, nos últimos minutos, ao gravar as valas do túnel me deparo com uma algema quebrada e logo em seguida dá-se um encontro forte e ao mesmo tempo desestabilizante com um homem que acabara de voltar liberto para São Paulo dos seus anos de detenção em Bauru. Ele tomou minha água e pediu-me dinheiro, ao que calmamente expliquei que não tinha e a que fim eu estava ali. Meu temor era de que me levasse a câmera filmadora em minhas mãos, que registrava tudo. Ele falou que a sensação de liberdade, de voltar a vida não tinha preço, desejei-lhe sorte, ele pediu apenas que não o filmasse e cada um segue seu caminho. Ele iria então sentar-se junto a um morador de rua ali no túnel e compartilhar uma pedra de crack. Por mais arriscado que sejam os encontros aos quais estamos suscetíveis nesta nossa investigação, constrói-se um rico e intransferível repertório etnográfico de experiências vividas através de encontros e de histórias bastante diversas compartilhadas que nos permitem cada vez mais nos perguntar qual a função que a arte tem para nós? O que queremos com a arte, e o que só a arte seria capaz de possibilitar? Qual o limite entre arte e vida? Não conseguimos neste caso nos ater a apenas uma intervenção. Concebemos duas proposições, cada uma com duração de uma hora. As ações que programamos para intervir no túnel obedeceram a uma lógica da invisibilidade e da não espetacularização. Quer seja pelos elementos escolhidos ou pela ação desempenhada, apesar de estranhados, as intervenções respeitavam e se fundiam em elevado grau aos fluxos presentes no próprio local. A motivação aqui era de aproximar ao máximo arte e vida a ponto de quase não se perceber o limiar, para revelar de maneira simbólica os conflitos que o espaço carrega em seu dia-a-dia. Em Ir e vir- pelo direito inalienável de parar o que se colocava em cheque era esta necessidade forjada de sempre se manter em movimento, de sempre circular, da impossibilidade de parar que o consumismo nos submete. Como a circulação de dinheiro e a circulação física por meio do transporte submetida a uma pressa infinda estão intimamente atreladas. E quando por algum motivo este fluxo em espaço público é interrompido, torna-se motivo para imediatas repreensões de ordem privada quer seja por uma buzina, um sinal de luz, um xingamento ou a própria invasão da integridade individual através de agressão física. Aqui nos importava uma ação silenciosa, mas que se dá em conexão com o fluxo imposto. Tratava-se de colar cédulas falsas de dinheiro no meio da via com os dizeres “até onde você vai?”, “aonde você quer chegar?”. Era uma forma de indagar em outras palavras para que tanta pressa, para onde e por que seguir, o que te move de fato? Acorde!

105


Imaginávamos até que ponto de fato o dinheiro nos move. Esta situação chegaria ao extremo quando aquele mesmo que nos move é o que também nos paralisaria. Supondo por exemplo que alguém curioso, ou identificando a presença de algo no chão da pista, ou mesmo eventualmente percebesse as notas de dinheiro, parasse no meio do túnel e as recolhesse. Tamanha seria a surpresa e inicial desapontamento ao perceber que se tratava de dinheiro falso que o fez “perder tempo”, mas com dizeres que o podiam fazer não parar simplesmente, mas parar para pensar. O que de fato ocorria era o medo, a iminência da morte, o alto grau de prontidão e atenção, o jogo vivo com o espaço, freadas bruscas, desvios e cantares de pneu, freadas lentas e buscando entender o que ocorria, algumas cédulas distribuídas para carros em movimento, outras distribuídas para pedestres e passantes que desciam dos ônibus, algumas cédulas coladas em ônibus e exatamente 12 cédulas afixadas ao chão do túnel formando uma barreira que pairava entre o visível e o invisível, mas nada ameaçadora, somente presente, incessantemente esmagada pela velocidade cega que nos rege em nossas buscas de atingir e cumprir metas. Que metas, que necessidades? Os passantes que recebiam as cédulas riam um sorriso lamentoso que parecia sim captar de pronto o questionamento feito. Essa ação simples de atravessar o túnel e a cada travessia depositar uma cédula, pareia-se diretamente com o real, não abria nenhum espaço para a ficção, era o agir que determinava qualquer consequência. E realmente tratava-se de ampliar uma problemática capturada do espaço a um nível de fruição através de um choque muito mais concreto, de um fluxo sendo interrompido, ameaçando e sendo ameaçado por uma presença física de uma barreira humana. O espaço de fato parecia não propiciar qualquer instauração mais profunda de relações intersubjetivas através dessa ação simples, mas acreditamos nas micro-alterações que ocorrem no cosmos a nível perceptivo, afetivo e intelectual como o fremir de asas de uma borboleta. Já em Silêncio ensurdecedor - Buzina até gastar/para gastar a buzina a troca que se dava, apesar de não se tratar de uma interação ou interlocução direta, por também se tratar de um mínimo gesto “silencioso”, parecia ter maior espaço de visibilidade do caráter estético à medida em que uma imagem se formava com a presença deste “censor de trânsito”. Este se posicionava em plano elevado à vista de todos os que passavam, com seu instrumental que evidenciava as formas de evitar, poupar, ou matar os sentidos diante de tamanha adversidade que o ambiente em redor constitui.

106


Como o excesso estivesse presente no túnel “atacando” os cinco sentidos de todos os lados, se por sua vez trabalhamos o aguçamento de todos estes sentidos através de um risco visceral na primeira proposição, esta aqui parecia evidenciar uma dormência, mecanização ou anestesia dos mesmos. O que poderia trazer a tona esta sensação de um estado quase vegetativo? O mínimo gesto escolhido foi pressionar o botão de uma buzina de festa até que o som se esgotasse por completo. Esta aparente agressão e imposição sonora, sumia como silêncio diante do ronco do ar, dos motores, das buzinas, dos rádios em volume alto, das propagandas, dos flashes de luzes vermelhas, laranjas, brancas e amarelas. O que se via era uma figura com headphones e mp3, máscara farmacêutica de respiro, lanterna de longo alcance em modo estrobo, e uma buzina de alerta. Estávamos privados voluntariosamente (ou privando), portanto, de todos os sentidos: visão, audição, olfato, tato e paladar. Os vários recursos de proteger-se do ambiente também levam-nos a aprisionarmo-nos. Mais uma vez queríamos evidenciar algo que o lugar já trazia como dado a ser pensado e não uma solução ao que para nós se afigurava como problema. Com esta ação percebíamos mais diretamente a troca de olhares, as cabeças que se viravam dentro dos ônibus e carros, acompanhando curiosas, fruindo e buscando dialogar com esta figura estranhada e de movimentos bastante sutis, quase estática. Uma moto que diante do violento atravessar ditado por aquele espaço e nele praticado, decide parar por quinze segundos o seu trajeto para se ater a fato extraordinário que ocorre diante de seus olhos. Devolvíamos ao espaço tudo que ele nos dava: o flash da lanterna apontando para a nossa cegueira em seguir percursos viciados no dia-a-dia, como instrumento produtor de presença a partir do momento em que puxa para a fonte o foco da ação, e como forma de alterar veementemente a percepção de quem segue decidido sem questionamentos ou interferências, que o faça perceber novamente seu entorno. Este elemento era o que mais nos preocupava enquanto proponentes, tinha maior latência de risco envolvido para os motoristas, pois poderia provocar um estado momentâneo de cegueira realmente, causar um acidente e parar drasticamente o fluxo de vida ou de capital. O som ensurdecedor da buzina sinalizadora juntamente aos headphones, apontando para um alerta que não se faz ouvir, como para uma escuta anestesiada que simplesmente seleciona ou exclui as invasões sonoras do ambiente. E a máscara farmacêutica, também outro instrumento paliativo que resolve momentaneamente o excesso de sujeira e entorpecimento dos gases não atentando de fato para a fonte do problema. Acreditamos que o choque dos passantes com essa imagem era capaz de transportá-los a um estado reflexivo através destes discretos, mas potentes elementos acionados por um mínimo gesto. Apesar de posicionarmo-nos em plano elevado para buscar uma maior visibilidade, não

107


acreditamos que o gesto ganhe um caráter espetacular no sentido debordiano, configurando-se mais como uma ação disruptiva que resiste em meio à corrente. Como de fato atestado no dia de observação imersiva houve aqui também um colamento entre discurso e experiência psicofísica: após determinado tempo ao longo de uma hora de duração, sentimos de fato uma espécie de anestesia, uma baixa do metabolismo, e um estado letárgico, mantendo o dedo pressionado até o esgotamento do apito da buzina. Um olhar externo é de fundamental importância em nossa área (linguagem artística), conferindo maior grau de criticidade acerca do experimento elaborado, auxiliando-nos a analisar por diferentes prismas um mesmo objeto de estudo. É desta maneira que convido participantes para observarem e lançarem sua visão crítica sobre as práticas realizadas. Havendo a possibilidade de nós pesquisadores travarmos diálogo, concordar, discordar e expandir nossa percepção sobre o material investigado. As circunstâncias de longa duração em condições que desafiam nosso estado psicofísico cotidiano muitas vezes representam uma superação para a corporeidade do performer como também do observador. Neste primeiro experimento Patrícia acompanhou o primeiro dia e desistiu de seguir adiante a partir da última hora de observação e Otávio participou do segundo dia, mas ausentando-se do túnel por alguns minutos para respirar um ar menos poluído emergindo à superfície acima do túnel. Ambos foram entrevistados acerca de noções que buscamos cercear e construir a partir deste estudo. Suas respectivas entrevistas encontram-se nos Anexos do trabalho. Neste primeiro experimento tivemos Otávio Oscar como participante-observador responsável pelo registro em vídeo e por reflexão através de um protocolo observacional. Compartilhamos aqui os dados que julgamos mais pertinentes, o protocolo na íntegra também encontra-se nos Anexos. Protocolo Observacional respondido por Otávio Oscar após realizar observação imersiva das ações artístico-performáticas Ir e vir - Pelo direito inalienável de parar e Silêncio ensurdecedor - Buzina até gastar/para gastar a buzina Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais as formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as pessoas neste mesmo espaço?

108


O túnel é um território de passagem, para uso quase que exclusivo dos automóveis e ônibus. A relação das pessoas com o espaço, no geral, é apenas olhá-lo e senti-lo (visto que é praticamente um “buraco escuro” no meio do caminho). O ambiente sinaliza hostilidade por ser muito barulhento, escuro e deserto. A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou de mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos? As duas performances realizadas estavam dentro desses dois conceitos. Eles não se configuravam ações espetaculares, mas sim sutis, acredito que, no primeiro experimento, poucas pessoas tenham reparado nas notas de dinheiro no meio da pista e acredito que quase nenhuma interpretou o ato como artístico. De qualquer forma, em nenhuma das duas houve um interesse dos transeuntes em “fruir” a ação. Apesar de chamar um pouco de atenção, todos passavam e apenas dirigiam o olhar no tempo em que seus automóveis ou o seu ritmo de caminhada permitia. Nos dois casos, a ação era uma só e se repetia do início ao fim, com poucas alterações. Essas alterações apenas aconteciam quando algo não planejado ocorria, como quando, no primeiro experimento, houve um pequeno engarrafamento e o performer foi ameaçado por alguns motoristas nervosos. A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por que aspectos? Acho difícil falar em coerência ao se tratar de performance. Eu diria que a proposição foi mais “controversa” do que “coerente”. Digo isso pois me questiono sobre a “eficiência” da performance naquele espaço. Aquilo era perigoso não só para o performer, mas também para os motoristas. Esse risco para ambos os lados é interessante do ponto de vista da linguagem, mas eu tive a impressão de que apenas a primeira camada, a mais imediata, era percebida pelo “público”, logo eles aparentemente encaravam aquilo do ponto de vista do que se entende por “vida real” e o enquadramento estético da coisa se perdeu. Logo, acho controverso que se apresente uma performance que ninguém vai ver, ainda por cima com tal grau de risco. Muitas obras performativas de grande impacto também eram “invisíveis” ao público, e apenas o registro, a lembrança ou o relato delas é que se dão a ver

109


ao público como arte. Isso questiona bastante o que pode ser considerado arte ou não e é muito difícil estabelecer critérios para isso – talvez nem se deva. Por isso, acho controverso. Que impacto psicofísico essas ações/imagens geram nas pessoas? Que fruição as pessoas têm com/sobre o visto/vivido? (se possível interpele-as) A sensação de risco era a mais forte de todas as sensações. Isso era interessante, pois dirigir um automóvel é algo realmente muito violento. Isso trazia à tona a fragilidade do humano perante uma criação própria. É engraçado pensar na idolatria da máquina em contraposição à sua possibilidade de destruição da vida humana. Mesmo num objeto aparentemente tão cotidiano e banal quanto um carro. Outro impacto era a curiosidade. Poucos se continham diante do ímpeto da vontade de olhar para entender. Isso me faz pensar sobre a necessidade do ser humano de buscar o entendimento racional, as pessoas querem pelo menos seguir confortáveis acreditando que a metrópole é explicável. Mas o próprio fluxo não permite esse entendimento. Qualquer motorista que parasse sofreria consequências violentas, fossem elas materiais ou sonoras. Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo? A primeira performance tinha um impacto forte no fluxo de automóveis, em muitos momentos os motoristas tinham que desacelerar ou parar. Houve até pequenos congestionamentos. A performance como um todo foi muito tensa. Até tive mesmo vontade de interromper. Não é fácil lidar com o fato de que seu amigo pode morrer ou se machucar na sua frente sem que você tome uma atitude para reprimir a periculosidade da ação dele. Entretanto, o performer apresentou uma intimidade grande com o fluxo daquele trecho, parecia até tecnicamente preparado para a ação. Isso fazia com que ele, na maior parte do tempo, estivesse plenamente inserido no fluxo. Esse domínio da espacialidade e do movimento era bem interessante de fruir. Por outro lado, a segunda performance não interrompia em nada o fluxo. Apesar de estar em relação o tempo todo, ela não provocava alterações. Os sinais luminosos e sonoros emitidos não eram fortes o suficiente para se sobrepor à sobrecarga de estímulo aos quais os motoristas de São Paulo já estão acostumados.

110


É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria um “estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do performer? Talvez o estado de concentração. No primeiro experimento, concentração para não errar os “timings” de atravessar a rua e grudar as notas no asfalto. Qualquer erro poderia ser fatal e isso obviamente altera o corpo, é preciso lutar contra todo o “stress” que o rodeia. No segundo experimento a concentração era para se manter parado e repetindo as ações de emitir luz e som. Isso parece fácil, mas acredito que não seja. Em determinado momento eu tive que sair pois a poluição do ar e sonora foi muito intensa e eu precisava de um pouco de ar, sol e menos barulho. Se a resistência do corpo pode ser encarada como um estado psicofísico alterado, então ela também esteve presente e pode ser apontada. Como ocorre, ou o que salta como visível ou invisível? Para mim tudo pareceu muito invisível, não do ponto de vista sensorial, mas do ponto de vista da leitura do acontecimento. Do ponto de vista sensorial, imediato, a primeira ação era muito visível, até demais: não é possível para um motorista ignorar o corpo que está na sua frente enquanto ele se encaminha em alta velocidade em direção a ele, isso é diferente da invisibilidade viável de um mendigo que apenas está jogado em algum canto, ao qual você pode facilmente desviar. Já a segunda ação movia apenas a curiosidade e nada mais, parecia mesmo um mendigo jogado num canto, mas ao mesmo tempo, como não era, gerava curiosidade e atraía os olhares. Entretanto continuou invisível do ponto de vista estético. Otávio nos abre um campo perceptivo interessante ao ressaltar que este primeiro experimento, levando em consideração a ação simples e o mínimo gesto propostos, pairaria mais na invisibilidade e na fusão com a concretude da vida real, em que o plano estético estaria mais em segundo plano, e a força da ação estaria presente por sua simples ocorrência, pela sutileza e elevado grau de apropriação das proposições e do jogo com as dinâmicas próprias do espaço. Seu olhar externo me possibilitou criar consciência e dialogar com esses fatores apontados, como enfatizar minha propriocepção sob as condições de atenção e resistência

111


psicofísica necessárias e presentes desde o processo de observação imersiva deste espaço público de atmosfera pesada e hostil. Outro aspecto relevante do observador que me é de grande valia é como ele avalia o impacto das ações sobre o público: o espaço e as pessoas, pois por mais porosos e atentos que estejamos, aquele que cumpre o papel com enfoque na observação tem o privilégio de pontos de vista outros que não os mesmos de quem vive a ação como atuante. O observador ressaltou o dado premente de curiosidade que se dá como primeiro efeito de afecto pelas ações, para depois destacar a necessidade humana de estar recorrentemente buscando explicações e significados, leitura de signos, apesar de aquele ambiente especificamente, potente microcosmo da dinâmica urbana social como um todo, com a mesma intensidade desencorajar tal ato e chamar à aceitação, à letargia, ao não questionamento.

112


2.3.2 Experimento II: Patrimônio público, monumento histórico – Theatro Mvnicipal Patrimônio [Lat. patrimônio.]sm. 1. Herança paterna. 2. Bens de família. 3. P ext. Os bens materiais ou não, duma pessoa ou empresa. 4. Fig. Riqueza: Patrimônio cultural Público [Lat. publicu.]adj. 1.relativo, pertencente ou destinado ao povo, à coletividade, ou ao governo de um país. 2. Que é do uso de todos, ou que está aberto ou acessível a quaisquer pessoas: hospital público. 3. Conhecido de todos; manifesto, notório. 4. Que se realiza em presença de testemunhas, perante pessoas, não secreto, ato público. sm. 5. Conjunto de pessoas reunidas que assistem a um espetáculo, a uma reunião, etc.; audiência, assistência. 6. Conjunto de pessoas as quais se destina uma mensagem artística, jornalística, publicitária, etc. Monumento [Lat. monumentu.] sm. 1. Obra ou construção destinada a transmitir à posteridade a memória de fato ou pessoa notável. 2. Qualquer obra notável. Histórico [Lat. historicu] adj. 1. Da, ou digno de figurar na história. 2. Real, verdadeiro. História [Lat. historia] sf.1. Narração dos fatos notáveis ocorridos na vida dos povos, em particular, e da humanidade, em geral. (FERREIRA, 2010, p. 570, 623, 515, 400, 401).

As definições trazidas pelo dicionário Aurélio associam patrimônio a um bem ou riqueza que atravessa a história por gerações, uma herança com determinado valor no mercado. Quando ganha o adjetivo “público” se trataria portanto de um bem de uso de todos, acessível ao povo. Similarmente, a definição de monumento histórico designa uma construção carregada de memória com forte carga representativa da história de um povo. Ou seja uma construção em que o povo se reconhece e se lembra do que lhe constitui históricosocialmente. Seria um elemento urbano com valor mítico. A partir do momento em que um prédio é considerado patrimônio público e monumento histórico ele prevê a não alteração de suas características e o máximo de preservação de suas características originais. O Theatro Mvnicipal é fundado em 1911, entra nesta categoria em 1981 46 e foi escolhido para ser objeto de análise, por reunir em sua arquitetura e história dois fatores específicos importantes para nossa pesquisa: por ser um prédio bastante representativo da arte em São Paulo 47 e por corresponder em termos urbanísticos à segunda categoria de espaço público a ser explorada que estipulamos para fins de pesquisa. Para entender a força do patrimônio público e da patrimonialização na constituição de uma cidade contemporânea selecionamos trechos do artigo Arquitetura, Patrimônio e Museologia (GUIMARAENS, 2010) que nos ajudarão a compreender a função social que o Theatro Mvnicipal deveria desempenhar na cidade, como também a observar as

46

Tombado pelo Condephaat Sendo o Theatro Municipal de qualquer cidade um forte símbolo e cartão-postal da arte daquela mesma cidade -Ópera de Paris, Teatro Colón, Theatro José de Alencar, para citar alguns exemplos que conhecemos.

47

113


consequências advindas da tentativa de governantes e urbanistas de preservar e privilegiar, sob diversificadas variantes de interesses, certos prédios na malha urbana, em nome da construção de uma memória histórica comum a todos da cidade: [...]no Brasil, a arquitetura da maioria dos edifícios onde estão instalados os principais museus é representativa de momentos conformadores do patrimônio nacional. Portanto, ainda considera-se que, em decorrência desse fato, expografias urbanas simbólicas e historicamente significativas encontram-se configuradas em quase todas as cidades do país. [...] Assim, a necessidade de conservar o patrimônio de todos e ampliar o sentido informacional e comunicacional das instituições de cultura produziu influências transdisciplinares (entre arquitetura e museologia) recíprocas no sentido da contextualização conceitual dos objetos e lugares patrimoniais. Dentre essas influências, destaca-se o reconhecimento das contradições ideológicas dos processos de musealização, aí incluindo a discussão sobre as formas de renovação urbanística e de promoção do patrimônio musealizado. Os setores de educação patrimonial e turismo tornaram-se, em consequência, parceiros insubstituíveis dos museus para a utilização estratégica da cultura no sentido do desenvolvimento. E, embora muitas vezes espetacularizadas e danosas, pois excessivamente superficiais e pouco ou nada educativas, as atividades museológicas passaram a ser fatores de desenvolvimento e geração de riqueza para os habitantes de regiões e áreas em processo de degradação e arruinamento. Desse modo, a arquitetura das instituições museais, quando observada tanto do ponto de vista do edifício quanto da cidade, anunciou as mudanças políticas e sociais no século XX, pois, tais equipamentos estabeleceram-se no domínio da comunicação de massas, hoje irreversivelmente mundializada. No entanto, os museus ainda continuam sendo identificados na condição de instituições “duras”, ou seja, portadoras de menor flexibilidade programática e, consequentemente, pouco ou nada inclusivas socialmente. A espetacularização do espaço urbano por meio da promoção da morfologia singular dos edifícios de museus é outro foco representativo das ideias que articulam museologia, patrimônio e arquitetura, pois o principal papel dessas instituições de cultura seria “acirrar” a relação entre história e cidadania, revelando, idealmente, a excelência pedagógica dos lugares originais e a condição de espaço museológico das cidades no cotidiano dos cidadãos. Desse ponto de vista, a requalificação efetiva de áreas centrais das cidades resultaria de ações que devolveriam aos habitantes e aos usuários o sentido de urbanidade e historicidade. Choay afirma que a noção do patrimônio urbano foi gerada na “contramão” dos processos de modernização das cidades (2001:180). [...]O Plano Voisin, idealizado por Le Corbusier para Paris em 1925, dissolveria, à maneira de Haussmann, a malha urbana dos velhos bairros, aumentando consideravelmente o gabarito dos edifícios e conservando apenas alguns monumentos. Entretanto, a manutenção da Notre Dame, do Arco do Triunfo e da Torre Eiffel no Plano Voisin, seria uma espécie de “inventário que já anunciava a concepção midiática dos monumentos antigos”.48

Apesar deste artigo tratar mais diretamente do museu, entendemos que o Theatro Mvnicipal, nosso espaço de estudo, atende a esta configuração de arquitetura museal, patrimonial, “histórica”, espetacular. O artigo portanto foi bastante relevante para que pudéssemos entender como o patrimônio público assegura sua força de espaço público na

48

Grifo nosso

114


formação de uma cidade, nos ajudando a perceber que pelo seu caráter público específico, e diverso do caráter apresentado pela via ou pela instituição pública, ele exigirá uma outra forma de atuação artística, de acordo com os preceitos que apresenta. A decisão entre o que permanece e o que sucumbe na representação da história e da identidade de uma cidade envolve aspectos bastante controversos em favor de uma classe ou sistema dominante e isso se reflete no próprio uso destes espaços. Por este motivo disponibilizamos o artigo em anexo na íntegra para que se possa compreender com mais detalhes a importância da presença de prédios na cidade com esta função memorial. Outro artigo que tratará bastante da força do patrimônio público em fricção com os diversos fluxos presentes no “centro velho” de São Paulo, exemplificando as contradições entre uso público e espetacularização chama-se Intervenção urbana no centro histórico da cidade de São Paulo: atores sociais envolvidos e também encontra-se nos Anexos deste trabalho. Refletindo sobre a significância pública deste prédio no perímetro central de São Paulo e pensando sobre sua acessibilidade será que este patrimônio público e monumento histórico tem nos representado sócio-culturalmente? Esta foi a grande indagação que surgiu durante o processo de observação imersiva e que se instaurou como desafio a nossa intervenção artístico-performática. Dos três experimentos realizados a exploração deste espaço nos permitiu vivenciar a maior multiplicidade de dinâmicas sócio-espaciais. O perímetro do “Centro Velho” de São Paulo que abriga o Theatro Mvnicipal revela variadas formas de uso e relação apresentando questões étnicas, sociais, políticas, econômicas e culturais. O espaço é utilizado como lugar de sobrevivência, trabalho, sociabilidade, especulação e ganhos de capital. Vemos, portanto, prédios destinados ao comércio e prestação de serviços, escritórios executivos e imobiliários, prédios judiciários, bancos, prédios da administração municipal, prédios destinados à cultura, prédios abandonados, moradores de rua, artistas de rua, ciganos, bolivianos, nordestinos, manifestantes de movimentos sindicais, partidários e sociais, mães-de-santo, advogados, consumidores das mais variadas classes, usuários de drogas, executivos, bancários, vendedores, anunciantes, camelôs, propagadores da fé, assistentes sociais, compradores de ouro, guarda municipal, polícia militar. Trata-se de um espaço com população e uso bastante heterogêneos onde “diversidade, insegurança e exclusão social” (BAPTISTA, 2011, p.3) convivem juntas e geram uma infinidade de conflitos sociais, é um espaço, portanto, de bastante efervescência sociocultural. Em meio a este rico contexto dedicamos quatro dias para este experimento num total de quinze horas e trinta minutos de habitação temporária deste perímetro que compreende o

115


Theatro Mvnicipal. Três dias para observação, compreendendo escolha de diferentes pontos de vista, visita monitorada ao Theatro Mvnicipal e ao museu do Theatro, e dois dias dedicados à proposição artístico performática. O Theatro Mvnicipal símbolo ostentoso da arte em São Paulo completou neste ano cento e um anos desde sua inauguração em 1911. Sempre pertenceu ao aparelho público municipal, mas foi erigido por Ramos de Azevedo sob financiamento privado com isenção de impostos pelos barões do café. A cidade prescindia de uma casa de espetáculo de grande porte, a exemplo das grandes metrópoles internacionais, que atendesse às demandas culturais, de convívio social e de manutenção de status quo entre a elite paulista. Desde sua inauguração este espaço considerado público, mas que até hoje é parcialmente mantido e administrado sob investimento privado, tinha acesso restrito a elite. A “boa arte” ou a arte erudita de ópera, música e balé que se fazia no Theatro Mvnicipal era sectária, havendo ainda assim, divisão de acesso entre as classes ricas em três setores ou ordens. Setores estes que, dependendo do valor pago pelo ingresso, revelavam nas dimensões arquitetônicas de seus salões e bares, nas portas de acesso e na qualidade de materiais suas diferenças. Este aparelho público muitas vezes servia à ostentação e exibição de poder. A restrição à área do teatro era tamanha que nos tempos de sua origem havia um pedágio de acesso que dividia o Centro, justamente nas imediações do Theatro, em duas regiões, promovendo uma forte segregação social. E somente nos anos 90 o acesso da antiga “terceira ordem” se dará também pelos portões frontais - durante oitenta anos esta ordem social dentre os ricos entrou pelas laterais. Ainda hoje, apesar de oferecer uma programação regular, frequente, com trabalhos marcantes e de contar com alguns programas de inclusão e formação de público, este Theatro pode ser considerado um “fantasma” para considerável parcela da população paulista que nunca sequer passou diante de sua fachada. Um teatro dito público, mas que, pelas várias circunstâncias socioculturais apontadas49, ainda carrega pertinente carga separatista. Este se afigura para nós como um não-lugar na medida em que seu caráter público é relativamente restrito, com ingressos a valores não acessíveis a todas as classes, não atingindo de maneira mais abrangente seu objetivo principal que é servir como aparelho cultural de uso do povo, tornando-se mesmo um cenário ou cartão-postal desprovido de identidade, destinado somente

49

de restrição sócio-financeira, de um quadro nacional de carência ou banalização de formação cultural consequentes de uma lógica mercadológica a qual favorece uma indústria cultural de massa, da degradação social da região do centro de São Paulo que gera insegurança nos cidadãos dentre outras.

116


à passagem, contemplação ou ao consumo elitista ou turístico. Mais um dado que reforça este nosso ponto de vista é a divulgação pouco disseminada entre os meios de comunicação dos eventos que lá acontecem, ou o agendamento de visitas que atualmente só se dá por internet, sendo fator bastante limitador do acesso. Arte para qualquer parte? Outro fator que assoma-se a essas constatações é o que vem nos movendo a cada vez mais realizar nossas práticas: as pessoas parecem não se interessar ou reservar tempo disponível para “consumir” arte, no sentido de querê-la, vivê-la como algo que pertence e constitui seu ser. Somos viciosamente convidados a admirar, consumir ou contemplar de maneira rápida, passageira, instantânea e espetacular, onde o simples, ou o mínimo parecem mesmo não ter vez ou lugar numa lógica que preza pelo grandioso e pela substituição. Ao longo deste nosso experimento tivemos a chance de interpelar as pessoas e o que víamos majoritariamente era uma construção de memória superficial através de um mero registro instantâneo fotográfico e nenhuma experiência corporal ou sensorial do espaço. Muitas pessoas que residem há anos na cidade e nunca sequer pisaram as escadarias do Theatro Mvnicipal, nunca tiveram real interesse, ou uma vez que este interesse é manifestado, o que alegaram é que não fazem parte ou não se sentem parte desta ‘história’, não se sentem à vontade para entrar pois a imponência do espaço parece não permitir. Ouvimos depoimentos de passantes dizendo não se sentirem em condições apropriadas para frequentar aquele lugar embora quisessem e mesmo apresentando certa condição financeira. Os processos de urbanização que limitam a convivência e a construção social através da arte e da história, dos quais o centro tem sido palco há anos encontram seu verdadeiro retrato nesta palavras de BAPTISTA (2011, p.15): [...]demolição dos prédios, remoção de atores e dissolução da memória local. Os pressupostos que regem os projetos optam pelo paradigma de revitalização com um centro limpo, asséptico, para poucos, com a expulsão dos mais pobres, favorecendo os investimentos privados e adensamento planejado com ganhos para os segmentos imobiliários e do capital, aumentando a segregação social e periferização na cidade. Constata-se, no final da última década, o retrocesso na democratização do centro de São Paulo, enquanto acesso e uso de atores junto aos espaços públicos que passam a ter uso restrito e privatizado, privilegiando a recuperação e requalificação de bens isolados, tornando-os ilhas que reforçam a fragmentação do espaço. Apreende-se que estas intervenções visam atender prioritariamente o mercado, dentro da nova conformação econômica da globalização, onde o patrimônio cultural passa a ser concebido como atrativo e mercadoria.

Concordamos plenamente e reiteramos a visão da autora.

117


É tão evidente este processo que ela descreve que, logo no primeiro dia dedicado ao Experimento II: Patrimônio Público, conhecemos o Sr. João Alfredo Godry, morador de rua que nos acompanhou ao longo deste experimento e foi de fundamental importância para determinarmos o que seria a intervenção artística através do simples mais apropriada para dialogar, inserir-se e promover ruído no espaço público explorado. O Sr. João compartilhou histórias acerca do Theatro, da dinâmica social do entorno e de sua própria vida pessoal. Ao sentar-nos no chão das escadarias do teatro e das ruas em redor fomos como no primeiro experimento absorvendo a “energia pesada” do lugar, aquela que num andar corriqueiro não se sente. É preciso permanecer, habitar, estranhar e depois “naturalmente se acostumar”. Chega a se tornar, depois de três dias nesse processo de observação, um ambiente familiar, onde o tempo corre com tranquilidade, e vemos a vida passar diante de nossos olhos sob conversas descompromissadas e aparentemente sem objetivos. Para curar o mal de solidão, de fome, e a “pinga” para curar o mal de lembrança. Descreveremos cada um dos dias dedicados ao Experimento II, faremos uma análise reflexiva e apresentaremos fotos e os protocolos observacionais dos participantes que acompanharam a proposição artístico-performática. Local: Theatro Mvnicipal50 Duração: 4 dias. 1o dia: Quinta-feira, 11.10.12. Procedimentos: Inscrição corporal, observação imersiva. Duração: 9:30h-14:20h (5hrs). Participantes: Lucas Paz, João Alfredo Godry. Atividades realizadas: i) Ação simples: observação imersiva com duração de cinco horas. ii) Procedimentos específicos: ii.1) Descrições detalhadas a partir de observação e do travamento de relações intersubjetivas através de diálogo com passantes e habitantes do entorno do espaço investigado, com alternância do ponto de vista a cada hora decorrida do processo de observação imersiva. 50 Observação

imersiva chegou a considerável nível de inscrição e imersão no espaço a ponto de construir relações com os habitantes do lugar e inclusive ser assaltado por eles no último dia do experimento, da realização da proposição artístico-performática.

118


ii.2) Observação Imersiva do Experimento II: Patrimônio Público - Theatro Mvnicipal.51 . Seguem-se os registros mais relevantes para o recorte subsequente da proposição artístico-performática: 11.10.12 9:36h-sentado nas escadas, como eu se entretém com os pombos. O monumento de tapete vermelho já é palco de fotos, o que as paredes guardam? “a ação mora na inação, há ação na inação” imobilidade e o que se leva no papel fotográfico? De repente um amontoado à minha direita de fotógrafos amadores e de “especialistas” (amadores) que atentamente analisam detalhes da estrutura. Já conversas sobre o futebol. Moradores da rua. Ele, o teatro, fechado. Fachada, suas escadarias são palco para espera do tempo passar, da vida começar, da conversa corriqueira, de olhos curiosos. Vermelho: janelas do shopping light, ciclo faixa, tapete vermelho, ônibus, carros, placas, sinal de pedestres, sinal de carro. Luzes do carro da guarda municipal. Camisas vermelhas. Bege (cinza): estrutura: prédios no entorno, casas Bahia, shopping light, Itaú, escritórios, Vale do Anhangabaú, fórum. ... artistas de rua começam também pegando a saída do horário do almoço dos outros. Antes não por causa dos fiscais da prefeitura. O pessoal para para ouvir o forró e perde o expediente. Homens-pombos. O teatro já abriu mas fora é onde está o espetáculo. Homens fortes e bravos sustentam a estrutura. De onde vem isso? Sempre assim. Mulheres lindas nas bases das luzes (postes) e nos altos do prédio. Máscaras acima delas do antigo teatro grego com suas bocarras abertas. 2a hora Lado esquerdo do teatro: ponto de ônibus Conversas, fofocas sobre choro e dinheiro e reclamação (as três associadas) Mendigos “estacionados “ “Fantasmas” nas janelas do teatro Pessoas que aparecem para tomar um ar, café 3a hora Conversa com Sr. João Alfredo Godry (habitante do espaço público, morador de rua, 60 anos) Bengala. Bebendo cachaça. Agora com problema da vista (fez gesto de bebida “sem nem perceber”). Restaurador (vitral, móveis), jardineiro da prefeitura. Por causa da vista não consegue trabalhar mais. Teatro Municipal, Ramos de Azevedo 1512? Argila Portugal / vitral Alemanha. Submerso quatro andares. Túnel do Teatro até a prefeitura (carro sai no Anhangabaú). Cultura e religião eles não podem tirar!!! Tiram os camelôs. passarela para pedestres – passarela fechada, muitas mortes, pessoas assassinadas, mesma passarela que (Teatro da) Vertigem usou. Os artistas de rua cada um tem direito a duas horas, tocam, vendem seu CD. No Viaduto do Chá: macumba, búzios, cartas Mais arte fora do que dentro acontecendo, pulsando A maior população que temos em São Paulo é rato e barata! Depredação natural vento e mijo João Alfredo “se eu fosse cego eu não te via, se eu fosse surdo eu não te ouvia

51 Lucas

Paz através de método de Escrita em Fluxo Contínuo de Pensamento, a partir de diálogos travados com passantes: primeiro senhor não identificado, sentado às escadas do Theatro Mvnicipal, à espera do horário para negociação sobre um imóvel, segundo senhor, morador de rua, de nome João Alfredo Godry. Esta observação contou com maior aporte visual, em que o recurso de filmagem encontrou mais força de registro se comparado ao primeiro experimento. Ficando visível o procedimento de determinação de um ponto de vista a cada hora sucedida de experimento.

119


Canta, canta, meu sabiá” Sobre Jesus: se eu fosse seu pai, jamais eu deixaria machucarem você Quem senta nas escadas do teatro? Estudante lendo jornal, moradores de rua 12:49h- fluxo já ficou mais concentrado “Não acredito em nada só no que pode ver e apalpar” Obediente a Deus – a seu consciente e subconsciente Você não consegue chegar perto do sol por que? E sem o sol você não vive. Deus ninguém viu e quem viu foi fulminado. Todo dia é isso daí – nóia pedra (casal brigando) Cachaça direto, não posso parar senão dá revertério, falta oxigênio no sangue Eu não gosto que usa drogas, o álcool é liberado a pedra não é liberada. A maconha até que é medicinal. Pessoas me olhando conversando com mendigo. Ir na prefeitura pegar licença (subprefeitura Sé) O senhor hoje em dia é sozinho? (trabalhava na construção civil) É ladrão esse cara. Cláudio Gonçalves de Arouche- escreve aí 13:30h- lotado de gente difícil trafegar, todos param para ouvi-las, as 3 irmãs forrozeiras. Uma roda muito grande de pessoas três dançando/ cinco dançando Ele: camisa Brooksfield, casaco de couro preto, calça verde, sapato marrom, muleta – bengala de metal, papelão pra se sentar, boné Fluke. Óculos da direita sem lente vai operar a vista depois de nove meses de espera no Hospital Monumento. Estátua que conta a história Homem sozinho, sempre eu tô por aqui, cê vê como aqui é interessante, cada história... 13:46h a chuva interrompeu o show de Daiane e Tatiane Dançando Michael Jackson, o tempo faz o show do artista da rua Guarda Municipal tira as pessoas do teatro, da porta, não pode, só nas escadas. Assim que ajeitar minha vista volto a trabalhar Programação dos artistas de rua: 13h- 18h acaba: Evangélico/ Forrozeiras Daiane e Tatiane/ Filho de Chitãozinho e Xororó GCM Guarda Cível Metropolitana Não pode ficar na porta do teatro é órgão público O que o senhor imagina acontecendo de arte aqui? Só motoqueiro, maloqueiro e cachaceiro. Poste da Inglaterra deitado na escada Saía a Rainha de Portugal na sacada na lateral do teatro e acenava para o povo Ih tá molhando, vai apagar suas letras Tapete vermelho – desenrola e deita numa das pontas Terminou 14:20 “ih olha o alemão conversando com o mendigo”

120


2o dia: Quarta-feira. 17.10.12. Duração: 10h-12h (2hrs) Atividades realizadas: Visita guiada ao Theatro Mvnicipal e ao museu do Theatro Mvnicipal. Participantes: Lucas Paz num grupo de 10 pessoas desconhecidas em reunião gratuita para adquirir informações históricas a respeito do patrimônio público e ícone histórico em questão sob orientação de guia formada por empresa privada Votorantim, a qual administra as visitas monitoradas através da “ação educativa” e os cuidados a este patrimônio. Este em breve será promovido a fundação, categoria que confere maior autonomia de atuação da empresa que o administra frente ao poder público do Estado. 3o dia: Quarta-feira. 28.11.12. Procedimentos: Inscrição e escritura corporal, autoria, ação simples. Duração: 10h-14h (4hrs.) Participantes: Lucas Paz, João Alfredo Godry. Atividades realizadas: Procedimentos específicos: i) Indicações ao participante antes da proposição artístico performática. ii) Observação Imersiva, filmagem e fotos: Lucas Paz iii) Propostas performativas de ação simples e mínimo gesto: Lucas Paz e João Alfredo Godry. iii.1) Programa de ação das propostas performativas: “Tapete vermelho-patrimônio de poucos” (duração 1h. 13-14h). Performer como estátua-viva enrolado sob tapete vermelho que cobre escadarias do Theatro Mvnicipal com placa escrita: eu faço pARTE, conta histórias sobre a construção e memória histórica do teatro, problematizando sobre quem são os usuários do Theatro Mvnicipal hoje em dia.

121


122


123


Alguns comentários colhidos: “Onde um pisa outros usam como cobertor” “E nesse prédio onde o ingresso custa 100 reais” “Uma coisa jogada no chão significa o quê? O desprezo do teatro”

124


4o dia: Quinta-feira. 29.11.12. Procedimentos: Inscrição e escritura corporal, autoria, ação simples. Duração: 10h-14:30h (4:30hrs) Participantes: Lucas Paz, Otávio Oscar, Felipe Stocco. Atividades Realizadas: Procedimentos específicos: i) Observação imersiva: Otávio Oscar, Felipe Stocco ii) Filmagem e Fotos: Otávio Oscar iii) Propostas performativas de ação simples e mínimo gesto: Lucas Paz iii.1) Programas de ação das propostas performativas: “Tapete vermelho-patrimônio de poucos” (duração 3:30h. 11h-14:30h). Performer como estátua-viva, vestido de rei, enrolado sob tapete vermelho que cobre escadarias do Theatro Mvnicipal. Sobre o tapete sapatos vermelhos, sob o travesseiro em que repousa a cabeça, uma placa com escrito: Eu faço pARTE. Indaga pessoas quando interpelado: Do que você faz pARTE? Com que frequência você visita a vida? Com que frequência você visita a arte? A arte faz parte da sua vida? De que maneiras? Você já visitou o Theatro Mvnicipal? Problematizando sobre quem são os usuários do Theatro Mvnicipal hoje em dia, como a arte está presente no cotidiano das pessoas?

125


126


Reflexão sobre proposições artístico-performáticas Quanto a este experimento já demos a saber previamente sobre as dinâmicas sócioespaciais e as possíveis relações travadas. Nos interessa aqui compartilhar nossas impressões reflexivas sobre a realização do experimento. Das impressões O vermelho e o bege foram as cores que saltaram com maior intensidade daquele espaço. Pareciam contrastarem as desigualdades sociais presentes e convivendo juntas. Encontramos neste experimento uma forte evidenciação do espetáculo desincorporado do cotidiano. Pessoas que insistiam por “ver demais” e registrar o totem da arte em São Paulo, o Theatro, guardando para a posteridade em fundo de baú vários ângulos de paredes estonteantes e grandiosas, mas “esqueciam-se de ver” os detalhes de sua estrutura, muitos homens e mulheres que apoiavam sobre seus braços essas mesmas estruturas, homens e mulheres de bocas abertas, escancaradas, em gritos mudos, sim, estátuas, comparadas às estátuas-vivas de artistas marginais ou moradores de rua. Figuras que estacionam ou transitam lentamente invisíveis naquele perímetro urbano. Após conversa a tarde inteira com o senhor João ele para nós era essa metáfora viva de visibilidade e invisibilidade, pertencimento e não-pertencimento, luxúria e pobreza, grito e silêncio que constituíam aquele grande monumento dedicado a arte. Para nós uma arte meio ‘empoeirada’ ou pouco acessível. Ouvindo as diversas histórias e narrativas de senhor João que acessava sua memória pessoal e a memória histórica do Theatro da cidade, relatava e recriava a realidade como forma de sobreviver a si mesmo e aos outros. E confrontando auditivamente e visualmente sua figura às diversas estátuas esquecidas que compunham os postes e pilastras do Theatro e do seu entorno, nos veio a ideia de uma ‘estátua-viva’, alguém parado, imóvel, numa condição marginal, que compartilhava histórias e indagações acerca do Theatro, da arte e da vida. Como, a partir de nossas pesquisas dedicadas a este experimento, fomos constatando que o Theatro ainda hoje é um aparelho cultural com caráter mais turístico, elitista e passageiro do que de fato cultural e amplamente acessível, fazia-se necessário evidenciar essa separação através da cor mais gritante no espaço, cor essa também que pinta um dos

127


elementos mais chamativos que preenche toda a área interna do Theatro, o tapete vermelho, símbolo de status, de poder econômico, político e social. A figura cifradamente reivindicava para si o direito de fazer pARTE. Parte de que? Que arte? Estava assim lançado o desafio de juntar este quebra-cabeça de elementos e promover-se um debate reflexivo que poderia quem sabe levar a discussões socioculturais individuais ou em grupo. Quando nos referimos a ‘estátua-viva’ pensamos não só no ofício de artistas de rua, mas nos símbolos de cada uma dessas palavras. A estátua tem por fim representar algo ou alguém memorável, é monumental e memorial, podendo ser pública, assim como o Theatro Mvnicipal, mas as estátuas geralmente sofrem de um mal de esquecimento ou desconsideração, são obras de arte muito “solitárias”, “invisíveis”, só viram “lembrança” quando registradas espetacular e exoticamente pelo viajante do tipo turista, que quer guardar recordações fotográficas, imagens brevemente substituídas ou descartadas. E viva porque apesar da invisibilidade ou do esquecimento a que estão submetidas, e também disso sabem tirar proveito, há ali algo que ainda pulsa e necessita da fricção relacional com outrem para continuar existindo, assim como a memória, as pessoas e a própria cidade. Ação, vida é relação no tempo e no espaço. Ora uma estátua viva que anuncia “eu faço pARTE” e conta histórias ou levanta indagações sobre a realidade que nos cerca não faz outra coisa senão compartilhar e construir experiência, memória e imaginação humana. Contar histórias é uma forma de se lembrar quem somos, voltar a nos questionar sobre nós mesmos em relação ao mundo, é alimentar os nosso mitos, é criar sentido e justificar o fato de estarmos vivos. Bastaria estar vivo? Do que se faz parte? Que História é essa da qual estamos fazendo parte? Do que se quer fazer parte? E quem quer fazer arte? Já dizia Gandhi: “A arte da vida consiste em fazer da vida uma obra de arte”, “Se queres progredir não deves repetir a história, mas fazer uma história nova”. Chega de dormir, vamos acordar, e sonhar acordados. Aguçar a percepção não é apenas inserir-se, mas inserir-se identificando, analisando e sabendo jogar com os fluxos apresentados pelo espaço, sabendo também atuar, escrever naquele espaço. Apesar de me julgar desperto ao longo deste experimento, alienei-me extremadamente no vetor oposto ao que criticava, e quis viver, habitar, fazer parte, sentir a realidade apresentada pelo perímetro público no entorno do Mvnicipal. Tornei-me ‘amigo’ de alguns moradores de rua da região, compartilhei comida e conversas de vida com eles. Acreditando na possibilidade de travar relações saudáveis com qualquer ser humano, acreditando que se pode sim alimentar e construir a confiança no ser

128


humano, sem distinções ou marginalizações, em nome da dita Humanidade adormecida ou anestesiada pelos fluxos urbanos, mas por um lado esqueci de considerar todos os fatores socioculturais e político-econômicos envolvidos nessas relações. Fui assaltado às claras na finalização do segundo experimento por aqueles aos quais confiei meus princípios, buscas, anseios e verdades. A perda definitivamente não foi material, mas das relações que acreditava haver construído. Meu aparelho celular que havia registrado quatro horas dos diálogos travados nos encontros com os passantes, os quais serviriam de material de análise para nosso estudos, em segundos foi furtado e nesse breve instante tudo aquilo deixou de existir. Por um tempo frustramo-nos com nós mesmos, com nossas escolhas, buscamos incessantemente recorrer a essas pessoas para que devolvessem, sem para isso precisar acessar o aparelho público que garante a segurança, a polícia. Mas os três dias subsequentes foram “em vão”. Se tomado passionalmente pela causa, lamentando a desfeita, depois tive convicção e estímulo para seguir adiante, acreditando na possibilidade de construção e transformação do ser humano através da arte, mais especificamente de ações simples e mínimos gestos. O mundo já vive grandes excessos, absurdos e catástrofes diariamente, resta-nos buscar uma forma de resistência outra, gritos silenciosos que para além de serem vistos, sensibilizem, voltem a sensibilizar para a possibilidade de mudança de valores, certezas, comportamentos e imposições já solidificados e tomados como naturais. Na contramão deste ocorrido conhecer o senhor João foi bastante significativo para o experimento e indício de que a arte pode sim construir relações intersubjetivas valorosas, transformar realidades. Dos dois dias dedicados a proposição artístico performática Tapete vermelho-patrimônio de poucos o primeiro foi performado justamente pelo senhor João durante uma hora e o segundo por mim durante 3:30h. Perceber as diferenças contextuais entre um morador de rua deitado na frente do Mvnicipal enrolado num tapete vermelho e um artista-performer vestido com um manto Real vermelho realizar a mesma ação no dia seguinte configurou aspecto singular e surpreendente em nossos estudos. A ação em si já nos transporta para um contexto de discurso político bastante forte. Perceber a disponibilidade e vontade de um cidadão comum em agir um ação simples artística e inclusive contribuir em sua elaboração nos revela que as “pessoas comuns” tem sim algo a dizer, compartilham de ideias e indignações semelhantes que muitas vezes são caladas ou iludidas à desistência de manifestar-se e provocar ruídos nas estruturas. No dia em que o senhor João performou ele mesmo foi atrás de informações históricas a respeito do Theatro Mvnicipal que constavam no museu do Theatro, para poder partilhá-las

129


com os passantes. Ele já trabalhou como restaurador de vitrais do Theatro e conhece como ninguém a estrutura arquitetônica do lugar. Dedicou-se a me contar histórias verdadeiras e fantasiosas sobre fatos que lá ocorreram. Em nome de que este homem de sessenta anos, que perdeu a esposa e o filho num acidente de carro, sem a visão de um dos olhos, sem a metade dos dentes e que transita de bengala dispôs-se a pesquisar a história do Theatro por conta própria e deitar-se, lúcido, na área inferior das escadarias do Theatro Mvnicipal? Esta sua ação gerou bastante impacto nas pessoas em geral, que observaram por longos minutos, registraram dezenas de fotos, apenas contemplaram, indignaram-se com a ação propriamente dita, ou indignaram-se com o que a ação revelava no plano metafórico de explicitar as contradições latentes do monumental Theatro da cidade: desigualdades sociais, dificuldade de acesso, o valor atribuído a arte, o que é e o que não é arte52, a classificação da “boa arte”, o desinteresse dos cidadãos pela arte, a segregação social e racial que o Theatro ainda hoje impõe, a beleza e luxo do Theatro em contraste com a miséria e a pobreza de cidadãos e artistas. O valor comercial e história estão tão intimamente atrelados a este edifício que o valor histórico dele se reverte também num alto preço a se pagar para alugar seus salões para fins artísticos. Já estas são algumas das questões e reflexões que construí em relação com os passantes a partir das trocas intersubjetivas que se instauraram no dia em que performei Tapete vermelho-patrimônio de poucos. Vale ressaltar que a realização do experimento permitiu uma experiência tão rica e proveitosa, de fortuitos encontros, a qual coaduna com nossas ganas enquanto artista e atuante na sociedade, que o tempo previsto de performance era de uma hora. Mas os encontros a fizeram durar três horas e trinta minutos. As interlocuções diretas totalizaram em oito encontros ou individuais ou com grupos de pessoas e deles pudemos colher fervorosamente: O ser humano está buscando antes de tudo e desde sempre a Felicidade, fazer cada dia valer, aproveitar o que a vida nos traz como surpresa e viver esta experiência, buscar experiências novas, ser quem você é, sem medo, ainda se mostra atento ao outro, busca proteger o outro, pratica a solidariedade, revela preocupação, ajuda.

52 Uma

senhora, que vendia livros por ela escritos contando a História do Theatro Mvnicipal, dizia que Arte é História, e não aquilo que ninguém entende ou a pouca vergonha dos artistas de rua, os quais cantam todos os dias ali em frente, formando uma numerosa plateia.

130


Por outro lado é bastante adaptável e acostuma-se fácil, sem nem perceber, à logica da compra, do consumo,

do entretenimento, a um atrativo a ser registrado, fotografado,

colecionado, privatizado, mas não fruído. Se por um lado tememos ou não nos desafiamos a fruir o desconhecido, ou fruímos de maneira rápida, fácil e mais próxima, é da natureza humana atribuir sentido, entender, querer explicações para o que desconhece ou não entende, como também trazer compreensões prontas. “Ler” algo é friccionar e associar este algo com repertório vivido, construído, com o que já se pensa sobre o mundo, é uma forma também de revelar (-se) o seu próprio ponto de vista. Não é (somente) o que é, é o que eu penso que é projetado sobre o que é. O ser humano é curioso, busca saber o que são as coisas como forma de se proteger, sair da zona de risco, como segurança. Entender, reprimir ou afastar-se como possibilidades de se proteger em qualquer relação travada. Ou manter a ordem, como pudemos vivenciar a partir da abordagem do aparelho urbano responsável por este fim, a GCM (guarda civil municipal). Ocorreu no primeiro dia de ação performática no Mvnicipal (apesar de previamente termos colhido autorizações junto à administração do Theatro Mvnicipal), como também no dia seguinte: nos dirigimos ao posto da GCM para deixar-lhes cientes da realização da performance e novamente enfrentamos processo “burocratizado”. Levantou-se uma discussão acerca das necessidades básicas, sobre o que é cultura, como a cultura está presente em nossas vidas (“desde o momento em que acordamos ao momento em que dormimos, da forma de levantar da cama à forma de ir se deitar”), cultura é uma necessidade básica? Percebemos a partir dos diálogos uma confusão entre cultura e indústria cultural (“agora estamos indo consumir cultura num espaço super rico em cultura, a 25 de março”). Conversamos sobre o acesso a arte, comprar arte, encontrar-se, perguntar-se através da arte, sobre seres humanos solitários, depressão, abandono social, luxúria e pobreza, preconceito racial, inacessibilidade, arte para poucos, (des)confiança no ser humano e na possibilidade de verdadeiros encontros. Roubo (tive meu iPhone, que registrava as entrevistas e conversas com passantes, artistas e habitantes, roubado por dois dos moradores de rua com os quais tive contato ao longo de quatro dias), diagnosticamos o recurso ao valor material-capital, dinheiro, para preencher vazio existencial, aguardente, (não) existe amor em SP. Uma certeza, continuar buscando relações intersubjetivas acreditando nas micro-transformações que se dão através da arte-vida (performance).

131


Protocolo Observacional respondido por Felipe Stocco após realizar observação imersiva (de11h-12h) da ação artístico-performática: Tapete vermelho-patrimônio de poucos O choque de pontos de vista, a discordância nos mobiliza, nos coloca em situação de refletir, rever ou reafirmar certas convicções que estabelecemos como parâmetro de acordo com o contexto que recortamos. O protocolo observacional realizado com Felipe deu-se após sua observação do Experimento II através de um diálogo, uma conversa gravada em sua casa e não de maneira escrita. O prisma apresentado pelo participante-observador nos provocou a pensar mais ainda sobre nosso fazer, de maneira que só a relação intersubjetiva instaurada a partir de um diálogo presencial permitiu isso e despertou-nos ideias naquele ‘aqui-agora’. Diante do exposto houve também certas colocações do participante-observador que foram confrontadas por nossos pensamentos subsequentes à conversa realizada, já em estado de análise sobre o material transcrito. Assim, para desenvolver criticamente nossa reflexão, selecionamos trechos do protocolo observacional e optamos por apresentá-lo adotando o modelo de ‘diálogo platônico’, em que Felipe expõe um argumento e eu o choco com outro ponto de vista possível sobre a mesma questão (ponto de vista este ora construído presencialmente enquanto o diálogo se dava, ora em reflexão a posteriori). A partir da escolha deste modelo encontramos uma forma eficaz de expor bastante e a contento pensamentos e questões nossas concernentes a concepção e realização deste segundo experimento, deveras relevantes para a análise teórica sobre a prática como um todo, o que justifica a extensão do diálogo platônico aqui enredado, como meio de clarear o percurso do pensamento construído, não só para este experimento como para todos os experimentos analisados neste trabalho. Expomos portanto o diálogo platônico que tecemos com os argumentos reflexivos: L- Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais as formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as pessoas neste mesmo espaço? F- Duas coisas muito óbvias: dois movimentos no espaço que um era em frente às Casas Bahia, que é uma região de mais sombra, de mais lojas, e em frente ao teatro, mesmo. Para mim tinha uma separação nítida entre o espaço. Mas o que caracteriza muito os dois: a região como um todo é de passagem, totalmente funcional. E não é um espaço de muito diálogo entre as pessoas, as pessoas ficam pouco tempo.

132


Em frente ao teatro municipal, trata-se de um espaço mais turístico, as pessoas param, olham, tiram foto, entram e vão embora. As relações não se estabelecem de forma profunda, não há um contato efetivo entre as pessoas. É o tempo mínimo de ‘entender’ o que está acontecendo e voltar para o serviço, voltar para o espaço-tempo que cada um tem que seguir. Quanto às formas de utilização do espaço vejo passagem e entretenimento. L- A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou de mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos? F- Sim. De ação simples. É uma ação que chega com um entendimento, um vetor que extrapola o mínimo gesto, mas não chega ser algo que se propõe a ser super-chamativo, que tem uma mensagem sendo passada. L- A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por que aspectos? F- Penso que não. Penso que há uma tentativa, mas a realização deixa a desejar nesse sentido. Porque há um aspecto do chamar atenção na vestimenta que você usa e não na ação que você faz e isso distancia um pouco do espaço, da realidade do espaço, o que torna mais cênico do que performático, no meu ponto de vista. Mas acho que não se desdobra enquanto cena, porque você se propõe a ficar na ação simples. Fica algo um pouco descolado, vazio de significado. Não sei qual era a intenção da performance, não cheguei a uma conclusão sobre isso. Apontava talvez alguma crítica. Ficava na incógnita e parecia que era isso mesmo. Era só uma imagem. Por exemplo, acho que faz menção aos moradores de rua, mas não desenvolve essa questão. L-Enquanto pesquisador acreditamos que nossas ações são gatilhos, fagulhas para a fruição, não respostas ou discursos fechados, de fato trabalhamos de início com a escolha de elementos, gestos ou ações que sejam símbolos os quais se abrem em camadas diversas para cada um para que, através do debate interno ou compartilhado, frua e desenvolva a proposição interventiva com o repertório que traz, oferecendo-me como troca inclusive uma possível leitura que eu enquanto proponente não havia imaginado, percebido ou visto. F- As pessoas não conseguem ler essa aproximação com os moradores de rua, por exemplo, principalmente por causa da situação cênica em si: um tapete vermelho, você vestido de vermelho, com uma roupa de rei, acho que fica “chapado’’, a questão fica chapada, não se aprofunda.

133


Não sei quanto às conversas que você tem, pois durante a ação você conversa com as pessoas. Eu vislumbro como possibilidade de a questão ser desenvolvida, sem que as pessoas precisem chegar e pedir uma explicação ou que você esteja mais aberto a essa explicação. L- É natural do ser humano pedir explicação sobre o que ele não entende em primeira instância, eu não quero estar lá para responder, para passar a mensagem. F- Porque vira uma coisa bem pontual para algumas pessoas e é um espaço que demanda que você faça para todo mundo. Então o que fica para todo mundo é justamente a imagem do tapete vermelho e de você deitado. O que eu acho que dá bastante leitura, mas não desenvolve. L- No caso eu quero abrir em leituras, abrir espaço a ser fruído, e não desenvolver “A Minha Leitura”, é uma forma de interferir para gerar trocas intersubjetivas, ouvir. F- Quando apareceu aquele moço também de vermelho, que entrou com o radinho, passou o protetor solar em você, ali começou a ter uma situação que gerava um questionamento maior: “Por que ele?” “Por que ele está fantasiado também”, “quem é ele?” “Será que o que está deitado é subjugado a ele que está passando por cima, subindo as escadas?” L- Achei bem interessante que ele resolveu passar por cima de mim e do tapete. O tapete é feito para isso né? Também um lugar de passagem F- Para as pessoas comuns, os passantes, estabelecia-se uma região de não passagem. Era algo muito chamativo, “não tocarei nisso”, era mais um elemento de distanciamento. A ação poderia ter algum envolvimento que fizesse as pessoas ficarem mais tranquilas para passar ali. L- Se aproximar dali. Interessante quando dizes que espera-se que se passe por cima do tapete, mas ele acabava virando um lugar para não passar mesmo, para ser visto, mas não... F- Fiquei pensando se sua ação não poderia ser a ação de ficar caminhando também no tapete. Subir escadas e descer escadas. Pudesse gerar um outro questionamento, um outro movimento. O tapete estendido e você deitado não dialogava tanto. Fiquei pensando em possíveis ações que pudessem acontecer ali. L- Mais alguma? F- A mais clara para mim seria de caminhar no tapete. Pois o tapete estava ali como uma extensão sua, da maneira como estava. Então ninguém ia passar por ele. Como é que você enquanto propositor faz as pessoas se questionarem, entrarem, vivenciarem algo diferente.

134


L- Vivenciar por vivenciar algo diferente também não significa que isto as encaminhará a uma reflexão, vira entretenimento. F- Coloco aqui uma crítica minha com relação a performance frente à sociedade: está tudo tão “chapado”, estamos tão acostumados a ver “visualmente” que passamos pela experiência com “ah já conheço” e vamos embora, nem vivemos. L- É mais uma no meio de tantas F- Qualquer um tem experiências assim praticamente todos os dias, então passa. L- Algo inusitado ali acontecendo mas... F- Fico me perguntando em cidades do interior, em outras localidades, levar isso para outros lugares. São Paulo está socialmente tão marcada por isso. Por isso tem tantos teatros, performances indo para a periferia. Ainda existe a possibilidade de uma experiência que não seja já marcada, calejada por essa relação quase displicente, de não afetação, de não se colocar uma posição, de não defender um ponto de vista. A relação de consumo permite isso: você não tem que responder pelas suas ações. Posso chegar tirar uma foto ir embora. Então eu posso estender o tapete vermelho, ficar deitado. L- Há de se fazer uma ressalva: foi solicitada uma autorização à administração do Theatro Mvnicipal para que essa ação fosse permitida. F- E às vezes estou sendo visto não como artista, como alguém que está criticando algo, que tem um ponto de vista sobre determinada situação social. Por isso a relação de passagem, a relação funcional. Que estudo, que tipo de questão eu quero desenvolver e como eu vou desenvolvê-la? Me levantou bastante questionamento essa ação, foi super importante ter visto. L- Com relação à relação estabelecida com o moço mascarado, me chamou atenção em estar fazendo, o fato de que quando ele passou por sobre mim, me atravessou de uma maneira que eu senti “Nossa!”. De alguma maneira ele estava lá fazendo parte do “espetáculo”, virou algo espetacular, de “chamar atenção”, mas para meu corpo foi quase uma agressão de fato, sentir aquela pessoa passando por cima de mim. Essa foi uma sensação despertada por esse acontecimento. F- Porque ele veio tão displicente, tão suave, num ritmo tão cotidiano, que atravessou mesmo você, era óbvio que você não esperava. Foi muito legal. Quebrou, furou. L- Ele ligou o radinho lá! F-“Cara estou aqui, estou chegando, eu sou assim” L- Você viu a parte que ele deitou também? F- Sim, vi tudo até a hora que ele foi embora.

135


L- Ele voltou depois. F-Depois eu já não estava presente. Essa é outra questão, do tempo que você fica deitado, acho que precisaria ficar muito tempo deitado L-Muito mais tempo. F- Dias. Para surtir algum efeito assim. L- Para virar uma ruptura. F-Todo dia no mesmo horário. L- Virar uma rotina né? Dentro daquele lugar que a rotina é passar, aquele evento também virar uma rotina. F-Exato. Aí eu acho que mudaria. L-Que foi o que a Cris (Esteves) diretora do OPOVOEMPÉ falou também. Ela leu em algum lugar, não sei se o Paul Virilio, falando disso, de como essas tentativas de ruptura acabam virando em dado momento um... Se acontece um dia, dá-se um intervalo de dois dias, e acontece de novo, começa a ser identificada, depois absorvida, já não mais estranhada. F- Exatamente. L- Até o ponto que ela para de novo e volta a ganhar esse caráter de estranhamento. F- São Paulo de fato é uma cidade que para chegar necessariamente você tem que incorporar de certa forma, para daí poder britar. L- Para ganhar alguma reverberação. F- Para as pessoas entenderem o jogo. As pessoas ali não tinham o jogo. Elas não sabiam quais eram as regras. Aí se você está lá todos os dias elas vão começar a estabelecer regras. L- A dona Milza, que foi uma das pessoas que pararam para conversar, perguntou se eu faria no dia seguinte: “Você vai estar amanhã aqui de novo?” F- Exatamente. Por que? Porque eu quero entender o jogo. Porque senão vira um jogo estranho. Não é? É super chato ver um jogo que você não entende as regras. L- Também pensando nas ações do grupo OPOVOEMPÉ. Aquele termo do André Carrera eu não sei agora aprofundar mas no ponto de vista que ele defende o teatro de invasão não se trataria de uma invasão do tipo “por fogo em tudo. E ao mesmo tempo lá no OPOVOEMPÉ elas discutem como pensar em ações que: vão ser vistas e não consideradas, não vão ser vistas, ou vão ser vistas e ser consideradas. E eu até ficava pensando quando ela (Cristiane) me falou isso: “Eu acho que essa ação do Mvnicipal de estender o tapete realmente é muito invasiva em algum grau. Será que eu não estou invadindo demais, forçando, impondo?” Por outro lado elas falam em imantação: uma ação que não força você a participar,

136


não é uma interferência que te obriga a ter que se relacionar com ela. Ela abre um campo, se você entra nesse campo, talvez aconteça um jogo. No meu entendimento sobre a ação no Mvnicipal foi isso, algumas pessoas, eu não sei até que ponto você ficou observando, mas algumas pessoas acabaram criando alguma relação ali. O meu temor era de eu ser a pessoa que aborda, de eu ficar trazendo as questões e isso talvez afastar mais do que se eu estivesse simplesmente ali deitado esperando um encontro. Até porque a “estátua-viva” é parada, tem algum atrativo, mas a curiosidade das pessoas é que faz elas se chegarem e criarem relação. A estátua se move quando percebe a abertura de quem joga à participação. F- Mas aí precisa de um tapete vermelho? E estar vestido de vermelho? Qual elemento seria de atração. Concordo que tenha que ter um elemento de atração. Mas que elemento é esse então? Será que a própria ação não poderia ser? Com uma roupa cotidiana? E, por exemplo, a ação de subir e descer escadas, subir e descer escadas, subir e descer escadas... Que tipo de ação, qual ação causaria essa imantação, esse campo magnético? Essa é a questão. Porque acho que não era nem invasivo, nem o oposto. Só passou por ali, um dia. Eu entendo essa questão de “por que eu gerar as questões”, é você o propositor delas. É justamente como criar o espaço para que as pessoas se sintam a vontade para questionar o que eu estou fazendo. L- Sim, eu quem gerarei parte das questões, mas primeiro dando abertura para que elas sejam geradas justamente em jogo, quando o jogo se instaura. F- A questão é justamente essa. Pois na relação de consumo a questão é você não questionar, e passar e ir embora. Vejo, assisto, é um grande ator, é um grande teatro, mas não me alterei. Essa é a questão que ficou mais forte. Uma questão que todo artista deveria ter: como criar esse espaço de diálogo. Que não é: “Oi como está você?” Que é uma relação que instiga as pessoas a estarem ali. É uma necessidade. Não é uma opção. Deveria ser uma necessidade para você, talvez, enquanto propositor. Não é uma opção vir tal dia, não, você precisa estar lá em tal dia, nesse horário, é criar problema para você não ser mais um, qualquer um, ser você. Qual é a sua necessidade. L- A minha ou a do público? F- A sua. Porque a do público cada um sabe que tem a sua. Mas qual é a sua para não ser qualquer um ali. Como você faz que aquilo não seja uma opção, que aquilo não seja só um dia que você marcou para as pessoas verem consumirem e irem embora. Qual é a real necessidade de fazer isso? O que você quer com isso? Quem você quer atingir? Não sabe se quer atingir alguém, mas trocar com qualquer um que seja. Precisa dizer isso, precisa, é necessário. E como deixar claro essa urgência para as pessoas.

137


L- Acredito que é algo pulsante, vital, mas menos messiânico, é apenas a urgência de tornar a arte mais presente na vida das pessoas, não de forçar as pessoas a meus pontos de vista e mensagens salvadoras. Esse questionamento, pensando em tudo isso que você falou, nessa relação de consumo com as coisas de hoje em dia. Se apresenta pra mim como se não fosse mais uma necessidade da humanidade de maneira geral, senão dos artistas, que vão ver os artistas, que escolhem ir ver os artistas. No meu ponto de vista a arte já não está mais presente de maneira cotidiana. Já não se apresenta como uma necessidade. Eu venho pensando sobre isso, nessa relação de consumo, de status. “Ah, eu vou assistir ‘O Bob Wilson’”, “Ao final vou aplaudir muito e gritar bravo”. F-São situações que sempre vão acontecer, mas para o Bob Wilson é extremamente necessário fazer o que ele faz, por isso chama tanta atenção, que todo mundo vai ver L-Quem estaria entre esse todo mundo? Vejo uma limitação de acesso bastante grande –público de artistas, celebridades e intelectuais em sua maioria-, não necessariamente pelo valor do evento, mas por uma questão de formação cultural e indústria cultural também. E onde fica a questão tão apontada do consumo? F- A relação de consumo se estabelece não só por ele, pelas pessoas que estão lá também. Tem tietes, tem o nome dele, tem várias maneiras de se consumir, mas para ele é extremamente necessário. O que não importa o quão consumidor eu sou ali. Porque é necessário. Diferente da sua ação, por exemplo, que ali me importava e me preocupava. Você se coloca num espaço aberto e vulnerável, podendo ser assaltado. E aí qual a real necessidade? Num ponto de vista positivo. O quanto você tem que defender aquilo? Para justamente não ser assaltado... tem várias questões, são milhares de variantes. L- Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo? F- Todas as respostas foram nesse sentido da relação de consumo. Ela não alterava nem se fundia necessariamente. Era mais uma ali. Justamente por não alterar, não estar imbricada ali, não havia uma real necessidade de ver, e parar, e contemplar, e dar o tempo da ação acontecer, e não o tempo de eu passar e consumir e ir embora. L- Mas a ação que acontecia era eu deitado. F- Sim, era você deitado, um cara deitado. Eu ouvi muito: “ah é um cara deitado, de vermelho, com um tapete”. L- O ser humano quer, precisa de explicações, dar sentido às coisas. A forma de atribuir sentido, achar a resposta mais imediata, é em primeira instância nomear, identificar elementos, sem associá-los. Seria possível imaginar que após a primeira impressão,

138


associação, formem-se outras possíveis combinações através de novas tentativas de ligação entre os símbolos martelando na mente? Não estamos falando de um mero “impacto imediato”, mas uma imagem ou ação simples potente que fique martelando na memória. Não estamos falando de grandes transformações aparentes, mas micro-transformações perceptivas e sensíveis nas formas de enxergar o mundo. L- É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria um “estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do performer? F- Se revelava mais esse estado da ação simples: “estou deitado aqui e ponto”. L- Mas seria algo mais cotidiano ou não? F- Talvez mais cotidiano, mas como a imagem não era cotidiana L-É justamente essa contradição -cotidiano x não-cotidiano x extra-cotidiano; arte x não-arte- que me interessa. F- Você se relacionava com a ação de forma corriqueira, de forma simples. O que eu acho interessante, só que faltava alguma coisa, que acho que é o estado cênico. No meu caso, no que eu estudo enquanto ator. O lugar de imantação é esse você atinge um lugar, o seu corpo está tão presente ali que as pessoas não conseguem simplesmente passar e ir embora. Muitas pessoas tem isso, muitos mendigos tem isso, que é uma relação de sobrevivência, atingir um estado de percepção tão grande que tudo pode acontecer, por mais que eu só esteja fazendo esta ação. Isso eu acho que faltou. L- Mas você me via de maneira como se eu estivesse fechado F- Não. Via você se relacionando, mas de forma cotidiana. Não era cotidiana... O que que é o estado cotidiano? O estado cotidiano também se altera. Eu via você se relacionar assim, corriqueiro, sabe, “estou aqui deitado...” L- Como estamos agora? F- A ponto de o moço passar por cima de você, gerar algo que talvez você não estivesse preparado. O estado cênico gera isso você fica preparado: O moço passou por cima e não foi nada demais... L- Mas não me cabia atuar. A minha reação veio de maneira espontânea em jogo, sem dúvida fui transformado, mas não havia um psicologismo da ação, e sim a ação, não um pressuposto de como eu deveria reagir de acordo com um subtexto ou a partir de determinada ação. F- A ação dele que permitiu você se transformar. Ele transformou você. Nesse sentido foi bom ele ter aparecido. Eu percebi que você ficou mais relaxado, mais à vontade, porque

139


ele estava à vontade e transmitiu isso para você. Não é que você estava fechado, mas você não liberou, não saia do seu cotidiano, do seu pensamento, do que você queria talvez com aquilo, para que a ação acontecesse. É muito difícil, esse é o trabalho do ator, performer. Quais mecanismos eu vou utilizar para que isso aconteça? L- Está revirando aqui minha cabeça. Eu enquanto performer deveria clarear o que? O que você sugeriria? Pra mim é uma importante questão entender o que seria “estado cotidiano” e “estado performativo”. Se eu entendo que deveria se aproximar da vida, é confuso, mas teria que vir para o mais simples, é chegar lá e deitar. F- Para que aquele monte de roupa, se a proposta é uma ação simples e o mínimo gesto. Aí me reportava para a performance que você fez da mala (Necessidade X Supérfluo: supercidade, nãoseisefluo), aquilo se aproximava mais de um estranhamento através de uma ação simples, de um mínimo gesto enquanto resultado cênico que as pessoas viam. A resposta era a necessidade, qual é a real necessidade de se fazer isso? Por que faço isso? Não importa se está bom ou ruim, mas é necessário que eu faça. Precisa ter mais problema, parecia que você estava solucionando só. Estava muito claro que era uma ação simples. Mas era indiferente para os outros porque não tinha um problema a se desenvolver, a se questionar. Era desnecessário, era corriqueiro, a resposta talvez seja essa. L- Pensando agora friamente nos elementos: o municipal, tapete vermelho uma pessoa vestida de rei. A sua relação com a prática, com a experiência revelou isso. E de repente agora, se debruçando de novo sobre esses elementos, por onde você arriscaria? F- São muitas possibilidades. Só o tapete vermelho já tem muitos significados, não importa onde você coloque. Só o Theatro Mvnicipal já tem muitos outros significados que podemos escolher, e o rei então que é mais antigo ainda que o tapete vermelho e o Theatro Mvnicipal. Você trabalha com várias simbologias, e aí tem que ter a necessidade (por que, como, quando e onde) L- Você viu que tinha uma plaquinha (eu faço pARTE)? F- Vi. Ela vinha justamente por essa necessidade de algo mais. Ela meio que explicava a ação, tinha a necessidade de explicar a ação para as pessoas que estavam passando, por que a ação talvez não fosse... talvez até aí você já estivesse entendendo que a ação em si não era suficiente sozinha. L- Entendi. E aí entra a palavra. F- Pelo que você está se propondo de aproximar. Pois no cotidiano é isso, as pessoas têm que falar, elas não colocam uma placa para dizer, justamente por não colocar uma placa

140


para dizer elas ficam falando, se justificando, ou não, ou elas não têm que justificar nada para ninguém. Tem que se jogar com essas informações. Penso que foi meio que tudo, e ao mesmo tempo o que é tudo é nada. É um tapete vermelho, no Theatro Mvnicipal, com um rei deitado! Mas por quê? O que o rei está fazendo, por que desse tapete, e o Theatro Mvnicipal o que tem a ver com isso? Qual a necessidade disso tudo, pra você mesmo. L- Eu ficava pensando assim. A primeira coisa das pessoas é atribuir um sentido. Ligar os pontos tentar ligar aquilo ali e buscar o sentido. Quando esse sentido não vem de maneira direta, elas pedem a explicação, que era o que acontecia. Só que eu me colocava na posição também de não responder ou de tentar devolver a pergunta para que elas fruíssem a coisa. De repente para mim essa era a necessidade. De que elas tentassem ligar aqueles pontos. Ou então só passa, é um espetáculo como qualquer outro. F- É. Pra mim um dos pontos é: as pessoas não entendem. Por que que elas não entendem? Por que qual é o jogo que você está jogando? Me fala qual é o jogo que você está jogando, que eu vou tentar dialogar com isso. Me fala quais são as regras. Não tinha regra estabelecida, tinha a imagem, tinha o resultado do jogo, mas não tinha jogo. O fato de as pessoas pedirem explicação se deve a isso. Se ela não entende o jogo ela pede uma explicação, e quando você devolve a questão, você já devolveu uma questão que não estava clara, nesse caso, porque você não deu material suficiente para a pessoa. Você deu vários símbolos, mas não deu o material para ela jogar com os símbolos, montar o quebra-cabeça. L- O material para mim é brincar de combinar, a partir do repertório pessoal de cada um, de suas vivências e histórias de vida, os próprios símbolos e ações simbólicas- ações simples são ações cotidianas que pelo deslocamento do contexto ganham caráter simbólico. O mínimo gesto tem a ver com uma decodificação de um gesto cotidiano ou estetizado que significa por sua mera repetição ao longo de uma duração prolongada dilatando a noção espaço- temporal cotidiana. F-A televisão, por exemplo, coloca o resultado. Como o faz todo dia, ela vai te acostumando com o resultado e aí você fica com o resultado na cabeça. L- Mas ali você acha que tinha um resultado? Ou tinham peças? F- Tinham peças, tinha o tabuleiro, tinha o resultado de alguma coisa. Mas não tinha o jogo, não tinha a peça se movimentando. Não estava claro isso. Pra mim também, por mais que eu tivesse os balizadores. O jogo em si não se estabelecia. Na ação, na questão social, na questão espacial. L- Internamente fazendo parte dela o que me passou pela cabeça foi: a ação era ficar deitado e começar a desenvolver algum encontro se houvesse essa imantação de alguma

141


maneira e não puxar um encontro, não buscar. Porque meu temor era: quanto mais eu tentar chamar a atenção, digamos assim, uma vez que a figura já chamava atenção de alguma forma, porque não é uma coisa que está lá todos os dias, um tapete vermelho com uma pessoa deitada ao final. Logo, se eu tentasse buscar as pessoas, talvez isso as distanciasse mais. Como a mesma relação que se estabelece costumeiramente com o panfleto. Eu te dou um panfleto, mas você já espera um panfleto e você não aceita. No meu raciocínio se dava um pouco assim: qualquer coisa que eu tentar trocar de cara com as pessoas, tentar ficar olhando, isso não vai trazê-las. O que eu pensava era isso. Outra questão era o físico também: naquela posição eu percebi que não dava para ficar de fato olhando as pessoas, naquela condição era o sol no rosto, e se eu ficasse tentando abrir o olho eu ia ficar sempre “no meio do caminho”. Então eu vou tentar permanecer neste lugar, habitar este lugar por este tempo. A ação era ficar deitado, eu vou ficar aqui. Quando alguém vinha eu tinha alguma coisa pela qual... se ela já vinha perguntando algo, eu tentava transformar em pergunta para ela de volta: “Ah eu faço parte, eu faço parte de que?” a pessoa perguntava. Eu perguntava: “Do que que você faz parte?”, tentava voltar o questionamento para ela. Também me ocorria: Se por sua vez lá do lado das Casas Bahia todo dia tem aquelas bandas, que reúnem muitas pessoas, por outro lado aquele monumento inteiro, imenso, parece inabitado. As pessoas sentam ali, mas não vivem aquele espaço, de entrar e conhecer, no meu parco entendimento de julgar que as pessoas em geral não frequentam aquele monumento, o embate para mim era esse, pensando: a arte não está presente na vida das pessoas, este “bicho” deste tamanho não faz parte da vida das pessoas elas só passam por aqui e tiram uma foto. F- Você acha que você só de vermelho, ali deitado... para mim é um pouco óbvio, vai continuar do mesmo jeito. Você não colocou uma situação que as pessoas pudessem vivenciar aquele espaço. Não alterou nada para as pessoas. Talvez se você fizesse nas Casas Bahia, tivesse mais efeito. Da sua trajetória toda que acompanhei chamava muito mais atenção das pessoas você se trocando do que você deitado no Theatro Mvnicipal. E por que não deitar de rei no meio dos mendigos? L- Eu teria que pensar o porquê disso. Aí para mim seria um pouco de invasão, de ofensa. E eu não objetivava isso. -Talvez. Qual a real necessidade? Você precisa dizer isso para quem? O que quer que as pessoas percebam com isso, ou o que você precisa entender? A questão é justamente esta: o que eu preciso entender, eu preciso fazer. Senão não acontece. Um piquenique, faça um piquenique e aí talvez as pessoas comecem a ficar, a trocar mais, se sintam mais a vontade,

142


para usar a arquitetura mesmo. Você só endossou a arquitetura, você virou parte da arquitetura e mais uma coisa para tirarem foto. É isso, é para isso que ele está aí para tirar a foto e ir embora. É muito difícil, é muito difícil. L- Por outro lado a parte interessante que achei, que realmente não tem como a gente esperar, foram esses alguns encontros que aconteceram nesse tempo que eu fiquei -11:00h14:30h. Com essas pessoas eu consegui este lugar que seria através da arte, através de uma ação simples estabelecer uma relação com alguém, e esse alguém não são necessariamente os muitos “alguéns”, não é algo unânime. Talvez a unanimidade seja a foto. Mas de repente por algum motivo alguém escolhia passar alguns momento do seu dia ali. O menino mascarado, o qual tinha muito mais a ver com endossar a ideia de espetáculo, uma relação intersubjetiva mediada por um espetáculo, minha com ele. E eu vi, apesar de conseguir conversar com ele e tentar entender qual era a dele também, pois ele disse que andava daquele jeito porque daquele jeito as pessoas não atrapalhavam-no, ele tinha liberdade para ir e vir do jeito que se trajava: capa vermelha, chapéu de bruxa vermelho, máscara, microfone e caixas de som no cinto. As pessoas categorizavam-no de um jeito e ele simplesmente poderia ser, o ser e não ser juntos na cabeça dele. Mas ao mesmo tempo eu achava que o que estava acontecendo ali era um espetáculo, apesar dessa troca tinha uma teatralização: passar com o som ligado e andar por cima do tapete. Depois veio a dona Milza, uma senhora. F- Sim que ficou conversando com você todo o tempo até eu ir embora. L- Que ficamos conversando muito sobre várias questões da vida. Como eu queria fazer o jogo entre arte e vida, o que eu perguntava para eles era: com que frequência você visita a vida? Com que frequência você visita a arte? Como é que arte está presente na sua vida? Fazia essas indagações quando a relação acontecia. Aí ficamos lá. Eu me prendi a essa relação com ela, que aconteceu com ela. F- Sim, mas você esqueceu a ação simples de ficar dormindo, não sei, de ficar deitado apenas. A ação deixou. O jogo mudou completamente. Para mim naquele momento você podia ter tirado a roupa, deixado ali para outro vestir, e ficar conversando com ela. A ação que você propôs, você a deixou de lado. Para alimentar essa conversa. Eu acho que esse é um tipo de conversa que tem que ter depois do impacto da ação. Esse tipo de questionamento. De fato ela viu a ação, já entendeu e foi conversar com você. Era uma necessidade dela, não era sua, talvez fosse a sua também. L- A minha era como através da arte a gente se conecta com as pessoas. Estabelece essas trocas no meio do cotidiano.

143


F- Então você atingiu o seu objetivo e pronto. Acabou, a ação simples acabou nesse momento, porque você conseguiu através de estar vestido de rei, com o tapete, deitado ali, você conseguiu que alguma pessoa chegasse e conversasse com você. Pronto. Para mim não era interessante ver aquilo, aquilo não era uma ação, eu não tinha a necessidade de estar ali, nem você tinha a necessidade de estar vestido de rei. L- O que me chamou atenção do lugar é que lá haviam muitos vermelhos: de todos os tipos: o vermelho do shopping Light, o vermelho da ciclovia, muitas pessoas vestidas de vermelho, o vermelho do semáforo, como se estivesse já bem presente naquele lugar. Então fui fazer uma visita monitorada ao teatro e há um “tapetão” vermelho que atravessa o teatro inteiro. Você vai andando pelo teatro e “só o que tem” é o tapete vermelho. O que me fez pensar: este teatro ainda hoje é um espaço elitizado, desde quando ele surgiu até agora ele é um espaço nobre, por esse motivo o rei. Eu perguntava se eles já haviam entrado naquele teatro. Com que frequência você visita a vida? Com que frequência você visita a arte? A arte faz parte da sua vida? De que maneira? Você já entrou neste teatro? F- O que elas respondiam? L- Alguns diziam que aquele teatro não era para eles. Eles não se sentiam convidados a entrar naquele teatro. Um senhor no dia anterior, em que a performance foi feita por seu João, disse: “Olha eu já fui na Europa e parece que lá a gente vai muito mais a vontade nesses lugares, aqui parece que não é da minha cor53. Eu perguntei: “como assim não é da sua cor?” ao que ele respondeu: “Eu acho que o Brasil ainda é um país racista.” F- Sempre foi. L- Havia uns que asseguravam a minha visão de que a arte não faz parte, ela está ali e as pessoas não usam e outras diziam: “Não, esse é um espaço super acessível, aqui tem eventos gratuitos, no natal. Eu mesma fui aí, mas ganhei o ingresso da minha amiga que trabalha aí”. Apontavam-se algumas contradições. Pra mim era necessário problematizar aquele lugar. No seu ponto de vista teria de se pensar qual seria essa ação mais apropriada, ou de repente uma vez da escolha dessa ação, “o deitado”, permanecer ali para sempre sem a relação com as pessoas?

53 atriz

Ana Luiza Leão em sua entrevista também comenta como na Europa sente a arte mais presente e apropriada pelas pessoas e espaços da cidade, a ponto de os artistas terem mais condições favoráveis a realizar seu ofício e compartilhar com todos.

144


F- Eu não sei eu fiquei levantando possibilidades. Não é uma resposta. Fui um espectador e questionador. Você que tem que ver isso. Estou aqui para questionar. Nós temos que fazer isso um com o outro. Assim a gente cresce mais. L- Para constantemente pensar sobre a criação. Eu fiquei me perguntando e eu não conseguia sair dessa ideia, a ação é essa mesmo. Pensava: “o que pode acontecer aqui?” Pois primeiro vou e observo um dia: as dinâmicas do espaço, o que acontece ali. Depois que essa ideia se estabeleceu eu não conseguia ver outra coisa senão ela. Fiquei a tarde inteira conversando com seu João e para mim ele se apresentava como aqueles postes ali em frente ao teatro com várias carrancas, “estátuas-vivas”. E ele era uma “estátua-viva”, naquele lugar pra mim ele se apresentava como uma estátua daquelas várias, gritando, só que ninguém ouve. Pra mim ele era uma estátua-viva. O que eu imaginava? Algum jeito de evidenciar este espaço, como este espaço para mim não é o lugar em que arte acontece, no meu ponto de vista. Como podemos colocar uma imagem ali, algo que evidencie isto. Esse tapete vermelho! Ninguém cruza esse tapete vermelho! Quem tem que estar lá embaixo é uma “estátua-viva”, é uma pessoa que está ali, enrolada nesse tapete vermelho contando suas histórias, e só. Também percebo a diferença entre ser o seu João lá, e eu. Realmente acho que a situação muda. Achei bem interessante de os dois dias terem acontecido, apesar de vocês só terem visto o dia que eu fiz. O que permanece na minha cabeça é continuar tentando, continuar buscando, não desistir de fazer essas coisas, acreditar que isso é uma possibilidade. Porque tem muito disso, a maioria das ações não chega numa compreensão, num resultado de uma compreensão: “o que justifica isso”. É mais o julgo que cada um fará individualmente depois da foto. Se vai ou não vai fazer. A partir desta devolutiva do participante sobre “Tapete vermelho-patrimônio de poucos” me levantei algumas questões variadas: Sempre tudo tem de ter respostas bem formuladas esclarecidas e utilitárias, senão não é necessário, não faz sentido? Meu objetivo é interferir de maneira sensível, sensorial, mexendo com outras possibilidades de percepção que não a racional, lógica, gramaticalmente construída, ou de passar uma mensagem, doutrinar, de agitação política, proponho um debate que nasce por um estímulo de símbolos. Em “Tapete vermelho-patrimônio de poucos” a questão era pensar a marginalidade, a invisibilidade social dos mendigos, friccionada com a invisibilidade daquele imenso

145


monumento ou da arte na vida das pessoas, o rei enrolado no tapete e não pisando nele. Dizendo eu faço pARTE. O enfoque era a marginalidade da arte, não dos mendigos. Talvez tenha revelado o que já é, o que já está lá, e aí alguns, quem sabe, se alterem na sua forma de se relacionar com o lugar. Não queria propor qualquer experiência para vivenciar o espaço, ocupar o espaço (como um piquenique), mas para revelar o próprio espaço, com seus elementos próprios, numa nova configuração de contexto, revelar a função que ele teoricamente deveria ter e não está tendo por uma série de variantes de acessibilidade, informação, formação cultural, mercado e ritmo de vida. O risco da Repetição é que em dado momento ela pode virar um lugar comum, ao invés de provocadora de novas leituras, ser classificada e logo absorvida, respondida, não mais estranhada- pensando sobre os possíveis efeitos do recurso de Repetição, “Água mole em pedra dura...?” Continuemos experimentando. Julgamos bastante importante e enriquecedor apresentar ainda outro ponto de vista externo, de quem observa a ação, assim compartilhamos o protocolo observacional de Otávio Oscar que também acompanhou este experimento. Otávio estabeleceu uma relação de leitura de signos distinta da relação que Filipe fez sobre a mesma proposição artístico-performática, tendo os dois a presenciado no mesmo dia. Protocolo Observacional respondido por Otávio Oscar após realizar observação imersiva (de 11h-13h) da ação artístico-performática: Tapete vermelho-patrimônio de poucos Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais as formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as pessoas neste mesmo espaço? A escadaria/calçada em frente ao Theatro Mvnicipal, ao meio dia, durante a semana, é um local de intenso fluxo de pessoas. Aparentemente, a maioria dos transeuntes eram trabalhadores em horário de almoço, pessoas fazendo compras, passeando ou gente que estava se deslocando de um lugar para outro no próprio centro. A escadaria do Theatro é utilizado como um local de descanso. As pessoas se sentam ali pois é um dos poucos locais permitidos para sentar, além de ter uma boa sombra. À noite, havendo espetáculo, o Theatro muda de figura e o que acontece dentro dele passa a determinar sua dinâmica, diferente do horário de meio-dia, em que ele apenas é mais um prédio como os outros.

146


As relações entre as pessoas é bastante pueril. A escadaria não é um lugar de convivência, muito menos voltado ao lazer. As pessoas sentam para descansar, sejam sozinhas ou em grupo. No segundo caso, há a oportunidade de se conversar, o que é bastante comum. De resto, a relação de quem está na escadaria com quem está na calçada é apenas observar a sua passagem. A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou de mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos? Acredito que a ação era simples, mas o gesto não era mínimo. A ação era apenas ficar deitado na parte de baixo da escadaria e no final do pano vermelho, algo bem simples, apenas complementado com a ação de conversar com quem abordasse o performer. O gesto não era mínimo pois a estrutura cenográfica (chamemos assim) e o figurino eram bastante chamativos, quase espetacular. Essa estrutura espetacular, apesar de negar o mínimo gesto, me parece coerente dentro da proposta de discurso do performer, que buscou questionar o status do consumo de cultura na cidade de São Paulo. Chamar a atenção parecia um mote essencial da performance, afinal a ação artística se aproxima bastante do protesto, do manifesto e do ativismo, o que remete bastante à ações de performers dos anos 60 que realizavam suas performances nas ruas como forma de protesto. O que me chama atenção comparando ao exercício anterior (no túnel do Anhangabaú) foi o desejo político do performer em lançar um questionamento que atingisse de forma mais cortante, o que o levou a uma ação com um discurso mais incisivo e uma forma mais espetacularizada. A ação de permanecer deitado, apesar de simples, chamava também muita atenção, em grande parte devido à incidência cruel do sol em seu rosto, que estava descoberto e totalmente vulnerável, gerando um risco (queimadura solar) que levava a um envolvimento dos transeuntes. Isso demonstra que o “público” teve empatia pelo performer. Ouso dizer que sua juventude, beleza e vulnerabilidade era algo tocante para quem passava. Muitos ficavam admirados pela valentia e tenacidade do performer em se manter exposto ao risco em prol de uma causa como “a arte”. A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por que aspectos? Me pareceu coerente pois questiona o status social da arte diante do maior, mais reconhecido e mais antigo aparelho cultural da cidade, onde impera o status quo artístico. Ao mesmo tempo que o Theatro Mvnicipal é tudo isso, ele também parece algo totalmente alheio a quem passa, como se fosse algo que não pertencesse ao cidadãos, ou que pertencesse apenas a alguns deles. A performance também questionava isso: arte para

147


quem? E essa pergunta era instigante para quem passava. Outro ponto de coerência é o diálogo com o espaço. Acredito que a performance não teria impacto se apresentada na frente da entrada do metrô ou na frente da prefeitura. Fazia sentido aquele tapete vermelho em frente a um espaço de arte tão elitista, em contraposição ao performer numa condição semelhante a de um morador de rua. Que impacto psicofísico essas ações/imagens geram nas pessoas? Que fruição as pessoas têm com/sobre o visto/vivido? Muitas pessoas pararam por estarem curiosas em relação aos objetivos do performer. Elas buscavam “entender”, um comportamento muito comum ao transeunte que é colocado na posição de espectador de uma performance. O tecido vermelho, como um tapete, saltava aos olhos pela sua cor chamativa e pelo formato de tapete, remetendo à maneira como pessoas VIP’s são recebidas em eventos. O primeiro impacto, portanto, era visual, bastante chamativa. Outro impacto, como já foi mencionado acima, é a exposição e vulnerabilidade do performer ao sol. Fato é que naquele dia o sol estava muito forte, e deixou o seu rosto muito avermelhado. Essa exposição parecia absurda aos olhos das pessoas. Nem tanto a exposição ao sol, mas muito mais a atitude de se expor a ele. As pessoas pareciam se questionar em relação a isso muito antes de buscar qualquer fruição da performance. O dado da realidade imediata, no caso a realidade do risco, era muito mais relevante para quem passava. Num segundo momento (ou no caso de pessoas mais acostumadas ao contato com performances e intervenções urbanas) elas buscavam entender. Claro que essa observação é muito generalizante. Fato é que as intervenções urbanas geram infinitas formas de recepção e reação. Alguns simplesmente passavam, muitos olhavam e observavam rapidamente, outros já se desinteressavam logo de cara, alguns paravam, alguns poucos conversavam com o performer. Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo? A ação alterava muito pouco o fluxo. A escadaria é uma área desativada naquele horário, pois o teatro não está aberto. As únicas alterações se davam devido aos curiosos que saíam de seus percursos para se aproximar do performer. Outra alteração é visual, aquele tecido vermelho gerando um desvio perceptivo na paisagem. Uma alteração que gera um olhar diferenciado a quem está acostumado a passar por aquela região, o que em si já altera o fluxo mesmo que o movimento ao redor aparentemente permaneça o mesmo. É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria um “estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do performer?

148


Sim, pois o performer se coloca numa situação bastante vulnerável ao se deitar no chão, num lugar onde as pessoas normalmente pisam, além do sol, que exigiu concentração e tenacidade para evitar ansiedade ou medo de se machucar. Seu corpo, portanto, explorava um estado performativo. Não, pois quando as pessoas o abordavam ele conversava naturalmente com elas, num registro cotidiano, inclusive bastante simpático e casual. Como ocorre, ou o que salta como visível ou invisível? O que salta como visível é o que já foi dito: a intervenção visual e tátil no espaço. A cor vermelha é a mais impactante de todas e traz uma simbologia, dentro do contexto irônico da performance, que é facilmente trazido à memória pelo senso comum: o tapete vermelho, estrutura de espetacularização acerca do valor social de figuras VIP’s que frequentam eventos. Isso gerava bastante visibilidade. O que estava invisível era a identidade do performer, que não fazia questão de sequer se identificar como autor ou mesmo de esperar o reconhecimento pela obra artística. Esse anonimato tornava a performance, em algum nível, invisível a quem passava. Surpreende-me o fato de a fruição de Otávio sobre os signos (elementos e ações) convergirem com as questões mais fortes que me motivaram a realizar esta proposição artístico-performática. Divergindo consideravelmente do ponto de vista de Felipe, Otávio foi capaz sim de identificar uma crítica ou problemática contida na ação proposta. Esta em seu ponto de vista era carregada de ironia e protesto, portanto não pairava num campo abstrato e descolado como Felipe apontou. Otávio também julgou que aquela ação tinha uma caráter de site-specific uma vez que era apropriada para ocorrer naquele prédio, naquela geografia específica não cabendo ser deslocada para outro lugar, o que reforça nossos esforços em absorver, pesquisar e em seguida produzir uma ação artística que diga respeito e dialogue especificamente com o espaço em que se insere, afetando e sendo afetada por ele. Apesar de não ser o propósito que buscamos (pelo contrário, queremos desenvolver outras alternativas à espetacularização do cotidiano), assim como os participantesobservadores também reconhecemos que esta ação carrega um quê espetacular, um estranhamento muito “às vistas”, quase pomposo, mas que parece em certa medida apropriado para travar diálogo crítico com o espaço e que

mesmo assim ainda corre o risco da

invisibilidade ou da indiferença diante das “regras de tráfego” que povoam e imperam na região central da cidade.

149


Nos surpreendeu particularmente a quantidade e a qualidade das distintas trocas intersubjetivas diretas que ocorreram a partir dessa ação simples. Foi possível sim me modificar a partir da experiência (acredito também ter afetado a percepção dos outros) e aprender, através de questões trazidas por essas relações em via dupla54, sobre o que tem-se pensado sobre as desigualdades sociais, estas mesmas que geram desigualdades no usufruto e consumo da cultura e da arte, e como o gerador das desigualdades, relações sociais baseadas na troca econômica,

gera também insegurança, desconfiança, descrença, desinteresse,

violência, conformação, nos deixando “estacionados” sem jamais parar.

54

Não apenas questões trazidas por mim, pois meus disparadores eram apenas estar deitado e perguntar com que frequência você visita a vida, com que frequência você visita a arte?

150


2.3.3 Experimento III: Instituição Pública - CEPEUSP Instituição [Lat. instituitione] sf. 1. Ato ou efeito de instituir. 2. A coisa instituída. 3. Associação ou organização de caráter social, religioso, filantrópico, etc. Instituições [Pl. De instituição.] smpl. 1. O conjunto das leis, das normas que regem uma sociedade política. 2. O conjunto das estruturas sociais estabelecidas, esp. As relacionadas com a coisa pública. Público [Lat. publicu.]adj. 1.relativo pertencente ou destinado ao povo, à coletividade, ou a ao governo de um país. 2. Que é do uso de todos, ou que está aberto ou acessível a quaisquer pessoas: hospital público. 3. Conhecido de todos; manifesto, notório. 4. Que se realiza em presença de testemunhas, perante pessoas, não secreto, ato público. sm. 5. Conjunto de pessoas reunidas que assistem a um espetáculo, a uma reunião, etc.; audiência, assistência. 6. Conjunto de pessoas as quais se destina uma mensagem artística, jornalística, publicitária,etc. (FERREIRA, 2010, p.430, 623).

As instituições públicas portanto teriam uma finalidade de regência e estruturação sociocultural e política de uma cidade, aparelhos que existem para regrar e servir a uma sociedade. Nossa intervenção em uma instituição pública obedece à lógica de um ato público, não secreto, compartilhado com uma comunidade aberta, formada por cidadãos não só paulistanos, mas advindos de outros estados e países para este evento artístico que habita temporariamente uma instituição pública destinada a princípio para o esporte. Ao longo deste trabalho pudemos compreender sobre diferentes formas de apropriação, restrição e privatização de atividades nos espaços públicos, quer seja pela ordem garantida com a presença e a ronda constante dos aparelhos de segurança, através da polícia militar e da CET em estado de observação sobre nossa ação, no caso do túnel Papa João Paulo II, e da guarda civil municipal no Theatro Mvnicipal, quer seja por um acesso restringido economicamente, por intermédio de ingressos com valores variados, ou mesmo pela imponência do prédio, revelando o poder “invisível” de uma arquitetura separatista. Encontraremos no Experimento III: Instituição Pública – CEPEUSP, o ápice da restrição de acesso sobre um órgão dito público, mas que a acessibilidade se dá por forte controle, não deixando de apresentar suas contradições. A partir desta nossa experiência entenderíamos que o direito de ir e vir livremente garantido pela constituição brasileira sobre os espaços públicos, encontra uma série de limitações e regulamentações que variam de órgão a órgão para manter um certo ordenamento e forma harmônica às operações da cidade. Para este terceiro experimento tivemos de ir a fundo num processo de pesquisa e estruturação para conseguir as devidas concessões junto à administração da instituição para

151


viabilização do processo que planejávamos. E como em todo processo ocorrem mudanças, alterações, surpresas e percalços a serem transpostos ou adaptados ao longo do caminho. O Centro de Práticas Esportivas da Universidade Estadual de São Paulo o CEPEUSP funciona como uma instituição pública com regras próprias dentro de um complexo institucional maior que é a Universidade. Desde dezembro de 2011 demos início à solicitação de uso do complexo aquático do CEPEUSP para realização do terceiro experimento que daria origem ao espetáculo performático de ações simples e mínimos gestos MoAciR: Filhos da Dor. O processo administrativo se deu detalhadamente entre mim, como estudante de graduação em artes cênicas com o aporte de meus orientadores Antônio Araújo e Helena Bastos, representando o departamento de artes cênicas num trabalho de formatura, e a direção administrativa do CEPEUSP, rendendo um documento de cento e cinquenta páginas relatando na maior riqueza possível de detalhes todos os acordos combinados e adaptados ao longo do processo: desde os possíveis horários de uso, a assinatura de todos os professores do complexo em favor da realização do projeto, a concessão de materiais disponíveis para nossa prática e a manutenção de ensaios no período de fechamento do clube sob o acompanhamento de salva-vidas. Este processo se deu ao longo de onze meses resultando num processo de criação e intervenção artístico-performática em um espaço público por oito meses ao longo de 2012. O CEPEUSP é um aparelho público destinado a ampla variedade de esportes com acesso restrito que se dá por meio de identificação com cartão universitário, catracas, vigilância de acesso aos portões e matrícula nos esportes em que se quer ter aulas. É uma instituição que declaradamente o acesso público não significa o acesso de todos e se você não tiver como comprovar seu vínculo a universidade você não pode usufruir deste bem público. O grande conflito que se dá é que a universidade é frequentada diariamente por um público amplo, não se limitando somente aos estudantes, funcionários e professores, para fins de recreação, visita às instalações e museus, atividades e oficinas oferecidas e inclusive esportes. Em se tratando de um espaço público o grande conflito que se dá é que se por um lado o CEPEUSP não é aberto a todos, por outro a diretoria administrativa do CEPEUSP não julga correto a privatização do espaço público à medida em que a USP abriga vários prestadores de serviço que “alugam” gratuitamente a universidade para dar suas aulas particulares de bicicleta, corrida, alongamento, pilates. Estes procedimentos ainda estão em voga, mas estas empresas são consideradas ilegais e parasitas do espaço público uma vez que o privatizam

152


para fins próprios não compartilhados, que alteram os fluxos e dinâmicas de uso do espaço com instalação de materiais, fechamento parcial de vias pelo trânsito de pessoas, distribuição de produtos e propaganda, sem isso se reverter para um bem comum e aberto à comunidade. Essa é sempre uma questão bastante delicada pois ora se permite, ora é vetado o investimento privado numa universidade pública. Muitas vezes o próprio CEPEUSP é palco que abriga interesses de empresas privadas na promoção de eventos esportivos. Então como nós enquanto pesquisadores e coletivo de artistas do grupo (PRE)FORMA-SE, nos debruçando justamente sobre essas questões de apropriação e usufruto do espaço público, nos inseriríamos nesta conjuntura? Por vezes chegamos a refletir se estávamos compartilhando o espaço público do complexo aquático ou se de alguma forma nossa intervenção acabava por privatizar aquele lugar em nome de nosso processo artístico. Uma coisa é certa: com certeza nossa presença constante no espaço ao longo do ano alterou os fluxos já tidos como cotidianos e esperados naquele lugar, promoveu fricções extra-cotidianas perceptivas, afetivas e intelectuais entre nós, os usuários, professores e funcionários, acarretou em impactos na estrutura e na forma de uso em alguns setores do CEPEUSP como portarias, local de armazenamento de materiais, serviços elétricos e de marcenaria e desde o início carregava uma crença: a possibilidade de dialogar e criar relações intersubjetivas através de ações simples e mínimos gestos artísticos num espaço público destinado em tese ao esporte. E que esse diálogo se desse de maneira mais ampla e acessível possível à comunidade, resultando num espetáculo de duas horas e trinta minutos de duração aberto ao público, sem a necessidade de intermédio por cartão universitário ou identificação. Este processo representou para nós um grande desafio do início ao fim de constante superação e descoberta administrativa, artística, profissional e principalmente de relações humanas. MoAciR: corpos cotidianos costurando ações simples na construção de um espetáculo performático aquático Seguimos, como Moacir, somos nômades estrangeiros em nosso próprio lar (nômade por Renato Ferracini ou Walter Benjamin). Como o andarilho na sua vida de andarilho, o artista anda sempre com o que precisa, está sempre preparado para viver, fazer arte. Quero pessoas-artistas que estejam sempre preparadas para fazer arte mesmo que não tenham consciência racional dessa certeza.55

55

Anotação minha em livro de referência bibliográfica bem no início do processo do Experimento III.

153


Um dos significativos e radicais aspectos que vivemos em MoAciR era como construir uma estrutura que se assumia de fato espetacular, um evento que para além de promover uma inserção e ruptura no cotidiano, objetivava a criação de um espetáculo com ações simples e mínimos gestos realizados por pessoas com corpos cotidianos e não artistas profissionais detentores de técnicas específicas. Mas performers que trariam ao extremo, por ser essa sua realidade mais próxima, o colamento entre arte e vida, simplesmente evidenciar um corpo em ação. “Ação que acredita no poder de si mesma”56. Distribui informativos em quase todas as unidades de ensino da USP e na moradia estudantil, buscando trabalhar com esse “qualquer um que quer” (como me revelava Helena Bastos, minha orientadora, após saber desta minha iniciativa). Eu buscava corpos “querentes”. Que acreditassem ser possível fazer arte, dança 57 com ações simples e mínimos gestos cotidianos. Outro desafio era: explorar esta possibilidade em outro meio que não o já conhecido “peso” do ar, a gravidade, mas explorar isso em ambiente aquático. Muitos interessados se manifestavam em telefonemas e e-mails mas nunca chegavam a aparecer nos ensaios e de cinco pessoas que apareceram, apenas os dois que chegaram no início do processo permaneceram. Trabalhamos então com dois “não-dançarinos” num intenso processo de construção e descoberta dos limites do corpo com ensaios longos, sob todas as condições climáticas apresentadas ao longo do ano de calor, chuva e frio, aulas especializadas e uma dieta baseada na obtenção de glicose, proteína e hidratação por: mel, água e suplemento proteico. De fato tratou-se aqui de chacoalhar a existência e entrar em crises psicofísicas na busca sempre do melhor de si, de uma não conformação com o que já está posto ou com o que já nos acostumamos de nós mesmos. Um dado bastante interessante e relevante de se colocar é que o performer Vanderson encarava uma luta tão grande consigo mesmo ao ponto de não saber nadar e aprender, e superar medos que o acompanhavam por anos dentro deste processo, ao ponto de conseguir pular de um trampolim de cinco metros. Como Thaís, que já apresentava um corpo mais atlético e uma intimidade maior com o meio aquático, descobrir formas de driblar suas constantes câimbras, como controlar os músculos e a homeostase diante do frio, agarrar o desafio de pular de dez metros de altura oito vezes ao longo do espetáculo, retroceder e

56

Cris Esteves em entrevista anexa ao ser interrogada sobre o termo ação simples “A dança? Não é movimento, / Súbito gesto musical / É concentração, num momento, / da humana graça natural”. Assim escreveu Carlos Drummond de Andrade em seu poema “A Dança e a Alma”.

57

154


construir um medo a partir de experiências de insucesso, voltar a superar-se e seguir adiante com os pulos. Não havia espaço para “psicologização”, criação de personagens e ficções, era um encadeamento constante de ações simples aparentemente ilógicas, sem a construção de um enredo claro com início meio e fim, que apostava extremamente na fisicalidade, na concretude dos corpos em relação consigo mesmos e com o ambiente, sem pausas num deslocar-se constante ao longo de duas horas e meia, ou com todas as pausas preenchidas internamente, mesmo que o gesto externamente fosse mínimo. Se nos outros experimentos encontrávamo-nos totalmente dependentes da observação imersiva para a criação e escolha do mínimo gesto capaz de intervir na realidade apresentada pelo espaço, aqui no caso do CEPEUSP tínhamos um direcionamento inicial: trabalhar um espetáculo de dança a partir de mínimos gestos ou ações simples dentro da água a partir de “Iracema”58 como obra gatilho para repensar nossa condição de “filhos da dor” embalados neste mar urbano São Paulo. A piscina era importante metáfora destes vários aquários de água parada que quase não se tocam ou se relacionam, mas todos em deslocamento (mecânico), ilhas flutuantes embaladas por um mesmo mar de fluxos caóticos e viciantes. O trabalho apresentou como viés, nesta temporada de doze apresentações que cumpriu em outubro de 2012, a necessidade de maturação na edição e organização de suas nove partes, no aparato técnico de luz e som precários para atender um espaço aberto durante a noite, e numa adequação dos pontos de vista em relação às grandes distâncias de um espaço total explorado nos seus 90m x 40m, em que o público tinha liberdade de trânsito para ir e vir como lhe aprouvesse. Para aprofundar um poucos mais a compreensão de como se deu este processo de criação, que já teve seus procedimentos de construção explicitados e desenvolvidos em dos procedimentos práticos utilizados, acreditamos que a melhor tradução desse extenso período de oito meses de trabalho sobre o Experimento III, março a outubro de 2012, seria através de um diário de bordo adotado como formato, com relatos que capturam diferentes fases do trabalho desde sua concepção, aos primeiros ensaios, às vivências, ao primeiro “passadão” público, e uma tabela que esmiúça estas fases programaticamente com as atividades realizadas em cada período.

58

obra canônica de José de Alencar, de visão romântica da origem do primeiro brasileiro, Moacir, dono e já exilado, estrangeiro em sua própria terra.

155


O projeto MoAciR: Filhos da Dor tem suas origens num capítulo anterior a seu nome. Ao longo de meu trajeto no curso de Artes Cênicas desejava desenvolver uma obra que partisse de algo que pulsasse muito forte em mim, de algo que pudesse chamar de “vida”. Ao ter abandonado minha terra natal para navegar por outras paragens, deixei para trás um “bem” que se me tornou precioso, um bem natural meu e de todos, o mar. Sempre que retornava por aquela “minha terra” sentindo-me dono e estrangeiro naquele que chamei de lar por dezessete anos, estabelecia aquela misteriosa, curiosa e meditativa relação com as águas salgadas de oceano. Não houvesse uma vez que retornasse que não fosse de pronto contemplar, conversar, admirar e banhar-me no mar da Praia do Futuro, nem que fosse mesmo apenas purificar o espírito, deixando-se molhar as raízes dos pés. Paralelamente ao longo dos anos na faculdade, essa minha nova morada de domingos a domingos a fio me acolhia como estrangeiro, sentia-me eu estrangeiro neste lar já de cinco invernos. Um impasse de “entre” do viajante, do nômade, que ora falava o antropólogo (Marc Augé). Queria eu aqui expressar algo meu, mar, nessa dança fluida, repetitiva, mas nunca igual, dança de ondas que desequilibra-nos e confere-nos eixo por instantes de segundos. Esse desejo depositou-se em barco naufragado no fundo do mar durante quatro anos, para agora emergir do fundo com seus desejos e lembranças adormecidos. Somos incitados no ambiente acadêmico com a pergunta “qual a sua pesquisa pessoal?”. Pois é assim também que mais ou menos no mesmo período vou descobrindo e investigando a arte da performance. Sob a pulsação dessas duas provocações ao longo dos anos, refinei minhas vontades artísticas em alguns elementos para pensar este projeto do qual agora vos falo: mar, repetição, ação, simplicidade, duração. Via no mar a possibilidade de uma dança das ondas, uma dança produzida pela força física externa do ambiente sobre o corpo. Mas as circunstâncias apresentadas pelo ambiente, São Paulo, e a manutenção de ensaios semanais regulares, me exigia trabalhar não no mar físico como meio, mas no mar metafórico, numa água revolta e ao mesmo tempo contida em recipiente artificial: aquário, galão, piscina. É assim que nosso projeto-sonho sofreria a primeira adaptação: sair de um bem natural patrimônio público da humanidade, o mar, para recorrer a uma instituição pública, o complexo de piscinas do CEPEUSP. Já realizando os ensaios no CEPEUSP, bem no início do processo em 27.03.12, às 13h, colhemos breves impressões dos usuários e salva-vidas:

156


A performer com sua fonte sonora locomovia-se com a coluna e os braços para frente e para trás. Ao que ao longe ouvimos: “Olha João, João, João! O que é isso?” O que nos faz pensar: Qual a força de relação intersubjetiva de um corpo que se move em energia extra-cotidiana, ou mimética?/ Da curiosidade vai para que plano perceptivo? L-O que está acontecendo ali? “A”- Alguém muito corajosa que não liga para o que os outros estão pensando, age, dança e só. A princípio o que me chamou atenção foi achar sob efeito de que drogas ela estava para se expor assim. Mas na verdade é bem interessante e dá vontade de ficar olhando. É difícil entrar no universo do outro, o fone de ouvido é uma barreira. Eu quis entrar, mas ela parecia estar sozinha, não senti abertura. “B”- Acho bem interessante. É um projeto? É lindo de ver. Dá vontade de ir lá e dançar com ela. Os movimentos me chamam. É uma coreografia específica? L- Não, é uma fonte sonora não específica e ela realiza uma dança pessoal. “B”- É lindo. Se eu for ficar no Brasil te aviso. Depois de alguns minutos “A” retorna e pergunta mais sobre o projeto. Se é um estudo de psicologia, ao qual explico que é um projeto de dança aberto a participações. Ele se interessa e cogita participar. “C”- salva-vidas- diz que a performer está mais fluida, mais desenvolta em comparação a ensaios anteriores. “C”- Era engraçado ver muita gente olhando para ela. Ela dançando, bonita, com certeza vão olhar. Eu sou da bio-dança, eu piro vendo estas coisas. Percebo que ela já está com mais propriedade, bem mais solta. Percebo pois fiz natação, skate, fazia balé obrigada durante cinco anos, fiz bio-dança e me calhou como uma terapia por trabalhar com ancestralidade, energia, desestressa. A água também tem esse poder, dançar na água deve ser uma delícia. Como também um breve relato das dinâmicas espaciais: -Qual a dinâmica recorrente no dia-a-dia do espaço? Em plena quarta-feira às 13h, 29.03.12, ocorrem aulas de hidroginástica ao som de um gostoso jazz; aulas de natação para iniciantes nas piscinas menores, nadadores independentes no seu próprio treino, nadadores atletas em treinos mais rigorosos nas piscinas de 50m. Crianças das mais diversas idades (0-100 anos) divertindo-se nos trampolins. Salva-vidas que conversam descontraidamente, difíceis aos olhos, e menos de meia dúzia de estudantes que

157


aproveitam o sol paulista para pegar um estudo-bronzeado ou um bronze estudado, de quando em vez hidratando-se, nadando algumas voltas na piscina. Já na vivência que realizamos na praia Barra do Una, no litoral norte de São Paulo, em 05.04.12, mesmo dia em que realizamos a visita à reserva indígena Rio Silveiras, destacamos os seguintes registros59: Presenças físicas são a alteração da paisagem, a presentificação do espaço para as pessoas que observam, ali passam pássaros e helicópteros e lanchas ou pequenos barcos. O vai e vem das ondas, o barulho da serra elétrica, da cidade atrás não nos deixa esquecer que os índios (recém visitados na reserva indígena Rio Silveiras) já vestem roupa industrializada, pintam as penas de neon e falam português. A pergunta é para quem fazemos? O que muda? Você simula a ação a partir da observação? Performar X Viver? “Vocês estão fazendo um teatro, algo especial?” Ir no fluxo de energia: como dar vazão ao objetivo, mas com controle? Trabalhar com o máximo de energia e o mínimo de movimento. Contenção. Buscar o controle microperceptivo do próprio corpo. Cuidar dessas experiências vividas até agora. Desacelerar a vida, até o ponto de repensá-la, de entrar em crise. Dar tempo para as coisas “aconte-serem” (termo de Luiz Paëtow). Dilatação do movimento, paisagem, câmera lenta. Como o silêncio pesa também. Surfistas sentaram e observaram o dia todo as vivências que realizamos na praia. Ao final, o depoimento de um deles: “Legal, bem interessante o que vocês faziam, vocês cultuam o quê? Eu achei bem interessante. A curiosidade mata o homem, aquilo nos prendia. Eles estão meditando, relaxando a mente. Fiquei lá procurando o sentido. Quem sabe a gente não adota? Ele era o “capitão da embarcação” e vocês “tripulantes”. A lentidão, a sutileza dos movimentos, desperta muito a nossa atenção, é uma apresentação? Quando vocês apresentam? Parecia um pai de santo e os outros seguindo, não é religião, é teatro. O ponto zen, o ponto zero, a paz.” Depoimento de um dos performers: Thais- Eu renasci após o enterro e a caminhada de uma hora. E é muito interessante trabalhar outras formas de percepção adormecidas, mínimas, eu realmente fui capaz de ver com os ouvidos as ondas caminhando da esquerda para a direita. Compartilhamos aqui também depoimentos do primeiro “passadão” público já em fase mais avançada do trabalho em 17.06.12:

59 Os

exercícios desta vivência foram descritos em dos procedimentos utilizados: vivências.

158


“D”- Me trazia a loucura da cidade nos corpos, a dificuldade diária de São Paulo. Olhares perdidos, vazios. Muitas sacadas simbólicas, abre o campo subjetivo, cada elemento abre para significados muito fortes. É impressionante como apesar de serem bexigas pesavam, eram um fardo. A energia que despendiam nadando era dicotômica em meio à fluidez da água, de uma brutalidade! Ver absurdos como uma barraca na piscina, 8 pulos do alto de 10 metros, cartas escritas com sangue, vícios de comer, beber, fumar, as garrafas com diferentes materiais dentro (lembranças, saudades, cheias de memória), ficava tentando desvendar os sentidos dos símbolos, cada elemento me levava a outro, queria descobrir todos, o que estavam sentindo e o que deveriam estar sentindo. Vou, ou não vou nessa dança? Parecia uma despedida da terra, revelava uma grande intimidade com a água. Reflexão feita sobre minha observação imersiva enquanto diretor sobre o trabalho e os desafios corporais com os quais os performers se deparavam em 08.07.12: A exploração do mínimo e do simples em MoAciR através de ações e ritmos cotidianos, tendo usado como procedimento a dança pessoal para aflorar, acordar este corpo urbano que carrega seus próprios ritmos e repertórios corporais fica cada vez mais difícil de ser explorado com a transposição do meio gasoso, com sua gravidade atmosférica para o meio aquoso e sua atmosfera própria submetida ao efeito de empuxo, e também da transposição de movimentos para este meio. O que se observa é que os performers encontram limitações para manter o desenho destes mesmos movimentos e buscam alternativas corporais que se adéquem a nova sensação corpórea de gravidade e densidade trabalhando sobre flutuar, afundar, tornar visíveis ou invisíveis determinadas partes do corpo dependendo da exploração tridimensional do corpo no meio aquoso que reflete, refrata, portanto redimensionando e dando novas noções de corporeidade tanto para quem vê quanto para quem age. O tempo com certeza é afetado neste novo jogo do corpo no espaço. As ações passíveis de transposição e adaptação do fora (ar) para dentro (água) encontram uma nova barreira de densidade a vencer, com uma fluidez afetada concretamente, e não pela estipulação de um ritmo completamente voluntário, mas determinado em parte pela água, como ela permite mover, num tempo dilatado. Pois considerando a grande quantidade de horas a que os performers são submetidos a este treino e suas descobertas, quanto mais energia dispersam, lançam para o espaço, no caso da água menos se deslocam, menos se movem e mais rápido se cansam ou sentem os efeitos do “peso” da água sobre seus corpos cotidianos adaptados para lidar com mais “conforto” ao “peso do ar”, à gravidade atmosférica.

159


Helena Bastos nossa orientadora do trabalho de conclusão de curso na graduação parece nos apontar em sua tese algumas pistas do que seria para nós, neste processo específico, o objetivo a ser trabalhado com o procedimento de dança pessoal, a qual utilizamos enquanto método de apropriação - inscrição e escritura corporal no espaço: “[...]formas novas que brotam do corpo, que não se apoiam na música, brotam do silêncio. ‘...desmoldar-me e fazer sentir meu corpo em um mundo de imagens novas. Comecei a mergulhar, a escavar no mundo do silêncio posto que pela primeira vez surgiam em mim formas sem som que me davam a impressão, porque não se apoiavam na música, de serem danças novas. Essas danças no silêncio foram pontes de comunicação que me ajudaram, anos mais tarde, a encontrar-me através do espaço com o surdo.’”(BASTOS, 2006, p. 49) “existem outras possibilidades de acordos que dependem da disponibilidade do artista-criador em querer inventar, isto é, organizar no corpo uma dança diferente daquelas apoiadas em modelos conhecidos[...] Uma das possibilidades de construção no mundo em que atuamos é a da criação de regras e modelos para estabelecermos diálogos com outros e vice-versa. Com esses acordos movimentamos e modificamos o mundo. O desafio é aprender a lidar com esses acordos sem nos tornarmos prisioneiros deles. Nestas relações “diferentes” surgem possibilidades de acontecimentos enquanto novidades no corpo. Neste caso, o corpo é obrigado a inventar outros acordos. A cada novo acordo, o corpo é obrigado a interagir com outros conhecimentos. Consequentemente, toda essa ação produzirá outras relações de conhecimento com o mundo que o cerca. Cada corpo, do seu jeito, abriga uma maneira de pensar, de organizar, de se relacionar com o mundo que no tempo, de acordo com suas experiências, vai modificando e especializando o próprio corpo. Vão sendo estabelecidos novos acordos a partir da experiência. Na verdade, é tanto do ambiente do corpo para o ambiente em que o corpo está envolvido, como vice-versa.” (BASTOS, 2006, p. 50) “Um aspecto fundamental no treinamento deste interprete-criador é intervenções no próprio corpo. Este artista precisa penetrar no próprio corpo para conhecer. Neste caso, conhecer é criar, isto é, dar existência ao que não existia antes. [...] No espaço, o corpo apontará possibilidades de diferentes construções. [...] este intérprete deverá aguçar uma escuta corporal em relação a diferentes focos na linguagem de movimentos. Estes focos são ocorrências que dependem da execução e entendimento do intérprete de acordo com o projeto poético do coreógrafo.” (BASTOS, 2006, p. 82)60

Em MoAciR: Filhos da Dor o laboratório de dois meses e meio que realizamos com uma dieta baseada apenas na ingestão de mel e água (a posteriori acrescentando barrinhas de proteína) e as condições climáticas de frio ao longo do processo faziam os performers reconhecerem os limites do corpo: indisposição, cansaço físico, músculos não respondem, câimbra, agressividade, desânimo, persistência, ultrapassar este limite, desenvoltura física e adaptação. Os focos estabelecidos na exploração de movimentos eram: dilatação do tempo, precisão, repetição, sendo favorável para a investigação que o movimento fosse mais simples, mas preciso.

60

Grifo nosso

160


Música em Moacir: No MoAciR a música está desligada dos performers, eles têm uma música interna, a trilha só viria no dia da apresentação. Para mim enquanto diretor encarei como um grande risco, mas tomei como desafio que contribuía para a investigação de ações performáticas as quais se relacionavam mais diretamente com o espaço e não com a música como fator determinante da criação e do ritmo. Trabalho sob o silêncio, pouca comunicação, para mim o choque, o debate se dá em ação. 27.07.12 A “simples execução” (automação) de ações criadas (autonomia) os torna robores que se deslocam de lá para cá. É preciso criar relações com essas ações criadas, e-moções. Fabular sobre, imaginar histórias que movem, que fazem mover. A intenção, o propósito da ação. 31.07.12 Falta ao MoAciR evidenciar imagens da crise do Moacir, este nômade global, falido europeu que retorna ao Brasil-Eldorado. Vanderson apontou maior apropriação sobre 1a parte do processo/espetáculo que envolvia: 0., Prólogo, Amor, Doença, Abandono (partes oriundas de vivências, proposições de movimentos advindos da direção, improvisação, trabalhos pensados ou respostas cênicas). Já Guerra, Água, Água-viva, Índio-urbano, Moral foram oriundas de bateria de respostas cênicas + proposição de movimentos. Por outro lado eles foram afinando sua percepção espacial, relação do corpo com o ambiente, inscrição e escritura corporal no espaço, e libertando mais o corpo para um deslocamento “dançado” no espaço na 2a bateria de respostas cênicas, obedecendo a diferentes cadências rítmicas, a partir de uma seleção mais consciente de ações e gestos. A condução do trabalho em MoAciR direcionando para estudar o performer da dança pessoal para as ações simples gerou ações, movimentos, gestos em que o desenho do corpo ou do deslocamento em repetição é a tradução formal do signo a que se quer fazer referência, a ação aqui vira símbolo. Através de um processo de criar e viver a ação criada a partir de uma visão de mundo pessoal e particular. Executar as ações criadas significa tornar vivos os signos, valores, ideias e posicionamentos a cada vez através de um pensamento do corpo. Que ora parte da mente para o corpo através das “respostas cênicas” ou “trabalhos pensados” (da ideia para o corpo), ora parte da dança pessoal em que a ação que brota da relação do corposom-espaço é que são determinantes neste procedimento de criação.

161


Já pensando nas ações simples e mínimos gestos para as performances em espaços públicos estas obedecem a um programa, uma concepção, uma conjunção pré-determinada de elementos e ações a serem vividos, experienciados no momento do evento. Nestes programas/proposições cabe a repetição: tanto por sua duração quanto por sua ocorrência em novo espaço sendo esta nova relação e a própria repetição determinantes para novas descobertas e percepções. As ações simples e mínimos gestos em MoAciR portanto não se tratam da eleição de apenas uma ação ou gesto com longa duração e relação vívida de presença e troca (como em todos os outros experimentos apresentados neste trabalho), mas de um desafio diferente, do encadeamento de várias ações e gestos simples a partir de uma seleção e polimento dos mesmos para geração de um espetáculo performático. Exemplos de ações simples e mínimos gestos presentes no espetáculo: Correr, pular, desvestir-se lentamente durante oito minutos, deitar, abraçar uma mala, parar, observar a paisagem, andar lentamente, ligar o chuveiro, prender os pulsos do outro com um cadeado, esvaziar quatro galões de 20 litros de água, ser enterrado numa mala, rodear a piscina pela borda carregando um elástico de 30 metros que parte do centro da piscina, mergulhar, distribuir garrafas pet com presentes, deslocar-se deitado por sobre a raia, bater pernas apoiando-se em uma das diagonais da piscina, espalhar água, colocar um cadeado no chuveiro, derramar sangue, assobiar, pisar forte com o pé direito no chão repetidas vezes, socar, girar, apontar espelho em direção ao público, parar. Dividimos com o leitor uma tabela que explicita as fases de construção do processo como um todo.

162


Tabela descritiva das fases de trabalho em MoAciR: Filhos da Dor: Colher ações, movimentos e gestos referentes ao universo Contato com a obra Iracema:

1ª fase

Leitura e improvisação.

despertado pelo livro através de improvisos guiados por leitura em voz alta. Levantamento e identificação de questões atuais a partir de exercícios de escrita em fluxo, discussões e debates sobre questões presentes no livro.

Contato com referências externas 2ª fase

(leituras, filmes, vídeos, imagens)

Aprofundamento do debate sobre as questões e afunilamento

(concomitante a 1ª)

que deem suporte as questões

dos conceitos a serem trabalhados

levantadas Proporcionar aos atuantes envolvidos experiências marcantes 3ª fase

Vivências externas (experiências

para o desenvolvimento corporal e cognitivo em dança, só

fora do CEPEUSP - local habitual

possiveis em ambientes externos ao local de ensaio, e que

de ensaio)

agreguem artisticamente (em ideias criativas e construção corporal) ao trabalho de construção do espetáculo

Treinos físicos específicos para fase contínua

ambiente aquático (natação, pólo aquático, deep running, saltos em trampolim)

Desenvolver familiaridade com o meio aquático e resistência corporal em relação a duração, a temperatura e ao gasto energético dentro da água A partir de fonte sonora individual os atuantes desenvolverão

fase contínua

Desenvolvimento de dança pessoal

uma relação de frequente descoberta e familiaridade com seus

como procedimento de trabalho

corpos e suas capacidades sensorio-motoras ao longo dos ensaios

Respostas cênicas: perguntas disparadoras e frases-estímulo são

4ª fase

lançadas para que os atuantes

Colher ações, movimentos e gestos referentes ao que foi

respondam cenicamente,

instigado por cada uma das perguntas dos diferentes atuantes,

elaborando e compartilhando cenas

reconhecendo os dados previamente citados como duração,

pensando em todos os detalhes:

objetos e etc.

ações, espaço, duração, objetos, luz, som, cenário, figurino Testes de roteiros cênicos propostos pela direção a partir de 5ª fase

Início de edição do material criativo

organização de todo material de criação levantado até esta fase do processo

6ª fase

Definição do roteiro do espetáculo

7ª fase

Ensaio do roteiro do espetáculo

Edição e definição do roteiro do espetáculo com as ações escolhidas, organizadas em partes ou atos. Dedicação dos ensaios para experimentar praticamente o roteiro inteiro sucessivas vezes

163


A partir de ensaios individuais dedicados a cada uma das partes 8ª fase

Lapidação das partes ou atos

ou atos aperfeiçoar sua realização de modo a definir formato e duração de cada um deles. Ganhar ritmo e confiança sobre o trabalho desenvolvido até

9ª fase

"Passadão"

aqui, a partir do treino constante do espetáculo ao longo dos ensaios dedicados a esta fase Trocar experiências e impressões afetivas, perceptivas e intelectuais com o público a partir do processo vivido pelos

10 fase

Apresentações, oficinas e debates

atuantes, como forma de aprofundar através do diálogo as questões que lançamos a nós mesmos e a sociedade para reflexão.

fase de produção

Fase de produção do espetáculo

Conseguir todos os materiais necessários para a realização plena dos objetivos propostos pelo espetáculo.

A realização deste experimento ao longo do ano de 2012 teve um forte caráter interventivo no espaço e cumpriu-se com o objetivo mor da pesquisa de admitir o espaço público como próprio espaço de ensaio/ação, que o ensaio em si já se constitui como evento artístico interventivo e com poder transformador de todos os envolvidos: performers, diretor, usuários, funcionários, professores e visitantes. Essas micro-transformações se fazem sentir ao longo do tempo: dias, semanas, meses, anos nas relações e consequentes descobertas que essas fricções entre realidades causam, com a arte propondo novas maneiras de se enxergar o cotidiano. Em MoAciR a dor, o esforço físico, a determinação e o excesso vivido pelos corpos e símbolos com os quais os corpos dos performers jogavam em fluxo contínuo ocupando todo o complexo aquático é que mediavam a experiência de relações intersubjetivas com o público ora de usuários e funcionários durante o dia, ora de cidadãos comuns que vinham especificamente para assistir o espetáculo a noite. Para mais detalhes sobre o processo do Experimento III colocamos em anexo entrevistas realizadas com os atores, fotos do espetáculo e enquetes respondidas pelo público.

164


2.3.4 Outros experimentos práticos sobre o mínimo gesto e a ação simples em espaços públicos Aqui nos dedicamos a registrar todos os outros experimentos que fundamentaram a investigação desta pesquisa acerca do mínimo gesto e da ação simples como possibilidades de atuação artística no espaço público. Experimentos paralelos aos três experimentos previstos pela pesquisa (categorizados a partir dos diferentes caracteres públicos de seus espaços). Cada experimento segue com um descritivo de título, quantidade de performers, materiais, duração, ação simples, mínimo gesto, lugar e questão motivadora da ação.

165


Tese X Antítese: Contra(d)ição Materiais: Duas dissertações uma intitulada Tese, outra Antítese. Banana. Cesto de lixo. Projeção de palestrante proferindo para uma sala vazia. Áudio: debate de especialistas em mesa redonda da V ABRACE na USP acerca da arte da performance. Duração:15 minutos. Ação simples: Ajoelhado diante dos objetos, comer em sucessão uma a uma as folhas da Tese e da Antítese, em alternância com a banana. Eventualmente cuspir ou vomitar o indigesto. Lugar: sala de aula do departamento de Artes Cênicas da USP Questão: Ensino na Universidade, acúmulo e formatação de conhecimento como sinônimo de sucesso financeiro profissional.

166


Capitão Walter Arnold Três performers Materiais: Papel. Lápis de cor. Duração: 30 minutos. Ação simples: ler texto de Gertrude Stein em voz alta sucessivas vezes numa das três velocidades possíveis: extremamente lento, extremamente rápido ou regular. Duração: 15 minutos. Ação simples do público: escrever em fluxo as ideias suscitadas pela massa sonora criada pela leitura dos performers. Duração: 15 minutos. Lugar: Arena abandonada ao lado da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP Questão: Discussão acerca do necessário, do supérfluo e da memória.

167


Necessidade X Supérfluo: supercidade, nãoseisefluo Materiais: Mala. Elástico vermelho. Camiseta verde com escrito Grand Theater. Garrafa de água. Guarda-chuva. Cesto de lixo Duração: três horas e 5 minutos Ações simples: andar com mala atada aos punhos por elástico vermelho, segurando garrafa de água. Duração: 1:30h. Despir-se até ficar somente de cueca branca. Duração 5min. Ficar dentro da mala estabelecendo uma relação intersubjetiva através de frases do texto de Gertrude Stein “Capitão Walter Arnold”. Duração 1:30h. Mínimo gesto: beber água com a dose da tampinha da garrafa. Lugar: Área de agências bancárias da USP e Bairro Bom Retiro- São Paulo; Centro Cultural Dragão do Mar e Praia do Futuro- Fortaleza, Praça Central de Mulungu; Obelisco na Av. Nove de Julio-Buenos Aires; Restaurante Universitário da UNICAMP- Campinas; Monumento a Marques de Pombal na Av. Liberdade-Lisboa; Arco do Triunfo na Av. Champs Elysées- Paris. Questão: discussão acerca do necessário e do supérfluo, sobrevivência, encontros.

168


169


Poesia Física: Passatempo Três performers. Materiais: Bicicleta. Caneta piloto preta. Roupas sociais. Duração: 3 dias de 2 horas cada. Ação simples: caminhar em círculos travando relações intersubjetivas através da fala, acerca do tempo. Lugar: praça central da UNICAMP- Campinas. Questão: O que é o tempo? O que nos move? Os performers travava um diálogo com as pessoas acerca do tempo, cada um por um viés: A fé, o aprisionamento das ideias, a ciência.

170


T.E.M..P...∞. Quatro performers Materiais: Pó compacto. Meias-calças. Argila. Gesso. Duas bacias. 4 penteadeiras. 4 cadeiras. Projetor. Computador. Fones de ouvido. Rádio. 4 refletores. Areia. Garrafa pet. 2 cubos de madeira. Faca. Microfone. Amplificador. Ioiôs. Giz. Lousa. Frases coladas nas paredes. Duração: uma sessão de uma hora pela manhã e uma sessão de três horas à noite. Ação simples: caminhar em círculos; ligar e desligar refletores; falar ao microfone em diferentes velocidades. Mínimo gesto: raspar digital do dedo polegar com faca; maquiar-se com pó compacto, meia-calça, argila e gesso; depositar areia no chão. Lugar: sala do departamento de Artes Cênicas da UNICAMP. Questão: Reflexão acerca do tempo linear, circular e espiral.

171


Receita-minuto para um passatempo: Tempo no Espaço/ Minute recipe for a happy-hour: Time in Space. Materiais: Poema, conto ou música sobre o tempo. Câmera. Ação simples: proferir texto sobre o tempo Programa de ação bilíngue, enviado via digital: Escolha ou escreva um poema em sua língua de origem que fale sobre Tempo. Às 00:01 do dia 31 de dezembro para 1o de Janeiro de 2011. Escolha um espaço aberto (de preferência um espaço público com trânsito de desconhecidos) para recitá-lo. Grave o acontecimento e envie para mim via anexo de email ou link do youtube lucasfppaz@gmail.com/ lucasfppaz@hotmail.com. Confirme sua participação nesse projeto e envie uma cópia de seu poema até 30 de setembro de 2010. Você receberá um lembrete do projeto em 30 e 31 de dezembro de 2010. Grato, Lucas Paz

172


Minute-Recipe for a Happy Hour Time in Space: Choose or write a poem, in your own language, about Time At 00:01 from 31rst of December to 1rst of January of 2011 Choose an open space (by preference a public space with unknown people passing through) to say that poem. Record the happenning and send it to me via attachment of email or as a link from youtube. lucasfppaz@gmail.com/ lucasfppaz@hotmail.com. Confirm your participation on this project and send a copy of your poem until 30th of setember 2010 I’ll remind you of the Project on 30th and 31rst of December 2010 With Regards, Lucas Paz Duração: indeterminada, gravação na “virada do ano”. Projeto que se estende mundialmente colhendo vídeos por 10 anos (atualmente no ano 3). Lugar: qualquer parte do Globo Terrestre. Questão: Refletir sobre o nosso próprio tempo, o tempo contado através da arte. Uma construção criativa coletiva a partir das particularidades de expressão criativa de cada indivíduo (autoria) reunidas numa cápsula do tempo.

173


Enredado en Eldorado Materiais: Elástico vermelho. Tecidos. Mala. Gravata. Camisetas pretas com moedas, penduradas em varal. Papéis pendurados em varal com os dizeres “bem de vida”, “bom retiro” em armeno, coreano, espanhol, português, grego e italiano. Duração:15 minutos Ação simples: jogo de desequilíbrio proferindo “enredado en eldorado”, “de todos”, “para todos”, “ouro negro”, “tecer ouro” Lugar: Esquina do bairro Bom Retiro- SP onde é “proibido colocar entulho”. Questão: Trabalho semi-escravo nas oficinas de costura do bairro. Prisão flexível.

174


Decomposição Materiais: Roupa branca. Cordão de gelos pretos (água, detergente, anilina preta de bolo, barbante). Duração: derretimento do gelo. Aproximadamente 2horas. Ação simples: permanecer dentro do lixo até o derretimento inteiro do gelo. Lugar: Lixo da Av. Maria Antonia- SP. Questão: Degradação humana, estado de putrefação das mentes e corpos.

175


176


Les Pigmentés (com grupo Ilotopie) 15 performers Materiais: tinta apropriada ao corpo Duração: uma hora. Ações simples: caminhar, compor imagens corporalmente com o espaço e com os outros, parar,correr, pular. Mínimo gesto: fotografar as pessoas bem de perto, olhar nos olhos. Lugar: Centro de São Paulo, Virada Cultural Questão: Combate às diversas naturezas de Preconceito social.

177


Cidade-Formigueiro 5 performers Materiais: Roupas com tons de cinza, verde-musgo, marrom. Balde, Megafone, máscaras de alginato. Textos sobre a cidade-formigueiro escritos pelos performers. 2 Carros para guiar público no trajeto. Música: Vazio-Luiz Gayotto, vendas. Duração: 3 dias de 3 horas cada. Ações simples: andar, correr, pular, deitar, sentar, compor imagens corporalmente com o espaço. Mínimo gesto: Sinalizar direção com as mãos, arremessar máscaras de alginato. Lugar: Túnel Papa João Paulo II, Vale do Anhangabaú-SP Questão: O que bastaria para interromper o fluxo de capital, criar uma pane no formigueiro social em que vivemos?

178


179


PARTICIPAÇÕES EM CONGRESSOS E SIMPÓSIOS Ao longo da realização desta pesquisa tive a oportunidade de participar de dois importantes eventos que congregavam trabalhos de pesquisadores em iniciação científica: o Simpósio Internacional de Iniciação Científica da USP e o Congresso Nacional de Iniciação Científica. Situações ímpares para conhecer outros projetos em desenvolvimento nas mais diversas áreas de conhecimento no Brasil e no mundo. Assim expor nossa pesquisa em ambiente tão frutífero à transdisciplinaridade, como nosso estudo se propõe ao tangenciar noções da arquitetura e da antropologia, tendo como área central de conhecimento as artes. Além da chance de tornar pública uma reflexão teórica colhida da pesquisa em curso, reflexão que se dá em parte na clausura da escrita solitária forjada em ambiente privado (há quem diga que, apesar de tudo, o pensamento é público)61, compartilhar saberes e pontos de vista com os colegas e avaliadores nos ajudaram enquanto pesquisador a clarear, a partir da exposição de pensamentos e argumentos, os pontos essenciais e nevrálgicos daquilo que buscamos e investigamos, a expandir nossa compreensão a partir do feedback dado e a rever pontos a serem aprofundados, descartados ou adaptados. Foi bastante interessante e surpreendente notar no SIICUSP que, apesar de os trabalhos serem provenientes de áreas distintas como artes cênicas, cinema, artes plásticas e ciências sociais, eles se interligavam bastante, enfocando cada um diferente vieses, por questões que agregavam homem, arte e ocupação do espaço arquitetônico público urbano. Essa sinergia nos faz acreditar que os pesquisadores, dada a convergência de suas questões lançadas, estão sim atentos e buscando soluções criativas advindas de todas as áreas do conhecimento aos problemas da realidade que os cerca. Pensando de maneira perspectiva, interessante mesmo é entrecruzar esses saberes para ampliar as nossas descobertas enquanto agentes, sujeitos e objetos em sociedade. Já o CONIC trazia uma gama mais variada de temas, sendo o que unia os trabalhos, não o tema, e sim a área de conhecimento. Abrir a escuta para temas aparentemente bastante díspares e daí começar a estabelecer conexões e associações com meu trabalho é o que me chamava atenção enquanto pesquisador ao participar deste evento. Nos dois eventos em que participei tomei nota de cada um dos trabalhos apresentados e pude ao final discutir sob minha perspectiva as pesquisas apresentadas.

61

Cristiane Zuan Esteves em entrevista anexa debatendo sobre “espaço público” 180


Nossa pesquisa foi bem recebida pelos colegas e avaliadores, inclusive no CONIC a Profa. Doutora Rosa Italica Miglionico se mostrou bastante atenta e sensível às questões apresentadas, surpreendendo-se com a concatenação em um só trabalho da investigação sobre diferentes caracteres públicos através da arte, complementando algumas ideias, dados e reflexões que apresentei e lançando-me desafios. A participação nos dois eventos foi bem proveitosa para minha trajetória de pesquisador e ajudou-me a verticalizar num tempo breve de exposição as ideias principais de meu estudo. A seguir constam as descrições de cada um do eventos, a transcrição das falas e os slides utilizados nas apresentações, que acredito enriquecerem e sintetizarem apropriadamente todo o estudo que viemos realizando nestes sete meses. Como os slides apresentados em ambos os eventos são bastante similares apresentaremos aqui uma única versão.

181


20o Simpósio Internacional de Iniciação Científica da USP A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples PAZ, Lucas F.P. 22-26 de outubro de 2012 FEA-USP Transcrição de minha fala para 20O SIICUSP Bem, boa tarde a todos. Curioso perceber que o trabalho de cada um, apesar de partir para campos diferentes eu consigo identificar bastante contato entre o que estamos fazendo. Vou até mudar um pouquinho meu começo. Na verdade eu vejo como a liminaridade está presente em cada um dos três trabalhos apresentados até então, não é? Perceber que quer seja pela arquitetura, pela arte se chocando com a arquitetura, esses trabalhos dialogam. E hoje eu vim falar sobre uma coisa que na verdade não é nenhuma novidade, nem original, nem nada de novo para ninguém, eu vim falar sobre uma coisa que existe, no meu entendimento, desde a existência do ser humano, que se caracteriza como algo público, que é a arte. A qual, pegando pelo radical, seria ou a artesania ou o artifício de transformar, de entender a realidade. Eu queria na verdade depois disso trocar impressões sobre essa percepção. A arte para mim é o que nos separaria de outros seres, é o que nos torna humanos, é a criação, é a possibilidade de criação, de trocar com as pessoas, uma troca intersubjetiva. E para o Matteo Bonfitto, em seu livro o “Ator-Compositor” ele dirá que nós temos três formas de perceber o mundo, de apreender o mundo. Seria pelo intelecto, pelo afecto e pelo percepto. Essas três formas de apreensão ou expressão do mundo passariam pelo campo da arte. Então não estaríamos falando só de um raciocínio lógico, mas desse não-dito, desse indizível, que é aonde a arte transita. Para mim um autor que passa bastante por esse não dito seria o Manoel de Barros, ele consegue traduzir esse não-dito que a arte toca. Há esse lugar que o Denis Guénoun no texto “A exibição das palavras” vai falar especificamente sobre o teatro, mas que eu acredito também que se estende para qualquer campo da arte, é o fato de ela ser um lugar de debate, de fórum, de discussão, de fomentar discussão, de se entender, pela troca, pela fricção de pensamentos, portanto ela é pública, ela tem esse caráter público imbricado. Você faz, você se manifesta, seja numa roda de fogo, num quadro ou num espetáculo para alguém para uma alteridade, para esse outro que existe.

182


Quer seja da pedra lascada à pedra polida, ao helenismo, à democracia, às dionisíacas, que eram grandes assembléias públicas para discutir os rumos da cidade, da polis: as pessoas criticavam, escarniavam, satirizavam o próprio fazer social ali, naquele momento, em assembleia publica. É dessa maneira que eu vejo também esse poder da arte, e que eu me pergunto e que esse trabalho se pergunta é: O que é que está acontecendo com a arte e com as pessoas? Que esta ligação entre arte e cotidiano está cada vez mais, no meu entender, se distanciando, não é algo cotidiano, é algo que é... que de certa maneira precisa ser... ele não faz mais tão parte como outrora já fez, parece que tem de ser procurado. O título do trabalho é “A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples”. Qual foi a minha motivação e uma descoberta que eu fiz também ao entrevistar alguns profissionais? Entrevistei profissionais tanto da área da arquitetura, quanto da dança, do teatro e da intervenção urbana. E um deles, o Renato Ferracini, me alargou a compreensão do que seria espaço público. Porque no meu entendimento eu estipulei três categorias de espaço público a serem analisadas: uma via, um patrimônio público e uma instituição. E nesta entrevista com ele (o Renato Ferracini é ator do grupo LUME de teatro, sediado em Campinas), o mesmo me traz essa compreensão do corpo como espaço público. Se eu penso no espaço diretamente, uma configuração espacial na cidade, ele retorna ao primeiro do ser humano, ao primeiro da arte, do que gera tudo, que seria o próprio corpo. Isso me causa até uma balançada, uma confusão no meio da pesquisa. Então que espaço público é esse que estamos falando? O que eu pude perceber, e o que me motiva também ao longo da pesquisa é perceber este distanciamento das pessoas tanto da arte quanto do próprio espaço público. Você bem citou a Carta de Atenas (no desenvolvimento de sua fala). E aí temos o Walter Benjamin falando, num coletânea de seus escritos nomeada Passagens, sobre alguns escritos de Le Corbusier acerca do modernismo francês, como a arquitetura começa a se modificar e essa noção de estruturação da cidade começa a se modificar. Alargar vias para que as coisas fluam. Então as vielas e espaços de convívio vão sendo suprimidos para dar espaço a uma dinâmica, a uma velocidade, a um tráfego constante, a uma segurança nacional, porque aí eles (os governantes e estruturadores das cidades) começam a se preocupar com os ataques de guerra e ter um planejamento da cidade (específico para este tipo de ocasião). Então tanto a arte quanto o espaço público vão sendo suprimidos da nossa vida de alguma maneira. É aquele velho exemplo que vocês já devem ter ouvido sobre as praças sem bancos, praças que não são mais habitadas. Não podemos mais... só temos direito a circular no espaço público, e aí aquele objetivo primeiro da arte que é o de troca intersubjetiva ou que seria o objetivo social (da arte

183


e destes espaços) de troca entre as pessoas, um espaço de debate, um espaço de fricção de ideias já não acontece mais, porque simplesmente a arquitetura não permite que eles aconteçam: a gente começa a ver obstáculos, placas, caixas. A arquitetura vai perdendo sua justificativa primeira que é sócio-espacial, para ganhar um caráter simbólico, de símbolos que indicam o fluir, o atravessar, o passar. (A partir deste levantamento) Eu vejo no campo da performance um lugar de tentativa enquanto artista-pesquisador de que a arte esteja mais presente na vida das pessoas de maneira mais descompromissada, de uma maneira mais casual, mais cotidiana, que ela esteja ali acontecendo tanto quanto o trabalho, quanto o fluir, quanto uma atividade que se desempenha normalmente nesse espaço público. Por que? Porque eu acredito que a arte não está, não deveria estar limitada aos artistas, ou para os artistas, como vem acontecendo. Ela devia, ela poderia ser feita por qualquer um em gestos simples ou ações simples. Neste sentido o Grotowski falará dessa “consciência” do performer que não seria um, não estaria encarnando um personagem, mas uma pessoa com uma questão que está lançandoa para outras. Ele coloca a imagem, a metáfora do pássaro que bica e do pássaro que observa, como você ao mesmo tempo que propõe uma ação, você tem consciência daquela ação, você consegue se perceber com o entorno e dialogar com esse entorno. Não se valer de um roteiro que está externo a você e que você simplesmente executa, você é senhor da sua criação também. Chama-me atenção quando você (ao expor seu trabalho) fala dos documentaristas e dos documentados que passam a ser documentaristas, como é que você pode se perceber enquanto agente, enquanto criador. Diferente do teatro que se vale de um roteiro que vem de fora, de um figurino que vem de fora, de uma ideia que vem de fora e você configura naquele momento, o Renato Cohen no livro “A Performance como Linguagem”, falará, quando este termo aparece, a performance no campo artístico, que o artista é justamente este detentor da criação, tem essa capacidade de ser detentor dos meios de criação, ser o diretor, ser o dramaturgo, ser o agente de uma ideia, de uma discussão, dessa troca. Onde é que está essa troca entre as pessoas? Que está sendo suprimida cada vez mais. Os objetivos da pesquisa como já coloquei para vocês seriam: investigar quais são esse fatores que influenciam para um distanciamento entre cidadãos e arte no dia-a-dia, por que isso está tão separado. E para essa investigação desenvolver três ações artísticoperformáticas, buscando essa troca entre o artista e as pessoas nas ruas: No túnel Papa João Paulo II, uma via pública aqui no Vale do Anhangabaú, que não foi feita para ser vista, foi feita para passar. Novamente o planejamento urbano que não permite o habitar, o permanecer você tem que fluir. E ele é escondido, está abaixo da superfície, é essa ideia de ser realmente

184


um entre-lugar, liga pontos, liga capital. O Theatro Mvnicipal como esse patrimônio público e totem da arte em São Paulo. E aí podemos analisar este seu caráter público, na medida em que foi um prédio erigido, administrado pela prefeitura, mas erigido sob financiamento privado, dos barões do café, que precisavam de um espaço na cidade o qual configurasse essa ópera, essa arte de elite. Inclusive ele fazia parte na época do centro novo, ele dividia o centro novo do centro velho, e para acessar a região do teatro municipal havia-se de pagar um pedágio. Realmente desde o início da construção do teatro por Ramos de Azevedo, este já é um totem separatista. Até hoje, se você me perguntar, estou aqui na cidade há cinco anos, só fui ao Theatro, e faço teatro, para fins de pesquisa, nunca havia visitado o lugar. E você realmente percebe o entorno pulsando em arte, essa arte marginal, essa arte de rua que está presente todo dia, e aquele prédio inteiro, suntuoso, habitado por quem? Também me fez refletir bastante esta pergunta. Em se tratando de instituição, vocês receberam os folders (da temporada do espetáculo MoAciR: Filhos da Dor), eu escolhi o CEPEUSP enquanto instituição publica dentro da própria universidade para o terceiro experimento prático. O qual seria pensar, se a performance se propõe, no meu caso, a entrar no espaço publico de maneira não espetacularizada, tentando se chocar com a espetacularização do espaço público, como seria o contrário? Trazer para dentro da instituição o auge do espetáculo, reunir essas ações simples e mínimos gestos numa organização que seria sim com fim espetacular. Aqui de novo, mais uma vez, uma nova forma de ver esse “público”, uma vez que o acesso é restrito a certos usuários, logo esta liberdade de trânsito também não existe de maneira plena. Por conseguinte a metodologia para o estudo é: primeiro realizar leituras de materiais que dessem embasamento para essa investigação empírica, e aí sim, começar a descrever, analisar e articular os dados colhidos. Para esses dados utilizamos quatro filtros que seriam: Observação Imersiva- em cada experimento prático, um dia dedicado simplesmente a habitar aquele lugar, ou a via ou o patrimônio, ou a própria instituição. No caso da instituição, tivemos um processo de seis meses, de tentar entender quais são esses fluxos, o que é que se permite, quais são as formas de atuar, de agir nesse espaço. A observação imersiva que no nosso ponto de vista também recebe outro nome, que seria Inscrição Corporal no Espaço, muito mais receber daquele lugar. Autoria- aqui pelo contrário, a partir dessa absorção dos fluxos começar a ver que possibilidades existem para a arte naquele lugar. Como é que a gente começa a dialogar com as pessoas, de novo fomentar este lugar de troca, de diálogo, de fricção de ideias de maneira estetizada, a partir de uma questão lançada. Silêncio- espaço necessário para que algo aconteça

185


Ação- que estaria de maneira mais simples no campo do fazer, do desenvolver algo, se envolver com algo. Valemo-nos de protocolo observacional, de entrevistas, de vídeos das entrevistas e registro de documentos e material audiovisual (todos das experiências realizadas, das entrevistas com Renato Ferracini, Marcelo Maia, arquiteto formado aqui pela FAU, Helena Bastos, professora doutora de dança do Departamento de Artes Cênicas, e com o grupo chamado OPOVOEMPÉ de intervenção urbana). Essa rede de significados tanto da parte prática, quanto ouvindo essas opiniões de pessoas que trabalham nessas diversas áreas, foram nos trazendo conclusões. Aqui eu trago um pequeno exemplo de um experimento prático que não está contido na pesquisa, mas que serve a este fim, de exemplo: Chama-se Decomposição. O performer, no caso eu mesmo, entrava numa lixeira, com esse cordão de gelos pretos sobre uma roupa branca. A performance durava o tempo do derretimento desse gelo, era o derreter do gelo no corpo. Cada um desses experimentos de maneira simbólica abre para um campo, que seria esse campo de fórum do flash, justamente a gente vive num cotidiano que não permite a conversa, não permite o diálogo, não permite o convívio, então quando batemos o olho com algo que serve como ruído naquele lugar, para onde somos direcionados? O quê que cada uma dessas simbologias nos remetem? Como resultados, conceituamos os termos mínimo gesto e ação simples; realizamos esses três experimentos práticos; e mapeamos os trabalhos de um artista que eu acredito que convergem para essa pesquisa, a saber, o Flávio de Carvalho, pegando um exemplo brasileiro que tem extensos exemplos do que seria essa ação simples ou esse mínimo gesto que se desdobra numa longa duração, e como essa repetição pode fazer cada vez mais a gente ir pensando em diferentes camadas, em diferentes leituras para uma mesma coisa. As conclusões são: -de fato a utilização cível legal e estrutural do espaço público sofre fortes alterações depois da ideia de urbanismo que se estabelece no Modernismo. É super difícil você fazer arte hoje em dia no espaço público, por mais que tenhamos bastante exemplos legais ou ilegais, é bastante difícil. Uma coisa que me chamou atenção foi o depoimento de um morador de rua que falou: “a religião e a arte não tem como a prefeitura proibir”, lá no entorno do Theatro Mvnicipal, então ele dizia: “eles podem tirar o comércio, mas eles não podem tirar os leitores de cartas, os cantores de rua, os artistas de rua”, e isso me chamou bastante atenção. Apesar disso é bastante difícil você propor um ato artístico no meio da rua.

186


Como eu falei no início, do modernismo ao pós-modernismo a arquitetura vai perdendo esse caráter sócio-espacial para se transformar num sistema de leitura de signos da superfície. Vemos o que o Guy Debord vai falar sobre essa sociedade do espetáculo, de caixas que são vistas, mas que escondem, de uma aparência que não é para convívio. Ou a Paola Berenstein Jacques também falará da ideia de corpografia urbana, de voltar a habitar a cidade que não permite mais isso, como criamos jogos, ruídos, interferências para voltar a habitar o espaço público. E para mim, apesar das minhas convicções, ainda fica uma pergunta: o “valor de troca” da arte é social ou econômico? Embora não precise ser ou um, ou outro. A tentativa do mínimo aqui seria criar esse pequenos ruídos acreditando que eles sejam essas potências no meio do excesso que a gente vive. A arte é o que nos confere humanidade diante dos outros seres. Como através dela podemos voltar a conviver com as outras pessoas.

187


12o Congresso Nacional de Iniciação Científica-SEMESP A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples PAZ, Lucas F.P. 30 de novembro e 1o de dezembro de 2012 Universidade São Judas Transcrição de minha fala para 12o CONIC “Bem, o CONIC este ano se propõe a falar sobre sustentabilidade. Eu pego o gancho disso, mas deslocando essa palavra no sentido de: como podemos pensar em sustentabilidade falando sobre arte? Como a arte se tornar sustentável nas nossas vidas hoje em dia? Como ela faz parte das nossas vidas hoje em dia? Que usufruto cada um aqui desta sala partilha da arte? Essa foi minha motivação para este estudo que vou tratar, que se chama “A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples”. Tem amparo da FAPESP, sob orientação de Antônio Araújo, sendo eu estudante da USP. Minha primeira motivação para este estudo foi perceber de alguma maneira, esta é uma opinião minha, de que a arte realmente não faria mais tão parte da vida das pessoas de maneira cotidiana, como outrora poderia ter feito. Se pensamos na História da Arte desde o período da “pedra lascada”, da “pedra polida”, da democracia grega, temos exemplos de que as pessoas utilizavam a arte para justamente se reconhecerem enquanto seres humanos, e na minha opinião ela seria o que nos diferencia dos outros seres, essa questão da criação. Neste sentido o Matteo Bonfitto falará no livro “O Ator-compositor” a questão de como o ser humano apreende a realidade ou expressa a realidade, através do percepto, do intelecto e do afecto. Da maneira que eu entendo então não teria a ver só com um raciocínio lógico da realidade, uma expressão lógica da realidade, mas algo que sentimos, que poderia estar nesse campo do invisível e do indizível, mas que não se trata de uma questão metafísica, é algo que é muito palpável. Assim uma das entrevistas que eu fiz para o estudo, que me chamou bastante atenção, com o Renato Ferracini, ator do LUME de Teatro, ele dará um exemplo de outro estudioso chamado Leibniz. Eu o indaguei sobre essas questões do que seria o mínimo gesto, o que seria a ação simples pensada nessas interferências cotidianas e ele me falou do mar. Quando você olha o mar, quando você ouve o barulho do mar, você identifica: mar. Você sabe que é mar. Só que pensando nessa micropercepção que caminha junto com os fluxos da cidade, não teríamos só... para produzir esse barulho que chega a nós como mar, nós

188


temos: a água que bate na água, a água que bate no peixe, a água que bate na areia, o vento que bate na areia, e tudo isso chega para nós como mar. Assim conseguimos ter uma consciência de todos estes fluxos, mas à primeira vista estaria num plano sensorial em que às vezes não conseguimos dizer ou identificar. Este estudo vai investir justamente no mínimo, para como voltamos, transformamos nossa percepção sobre o cotidiano. De repente algo que é corriqueiro, que está sempre passageiro, uma pequena ação que pode ser colhida do próprio cotidiano vai revelar para quem faz parte dele a sua consciência no mundo, como você está se pondo no mundo, e esse fluxo volta novamente. Logo seria um estudo qualitativo convergindo para a questão destes fluxos no espaço público, sobre a utilização do espaço público. Se a arte, no meu entender, é um espaço de fórum, de debate público, como ocorria, e hoje para mim não parece ser tão premente, tão partícipe de nossas vidas dessa maneira, um lugar que a gente discute, troca ideias, se encontra. O espaço público da mesma maneira, na minha compreensão, tem sido cada vez mais restringido, a experiência tem se restringido. Como então tratamos essas duas frentes: arte e cotidiano? Para que as pessoas (simplesmente) se encontrem, como estamos fazendo aqui: trocando pensamentos, refletindo. Parece que o dia a dia não permite muito isso. Mas, pensando como podemos discutir para além de uma questão que os urbanistas já fazem, dessa não apropriação do lugar, deste não-lugar, ou do que gosto de trabalhar também que é pensar na ideia do entre-lugar, seriam vários lugares de passagem, lugares que servem para ligar pontos, não para a permanência, não para habitar, são os famosos exemplos que ouvimos também das “praças sem bancos”. Já

não

conseguimos mais nem parar. Tudo isso com a finalidade da troca entre as pessoas, voltar a exercer essa noção do debater sobre o que se vê, sobre o que se sente. Este estudo teórico e prático passa primeiro por uma fase de leitura para tentar cercear alguns destes termos que estão sendo forjados: o que é ação simples, o que mínimo gesto no espaço público? E pensando que se vivemos num ritmo tão acelerado que não nos permite parar, não nos permite ver as coisas, o que poderia estar presente neste cotidiano, que acontece tanto quanto o trabalho, tanto quanto o metrô? O que poderia estar presente não de forma simplesmente “contra”, mas de modo a resistir de alguma forma, romper de alguma forma. Para mim seria através não do espetacular -porém a pesquisa também apresenta suas

189


limitações, viéses na prática com relação a ser ou não ser uma ação artístico-performática espetacular-, mas do mínimo. Como o próprio cotidiano nos revela mínimos gestos e ações simples que se deslocados do contexto nos fazem parar para pensar. Como o mínimo e o simples no campo da arte podem atravessar essa complexidade, essa extravagância, esse excesso da vida urbana espetacularizada. A nossa hipótese seria trabalhar sobre a invisibilidade, a dilatação do tempo, o silêncio, a sugestão simbólica através do corpo e de elementos utilizados, em um contexto deslocado. Todas essas estratégias com o fim de pensar: como reincorporamos a cidade, como voltamos a habitar esses espaço, como voltamos a promover espaços de encontro. Começa por essa investigação de diferentes formas de caráter público. A parte prática resolve abordar da seguinte forma: fazer um experimento prático numa via, que seria esse entre-lugar, ou lugar de passagem, espaço que liga capital, justamente não foi feito para permanecer, mas visa ligar dinheiro de um ponto a outro da cidade, e se algum acidente acontece naquele túnel então o “motoboy” não conseguirá chegar com a encomenda do outro lado, parou momentaneamente esse fluxo da cidade, do dinheiro. Primeiro, uma via, um patrimônio público e uma instituição pública, seriam esses três experimentos práticos. Tentando investigar diferentes restrições nestes espaços, diferentes formas de restringir o espaço público, quer seja por um interesse de fato de uma empresa privada, ou a privatização do espaço público sem que isso se manifeste de maneira tão clara através de uma empresa, mas a própria restrição arquitetural que nos obriga a fazer certos percursos. E o ser humano vai lá e diz: “Não, eu invento a minha realidade à minha maneira”. Um percurso determina um certo trajeto e o ser humano vai lá e pula ou desvia por uma diagonal. Está sempre também se reinventando e reinventando a forma de utilizar este espaço restrito. Estes lugares, então, foram: O túnel Papa João Paulo II, no Vale do Anhagabaú, o Theatro Mvnicipal, como esse totem da arte em São Paulo, se ele está vivo ou não está, quem é que frequenta estes lugares, sempre se perguntando como é que a arte pode fazer cada vez mais parte da vida das pessoas de maneira menos compromissada e mais casual: estou passando e tanto quanto o meu horário para o trabalho tem alguma coisa aqui acontecendo que me faz pensar por alguns instantes ou através desse debate solitário, dessas ilhas que caminham, ou de repente uma troca com alguém, uma interlocução com o artista que está propondo aquela ação.

190


Profa. Doutora em arquitetura e urbanismo Rosa Italica Miglionico (avaliadora de sala do CONIC): - Eu gostei da questão do CEPEUSP. - E o CEPEUSP que é o centro esportivo lá da USP que... - Que é a regra: só entra quem... Não, se você quiser visitar você não consegue. - É um espaço público que tem um acesso restrito. Logo cada um deles vai revelar uma limitação diferente. Quer seja pela presença da guarda municipal, quer seja pela mediação de um ingresso que chega a R$ 100,00. Você tem uma diferença de um espaço enorme que está sendo visto e fotografado todos os dias (Theatro Mvnicipal) e logo ali do outro lado da rua tem algumas bandas que sempre formam uma roda. Então onde é que a arte está pulsando, para quem ela está fazendo parte? E o CEPEUSP como esta instituição, como você bem frisou, que tem uma restrição de acesso. - O público não público, quase um não-lugar. - Ao mesmo tempo, o argumento deles é, uma briga deles dentro da própria universidade: as pessoas usam o espaço público com finalidades privadas. Todos aqueles esportistas também contratam seus serviços e privatizam aqueles espaços por algum momento. Aí eu me coloco essa provocação também: em que medida eu também não estou privatizando o espaço em nome da arte quando escolho pegar temporariamente aquele lugar e... - Se apropriar dele. - Me apropriar dele. Resta saber essas aberturas, a que fim viemos. Se é um exibicionismo, se é uma “mostragem”, ou se de fato acontece uma troca através dessas ações. Esses dois experimentos, portanto teriam esse caráter mais forte de ação simples e mínimos gestos com uma longa duração, enquanto o CEPEUSP seriam uma reunião de várias ações simples e mínimos gestos de maneira espetacular, aí sim tendo a finalidade de criar um espetáculo, que não está interferindo no cotidiano (sim pelos ensaios porque foi um processo de seis meses), mas ele visa ao final ter uma temporada, com público gratuito, mas num horário que é diferente do horário - Do horário normal - Isso, do dia-a-dia. Como metodologia nós utilizamos protocolo observacional, ou seja todos os experimentos destinavam um dia inteiro para observação: primeiro perceber quais são as dinâmicas sociais desse lugar, o que acontece ali, quais são as possíveis relações travadas

191


nele, para depois pensar como a arte pode estar presente ali, tanto quanto esses fatores próprios do lugar. Entrevistas feitas com um arquiteto, uma profissional da dança, um grupo de intervenção urbana e teatro, e um ator de teatro: o Renato Ferracini do LUME, o grupo OPOVOEMPÉ, a Helena Bastos, professora de dança contemporânea e o Marcelo Maia, que escreveu uma tese chamada “Práticas sensíveis sobre o espaço comum” (só este nome já me chamou bastante atenção, fiquei bastante curioso). Perceber essas dinâmicas sociais características de cada lugar e esses diferentes caracteres públicos, e propor ações que através dessa expressividade sutil se fundem àquele lugar. Se muitas vezes ela tem um “quê” espetacular nos elementos utilizados, muitas vezes estes passam despercebidos. Como resultados preliminares, pois esta é uma pesquisa em andamento até Janeiro de 2013, buscamos conceituar estes termos mínimo gesto e ação simples através da leitura e das entrevistas feitas (para além de uma compreensão que eu já tenho sobre esses termos), fizemos as entrevistas e realizamos os três experimentos práticos. O mapeamento dos artistas ainda está em andamento, que seria pensar em artistas, que ao meu ver também trabalham sob essa perspectiva do simples e do mínimo. Um exemplo brasileiro, o Flávio de Carvalho e um exemplo internacional, a Marina Abramovic. Em que eles escolhem uma ação só com uma longa duração no espaço público e isso permite diferentes fruições, diferentes leituras, por conseguinte a volta dos encontros entre as pessoas. Este exemplo não faz parte da pesquisa, mas é um exemplo que posso utilizar (expondo a performance Decomposição): eu mesmo ficava dentro dessa lixeira, com uma roupa branca, com um cordão de gelos pretos, e a performance durava o derretimento do gelo. Era simplesmente habitar aquele lixo durante o derretimento do gelo. Que fruição as pessoas terão disso? Está pra além da questão que eu me coloco. Acho que o bacana é isso. Assim eu encerro. Aqui são as fontes consultadas: Augé, Renato Cohen, Galizia com Os processos Criativos de Robert Wilson, a Paola Berenstein Jacques, que traz uma ideia bem interessante de como voltar a reabitar o espaço público com a ideia de corpografia urbana: Como criamos jogos para romper com essa arquitetura que não permite relação? A Evelyn Furquim que também reúne vários artigos falando do espaço teatral à cidade como palco, e o Flávio de Carvalho através do Moraes. - A tua pesquisa é interessante eu gostaria de ver esse resultado na avaliação desses experimentos. Depois que vocês conseguirem analisar toda essa questão das características, etc., aí é o experimento, e analisar e filmar a reação exatamente, o que é que acontece...

192


- Com o entorno. - Com o entorno quando você faz essa interferência. Achei interessante a tua pesquisa, vai exigir bastante trabalho mental e físico. Ficar principalmente embaixo ali do túnel, o antigo buraco do Jânio ali no Anhangabaú, que depois eles puseram... - os corpos de fato, né? E Anhangabaú também é o nome para Vale dos Mortos. Ele tem uma historicidade que, se hoje em dia ele é um lugar para não permanecer, ali tem muitos corpos. - Embaixo passa o rio Anhangabaú. A questão do vale ali era porque choveu, enchia. Os índios já sabiam isso. Aí veio o branco e o que fez? Aproveitou todo o fundo de vale, tapou e fez avenida. Por que é que a gente tem enchente em São Paulo? - Por que é que ali sempre enche - É só pensar... “Porque fundo de vale está pronto, você vai lá, canaliza, é só dar uma alisadinha, está pronto.” - Interessante também que noutra vez que nós estivemos neste túnel, inclusive Otávio fez parte desse experimento, um dos performers encontrou um corpo dentro da escada e não sabíamos nós se tinha vida ou se tinha morte... Aí voltamos para esta questão: Onde é o lugar de se estar? Ali de repente virou um lugar para alguém. - Parabéns. Prossiga com fé e vontade.

193


194


195


196


197


198


199


CONSIDERAÇÕES FINAIS “Arte não tem pensa: O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo. Isto seja: Deus deu a forma. Os artistas desformam. É preciso desformar o mundo: Tirar da naturezas as naturalidades. (...) Agora é só puxar o alarme do silêncio que eu saio por aí a desformar” (BARROS, 2010, p. 350) “Não preciso do fim para chegar”(BARROS, 2010, p. 348)

Para mim foi curioso observar que o grau de espetacularização dos três experimentos práticos analisados -apesar de se manter os princípios buscados de simplicidade e minimalismo e aproximação ao máximo com a vida, com a realização de uma ação ou gesto sem o intermédio de uma ficção ou de personagens, mas de corpos em ação- revelou-se crescente do 1o ao 3o experimento. Um dado que a princípio, de acordo com o que objetivávamos na pesquisa, poderia se afigurar como viés, mas que também pode revelar suas potências diante de fluxos anestesiados e viciados, em que quase nada mais choca ou surpreende. Essa constatação nossa de um aspecto que salta do percurso trilhado nos faz querer buscar mais e descobrir novas formas de atuação que nos dirijam para a não-espetacularização associada à possibilidade de gerar experiências e encontros entre pessoas com a arte de maneira mais próxima e com menos intermediadores, através do simples e do mínimo, tendo o corpo como signo: objeto significante e significado. O primeiro experimento realmente aconteceu mais desprovido de elementos ou trabalhou com elementos mais invisíveis tanto pela dimensão como por estarem mais inseridos no cotidiano. Investia mais fortemente numa intervenção artística sutil, sorrateira, invisível, numa ação disruptiva, que diferente dos outros dois experimentos passava mais “despercebida” enquanto ato espetacular ou considerado artístico. Era sim para ser vista e sentida, mas fundia-se mais à dita “realidade”, a um evento possível e esperado no espaço em questão. A ação simples era atravessar o túnel e colar uma cédula no chão e o mínimo gesto era apertar uma buzina de festa. Este experimento evidenciou a força do capital na determinação dos fluxos no espaço público, levando a uma desincorporação da cidade. Já o Experimento II apelava para recursos e elementos visuais fortes, nada cotidianos, visto que tiveram seu contexto deslocado (o tapete vermelho interno do Theatro ganha as ruas e o “rei-mendigo” não o pisa, mas está enrolado nele), e com forte estímulo cromático.

200


Contudo que não se mostravam descontextualizados ou incoerentes com o espaço explorado, reforçavam algo já pertencente ao próprio espaço: a evidenciação do choque entre diferentes classes sociais gerando desigualdades de acesso a um patrimônio cultural, e esta situação como microcosmo de uma realidade mais abrangente. Apesar deste dado evidente da força simbólica dos poucos elementos utilizados, o experimento trabalhava com uma ação bastante simples que é deitar-se. Este experimento revelou dentre os espaços públicos explorados a maior multiplicidade de relações e dinâmicas sócio-espaciais num mesmo perímetro urbano. O Experimento III apresentava desde sua idealização um desafio diferente dos outros dois experimentos visava realmente promover um choque entre espetacularização e vida. Como é construir um evento ao longo de sete meses de exploração artística num espaço público altamente disputado destinado ao esporte, anunciar este evento como espetáculo com temporada de doze apresentações, com horário determinado de duas horas e trinta minutos de duração, e a proposição artística é simplesmente viver? Fluir entre uma sucessão de ações? Simplesmente realizá-las num presente contínuo sem interrupções, de maneira vívida e real? Como é ser parte integrante da paisagem e não o foco ou o protagonista, mas mais um elemento partícipe do meio? Este era o desafio dos performers ao transitar entre ações simples e mínimos gestos, eles eram tanto quanto a música, o tempo, o pássaro, o vento, o frio, a chuva, um integrante do público, a luz, mais um elemento compositivo da paisagem real concreta ou imaginada. A construção e fruição do meio depende de nós e de nossas constantes escolhas, buscávamos essa radicalidade como desafio neste experimento. O público era convidado a transitar e participar daquele evento da maneira que lhe aprouvesse como quando transita num sonho, num parque ou num aquário. É interessante destacar detalhes como pessoas sentadas na beira da piscina com os pés dentro d’água, uma moça que assistiu a performance em cima da árvore, outra moça que subiu junto com a performer ao alto dos 10 metros do trampolim, um cadeirante que assistiu o espetáculo debaixo d’água, através da visão submersa, crianças que imitavam as ações dos performers junto com eles, pessoas que cochilavam, pessoas que conversavam sobre outros assuntos, pessoas que utilizavam os instrumentos sonoros distribuídos ao redor da piscina e um moço que inclusive resolveu deslocar para a superfície 50 metros de pano vermelho, o qual compunha o cenário da peça no fundo da piscina. De alguma forma, apesar das proporções espetaculares que apresentava na grandeza do espaço, nos recursos de luz e som e nas formas, o experimento parece ter cumprido seu objetivo de promover ruídos na realidade, chacoalhar as possibilidades de uso e relações

201


estabelecidas em determinado espaço público. O que testemunhamos enquanto pesquisadores foram esses micro-afetos se dando através de ações simples e pequenas intervenções de todos que transformavam o espaço e por ele eram transformados. Aqui as ações simples e mínimos gestos através da característica lúdica da arte e do ser humano em criação foram capazes de estabelecer relações intersubjetivas e despertar micro-sensações, micro-percepções. O evento teve a alegria de alcançar de fato seu caráter público sendo acessível a toda a comunidade rompendo a barreira institucional de apresentar uma identificação para acessar o CEPEUSP, e contamos com uma grande diversidade de pessoas das mais diversas raças, sexualidades, idades, etnias, condições sociais e físicas. Contamos com espanhóis, peruanos, fortalezenses, africanos, cadeirantes, aleijados, mulheres grávidas, idosos, crianças de colo, homens e mulheres. Este experimento trouxe à tona, através da instituição pública explorada, esta exemplo de um macrocosmo da categoria instituição pública, o ápice da restrição e segregação através de barreiras sociais meritocráticas. A presente pesquisa possibilitou vivenciarmos a fundo, através dos vários experimentos práticos realizados, para além dos três experimentos principais estipulados, o mínimo gesto e a ação simples como linguagem performática bastante potente e adequada a ser inserida no espaço público. Tivemos a chance única de expandir nossa compreensão sobre esses termos que forjamos através do choque de ideias com participantes-atuantes, participantes-observadores e participantes-entrevistados. As experiências etnográficas, as vivências, e o contato com o trabalho de importantes figuras do meio artístico paulista viabilizaram uma rica experiência, em parte intraduzível em palavras, que só se manifestará como fruto artístico com o maturar de ideias ao longos dos próximos anos. Este estudo nos fez constatar que o entrecruzamento de áreas de conhecimento (no nosso caso a intervenção artística urbana, a performance, a dança, o teatro, a arquitetura, o urbanismo, a antropologia e a poesia) parece cada vez mais ser uma promissora maneira de problematizar e encontrar soluções para os conflitos sociais, políticos, culturais e econômicos. Enfrentados coletivamente. Apesar de arte vir cada vez mais galgando seu espaço novamente na esfera pública através de trabalhos de artistas que decidem intervir na cidade e voltam a ter

lento

reconhecimento por parte do poder público, a utilização cível legal e estrutural do espaço público sofreu fortes alterações após a ideia de urbanismo que se estabeleceu com o

202


Modernismo. A arte encontra mais obstáculos para instaurar-se livremente no espaço público. Do Modernismo ao Pós-Modernismo a arquitetura deixa de ser entendida como disciplina sócio-espacial e tem seu papel reduzido a um sistema de leitura de signos da superfície (TSCHUMI,1996,P.140). Abre-se margem para o aparecimento de não-lugares e para a desincorporação do espaço urbano. O espaço público apesar de estar urgindo pela incorporação das pessoas, ainda tem política bastante restritiva de uso. Como a arte pode vir a tornar-se corpo novamente, como o corpo pode voltar a ter força criativa na esfera pública se os fluxos restritivos do dia-a-dia nos condicionam cada vez mais a controlar nossas emoções, pensamentos e sensações? Ainda nos ficam questões que valem contínua reflexão: O atual “valor de troca” da arte em meio a um ambiente espetacularizado é social ou econômico? Reafirmamos a crença no mínimo e no simples como potentes respostas da arte capazes de desacelerar a vida, atravessar a complexidade, a extravagância, a efemeridade e o excesso da vida urbana, lembrando-nos dia-a-dia da imprescindível parcela de Humanidade envolvida em nossas trocas intersubjetivas. Este estudo nos possibilitou uma ampliação de nossos repertório estético criativo. Pudemos também perceber o caráter provocativo que o simples e o mínimo geram em cada uma das ações propostas. Observamos que nossa inserção na paisagem pública através de inscrição e escritura corporal no espaço por intermédio da arte promoveu um desordenamento momentâneo originando dinâmicas incomuns de percepção e rompendo com convenções e barreiras físicas e ideológicas. Dessa maneira pôde-se re-imaginar e reinventar a realidade atribuindo novos usos possíveis aos espaços nesse diálogo entre arte e espaço público. Os performers envolvidos, confiando na potência de uma arte através do mínimo e do simples, conectaram-se e trocaram experiências em via de mão dupla com os passantes e o espaço público, adquirindo ao longo dos experimentos discernimento sobre formas diversas de agir a depender do caráter público vinculado ao espaço, posto que as leis de uso e atuação variam de espaço a espaço. Foi possível

desenvolver também uma estética relacional de formas

variadas, estabelecendo conexões com as pessoas não só através de uma interação e interlocução direta, mas também do plano das sensações, de um jogo de associações e decifração de símbolos. Antes julgávamos que nossas proposições performáticas não deveriam ser classificadas dentro da categoria espetáculo. Mas levando em consideração a visão trazida por PAVIS, 2007, p.141, hoje concluímos que sim. Nossas proposições artístico-performáticas têm uma escolha estética e um efeito plástico altamente acentuados destinados a um público.

203


São portanto espetáculo. Por mais que corram o risco de passarem despercebidas como mais uma atração dentre muitas, as quais somos alvos de bombardeio ao cruzar a malha urbana. E por mais que busquem a aproximação ou a não separação, como diria Artaud, entre arte e vida, artista e obra. A adequação do tempo ao cronograma sem dúvida mostrou-se como uma dificuldade, diante da demanda de investigação que cada experimento ou atividade prescindia e visto que a quantidade de meses era consideravelmente breve. Gostaríamos de ter tido mais tempo para desenvolver este objeto de estudo e para continuidade de nossas buscas efervescentes já estipulamos daqui para frente algumas metas e desafios. Temos o desejo de pesquisar mais a fundo sobre ação, gesto e minimalismo ao longo da História das artes cênicas: teatro, dança e performance. Pesquisar mais especificamente sobre o gesto na História da performance. Mapear mais artistas que acreditamos investir sobre um trabalho pautado no mínimo e no simples como linguagem no espaço público, por exemplo: Marina Abramovic, Tesching Hsieh, Bob Wilson, Gertrude Stein, OPOVOEMPÉ, os Situacionistas. Realizar entrevistas com outros coletivos de intervenção urbana artística e social no Brasil como o Grupo Empreza, o Curativos Urbanos e o Trio Serviços Gerais. Estruturar um trajeto possível de exploração corpórea

que tenha como vetor encaminhar dos ‘corpos cotidianos’ à

‘performance de ações simples’. E continuar uma pesquisa acerca das leis de uso do espaço público pela arte através de estudos feitos com advogados e arquitetos, consultando documentos da prefeitura de São Paulo. Para finalizar gostaríamos de compartilhar um texto de Eduardo Galeano: A função da arte Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!

204


REFERÊNCIAS Livros ABRAMOVIC, Marina. Marina Abramović. Como: Charta, 2002. ARTAUD, Antonin. Linguagem e Vida, São Paulo: Perspectiva, 1995. AUGÉ, Marc. Não-Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 7a ed., 2008. BARBA, Eugenio & SARAVESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: Dicionário de Antropologia Teatral. Campinas: HUCITEC, 1995. BARROS, Manoel de. Poesia Completa, São Paulo: leYa, 2010 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001 BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense,1987. ___________________. Passagens, Org. Willi Bolle. Belo Horizonte/ São Paulo: Editora UFMG/ Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006. BEY, Hakim. Caos, terrorismo poético e outros crimes exemplares, São Paulo: Conrad, 2003. BONFITTO, Matteo. O ator-compositor. São Paulo: Perspectiva,2002 COELHO, Teixeira. O que é ação cultural? São Paulo: Brasiliense, col. primeiros passos 216, 2001. COHEN, Renato. Performance como Linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva, 1989. CORRÊA, Roberto L. O espaço urbano. São Paulo: Ática, 4a ed., 2002. CRESWELL, John W. Projeto de Pesquisa: métodos qualitativo, quantitativo e misto. Porto Alegre: Artmed, 2a ed., 2007. CULLUM, Jerry et al. Noplaceness: art in a post-urban landscape. Atlanta: Possible Futures, Inc., 2011. DAHER, Luiz Carlos - Flávio de Carvalho: Arquitetura e Expressionismo, São Paulo: Projeto, 1982 DANERI, Anna et. al. Marina Abramović. Milão: Charta, 2002. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. FERRACINI, Renato. A Arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. Campinas: Ed. UNICAMP, 2001.

205


FERRACINI, Renato. Projeto Temático Memória(s) e Pequenas Percepções. Mimeo. FAPESP. 2010. FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Mini Aurélio: o dicionário da língua portuguesa - 8ed. – Curitiba: Positivo, 2010. GALIZIA, Luiz Roberto. Os Processos Criativos de Robert Wilson: Trabalhos de Arte Total para o Teatro Americano Contemporâneo. São Paulo: Perspectiva, 1986. GOLDBERG, Roselee. A Arte da Performance: do futurismo ao presente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. JACQUES, Paola Berenstein & JEUDY, Henri Pierre (Org.). Corpos e Cenários Urbanos: Territórios Urbanos e Políticas Culturais. Salvador: EDUFBA, 2006. KOUDELLA, Ingrid Dormien. Brecht: Um Jogo de Aprendizagem. Coleção estudos 117, São Paulo: Perspectiva, 2a ed., 2010. LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. LIMA, Evelyn Furquim Werneck (Org.). Espaço e Teatro: do Edifício Teatral à Cidade como Palco. Rio de Janeiro: 7 letras, 2008. MARZONA, Daniel. Minimal Art. Colônia:Taschen, 2005 MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2005. MORAES, Antônio Carlos Robert. Flávio de Carvalho, o performático precoce. São Paulo: Brasiliense, 1986. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2007. SANGIRARDI JR. - Flávio de Carvalho, o revolucionário romântico, Coleção Visões e Revisões, Rio de Janeiro: Philobiblion, 1985. SCHECHNER, Richard. Between Theater & Antropology. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1989. TURNER, Victor W. Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropologia da Experiência (primeira parte). In cadernos de campo n. 13, São Paulo, 2005. TURNER, Victor W. O processo ritual. Petrópolis: Vozes, 1974.

Artigos ASCOTT, Roy. A arquitetura da cibercepção, Org. Lúcia Leão. In Interlab, Labirintos do pensamento contemporâneo, São Paulo: FAPESP, Iluminuras, 2002. BAPTISTA, Dulce M. T. Intervenção urbana no centro histórico da cidade de São Paulo: atores sociais envolvidos. (http://www.xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1307133621_ARQUIVO_Artig

206


oDulceTourinhoBaptistaLusoAfroBrasileiro.pdf) BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação n.19, jan/fev/mar/abr 2002. DAWSEY, John C. Por uma antropologia benjaminiana. Repensando paradigmas do teatro dramático (http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010493132009000200002&script=sci_arttext). Revista Mana n.15, 2009. FABIÃO, Eleanora. Performance e Teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. (http://impromptucoletivo.files.wordpress.com/2009/09/performance_e_teatro_fabiao 1.pdf) GROTOWSKI, Jerzy. El Performer. Revista Máscara, Escenologia, Cidade do México: Fondo de Cultura del México, n. 11-12, jan. 1993 GUIMARAENS, Cêça. Arquitetura, Patrimônio e Museologia. Rio de Janeiro, ENAPARQ, 2010. JACQUES, Paola Berenstein & DULTRA BRITTO, Fabiana. Corpografias Urbanas, relações entre corpo e cidade (http://www.ram2009.unsam.edu.ar/GT/GT%2070%20%20Etnografia%20dos%20espa%C3%A7os%20p%C3%BAblicos%20urbanos%20entre%20 pr%C3%A1ticas%20insurgentes%20de%20cidadania%20e%20express%C3%B5es/GT70Ponencia[Britto-Jacques].pdf) JENKINS, Henry. Games, The New Lively Art. (http://web.mit.edu/cms/People/henry3/GamesNewLively.html) PILLAR, Analice D. A Universidade, a Arte e as Paixões. (http://www.artenaescola.org.br/pesquise_artigos_texto.php?id_m=21)

Dissertações BASTOS, Maria Helena F. A. Variâncias: O corpo processando identidades provisórias. São Paulo, 2003. (Doutorado PUC) MAIA, Marcelo Reis. Práticas Sensíveis sobre o Espaço Comum. São Paulo, 2006. (Mestrado FAU-USP) FORTES, Hugo. Poéticas líquidas: A água na arte contemporânea. São Paulo, 2006 (Doutorado ECA-USP)

207


Revistas GUIMARÃES, Júlio Castañon. Gertrude Stein. O Percevejo – Revista de teatro, crítica e estética do programa de pós-graduação em Teatro da UNIRIO, Rio de Janeiro, n. 9, p. 235-238, 2000. Sala Preta- revista do ppg em artes cênicas-eca-usp, São Paulo, n.1, 2001. Sala Preta- revista do ppg em artes cênicas-eca-usp, São Paulo, n.2, 2002. Sala Preta- revista do ppg em artes cênicas-eca-usp, São Paulo, n.3, 2003. Sala Preta- revista do ppg em artes cênicas-eca-usp, São Paulo, n.6, 2006. Sala Preta- revista do ppg em artes cênicas-eca-usp, São Paulo, n.7, 2007.

Peças STEIN, Gertrude. Peças, trad. Luiz Paëtow. http://www.sibila.com.br/index.php/mix/15-pecas-uma-peca-de-de-gertrude-stein __________________. Será que vou ou que direi isso, trad. Luiz Fernando Ramos. Arquivo pessoal. GUIMARÃES, Júlio Castañon. Gertrude Stein: cinco peças. O Percevejo – Revista de teatro, crítica e estética do programa de pós-graduação em Teatro da UNIRIO, Rio de Janeiro, n. 9, p. 239-250, 2000.

Palestras e Eventos “Expedições, videocriaturas e carinhódromos” com Otavio Donasci (Brasil)Universidade de São Paulo, SP-2011. “Performers brasileiros” com Lúcio Agra (Brasil)-Universidade de São Paulo, SP2011. Entorno do Retorno- Coletiva dividida em instalações, performances e conversas acerca de “Corpo, Imagem, Texto e Espaço” com Alexandre Veras, Ana Cristina Mendes, Andréa Bardawil, Beatriz Furtado, Claugeane Costa, Eduardo Jorge, Euzébio Zloccowick, Flávia Meireles, Felipe Ribeiro e Lucas Coelho- Alpendre – Casa de Arte, Pesquisa e Produção-Fortaleza, CE-2011. V Reunião Científica ABRACE-Universidade de São Paulo, SP-2009. “Que resta da performance?” com Josette Féral (Canadá)-Universidade de São Paulo, SP-2009. “Máscaras e Mascaramento social” com Sartori (Itália)-Universidade de São Paulo, SP-2008.

208


ANEXOS

Observação Imersiva e Protocolo Observacional Observação Imersiva do Experimento 1: via pública- Túnel Papa João Paulo II Lucas Paz através de método de Escrita em Fluxo Contínuo de Pensamento: 9:21-10:21h 1a hora ponto fixo (sobre corrimão esquerdo de concreto da escada) Túnel Papa João Paulo II (via escondida de passagem de carros e pedestres do Anhangabaú, centro de SP) 2 ônibus em poucos minutos/fluxo livre de carros, pequenos e breves engarrafamentos. Variações rítmicas entre as faixas de carros Carros pretos brancos, cinzas, vermelhos, poucos de outra cor (azul ou marrom) Trabalhadores da prefeitura vestidos de laranja, escada de acesso ao Vale parcialmente interditadacones e fita zebrada (sendo re-cimentada) Patrícia sentada no chão emborrachado (calçada destinada aos pedestres, suja, fedorenta, com vala escoadora de água, forte cheiro de esgoto exalando dejetos, mijo e cocô, não chega a ser insuportável). (Túnel) Bem iluminado com leds

cantar de pneus prenúncio de possível acidente escadas em setas

olhar curioso que desce do ônibus ação simples: observar e registrar observação, tempo 8h. Funcionários da prefeitura passam e observam Patrícia como se fossem observar os ônibus, os fluxos, mas rodeiam-na, eles se aproximam por trás dela, a observam e seguem. Porta engancha senhor no ônibus Moça passa por nós e não olha Reconstrução, reparo, manutenção, nova iluminação X mal-cheiro, degradação, escuro arquitetônico Alguém com mala sai do ônibus Desembarques de pessoas nos ônibus, pedestres vindos de fora do túnel (todos para subirem escadas do Vale do Anhangabaú) Homem olhos vermelhos, passos lentos, sobe escadas, olha para trás, coloca óculos escuros

209


Mão nos quartos Funcionários prefeitura luvas amarelas, capacetes verdes, botinas. Do C3 os óculos observam Patrícia. Ônibus azul, vermelho, laranja. Olhares curiosos do ônibus, Patrícia parada chama muita atenção. Primeiros 15 mins. e Patrícia mão no queixo boceja. Pista do meio geralmente para e pessoas nos observam buscando algum sentido. Mas aí a faixa da esquerda parou. A da velocidade. É possível trocar sabe-se lá o que com esses alguns olhares. Um grito abafado pelo som de carros: Ei. Buzina. Conversa cotidiana dos trabalhadores como pano de fundo. Moço na BMW passa e acena para Patrícia (dá tchau simpático, está acompanhado) Uma mulher tira foto do túnel, tira foto da Patrícia Roncos de motor de moto. Turbinas exaustoras parecem estar desligadas, hoje o som do túnel já não parece tão ensurdecedor neste início (se comparado à primeira visita há 2 anos para realização da intervenção CidadeFormigueiro) Pessoas descem do ônibus, menina cabelos lisos pretos, franja, vestidinho roxo olha. Moço passa, nos olhamos, ele acena com a cabeça Moço mal-dormido vem, olha Patrícia, olha-me e a escada e dá meia volta. 9:48 -buzina... -cantar de pneus -som de fundo constante, um ronco de ar. Ele (funcionário da prefeitura) quer ver o que anotamos, volta com pedaços de madeira para a escada. O outro, instantes depois também. Faróis acesos, faróis desligados. Caminhão, um me observa, outro toma água da garrafa térmica (quanto tempo de jornada já? deles) Ônibus de luzes apagadas. Princesa Isabel Caminhão de papelão da prefeitura. Olhares que olham demorados ou breves, olhares que seguem. Moto olha brevemente e se distrai no trânsito. O que achamos, o que estamos buscando? Uma mão no recorte da janela de vidro, outra mão de trás no ombro do motorista. Outra mão olha as horas. Outra mão alisa o cimento. Outra mão limpa a remela. Eu bocejo. Quadrado da escada, buraco, cova, quarto escuro, sossego. 2a foto de flash que tiram da Patrícia- túnel (agora da janela do teto do carro). Túnel atravessar-se, deixar-se atravessar. Corrijo a postura. Parar 16:30- dar instruções para o dia seguinte. 2o ônibus luzes apagadas. Olhares que buscam de táxis. Barulho alto de madeira Vidro do carro com pano. O ônibus vai, o olhar se vira e busca ficar desvendando essa presença. Qual o seu/nosso contexto. Pessoas num túnel que anotam. Mãos cruzadas para trás que observam. Ela bebe água 10:00h Campanhas de prefeitura. Carros com adesivos personalizados, caixas de som, bandeiras.

210


Olhos que observam (casal) e apontam, como que conversando, criando teorias. Ela engole e passa mãos no cabelo. Carro, moto, ônibus, ônibus de viagem, topic, caminhão, Ela muda a posição de sentada, sobre os joelhos. Uma pergunta a outra Por que? O que será? Com as mãos Performar também é permanência, estar, presença, não necessita um algo a mais a se impor, muito mais a observar, a perceber. Pois é natural da relação intersubjetiva, do ser humano, buscar, atribuir sentido, se relacionar, trocar. Eu levantei o rosto de repente para observar e vi olhares atentos do táxi (6-2 crianças) pularem junto com minha levantada de cabeça. Assobio para distrair, acompanhar, passar o tempo. Buzina, buzina (notas musicais- pã, pin, buzina que emite som de risada), pin, pin, pin, sinaleiras, piscas, pedir passagem Olho (que busca algo para distrair no meio da mesmice)-seguir-pedir para seguir (buzina/sinaleira) “Risada”(buzina que emite som de risada) novamente- ainda preso no túnel depois de vermos tanta fluência, tantos carros passarem?- Intervenção no trânsito, não usual, torna lúdica a relação interjeição de cansaço âââi som de fundo retorna a percepção. Corrente de ar constantemente arrastando cabelos. Bocejo meu, dela. Abre vidro para olhar, só mulheres, comentam. Não dá para ouvir distinguir as conversas diante dos barulhos Ficar parado diante do movimento parece pedir movimento. Correr. Habitar. Ele olhou para ela, para mim, subiu, hesitou, olhar de novo, olhou, eu estava encarando outros, ele achando que fosse ele desviou e seguiu. Som alto do carro. Vidros abertos, vidros fechados. Senhora-ônibus, pressa, gorda, boa forma física, sobe ágil as escadas. Outro que passa e acena. Senhor que observa o serviço sendo feito. Cansada, mexe pezinhos. Ronco bem alto de moto. -Bom dia. Entrou no buraco da escada. Falou com o outro. Negro, cabelo curto, dentes bons, cigarro na mão. -Pra cá caralho! -Sumiu lá dentro. Mundo sub-sub-terrâneo. A veia da veia. O buraco do buraco. Dentro da escada, no túnel. Repente do trabalhador. 2a hora: 2o ponto de vista (10:21-11:21) próximo a entrada do túnel. Sentado (avistando o dentro- de costas para o fora) Ela na outra extremidade em pé. -3 turbinas exaustoras- como canhões, atiradores de mísseis. Concreto, borracha, poeira, folhas, cinza, infiltração, mofo, rastros deixados pela água, teto sanfonado, listras de tinta branca- demarcação de trânsito. Várias bolinhas azuis, textura do cimento no chão

211


Buzina/motor/buzina/motor Coluna (vertebral) Será que pensam na figura do estudante estudando em lugar adverso? Alguém gravando-me gravando o trânsito Descompressão do ônibus/caminhão (2 vezes) um alívio, um descanso Ele olha, eu olho, eu desvio, ele desvia Limpo X Sujo. Carro limpo, carro sujo. Rádio alto de carro. Alerta de luz alta Sinfonia de buzinas de motos e caminhão (2) e de carros. Buzina de festa (pensei como intervenção até ela se esgotar, várias) na 25 de Março. Guarda municipal- alguns, 20 mins. atrás. Carro batido, amassado, riscado, arranhado, vidro riscado, fumaça do escapamento. Máscara de respiro Laranja no túnel chama atenção Barulho/ sujeira/chamar atenção (luz, cor, som)/ mal-cheiro/claro x escuro Ronco da moto como alerta sonoro, imposição, estabelecer seu espaço (luz, ou buzina) Máscara, lanterna, buzina, mp3 Lixeiros passaram e riram na caçamba do caminhão de lixo Motor da moto falhando dando estalos altos Propaganda política associada ao facebook (rede social na internet)  Carlos Funakipolítica e mercado ferramentas da publicidade, do marketing, lucroentretenimento e a mudança social onde fica? É preciso estar atento e forte. Abrir os olhos Lixo Som alto do rádio Ambulância Ela em pé, sentada, em pé Que noção possível de passagem de tempo é essa? Como se dá? Pelo ritmo dos carros? Pois aqui é como se fosse um tempo em que eventos diferentes ocorrem, mas se repetem, como se o tempo fosse “igual” o tempo todo, não passasse pois perde-se parcialmente a noção das horas, de claro de escuro, pois internamente a veia, via, é de uma cor só. A não ser pelas horas vistas no relógio e as luzes do dia nos fins visíveis do túnel. Um constante fluir, fluir, fluir, que estado de (im)permanência é esse? Nós que permanecemos, é possível permanecer ou divagar, filosofar, como se dá essa imersão? Corporalmente sinto de fato uma variação nos níveis de atenção, permaneço de diferentes formas, habito. O tempo simplesmente passa e esse extra... Caos de buzinas algum não fluir ocorre. Atrapalha-se o fluxo, severa punição sonora público-privada ...já me começa a ser confortável, aceitável, familiar, não incômodo, consigo já em pouco tempo relaxar. Diferente da outra experiência vivida neste mesmo lugar. Tenho uma impressão de ser-me já intimo, cúmplice, familiar deste “entre-lugar”. É preciso distinguir as noções de entre-lugar para meu trabalho e outra noção possível apresentada por Renato (Ferracini) e Patrícia (Bispo) Quantidade interminável de rodas, carros, pessoas. Nesta 2ª hora aparentam mais buzinas, mais próximo do atraso, do compromisso, da hora estipulada ou biológica da fome, do almoço, da pausa, esperada pausa no fluxo, já também bem contada, cronometrada, regulada, sem sesta, sem os seus, sem parar, sem poder parar o fluxo do dinheiro. Nesta segunda hora filosofo mais e observo menos com os olhos, mas com o corpo. Sinto-me meio lesado, anestesiado pelos sons, mas não dói. Mais alguém gravando(me?) o fluxo.

212


Outro que aponta. Placas de trânsito (É proibido estacionar/parada de ônibus) japoneses. Observam cautelosos, curiosos, preocupados. -super possível morar na rua. Mesmo ganhando dinheiro. “Meu pedaço de chão” Reboque/Sabesp Fluxo começa a emperrar.11:12 saco de lixo na pista lembrei da capinha de iPhone na pista (trafegando de carro pela Av. Vital Brasil a caminho do experimento avistei uma capinha de iPhone no asfalto). E se tivesse notas de 100 reais na pista? Pararia o fluxo? (fluxo e anti-fluxo, o próprio movedor, o dinheiro, pode ser o que paralisa ou atrapalha o fluxo). Dinheiro na pista 3ª hora escolher fluir constante ou ponto de vista 11:21-12:21 Mais um aceno. (Antes um mendigo próximo onde Patrícia observava no 2º ponto, próximo a saída do túnel) Alguém grita falando comigo Eu do outro lado da pista, na vala, de frente para a entrada do túnel. Dirigindo rápido e falando no celular. Lixo. Som alto funk. Patrícia: fluir constante, buscar que velocidade é essa necessária para fluir constante, observar e anotar.) Vem olhando de longe e ao passar olha nos olhos. Outro desacelera revelando preocupação. Alguém que dorme no carro enquanto alguém dirige. Acena. Buzina: Respostas a “Pra onde você vai?” Que sibilo entre os lábios Tornar-se visto através de um desenho simples, cotidiano do corpo, do olho. Eu no reflexo do carro. Olhou enquanto fechava o vidro. 3 cantadas de pneu. -Pra onde você vai? Olhar para o início e o fim do túnel virando cabeça. Olhar nos olhos dos motoristas com semblante sério, triste - Aonde você quer chegar? Som alto-balada eletrônica -Para onde você vai? -Center Norte. Para São José, quer carona? 3 vezes pergunto, só acena Preto, Branco, Cinza, Vermelho, Azul, Vermelho, Cinza, Branco 11:49 C, P, P, P, C, P, C, C, P, P, C, C, B, C, C, C, P, C, C, C, P, C, P, C, C, C, C, VERDE, P, C, V, B, B, B, ROXO, P, B, C, V, C, P, B, P, V, V, B, P, P, C, C, AZUL, C, B, P, C, C, B, C, C, AZUL, C, C, C, C, C, C, P, B, C, C, P, P, C, V, B, P, V, C, C, B, P, V, P, B, VERDE, P, C, C, C, P, P, C, A, P, P, C, C, VERDE, C, C, C, P, C, C, P, P, P, C, V, C, P, AZUL, AZUL, P, C, VERDE MUSGO, DOURADO, B, C, AZUL, P, C, P, V, C, C, C, C, B, C, C, C, B, C, C, B, V, C, B, VERDE, P, C, C, C, AZUL, C, P, C, V, B, AZUL, C, B, C, C, C, C, B, P, C, C, P, C, C, C, B, B, B, P, AZUL, P, C, B, B, C, C, P, P, V, C, P, C, B, C, P, B, A, C, A, AZUL, C, B, B, P, P, C, C, C, P, C, C, C, P, C, C, B, B, C COM MEDO DE OLHAR ELE AZUL, C, C, B, C, P, AZUL, C, P, P, VERDE, V, C, B, C, C, V (SOM ALTO), C (SOM ALTO AXÉ), B, P, C, P, C, B, B, B, B, VERDE, C, P, P, C, AZUL, P, P, P, P, AZUL, C, C, P, C, C, B, C, P,

213


C, C, C, DOURADO, B, VINHO, P, P, C, P, P, AZUL, C, C, C, P, P, C, C, V, C, P, P, C, C, V, C, P, P, C, C, P, BEGE, C, C, P, P, B, C, P, C, P, AZUL, P, C, C, SOM ALTO RELIGIOSO, B, V, C, C, V, P, P, VERDE MUSGO, C, B, B, C, C, C 12:04-12:18 São Paulo, São Paulo, Jambeiro, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Campinas, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Santos, São Paulo, Belém, Angra dos Reis, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Sorocaba, São Paulo, São Paulo, Florianópolis, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Rio de Janeiro, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Belo Horizonte, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo SOM ALTO RAP Guarulhos, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São José dos Campos, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, sem graça, sorriu, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Recife, São Paulo, São Paulo, Guarulhos, Hortolândia, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São José dos Campos, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Acarei, São Paulo, Guarulhos, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, SOM ALTO SERTANEJO, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, DOR (placa de carro), São Bernardo do Campo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Rio de Janeiro, Sorocaba, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Diadema, Maringá, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo está fazendo estatística? São Bernardo do Campo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Itatiba, São Paulo, Diadema, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Guarulhos, São Paulo, São Paulo, Registro, PR- Arapongas, São Paulo, Guarulhos, São Paulo, São Paulo, Ponte Alto, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Guarulhos, São Paulo, Mogi das Cruzes, Jundiaí, São Paulo, São Paulo, São Paulo, FUN, GOL (PLACAS), São Paulo, São Paulo, São Paulo, Campo Grande-MG, São Paulo, Guarulhos, Mogi das Cruzes, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Guarulhos, São Paulo, One Direction- SOM ALTO (POP), São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Cotia, São Paulo, Rio de Janeiro, São Paulo, Itajaí, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, São Paulo, Campinas, São Paulo, São Paulo, com medo estranhamento, Curitiba Vãos no teto e no chão aberturas que revelam outras camadas. 12:21-13:21 4a hora: ele dormindo no vão da escada vejo braço. Outro ele próximo à saída do túnel deitado eu estou gravando, também deitado. Ele me observa desconfiado tenho medo de gravá-lo e sua reação mas continuo, respiração ofegante, cocô, calção, lixo, mosquito, cigarro, isqueiro, sacolas, isqueiro, carteira de cigarro, manta, eu vontade de fazer xixi, leds fortes no rosto, linhas, ângulos, retas, seguir, seguir. Patrícia na metade do percurso não aguenta mais, já não vê mais nada, ultrapassar o limite “tudo” que já observou. Ele se levanta e vem e minha direção, “vai embora” com sua mochila. Capturar mais detalhes. Correria da vida X sensação de perda de tempo. Habitar o vazio, o nada, a imobilidade e o cheiro de cocô. O lixo parado os carros que seguem. Só os carros que seguem o tempo inteiro, paisagem contínua velocidade imóvel quais os limites de cada lugar. Posso me aproximar da casa dele? As minúsculas e pequenas imperfeições na estrutura. “Céu”=Teto Vermelho caixa de força com luz vermelha fios que alimentam leds parede cinza, bege, preto, marrom, amarelo, pixação tinta desencapada, tinta demão antiga, demão nova de tinta.

214


Buzina. Sono, anestesia, desligamento, cochilo, dispersão. “Nada” acontece. -Atravessar de um lado para outro. Ou parar no meio da pista. -Limpar varrer o lugar, lavar. -visível, invisível.(pneu no asfalto, buraco no chão, toupeira (expedição, capacete, escavação tesoura) buscar capturar reação das pessoas o que você vê? Qual impacto de sua ação estabelecido no uso, funcionamento do espaço? Em que planos ocorre o estabelecimento de relações intersubjetivas? Há a possibilidade de relação? Efêmero, breve ou longo? Uma faixa: para onde você vai? Aonde você quer chegar? Cruz ou pássaro? no teto. Jornal, carteira de cigarro, água empoçada, fundir-se ao espaço, sumir. -Os que moram ou ficam aqui a polícia não os tira pois repousam, não atrapalham a ordem, o fluxo, não representam risco. A arte já tem maiores dificuldades de habitar, acontecer, permanecer aqui pois, em algum grau, compromete-se o fluxo, fere-se a ordem, representa risco. 13:09- Pati- limite 4 hrs. Pão, papelão, brinco

215


Protocolo Observacional respondido por Otávio Oscar após realizar Observação Imersiva das ações artístico-performáticas do Experimento 1-Via pública: Ir e vir - Pelo direito inalienável de parar e Silêncio ensurdecedor - Buzina até gastar/para gastar a buzina. Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais as formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as pessoas neste mesmo espaço? O túnel é um território de passagem, para uso quase que exclusivo dos automóveis e ônibus. A relação das pessoas com o espaço, no geral, é apenas olhá-lo e senti-lo (visto que é praticamente um “buraco escuro” no meio do caminho). Há um ponto de ônibus na calçada do túnel, o que permite uma pequena e rápida circulação de pedestres. Aparentemente, quem desce do ônibus não quer ficar muito tempo ali, o ambiente sinaliza hostilidade por ser muito barulhento, escuro e deserto. No tempo em que ficamos por lá, praticamente ninguém desceu para esperar algum ônibus naquele ponto. A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou de mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos? As duas performances realizadas estavam dentro desses dois conceitos. Eles não se configuravam ações espetaculares, mas sim sutis, acredito que, no primeiro experimento, poucas pessoas tenham reparado nas notas de dinheiro no meio da pista e acredito que quase nenhuma interpretou o ato como artístico. De qualquer forma, em nenhuma das duas houve um interesse dos transeuntes em “fruir” a ação. Apesar de chamar um pouco de atenção, todos passavam e apenas dirigiam o olhar no tempo em que seus automóveis ou o seu ritmo de caminhada permitia. Nos dois casos, a ação era uma só e se repetia do início ao fim, com poucas alterações. Essas alterações apenas aconteciam quando algo não planejado ocorria, como quando, no primeiro experimento, houve um pequeno engarrafamento e o performer foi ameaçado por alguns motoristas nervosos. A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por que aspectos?

216


Acho difícil falar em coerência ao se tratar de performance. Eu diria que a proposição foi mais “controversa” do que “coerente”. Digo isso pois me questiono sobre a “eficiência” da performance naquele espaço. A maioria das pessoas não observava o gesto como artístico e não entendia o caráter do acontecimento. No primeiro momento, o que os motoristas e passageiros viam era apenas uma pessoa corajosa que ousava atravessar a rua com todo aquele fluxo. Aquilo era perigoso não só para o performer, mas também para os motoristas, pois atropelar alguém é crime e pode acabar em prisão. Esse risco para ambos os lados é interessante do ponto de vista da linguagem, mas eu tive a impressão de que apenas a primeira camada, a mais imediata, era percebida pelo “público”, logo eles aparentemente encaravam aquilo do ponto de vista do que se entende por “vida real” e o enquadramento estético da coisa se perdeu. Os únicos espectadores que poderiam, talvez, ver a ação através de um enquadramento seriam os pedestres, mas esses não tinham vontade de parar para fruir – o espaço não é convidativo. Logo, acho controverso que se apresente uma performance que ninguém vai ver, ainda por cima com tal grau de risco. Mas, ao mesmo tempo, muitas obras performativas de grande impacto também eram “invisíveis” ao público, e apenas o registro, a lembrança ou o relato delas é que se dão a ver ao público como arte. Isso questiona bastante o que pode ser considerado arte ou não e é muito difícil estabelecer critérios para isso – talvez nem se deva. Por isso, acho controverso. Que impacto psicofísico essas ações/imagens geram nas pessoas? Que fruição as pessoas têm com/sobre o visto/vivido? (se possível interpele-as) A sensação de risco era a mais forte de todas as sensações. Isso era interessante, pois dirigir um automóvel é algo realmente muito violento, principalmente pela possibilidade de um pedaço gigante de metal atingir um frágil corpo humano em alta velocidade. Isso trazia à tona a fragilidade do humano perante uma criação própria. É engraçado pensar na idolatria da máquina em contraposição á sua possibilidade de destruição da vida humana. Mesmo num objeto aparentemente tão cotidiano e banal quanto um carro. Outro impacto, bem mais forte eu diria, era a curiosidade. Esta movia os transeuntes de forma quase visceral. Poucos se continham diante do ímpeto da vontade de olhar para entender. Isso me faz pensar sobre a necessidade do ser humano de buscar o entendimento racional, mesmo que seja um entendimento um tanto burro, as pessoas querem pelo menos seguir confortáveis acreditando que a metrópole é explicável. Mas o próprio fluxo não

217


permite esse entendimento, e todos são vitimados por ele. Qualquer motorista que parasse sofreria consequências violentas, fossem elas materiais ou sonoras. No caso das notas no asfalto, acho que os motoristas que temiam atropelar o performer ficavam nervosas e irritadas, não é fácil lidar com a ideia de estar a um passo de acabar com uma vida humana de forma assim tão crua. Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo? A primeira performance tinha um impacto forte no fluxo de automóveis, em muitos momentos os motoristas tinham que desacelerar ou parar. Houve até pequenos congestionamentos. A performance como um todo foi muito tensa nesse sentido. Os carros em fluxo são objetos perigosíssimos. Eu mesmo, observando, fiquei bastante nervoso e não via a hora de acabar. Até tive mesmo vontade de interromper. Não é fácil lidar com o fato de que o seu amigo pode morrer ou se machucar na sua frente sem que você tome uma atitude para reprimir a periculosidade da ação dele. Entretanto, o performer apresentou uma intimidade grande com o fluxo daquele trecho, parecia até tecnicamente preparado para a ação (é legal para pensar a questão da preparação na performance). Isso fazia com que ele, na maior parte do tempo, estivesse plenamente inserido no fluxo, sem atrapalhar nada. Esse domínio da espacialidade e do movimento era bem interessante de fruir. Por outro lado, a segunda performance não interrompia em nada o fluxo, ela era estática e estava fora de qualquer fluxo. Logo pode-se dizer que estava alheia à ele, apesar de estar em relação o tempo todo, ela não provocava alterações. Os sinais luminosos e sonoros emitidos não eram fortes o suficiente para se sobrepor à sobrecarga de estímulo aos quais os motoristas de São Paulo já estão acostumados. É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria um “estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do performer? Talvez o estado de concentração. No primeiro experimento, concentração para não errar os “timings” de atravessar a rua e grudar as notas no asfalto. Qualquer erro poderia ser fatal e isso obviamente altera o corpo, é preciso lutar contra todo o “stress” que o rodeia. No segundo experimento a concentração era para se manter parado e repetindo as ações de emitir luz e som. Isso parece fácil, mas acredito que não seja. Em determinado

218


momento eu tive que sair pois a poluição do ar e sonora foi muito intensa e eu precisava de um pouco de ar, sol e menos barulho. Se a resistência do corpo pode ser encarada como um estado psicofísico alterado, então ela também esteve presente e pode ser apontada. Como ocorre, ou o que salta como visível ou invisível? Pra mim tudo pareceu muito invisível, não do ponto de vista sensorial, mas do ponto de vista da leitura do acontecimento. Do ponto de vista sensorial, imediato, a primeira ação era muito visível, até demais: não é possível para um motorista ignorar o corpo que está na sua frente enquanto ele se encaminha em alta velocidade em direção a ele, isso é diferente da invisibilidade viável de um mendigo que apenas está jogado em algum canto, ao qual você pode facilmente desviar. Já a segunda ação movia apenas a curiosidade e nada mais, parecia mesmo um mendigo jogado num canto, mas ao mesmo tempo, como não era, gerava curiosidade e atraía os olhares. Entretanto continuou invisível do ponto de vista estético.

219


Observação Imersiva do Experimento 2: Patrimônio Público - Theatro Mvnicipal Lucas Paz através de método de Escrita em Fluxo Contínuo de Pensamento a partir de diálogos travados com passantes (primeiro senhor não identificado, sentado às escadas do teatro municipal, à espera do horário para negociação sobre um imóvel, segundo senhor, morador de rua, de nome João Alfredo Godry): 11.10.12 Experimento IC A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples 9:36- o primeiro sentado nas escadas já saiu. O outro como eu se entretém com os pombos. O monumento de tapete vermelho já é palco de fotos, o que as paredes guardam? “a ação mora na inação, há ação na inação” imobilidade e o que se leva no papel fotográfico? De repente um amontoado à minha direita de fotógrafos amadores e de “especialistas” (amadores) que atentamente analisam detalhes da estrutura. Dir-se-ia ainda silencioso e calmo. Nublado. Tranquilo. Mas com ruídos buzinas, skates, motos, ônibus. Já conversas sobre o futebol. Moradores da rua. Ele, o teatro, fechado. Fachada, suas escadarias são palco para espera do tempo passar, da vida começar, da conversa corriqueira, de olhos curiosos. Vermelho e bege (cinza): janelas do shopping light, ciclo faixa, tapete vermelho, ônibus, carros, placas, sinal de pedestres, sinal de carro. Luzes do carro da guarda municipal. Camisas vermelhas. Bege: estrutura: prédios no entorno, Casas Bahia, Shopping Light, Itaú, escritórios, Vale do Anhangabaú, fórum. 6hrs. de jornada de trabalho. O movimento se intensifica mais para as 11 hrs. O expediente incia 1h da tarde... (o que são aqueles? com aquelas plaquinhas? São cientistas. Estudaram. Falam do ser humano, dos planetas.) ... artistas de rua começam também pegando a saída do horário do almoço. Antes não por causa dos fiscais da prefeitura. O pessoal para para ouvir o forró e perde o expediente. “Eles aprendem por si só” morador de rua homossexual se olhando no espelho do teatro. Sai falando sozinho, eu o miro e ele corresponde começa a balbuciar em mudo falando comigo querendo me despertar a curiosidade para o que esta falando e segue rebolando. Outro joga papel fora. Mais sentados nas escadas, o que fazem, o que esperam? Quem esperam? Homens-pombos... começa a chuviscar O teatro já abriu, mas fora é onde está o espetáculo. Homens fortes e bravos sustentam a estrutura. De onde vem isso? Sempre assim. Mulheres lindas nas bases das luzes (postes) e nos altos do prédio. Máscaras acima delas do antigo teatro grego com suas bocarras abertas. Pausa para lanche. Suco desintoxicante (abacaxi, gengibre, limão). Pão de queijo. 2a hora Lado esquerdo do teatro: ponto de ônibus Conversas, fofocas sobre choro e dinheiro e reclamação (as três associadas) Mendigos “estacionados “ “Fantasmas” nas janelas do teatro Pessoas que aparecem para tomar um ar, café 3a hora João Alfredo Godry (habitante do espaço público, morador de rua) Bengala

220


Bebendo cachaça Agora com problema da vista (fez gesto de bebida “sem nem perceber”) Restaurador (vitral, móveis), jardineiro da prefeitura Por causa da vista não consegue trabalhar mais Teatro Municipal, Ramos de Azevedo 1512 Argila Portugal / vitral Alemanha Submerso quatro andares Túnel do Teatro até a prefeitura (carro sai no Anhangabaú) Cinquenta anos, Roberto Carlos saiu pela frente Conversa com Sr. João Alfredo, 60 anos morador de rua Albergue na Barra Funda, (já)15 dias (em) frente ao Municipal, Casas Bahia Cultura e religião eles não podem tirar!!! Tiram os camelôs passarela para pedestres – passarela fechada, muitas mortes, pessoas assassinadas, mesma passarela que (Teatro da) Vertigem usou Os artistas de rua cada um tem direito a duas horas, tocam, vendem seu CD. No Viaduto do Chá: macumba, búzios, cartas Mais arte fora do que dentro acontecendo, pulsando A maior população que temos em São Paulo é rato e barata! Sabiá e bem-te-vi naquela árvore, sabiá canta a noite inteira Depredação natural vento e mijo Estrutura do teatro argila João Alfredo “seu eu fosse cego eu não te via, se eu fosse surdo eu não te ouvia Canta, canta, meu sabiá Coloco a mão assim, mas é só pra fazer contato, o tato As músicas dos Beatles, Elvis, Creedence são tipo gospel, espiritual Sobre Jesus: se eu fosse seu pai, jamais eu deixaria machucarem você Quem senta nas escadas do teatro? Estudante lendo jornal, moradores de rua 12:49- fluxo já ficou mais concentrado “Não acredito em nada só no que pode ver e apalpar” Obediente a Deus – a seu consciente e subconsciente Você não consegue chegar perto do sol por que? E sem o sol você não vive Deus ninguém viu e quem viu foi fulminado Eu acredito no subconsciente porque existe a igreja Dinheiro dízimo Cantor/depois pregou a palavra Todo dia é isso dai – nóia pedra (casal brigando) Cachaça direto não posso parar senão dá revertério, falta oxigênio no sangue Mosca de boi – parasita- para ver se tem mais cachaça mais comida. Só encostam não têm ideia pra trocar, não têm ideia nenhuma, só mosca de boi, só falam abobrinha Mas porque condena eles? Eu não gosto que usa drogas, o álcool é liberado a pedra não é liberada. A maconha até que é medicinal. Oito subiram ou desceram AIDS, dois pneumonia, câncer (Vitorino Caminha, Santa Casa, Emilio Ribas) Pessoas me olhando conversando com mendigo.

221


Ir na prefeitura pegar licença (subprefeitura Sé) Recife, Bahia e Santa Catarina, gastar meu dinheiro mora na rua 15/30 dias O senhor hoje em dia é sozinho? (trabalhava na construção civil) Filha- 2 netos um homem e uma mulher, indústria de pescado com ele, alumínio (embalagem “marmitex”) Matou os caras que provocaram o acidente (de carro, morreu mulher e filho) Caminhoneiro acidente Chevette- mulher e filho Leonardo Matou um (com arma) e outro paraplégico, condenado 12 anos, ficou 6 meses, 5 balas, 6 balascaninho curto natal todo mundo me esperando 17 dias internado na UTI mandou filha 17 de novembro para SC 23 de dezembro natal todo mundo me esperando e eu não chego/e eu não chego/e eu não chego. chora, bebe cachaça falei de bobeira aquilo, mas acredito em Deus, mas tenho um anjo da guarda que esse me protege. Eu já vi ele em sonho, mas como eu queria conhecê-lo casal continua brigando ela pisando nele e ele dizendo pisa, pega no pau e mostra a bunda para seu João. É ladrão esse cara. Cláudio Gonçalves de Arouche- escreve aí 13:30- lotado de gente difícil trafegar, todos param para ouví-las, as 3 irmãs forrozeiras. O povo pisa no pé dele, ele fica infernizado, sai filho da puta, sai piranha “oh meu amado porque brigamos...” Uma roda muito grande de pessoas três dançando/ cinco dançando Ele: camisa Brooksfield, casaco de couro preto, calça verde, sapato marrom Muleta – bengala metal, papelão pra se sentar, boné Fluke Óculos da direita sem lente vai operar a vista depois de nove meses de espera no Hospital Monumento Estátua que conta a história Homem sozinho, sempre eu tô por aqui, cê vê como aqui é interessante, cada história 13:46 a chuva interrompeu o show de Daiane e Tatiane Dançando Michael Jackson, o tempo faz o show do artista da rua Guarda Municipal tira as pessoas do teatro, da porta, não pode , só nas escadas. Morador de rua – boca de rango. Eu não, tenho minhas atividades, gosto de andar... Assim que ajeitar minha vista volto a trabalhar Programação dos artistas de rua 13h- 18h acaba Evangélico/Forrozeiras Daiane e Tatiane/Filho de Chitãozinho e Xororó O beijo da moça (ele quer) GCM Guarda Cível Metropolitana Não pode ficar na porta do teatro é órgão público Seu João tentou retratar a fachada Fotografar os dois vitrais da direita Nomes dos vitrais: O beijo do homem aranha O corcunda de Notre-Dame – Ramos de Azevedo é foda O que o senhor imagina acontecendo de arte aqui ? Só motoqueiro, maloqueiro e cachaceiro Poste da Inglaterra deitado na escada Saía a Rainha de Portugal na sacada na lateral do teatro e acenava para o povo Ih tá molhando, vai apagar suas letras

222


Tapete vermelho – desenrola e deita numa das pontas Terminou 14:20 “ih olha o alemão conversando com o mendigo”

223


Protocolo Observacional respondido por Felipe Stocco (em entrevista gravada e transcrita) após realizar observação imersiva (de11h-12h) da ação artístico-performática: Tapete vermelho-patrimônio de poucos Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais as formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as pessoas neste mesmo espaço? Duas coisas muito óbvias: dois movimentos no espaço que um era em frente às Casas Bahia, que é uma região de mais sombra, de mais lojas, e em frente ao teatro, mesmo. Para mim tinha uma separação nítida entre o espaço. Mas o que caracteriza muito os dois: a região como um todo é de passagem, totalmente funcional (ir para empresa, para o banco, para algum órgão público ao qual eu pretendo usar, ou privado: as lojas, os shoppings). E não é um espaço de muito diálogo entre as pessoas, as pessoas ficam pouco tempo. É um espaço que geralmente acontece algumas performances seja pelos moradores de rua, seja por artistas mesmo, mas as pessoas não ficam muito lá. Elas vão ficar o tempo necessário, um tempo mínimo, eu acho, para elas sentirem, entenderem o que está acontecendo e irem embora. É esse o tempo que elas usam. Às vezes pedem explicações, às vezes não. Em frente ao teatro municipal, trata-se de um espaço mais turístico, as pessoas param, olham, tiram foto, entram e vão embora. As relações são meramente de curiosidade, elas não se estabelecem de forma profunda, não há um contato efetivo entre as pessoas, justamente é um tempo mínimo para entender o que está acontecendo e ir embora, sem me afetar. Tentar formular o que está acontecendo ali, entender, olhar, ver o que é, e pronto, ir embora, seguir caminho, isto em relação à ação performática e de maneira geral com relação a todo o resto, assim como o senhor que estava cantando Beatles ou qualquer outro evento ali. É o tempo mínimo de entender e voltar para o serviço, voltar para o espaço-tempo que cada um tem que seguir. Quanto às formas de utilização do espaço vejo passagem e entretenimento. Entretenimento pela loja, pelo teatro, pela própria rua histórica e pelas performances que vão acontecendo. Ademais isso, a passagem dos locais de trabalho. A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou de mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos?

224


Sim. De ação simples. Penso que é coerente com ação simples, com mínimo gesto não, pelo que entendo. Mínimo gesto é algo que quase seria imperceptível para as pessoas. Um mínimo gesto, não chega a se concretizar enquanto gesto. Como não estudei, não pesquisei, eu tenho uma sensação do que este termo me causa. Imagino que chega a acontecer só para a pessoa, talvez. Justamente aquele tempo mínimo que eu fico ali para entender a situação e ir embora, não importa o tempo do outro. Já a ação que você estava fazendo se desdobra mais enquanto ação simples. Porque é uma ação que chega com um entendimento, um vetor que extrapola o mínimo gesto, mas não chega ser algo que se propõe a ser super-chamativo, que tem uma mensagem sendo passada, penso que ela fica nessa barreira, por isso ação simples. Penso que o mínimo gesto estaria mais ligado a uma movimentação interna. Ou talvez não pois uma movimentação interna pressupõe uma demanda de energia que acho que não necessariamente estaria aí. A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por que aspectos? Penso que não. Penso que há uma tentativa, mas a realização deixa a desejar nesse sentido. Porque há um aspecto do chamar atenção na vestimenta que você usa e não na ação que você faz e isso distancia um pouco do espaço, da realidade do espaço, o que torna mais cênico do que performático, no meu ponto de vista. Mas acho que não se desdobra enquanto cena, porque você se propõe a ficar na ação simples. Fica algo um pouco descolado, vazio de significado. Não sei qual era a intenção da performance, não cheguei a vislumbrar sobre isso, não cheguei a uma conclusão sobre isso. Mas ela estava de fato descolada. Apontava talvez alguma crítica. Algo que não se desenvolvia enquanto cena, pois ficava na ação simples, então esse significado não chegava, não transbordava. Ficava na incógnita e parecia que era isso mesmo. Era só uma imagem. Por exemplo, acho que faz menção aos moradores de rua, mas não desenvolve essa questão (enquanto pesquisador acreditamos que nossas ações são gatilhos, fagulhas para a fruição, não respostas ou discursos fechados, de fato trabalhamos de início com a escolha de elementos, gestos ou ações que sejam símbolos os quais se abrem em camadas diversas para cada um para que, através do debate interno ou compartilhado, frua e desenvolva a proposição interventiva com o repertório que traz, oferecendo-me como troca inclusive uma

225


possível leitura que eu enquanto proponente não havia imaginado, percebido ou visto). Logo acho que não é coerente com espaço, porque não chega a ser funcional para as pessoas que estão ali. Ela fica uma imagem, mais um atrativo. Um atrativo que não dá nem catarse, nem outra coisa. Seria como colocar um outro objeto lá. Porque ela não se desenvolve enquanto cena, não chega a desenvolver um questionamento. Eu não via um questionamento a ser aprofundado. Nesse sentido é que acho que fica descolado. As pessoas não conseguem ler essa aproximação com os moradores de rua, por exemplo, principalmente por causa da situação cênica em si: um tapete vermelho, você vestido de vermelho, com uma roupa de rei, acho que fica “chapado’’, a questão fica chapada, não se aprofunda. Não sei quanto às conversas que você tem, pois durante a ação você conversa com as pessoas. Eu vislumbro como possibilidade de a questão ser desenvolvida, sem que as pessoas precisem chegar e pedir uma explicação (natural do ser humano pedir explicação sobre o que ele não entende em primeira instância, eu não quero estar lá para responder, para passar a mensagem) ou que você esteja mais aberto a essa explicação. Porque vira uma coisa bem pontual para algumas pessoas e é um espaço que demanda que você faça para todo mundo. Então o que fica para todo mundo é justamente a imagem do tapete vermelho e de você deitado. O que eu acho que dá bastante leitura, mas não desenvolve (no caso eu quero abrir em leituras, e não desenvolver “A Minha Leitura”, é uma forma de interferir para gerar trocas intersubjetivas, ouvir), fica apar da funcionalidade do espaço. Que impacto psicofísico essas ações/imagens geram nas pessoas? Que fruição as pessoas têm com/sobre o visto/vivido? (se possível interpele-as) Ou as pessoas iam perguntar a você o que estava acontecendo, ou elas passavam, tiravam uma foto, talvez, no máximo, que é a questão do tempo mínimo que eu fico para me satisfazer, para encontrar uma resposta, para consumir aquilo de certa forma. É o tempo que eu levo para consumir e ir embora. Para muitas pessoas: “o cara está ali deitado”, “bonito”, “fora do comum”. Não é um morador de rua, mas também não está desenvolvendo uma questão rara. Havia esse entre que não chegava a desenvolver o questionamento: era o tempo das pessoas consumirem e passarem. Nunca era o tempo de você, da sua proposição chegar. Sua proposição se limitava a isso as pessoas poderem ir ver e passar, ver e passar. Havia a possibilidade de entrar e conversar com você, mas eu sinto que não era isso que movimentava mesmo a coisa. Era mais a questão do consumo. Tiro uma foto ou faço algum comentário e vou embora. Percebi isso principalmente pelas pessoas que estavam sentadas perto de mim, o

226


foco não ficava, eu não percebia uma mudança nelas, pelo que você estava fazendo. Na relação de consumo eu percebo isso: as pessoas não se alteravam. Eu consumo sem alterar o que eu vivo, meu cotidiano, o que eu penso das coisas e vou embora. Por algum motivo consumiam, mas não tornavam aquilo experiência. Não se estabelecia. Acho que faltou alguma “coisinha” que gerasse: “o que este cara está fazendo?”, “quem é ele?”, “Por que ele está fazendo isso?” “Por que nesse espaço”. Penso que estes questionamentos não passavam na cabeça das pessoas, pelo menos das que eu conversei, das que eu percebi. Fiquei quieto, escrevendo minhas impressões e questões, e deixei eles que estavam sentados ali próximos falar, essa é a melhor forma de abordar as pessoas. As pessoas que tinham mais tempo para ficar ali que talvez pudessem ter alguma relação elas sentariam na escadaria do teatro ao invés de ficar no sol te olhando. Sentei ali e fiquei esperando. Automaticamente vieram algumas pessoas, sentaram do lado e começaram a comentar sobre o que estava acontecendo. Tive a oportunidade de chamar a atenção de dois e conversar com eles, mas muito pouco, o suficiente para deixar eles falarem. Justamente por isso acho que não teve tanto desenvolvimento porque eles falaram muito pouco, o questionamento era mínimo: é cena, é teatro. Mas o comentário não se desenvolvia, talvez por não ter essa relação de ação com as pessoas, de não ter uma reação as pessoas passando. Então não criava embate. Quando apareceu aquele moço também de vermelho, que entrou com o radinho, passou o protetor solar em você, ali começou a ter uma situação que gerava um questionamento maior: “Por que ele?” “Por que ele está fantasiado também”, “quem é ele?” “Será que o que está deitado é subjugado a ele que está passando por cima, subindo as escadas?” L- Achei bem interessante que ele resolveu passar por cima de mim e do tapete. O tapete é feito para isso né? Também um lugar de passagem F- Para as pessoas comuns, os passantes, estabelecia-se uma região de não passagem. Era algo muito chamativo, “não tocarei nisso”, era mais um elemento de distanciamento. A ação poderia ter algum envolvimento que fizesse as pessoas ficarem mais tranquilas para passar ali. L- Se aproximar dali. Interessante quando dizes que espera-se que se passe por cima do tapete, mas ele acabava virando um lugar para não passar mesmo, para ser visto, mas não... F- Fiquei pensando se sua ação não poderia ser a ação de ficar caminhando também no tapete. Subir escadas e descer escadas. Pudesse gerar um outro questionamento, um outro movimento. O tapete estendido e você deitado não dialogava tanto. Fiquei pensando em possíveis ações que pudessem acontecer ali. L- Mais alguma?

227


F- A mais clara para mim seria de caminhar no tapete. Pois o tapete estava ali como uma extensão sua, da maneira como estava. Então ninguém ia passar por ele. Como é que você enquanto propositor faz as pessoas se questionarem, entrarem, vivenciarem algo diferente (vivenciar por vivenciar algo diferente também não significa que isto as encaminhará a uma reflexão, vira entretenimento). Coloco aqui uma crítica minha com relação a performance frente à sociedade: está tudo tão “chapado”, estamos tão acostumados a ver “visualmente” que passamos pela experiência com “ah já conheço” e vamos embora, nem vivemos. L- É mais uma no meio de tantas F-Qualquer um tem experiências assim praticamente todos os dias, então passa. L- Algo inusitado ali acontecendo mas... F- Fico me perguntando em cidades do interior, em outras localidades, levar isso para outros lugares. São Paulo está socialmente tão marcada por isso. Por isso tem tantos teatros, performances indo para a periferia. Ainda existe a possibilidade de uma experiência que não seja já marcada, calejada por essa relação quase displicente, de não afetação, de não se colocar uma posição, de não defender um ponto de vista. A relação de consumo permite isso: você não tem que responder pelas suas ações. Posso chegar tirar uma foto ir embora. Então eu posso estender o tapete vermelho, ficar deitado (há de se fazer uma ressalva: foi solicitada uma autorização à administração do Theatro Mvnicipal para que essa ação fosse permitida) e às vezes estou sendo visto não como artista, como alguém que está criticando algo, que tem um ponto de vista sobre determinada situação social, mas que é isso, mais um aí, fica nesse lugar. Por isso a relação de passagem, a relação funcional. Que estudo, que tipo de questão eu quero desenvolver e como eu vou desenvolvê-la? Me levantou bastante questionamento essa ação, foi super importante ter visto. L- Com relação à relação estabelecida com o moço mascarado, me chamou atenção em estar fazendo, o fato de que quando ele passou por sobre mim, me atravessou de uma maneira que eu senti “Nossa!”. De alguma maneira ele estava lá fazendo parte do “espetáculo”, virou algo espetacular, de “chamar atenção”, mas para meu corpo foi quase uma agressão de fato, sentir aquela pessoa passando por cima de mim. Essa foi uma sensação despertada por esse acontecimento. F- Porque ele veio tão displicente, tão suave, num ritmo tão cotidiano, que atravessou mesmo você, era óbvio que você não esperava. Foi muito legal. Quebrou, furou. L- Ele ligou o radinho lá! F- “Cara estou aqui, estou chegando, eu sou assim”

228


L- Você viu a parte que ele deitou também? F- Sim, vi tudo até a hora que ele foi embora. L- Ele voltou depois F- Depois eu já não estava presente. Essa é outra questão, do tempo que você fica deitado, acho que precisaria ficar muito tempo deitado L- Muito mais tempo. F- Dias. Para surtir algum efeito assim. L- Para virar uma ruptura. F- Todo dia no mesmo horário. L- Virar uma rotina né? Dentro daquele lugar que a rotina é passar, aquele evento também virar uma rotina. F-

Exato. Aí eu acho que mudaria.

L- Que foi o que a Cris (Esteves) diretora do OPOVOEMPÉ falou também. Ela leu em algum lugar, não sei se o Paul Virilio, falando disso, de como essas tentativas de ruptura acabam virando em dado momento um... Se acontece um dia, dá-se um intervalo de dois dias, e acontece de novo, começa a ser identificada, depois absorvida, já não mais estranhada F-

Exatamente

L- Até o ponto que ela para de novo e volta a ganhar esse caráter de estranhamento. F- São Paulo de fato é uma cidade que para chegar necessariamente você tem que incorporar de certa forma, para daí poder britar L- Para ganhar alguma reverberação. F- Para as pessoas entenderem o jogo. As pessoas ali não tinham o jogo. Elas não sabiam quais eram as regras. Aí se você está lá todos os dias elas vão começar a estabelecer regras. L- A dona Milza, que foi uma das pessoas que pararam para conversar, perguntou se eu faria no dia seguinte: “Você vai estar amanhã aqui de novo?” F- Exatamente. Por que? Porque eu quero entender o jogo. Porque senão vira um jogo estranho. Não é? É super chato ver um jogo que você não entende as regras. L- Também pensando nas ações do grupo OPOVOEMPÉ. Aquele termo do André Carrera eu não sei agora aprofundar mas no ponto de vista que ele defende o teatro de invasão não se trataria de uma invasão do tipo “por fogo em tudo. E ao mesmo tempo lá no OPOVOEMPÉ elas discutem como pensar em ações que: vão ser vistas e não consideradas, não vão ser vistas, ou vão ser vistas e ser consideradas. E eu até ficava pensando quando ela (Cristiane) me falou isso: “Eu acho que essa ação do Mvnicipal de estender o tapete realmente

229


é muito invasiva em algum grau. Será que eu não estou invadindo demais, forçando, impondo?” Por outro lado elas falam em imantação: uma ação que não força você a participar, não é uma interferência que te obriga a ter que se relacionar com ela. Ela abre um campo, se você entra nesse campo, talvez aconteça um jogo. No meu entendimento sobre a ação no Mvnicipal foi isso, algumas pessoas, eu não sei até que ponto você ficou observando, mas algumas pessoas acabaram criando alguma relação ali. O meu temor era de eu ser a pessoa que aborda, de eu ficar trazendo as questões e isso talvez afastar mais (até porque a “estatuaviva” é parada, tem algum atrativo, mas a curiosidade das pessoas é que faz elas se chegarem e criarem relação. A estátua se move quando percebe a abertura de quem joga à participação) do que se eu estivesse simplesmente ali deitado esperando um encontro. F- Mas aí precisa de um tapete vermelho? E estar vestido de vermelho? Qual elemento seria de atração. Concordo que tenha que ter um elemento de atração. Mas que elemento é esse então? Será que a própria ação não poderia ser? Com uma roupa cotidiana? E, por exemplo, a ação de subir e descer escadas, subir e descer escadas, subir e descer escadas... Que tipo de ação, qual ação causaria essa imantação, esse campo magnético? Essa é a questão. Porque acho que não era nem invasivo, nem o oposto. Só passou por ali, um dia. Eu entendo essa questão de “por que eu gerar as questões” (sim, eu quem gerarei parte das questões, mas primeiro dando abertura para que elas sejam geradas justamente em jogo, quando o jogo se instaura), é você o propositor delas. É justamente como criar o espaço para que as pessoas se sintam a vontade para questionar o que eu estou fazendo. A questão é justamente essa. Pois na relação de consumo a questão é você não questionar, e passar e ir embora. Vejo, assisto, beleza, é um grande ator, é um grande teatro, mas vou embora e não me alterei. Essa é a questão que ficou mais forte. Uma questão que todo artista deveria ter: como criar esse espaço de diálogo. Que não é: “Oi como está você?” Que é uma relação que instiga as pessoas a estarem ali. Não consigo, eu preciso parar e ver, é uma necessidade. Não é uma opção. Deveria ser uma necessidade para você, talvez, enquanto propositor. Não é uma opção vir tal dia, não, você precisa estar lá em tal dia, nesse horário, é criar problema para você não ser mais um, qualquer um, ser você. Qual é a sua necessidade. L- A minha ou a do público? F- A sua. Porque a do público cada um sabe que tem a sua. Mas qual é a sua para não ser qualquer um ali. Como você faz que aquilo não seja uma opção, que aquilo não seja só um dia que você marcou para as pessoas verem consumirem e irem embora. Qual é a real necessidade de fazer isso? Esse é o meu questionamento: qual é a real necessidade de fazer isso? O que você quer com isso? Quem você quer atingir? Não sabe se quer atingir alguém,

230


mas trocar com qualquer um que seja. Precisa dizer isso, precisa, é necessário. E como deixar claro essa urgência para as pessoas (acredito que é algo pulsante, vital, mas menos messiânico, é apenas a urgência de tornar a arte mais presente na vida das pessoas, não de forçar as pessoas a meus pontos de vista e mensagens salvadoras) porque senão não se estabelece. A relação de consumo está tão friccionada que não se estabelece. As pessoas só vão a igreja quando elas precisam ou porque é corriqueiro. Por que tem outras necessidades: pagar promessa, “preciso ver aquela mulher”, “preciso encontrar aquele homem”, é o tipo de gente que eu quero estar perto. É por isso que as pessoas vão na igreja, não é para qualquer outra coisa. Ou são muito beatas e acreditam que estão fazendo um favor. Não, a religião tem que estar no cotidiano. L- Fazer parte espiritualmente. Eu fico me perguntando como é que isso pode acontecer com a arte. F- Tem de ser uma necessidade, senão por que a gente faz? Escolhi ser ator a ser engenheiro? L- Esse questionamento, pensando em tudo isso que você falou, nessa relação de consumo com as coisas de hoje em dia. Se apresenta pra mim como se não fosse mais uma necessidade da humanidade de maneira geral, senão dos artistas, que vão ver os artistas, que escolhem ir ver os artistas. No meu ponto de vista a arte já não está mais presente de maneira cotidiana. Já não se apresenta como uma necessidade. Eu venho pensando sobre isso, e quando você falou da questão da igreja, eu fiquei pensando numa relação de consumo, de status. “Ah eu vou assistir o Bob Wilson” “Ao final vou aplaudir muito e gritar bravo”. F- São situações que sempre vão acontecer, mas para o Bob Wilson é extremamente necessário fazer o que ele faz, por isso chama tanta atenção, que todo mundo vai ver (Quem estaria entre esse todo mundo? Vejo uma limitação de acesso bastante grande –público de artistas, celebridades e intelectuais em sua maioria-, não necessariamente pelo valor do evento, mas por uma questão de formação cultural e indústria cultural também. E onde fica a questão tão apontada do consumo?). Pelo menos a peça que eu vi. Não vi outras, não vi todas. A que eu vi, era necessário! A Lulu. Era necessário ele encontrar o Lou Reed e produzir aquilo, era urgente, era preciso, não era uma situação corriqueira. Não é que peça eu vou fazer agora. Tem um lugar aqui, algo que precisa ser dito. L- Eu achei bem semelhante com os outros trabalhos dele. F- Eu não conheço muito. Pode ser, pode não ser. E a relação de consumo se estabelece não só por ele, pelas pessoas que estão lá também. Tem tietes, tem o nome dele, tem várias maneiras de se consumir, mas para ele é extremamente necessário. O que não importa o quão

231


consumidor eu sou ali. Porque é necessário. Diferente da sua ação, por exemplo, que ali me importava e me preocupava. Você se coloca num espaço aberto e vulnerável, podendo ser assaltado. E aí qual a real necessidade? Num ponto de vista positivo. O quanto você tem que defender aquilo? Para justamente não ser assaltado... tem várias questões, são milhares de variantes. Faltou alguma coisa. Que envolve todas esses quesitos: que tipo de ação, o que é necessário, o que eu estou vestindo, que espaço é esse, como é, que relações? Sabe essas perguntas balizadoras que você fez dão um caminho para isso, mas a realização faltou nesse sentido. Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo? Todas as respostas foram nesse sentido da relação de consumo. Ela não alterava nem se fundia necessariamente. Era mais uma ali. Justamente por não alterar, não estar imbricada ali, não havia uma real necessidade de ver, e parar, e contemplar, e dar o tempo da ação acontecer, e não o tempo de eu passar e consumir e ir embora. L- Mas a ação que acontecia era eu deitado. F- Sim, era você deitado, um cara deitado. Eu ouvi muito: “ah é um cara deitado, de vermelho, com um tapete” (o ser humano quer, precisa de explicações, dar sentido às coisas. A forma de atribuir sentido, achar a resposta mais imediata, é em primeira instância nomear, identificar elementos, sem associá-los. Seria possível imaginar que após a primeira impressão, associação, formem-se outras possíveis combinações através de novas tentativas de ligação entre os símbolos martelando na mente? Não estamos falando de um mero “impacto imediato”, mas uma imagem ou ação simples potente que fique martelando na memória. Não estamos falando de grandes transformações aparentes, mas microtransformações perceptivas e sensíveis nas formas de enxergar o mundo) “Nossa que bonito esse tapete, essa imagem com o teatro, na entrada do teatro”. O que eu mais vi foi isso. E algumas pessoas que ficam mais tempo ali, pareciam que ficam mais tempo ali, vão conversar com você. Penso que se todo dia você estivesse ali, talvez pudesse... em função disso eu comecei a pensar em muitas outras coisas sobre o que poderia ser feito. É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria um “estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do performer?

232


Uma das coisas que eu senti falta com relação à necessidade talvez seja isso também. O estado talvez era um pouco indiferente. Justamente por a ação ser simples, o estado era indiferente, era corriqueiro, não era um estado alterado de percepção, da forma que eu estava vendo, é necessário dizer, porque às vezes para você, você estava hipersensível, mas isso não estava sendo passado, enquanto performer faltou isso, esse lugar da imantação. Esse estado que chamo de cênico, não de estado performativo, mas ele faltou, ou não se estabeleceu, faltou esse campo de imantação que faz as pessoas ficarem ali. L- E se revelava o que então? F- Se revelava mais esse estado da ação simples: “estou deitado aqui e ponto”. L- Mas seria algo mais cotidiano ou não? F- Talvez mais cotidiano, mas como a imagem não era cotidiana (é justamente essa contradição -cotidiano x não-cotidiano x extra-cotidiano; arte x não-arte- que me interessa). L- Pensa desde a preparação. F- Você se relacionava com a ação de forma corriqueira, de forma simples. O que eu acho interessante, só que faltava alguma coisa, que acho que é o estado cênico. No meu caso, no que eu estudo enquanto ator. O lugar de imantação é esse você atinge um lugar, o seu corpo está tão presente ali que as pessoas não conseguem simplesmente passar e ir embora. Muitas pessoas tem isso, muitos mendigos tem isso, que é uma relação de sobrevivência , atingir um estado de percepção tão grande que tudo pode acontecer, por mais que eu só esteja fazendo esta ação. Isso eu acho que faltou. L- Mas você me via de maneira como se eu estivesse fechado F- Não. Via você se relacionando, mas de forma cotidiana. Não era cotidiana... O que que é o estado cotidiano? O estado cotidiano também se altera. Eu via você se relacionar assim, corriqueiro, sabe, “estou aqui deitado...” L- Como estamos agora? F- A ponto de o moço passar por cima de você, gerar algo que talvez você não estivesse preparado. O estado cênico gera isso você fica preparado: O moço passou por cima e não foi nada demais... (mas não me cabia atuar. A minha reação veio de maneira espontânea em jogo, sem dúvida fui transformado, mas não havia um psicologismo da ação, e sim a ação, não um pressuposto de como eu deveria reagir de acordo com um subtexto ou a partir de determinada ação) ou foi um absurdo, ou sei lá o que poderia acontecer. Logo nesse sentido o moço passou e veio sua risada. Acho que sua risada denunciou para mim naquele momento algo que, um comentário, um julgamento seu com relação ao que ele estava fazendo, não importa que julgamento era, mas havia um julgamento, você não deixou isso de lado para

233


fazer a sua ação, e eu acho que isso foi um empecilho, talvez, para ela acontecer na sua potência total. Ela aconteceu mas poderia ter sido mais. Há muitas variantes, acho que essa é uma delas. L- De focar no aqui. Essa risada talvez não fizesse sentido naquele contexto é isso? F- É. Ela veio como uma surpresa. Não foi uma surpresa boa da ação. Foi uma surpresa que parecia que estava te atrapalhando “ah, não estava no script”, aconteceu um problema. Você continuar deitado e dar aquela risada. O fato de ele vir e passar, ele foi quem sustentou, ele estava num estado diferente. A ação dele que permitiu você se transformar. Ele transformou você. Nesse sentido foi bom ele ter aparecido. Eu percebi que você ficou mais relaxado, mais à vontade, porque ele estava à vontade e transmitiu isso para você. Não é que você estava fechado, mas você não liberou, não saia do seu cotidiano, do seu pensamento, do que você queria talvez com aquilo, para que a ação acontecesse. É muito difícil, esse é o trabalho do ator, performer. Quais mecanismos eu vou utilizar para que isso aconteça? L- Está revirando aqui minha cabeça. Como ocorre, ou o que salta como visível ou invisível? Isso não chegou a ficar claro para mim. Diante de tudo diante dos fluxos diante desse espaço funcional L- Não só a minha ação em relação ao perímetro daquele espaço, às pessoas que passam, mas as próprias ações que se dão ali. O que geralmente o olho vê e de repente o que te surpreendeu ver naquele lugar, que a princípio seria algo invisível. F- Por não ter acontecido de fato essa imantação. Não permitiu com que o invisível acontecesse. Com o que tivesse no subtexto acontecesse. Era mais “chapado” mesmo, claro só aquilo. Faltava algo que fosse realmente o transformador. Não desenvolveu isso para mim. L- Eu enquanto performer deveria clarear o que? O que você sugeriria? Pra mim é uma importante questão entender o que seria “estado cotidiano” e “estado performativo”. Se eu entendo que deveria se aproximar da vida, é confuso, mas teria que vir para o mais simples, é chegar lá e deitar. F- Para que aquele monte de roupa, se a proposta é uma ação simples e o mínimo gesto. Aí me reportava para a performance que você fez da mala (Necessidade X Supérfluo: supercidade, nãoseisefluo), aquilo se aproximava mais de um estranhamento através de uma ação simples, de um mínimo gesto enquanto resultado cênico que as pessoas viam. A resposta era a necessidade, qual é a real necessidade de se fazer isso? Por que faço isso? Não importa

234


se está bom ou ruim, mas é necessário que eu faça. Precisa ter mais problema, parecia que você estava solucionando só. Estava muito claro que era uma ação simples. Mas era indiferente para os outros porque não tinha um problema a se desenvolver, a se questionar. Era desnecessário, era corriqueiro, a resposta talvez seja essa. L- Pensando agora friamente nos elementos: o municipal, tapete vermelho uma pessoa vestida de rei. A sua relação com a prática, com a experiência revelou isso. E de repente agora, se debruçando de novo sobre esses elementos, por onde você arriscaria? F- São muitas possibilidades. Só o tapete vermelho já tem muitos significados, não importa onde você coloque. Só o Theatro Mvnicipal já tem muitos outros significados que podemos escolher, e o rei então que é mais antigo ainda que o tapete vermelho e o Theatro Mvnicipal. Você trabalha com várias simbologias, e aí tem que ter a necessidade (por que, como, quando e onde) L- Você viu que tinha uma plaquinha (eu faço pARTE)? F- Vi. Ela vinha justamente por essa necessidade de algo mais. Ela meio que explicava a ação, tinha a necessidade de explicar a ação para as pessoas que estavam passando, por que a ação talvez não fosse... talvez até aí você já estivesse entendendo que a ação em si não era suficiente sozinha. L- Entendi. E aí entra a palavra. F- Pelo que você está se propondo de aproximar. Pois no cotidiano é isso, as pessoas têm que falar, elas não colocam uma placa para dizer, justamente por não colocar uma placa para dizer elas ficam falando, se justificando, ou não, ou elas não tem que justificar nada para ninguém. Tem que se jogar com essas informações. Penso que foi meio que tudo, e ao mesmo tempo o que é tudo é nada. É um tapete vermelho, no Theatro Mvnicipal, com um rei deitado! Mas por quê? O que o rei está fazendo, por que desse tapete, e o Theatro Mvnicipal o que tem a ver com isso? Qual a necessidade disso tudo, pra você mesmo. L- De repente como esta mesma ação entraria nesse campo da necessidade pra ti? F- Não sou eu o propositor, não sou eu que tenho que dar essa resposta. Quem tem que pensar nisso é você. Essa conversa é justamente para isso. L- Eu ficava pensando assim. A primeira coisa das pessoas é atribuir um sentido. Ligar os pontos tentar ligar aquilo ali e buscar o sentido. Quando esse sentido não vem de maneira direta, elas pedem a explicação, que era o que acontecia. Só que eu me colocava na posição também de não responder ou de tentar devolver a pergunta para que elas fruíssem a coisa. De repente para mim essa era a necessidade. De que elas tentassem ligar aqueles pontos. Ou então só passa, é um espetáculo como qualquer outro.

235


F- É. Pra mim um dos pontos é: as pessoas não entendem. Por que que elas não entendem? Por que qual é o jogo que você está jogando? Me fala qual é o jogo que você está jogando, que eu vou tentar dialogar com isso. Me fala quais são as regras. Não tinha regra estabelecida, tinha a imagem, tinha o resultado do jogo, mas não tinha jogo. É como ver o placar. Eu vi o resultado do jogo, mas não vi o jogo. O fato de as pessoas pedirem explicação se deve a isso. Se ela não entende o jogo ela pede uma explicação, e quando você devolve a questão, você já devolveu uma questão que não estava clara, nesse caso, porque você não deu material suficiente para a pessoa. Você deu vários símbolos, mas não deu o material para ela jogar com os símbolos, montar o quebra-cabeça (o material para mim é brincar de combinar, a partir do repertório pessoal de cada um, de suas vivências e histórias de vida, os próprios símbolos e ações simbólicas- ações simples são ações cotidianas que pelo deslocamento do contexto ganham caráter simbólico. O mínimo gesto tem a ver com uma decodificação de um gesto cotidiano ou estetizado que significa por sua mera repetição ao longo de uma duração prolongada dilatando a noção espaço- temporal cotidiana). A televisão faz isso, coloca o resultado. Como o faz todo dia ela vai te acostumando com o resultado e aí você fica com o resultado na cabeça. L- Mas ali você acha que tinha um resultado? Ou tinham peças? F- Tinham peças, tinha o tabuleiro, tinha o resultado de alguma coisa. Mas não tinha o jogo não tinha a peça se movimentando. Não estava claro isso. Pra mim também, por mais que eu tivesse os balizadores. O jogo em si não se estabelecia. Na ação, na questão social, na questão espacial. Tinha algo ali que não estava acontecendo. Daí a necessidade de uma explicação. Porque tem todo o material, mas se eu não souber que “o cavalo anda em L”, pra mim não importa como que ele vai andar. Faltou esse esclarecimento “ó, aqui só anda em L, ali só diagonal”. L- Internamente fazendo parte dela o que me passou pela cabeça foi: a ação era ficar deitado e começar a desenvolver algum encontro se houvesse essa imantação de alguma maneira e não puxar um encontro, não buscar. Porque meu temor era: quanto mais eu tentar chamar a atenção, digamos assim, uma vez que a figura já chamava atenção de alguma forma, porque não é uma coisa que está lá todos os dias, um tapete vermelho com uma pessoa deitada ao final. Logo, se eu tentasse buscar as pessoas, talvez isso as distanciasse mais. Como a mesma relação que se estabelece costumeiramente com o panfleto. Eu te dou um panfleto, mas você já espera um panfleto e você não aceita. No meu raciocínio se dava um pouco assim: qualquer coisa que eu tentar trocar de cara com as pessoas, tentar ficar olhando, isso não vai trazê-las. O que eu pensava era isso.

236


F- Acho que não. Até pelo contrário nesse caso. Por que que panfleto que essa figura está me dando. Por que senão é só uma figura com panfletos escondidos. L- Outra questão era o físico também: naquela posição eu percebi que não dava para ficar de fato olhando as pessoas, naquela condição era o sol no rosto, e se eu ficasse tentando abrir o olho eu ia ficar sempre “no meio do caminho”. Então eu vou tentar permanecer neste lugar, habitar este lugar por este tempo. A ação era ficar deitado, eu vou ficar aqui. F- Mas quando você começa a conversar com as pessoas, você quebra isso. Qual a real necessidade de estar, qual é o jogo? Que jogo você está jogando. Não estava. Você mudava o tempo todo. Talvez justamente por estar tentando ficar aberto, mas ele não chegava. L- Quando alguém vinha eu tinha alguma coisa pela qual... se ela já vinha perguntando algo, eu tentava transformar em pergunta para ela de volta: “Ah eu faço parte, eu faço parte de que?” a pessoa perguntava. Eu perguntava: “Do que que você faz parte?”, tentava voltar o questionamento para ela. Também me ocorria: Se por sua vez lá do lado das Casas Bahia todo dia tem aquelas bandas, que reúnem muitas pessoas, por outro lado aquele monumento inteiro, imenso, parece inabitado. As pessoas sentam ali, mas não vivem aquele espaço, de entrar e conhecer, no meu parco entendimento de julgar que as pessoas em geral não frequentam aquele monumento, o embate para mim era esse, pensando: a arte não está presente na vida das pessoas, este “bicho” deste tamanho não faz parte da vida das pessoas elas só passam por aqui e tiram uma foto. F- Você acha que você só de vermelho, ali deitado... para mim é um pouco óbvio, vai continuar do mesmo jeito. Você não colocou uma situação que as pessoas pudessem vivenciar aquele espaço. Não alterou nada para as pessoas. Talvez se você fizesse nas Casas Bahia, tivesse mais efeito. Da sua trajetória toda que acompanhei chamava muito mais atenção das pessoas você se trocando do que você deitado no Theatro Mvnicipal. E por que não deitar de rei no meio dos mendigos? L- Eu teria que pensar o porquê disso. Aí para mim seria um pouco de invasão, de ofensa. E eu não objetivava isso. F- Talvez. Qual a real necessidade? Você precisa dizer isso para quem? O que quer que as pessoas percebam com isso, ou o que você precisa entender? A questão é justamente esta: o que eu preciso entender, eu preciso fazer. Senão não acontece. Um piquenique, faça um piquenique e aí talvez as pessoas comecem a ficar, a trocar mais, se sintam mais a vontade, para usar a arquitetura mesmo. Você só endossou a arquitetura, você virou parte da arquitetura e mais uma coisa para tirarem foto. É isso, é para isso que ele está aí para tirar a foto e ir embora. É muito difícil, é muito difícil.

237


L- por outro lado a parte interessante que achei, que realmente não tem como a gente esperar, foram esses alguns encontros que aconteceram nesse tempo que eu fiquei (11:00h14:30h). Com essas pessoas eu consegui este lugar que seria através da arte, através de uma ação simples estabelecer uma relação com alguém, e esse alguém não são necessariamente os muitos “alguéns”, não é algo unânime. Talvez a unanimidade seja a foto. Mas de repente por algum motivo alguém escolhia passar alguns momento do seu dia ali. O menino mascarado, o qual tinha muito mais a ver com endossar a ideia de espetáculo, uma relação intersubjetiva mediada por um espetáculo, minha com ele. E eu vi, apesar de conseguir conversar com ele e tentar entender qual era a dele também, pois ele disse que andava daquele jeito porque daquele jeito as pessoas não atrapalhavam-no, ele tinha liberdade para ir e vir do jeito que se trajava (capa vermelha, chapéu de bruxa vermelho, máscara, microfone e caixas de som no cinto). As pessoas categorizavam-no de um jeito e ele simplesmente poderia ser, o ser e não ser juntos na cabeça dele. Mas ao mesmo tempo eu achava que o que estava acontecendo ali era um (espetáculo), apesar dessa troca tinha uma teatralização: passar com o som ligado e andar por cima do tapete. Depois veio a dona Milza, uma senhora. F- Sim que ficou conversando com você todo o tempo até eu ir embora. L- Que ficamos conversando muito sobre várias questões da vida. Como eu queria fazer o jogo entre arte e vida, o que eu perguntava para eles era: com que frequência você visita a vida? Com que frequência você visita a arte? Como é que arte está presente na sua vida? Fazia essas indagações quando a relação acontecia. Aí ficamos lá. Eu me prendi a essa relação com ela, que aconteceu com ela. F- Sim, mas você esqueceu a ação simples de ficar dormindo, não sei, de ficar deitado apenas. A ação deixou. O jogo mudou completamente. Para mim naquele momento você podia ter tirado a roupa, deixado ali para outro vestir, e ficar conversando com ela. A ação que você propôs, você a deixou de lado. Para alimentar essa conversa. Eu acho que esse é um tipo de conversa que tem que ter depois do impacto da ação. Esse tipo de questionamento. De fato ela viu a ação, já entendeu e foi conversar com você. Era uma necessidade dela, não era sua, talvez fosse a sua também. L- A minha era como através da arte a gente se conecta com as pessoas. Estabelece essas trocas no meio do cotidiano. F- Então você atingiu o seu objetivo e pronto. Acabou, a ação simples acabou nesse momento, porque você conseguiu através de estar vestido de rei, com o tapete, deitado ali, você conseguiu que alguma pessoa chegasse e conversasse com você. Pronto. Para mim não

238


era interessante ver aquilo, aquilo não era uma ação, eu não tinha a necessidade de estar ali, nem você tinha a necessidade de estar vestido de rei. L- O que me chamou atenção do lugar é que lá haviam muitos vermelhos: de todos os tipos: o vermelho do shopping Light, o vermelho da ciclovia, muitas pessoas vestidas de vermelho, o vermelho do semáforo, como se estivesse já bem presente naquele lugar. Então fui fazer uma visita monitorada ao teatro e há um “tapetão” vermelho que atravessa o teatro inteiro. Você vai andando pelo teatro e “só o que tem” é o tapete vermelho. O que me fez pensar: este teatro ainda hoje é um espaço elitizado, desde quando ele surgiu até agora ele é um espaço nobre, por esse motivo o rei. F- Mas você endossou o que é, não quebrou com isso, não desenvolveu. Faltou. Talvez um questionamento direto para ver o que as pessoas acham. L- Eu perguntava se eles já haviam entrado naquele teatro. Com que frequência você visita a vida? Com que frequência você visita a arte? A arte faz parte da sua vida? De que maneira? Você já entrou neste teatro? F- O que elas respondiam? L- Alguns diziam que aquele teatro não era para eles. Eles não se sentiam convidados a entrar naquele teatro. Um senhor no dia anterior, em que a performance foi feita por seu João, disse: “Olha eu já fui na Europa e parece que lá a gente vai muito mais a vontade nesses lugares, aqui parece que não é da minha cor (atriz Ana Luiza Leão em sua entrevista também comenta como na Europa sente a arte mais presente e apropriada pelas pessoas e espaços da cidade, a ponto de os artistas terem mais condições favoráveis a realizar seu ofício e compartilhar com todos). Eu perguntei: como assim não é da sua cor? - Eu acho que o Brasil ainda é um país racista. F- Sempre foi. L- Havia uns que asseguravam a minha visão de que a arte não faz parte, ela está ali e as pessoas não usam e outras diziam: “Não, esse é um espaço super acessível, aqui tem eventos gratuitos, no natal. Eu mesma fui aí, mas ganhei o ingresso da minha amiga que trabalha aí”. Apontavam-se algumas contradições. F- Mas isso não é uma pesquisa do próprio teatro? Qual era sua intenção com isso? Por que era necessário para você fazer isso? L- Pra mim era necessário problematizar aquele lugar. No seu ponto de vista teria de se pensar qual seria essa ação mais apropriada, ou de repente uma vez da escolha dessa ação, “o deitado”, permanecer ali para sempre sem a relação com as pessoas?

239


F- Eu não sei, eu fiquei levantando possibilidades. Não é uma resposta. Fui um espectador e questionador. Você que tem que ver isso. Estou aqui para questionar L- Botar o dedo na ferida F- Nós temos que fazer isso um com o outro. Assim a gente cresce mais. L- Para constantemente pensar sobre a criação. Eu fiquei me perguntando e eu não conseguia sair dessa ideia, a ação é essa mesmo. Pensava: “o que pode acontecer aqui?” Pois primeiro vou e observo um dia: as dinâmicas do espaço, o que acontece ali. Depois que essa ideia se estabeleceu eu não conseguia ver outra coisa senão ela. Fiquei a tarde inteira conversando com seu João e para mim ele se apresentava como aqueles postes ali em frente ao teatro com várias carrancas, “estátuas-vivas”. E ele era uma “estátua-viva”, naquele lugar pra mim ele se apresentava como uma estátua daquelas várias, gritando, só que ninguém ouve. Pra mim ele era uma estátua-viva. O que eu imaginava? Algum jeito de evidenciar este espaço, como este espaço para mim não é o lugar em que arte acontece, no meu ponto de vista. Como podemos colocar uma imagem ali, algo que evidencie isto. Esse tapete vermelho! Ninguém cruza esse tapete vermelho! Quem tem que estar lá embaixo é uma “estátua-viva”, é uma pessoa que está ali, enrolada nesse tapete vermelho contando suas histórias, e só. Também percebo a diferença entre ser o seu João lá, e eu. Realmente acho que a situação muda. Achei bem interessante de os dois dias terem acontecido, apesar de vocês só terem visto o dia que eu fiz. O que permanece na minha cabeça é continuar tentando, continuar buscando, não desistir de fazer essas coisas, acreditar que isso é uma possibilidade. Porque tem muito disso, a maioria das ações não chega numa compreensão, num resultado de uma compreensão: “o que justifica isso”. É mais o julgo que cada um fará individualmente depois da foto. Se vai ou não vai fazer. F- É. Não tem como cobrarmos isso das pessoas. É difícil ter uma resposta. E ter muita calma.

240


Protocolo Observacional respondido por Otávio Oscar após realizar observação imersiva (de 11h-13h) da ação artístico-performática: Tapete vermelho-patrimônio de poucos Quais as dinâmicas sociais e fenômenos sociais identificados neste espaço? Quais as formas de utilização deste espaço? Quais as formas de relação estabelecidas entre as pessoas neste mesmo espaço? A escadaria/calçada em frente ao Theatro Mvnicipal, ao meio dia, durante a semana, é um local de intenso fluxo de pessoas. Aparentemente, a maioria dos transeuntes eram trabalhadores em horário de almoço, pessoas fazendo compras, passeando ou gente que estava se deslocando de um lugar para outro no próprio centro. Mais do que isso, não sabemos dizer sobre estas pessoas. A escadaria do Theatro é utilizado como um local de descanso. As pessoas se sentam ali pois é um dos poucos locais permitidos para sentar, além de ter uma boa sombra, dependendo do ângulo do sol, que ao meio-dia fica a pino e quase não oferece sombra. É engraçado pensar que à noite, havendo espetáculo, o Theatro muda de figura e o que acontece dentro dele passa a determinar sua dinâmica, diferente do horário de meio-dia, em que ele apenas é mais um prédio como os outros. As relações entre as pessoas é bastante pueril. A escadaria não é um lugar de convivência muito menos voltado ao lazer. As pessoas sentam para descansar, sejam sozinhas ou em grupo. No segundo caso, há a oportunidade de se conversar, o que é bastante comum. De resto, a relação de quem está na escadaria com quem está na calçada é apenas observar a sua passagem. A proposição performática é coerente com a ideia que você tem de ação simples ou de mínimo gesto? Aproximar-se-ia mais de qual destes conceitos? Acredito que a ação era simples, mas o gesto não era mínimo. A ação era apenas ficar deitado na parte de baixo da escadaria e no final do pano vermelho, algo bem simples, apenas complementado com a ação de conversar com quem abordasse o performer. O gesto não era mínimo pois a estrutura cenográfica (chamemos assim) e o figurino eram bastante chamativos, quase espetacular. Essa estrutura espetacular, apesar de negar o mínimo gesto, me parece coerente dentro da proposta de discurso do performer, que buscou questionar o status do consumo de cultura na cidade de São Paulo. Chamar a atenção parecia

241


um mote essencial da performance, afinal a ação artística se aproxima bastante do protesto, do manifesto e do ativismo, o que remete bastante à ações de performers dos anos 60 que realizavam suas performances nas ruas como forma de protesto. O que me chama atenção comparando o exercício anterior (no túnel do Anhangabaú) foi o desejo político do performer em lançar um questionamento que atingisse de forma mais cortante, o que o levou a uma ação com um discurso mais incisivo e uma forma mais espetacularizada. A ação de permanecer deitado, apesar de simples, chamava também muita atenção, em grande parte devido à incidência cruel do sol em seu rosto, que estava descoberto e totalmente vulnerável, gerando um risco (queimadura solar) que levava a um envolvimento dos transeuntes. Isso demonstra que o “público” teve empatia pelo performer. Ouso dizer que sua juventude, beleza e vulnerabilidade era algo tocante para quem passava. Muitos eram os casos em que pudemos observar, na abordagem de alguns transeuntes, sentimentos paternais ou maternais em relação ao risco da exposição ao sol. Muitos também ficavam admirados pela valentia e tenacidade do performer em se manter exposto ao risco em prol de uma causa como “a arte”. A proposição performática apresenta coerência com o espaço em que acontece? Por que aspectos? Discutir a coerência é sempre complicado. Me pareceu coerente pois questiona o status social da arte diante do maior, mais reconhecido e mais antigo aparelho cultural da cidade, onde impera o status quo artístico. Ao mesmo tempo que o Theatro Mvnicipal é tudo isso, ele também parece algo totalmente alheio a quem passa, como se fosse algo que não pertencesse ao cidadãos, ou que pertencesse apenas a alguns deles. A performance também questionava isso: arte para quem? E essa pergunta era instigante para quem passava. Outro ponto de coerência é o diálogo com o espaço. Acredito que a performance não teria impacto se apresentada na frente da entrada do metrô ou na frente da prefeitura. Fazia sentido aquele tapete vermelho em frente a um espaço de arte tão elitista, em contraposição ao performer numa condição semelhante a de um morador de rua. Que impacto psicofísico essas ações/imagens geram nas pessoas? Que fruição as pessoas têm com/sobre o visto/vivido? (se possível interpele-as)

242


Muitas pessoas pararam por estarem curiosas em relação aos objetivos do performer. Elas buscavam “entender”, um comportamento muito comum ao transeunte que é colocado na posição de espectador de uma performance. O tecido vermelho, como um tapete, saltava aos olhos pela sua cor chamativa e pelo formato de tapete, remetendo à maneira como pessoas VIP’s são recebidas em eventos. O primeiro impacto, portanto, era visual, bastante chamativa. Outro impacto, como já foi mencionado acima, é a exposição e vulnerabilidade do performer ao sol. Fato é que naquele dia o sol estava muito forte, e deixou o seu rosto muito avermelhado. Essa exposição parecia absurda aos olhos das pessoas. Nem tanto a exposição ao sol, mas muito mais a atitude de se expor a ele. As pessoas pareciam se questionar em relação a isso muito antes de buscar qualquer fruição da performance. O dado da realidade imediata, no caso a realidade do risco, era muito mais relevante para quem passava. Num segundo momento (ou no caso de pessoas mais acostumadas ao contato com performances e intervenções urbanas) elas buscavam entender. Claro que essa observação é muito generalizante. Fato é que as intervenções urbanas geram infinitas formas de recepção e reação. Alguns simplesmente passavam, muitos olhavam e observavam rapidamente, outros já se desinteressavam logo de cara, alguns paravam, alguns poucos conversavam com o performer. Como essas ações alteram ou se fundem ao fluxo? A ação alterava muito pouco o fluxo. A escadaria é uma área desativada naquele horário, pois o teatro não está aberto. As únicas alterações se davam devido aos curiosos que saíam de seus percursos para se aproximar do performer. Outra alteração é visual, aquele tecido vermelho gerando um desvio perceptivo na paisagem. Uma alteração que gera um olhar diferenciado a quem está acostumado a passar por aquela região, o que em si já altera o fluxo mesmo que o movimento ao redor aparentemente permaneça o mesmo. É possível identificar um “estado performativo” psicofísico diferente do que seria um “estado cotidiano”? Aqui essas noções aproximam-se ou afastam-se no corpo do performer? Sim e não. Sim, pois o performer se coloca numa situação bastante vulnerável ao se deitar no chão, num lugar onde as pessoas normalmente pisam, além do sol, que exigiu concentração e

243


tenacidade para evitar ansiedade ou medo de se machucar. Seu corpo, portanto, explorava um estado performativo. Não, pois quando as pessoas o abordavam ele conversava naturalmente com elas, num registro cotidiano, inclusive bastante simpático e casual. Como ocorre, ou o que salta como visível ou invisível? O que salta como visível é o que já foi dito: a intervenção visual e tátil no espaço. A cor vermelha é a mais impactante de todas e traz uma simbologia, dentro do contexto irônico da performance, que é facilmente trazido à memória pelo senso comum: o tapete vermelho, estrutura de espetacularização acerca do valor social de figuras VIP’s que frequentam eventos. Isso gerava bastante visibilidade. O que estava invisível era a identidade do performer, que não fazia questão de sequer se identificar como autor ou mesmo de esperar o reconhecimento pela obra artística. Esse anonimato tornava a performance, em algum nível, invisível a quem passava.

244


Entrevistas com profissionais e participantes dos experimentos práticos Entrevistas realizadas com profissionais das áreas de intervenção urbana, teatro, dança e arquitetura e participantes dos experimentos práticos. (As entrevistas foram gravadas presencialmente e seguem uma estrutura padrão, variando em algumas perguntas específicas de acordo com a área de cada entrevistado). RENATO FERRACINI. Professor Doutor e Ator do grupo LUME de teatro. Atualmente com projeto temático: Memória(s) e pequenas percepções. DIA 1 – 18.08.12 L – Eu queria agradecer a oportunidade de realizar essa entrevista contigo, é algo que vai me ajudar bastante. Eu fiquei alguns anos definindo intuitivamente o que seria o mínimo gesto e a ação simples no espaço público e sinto que agora é o momento de teorizar sobre isso. Agora, durante a iniciação científica resolvi definir esses termos com essas entrevistas. Estou investigando as ações que podem ser quase invisíveis no dia-a-dia, ações pequenas no meio de um fluxo intenso. Pelo fato de você fazer parte de um grupo de teatro que já tem bastante tempo, eu queria saber o que você entende como performance. R – A performance é difícil de definir, tem um amigo que diz que é um procedimento, que ela não é algo. Eu acho que dá pra colocar a performance num campo, não definir o que é exatamente, mas o campo que ela busca. Eu acho que primeiramente ela nega a representação; não nega um tipo específico de técnica de atuação ou de representação, um tipo de representar um personagem, é mais o ato de presentificar algo, tornar algo uma discussão de uma presença, que tem no teatro também, se pensarmos hoje. Tanto performance quanto teatro estão em lugares bastante híbridos, as vezes você vê uma peça de teatro e tem muitos elementos que poderiam ser performance e vice-versa. O teatro pós-dramático, por exemplo. A performance foi um campo de expressividade que negou a representação, dentro do contexto de você falar 'em nome de' ou a representação do próprio pensamento. Às vezes pensamos que temos opiniões, mas o pensamento já está dentro da representação do próprio pensamento, então quando você fala ou dá uma opinião você já esta representando outros alguéns, já ha uma representação histórica, social. Eu acho que a performance busca esse tipo de representação e não uma representação específica de criação e personagem. A própria

245


performance busca como fugir de uma representação ou uma outra forma de apresentar o presente. Isso pra mim é a base da performance. Mesmo que o teatro e a dança estejam pensando nisso, eu acho que foi esse movimento que contaminou o teatro e a dança. Eu acho que é a eliminação da ilusão. L - E você acha que essa eliminação acontece de fato? Você já viu algum trabalho onde isso acontece? R - Como todo artista que busca o meio de seu fazer, há artistas que conseguem e outros que não, ou às vezes conseguem e em outro momento não. Eu já vi algumas performances muito interessantes onde se chegou aí, e interessantemente performances muito simples. Às vezes se busca um terrorismo artístico, por exemplo, já vi um trabalho que se considerava performance e eram gritos e jorros de sangue, algo que na verdade ficava no limite da representação, era a performance do que se achava que era a representação da própria performance. Um exemplo de performance de dança que eu vi do grupo Basirat chamava-se Brasil: o público entrava e tinha um ator que ficava olhando para as pessoas. Quando todo mundo sentava ele perguntava 'o que vocês querem que eu faça?'. Claro que sempre tem alguém que pede pra que ele tire a roupa. Então ele tirou a roupa e virou pro público e disse ' era isso que vocês queriam que eu fizesse?', como um tapa na cara, como quem diz 'olha como vocês são idiotas', 'olha o que vocês estão me pedindo', na própria ação da performance isso já estava embutido, isso trazia o público pro chão e logo alguém falou 'ponha a roupa'. Depois disso começavam a pedir mais coisas do tipo falar uma poesia, gritar, e só depois que isso se estabelecia começaria o espetáculo, um espetáculo de improvisação e dança. Isso foi muito simples. Como a Eleonora Fabião: fala-se de amor, você senta numa cadeira e tem uma fila de 500 pessoas querendo conversar sobre isso. Isso não esta baseado em nenhum personagem, em nenhuma espetacularização, isso traz o participante num estado de igualdade, outra característica da performance é destituir as hierarquias. E já que você comentou sobre invisibilidade, eu tenho um orientando de doutorado que tem uma performance onde ele fica doze horas vestido de mendigo na frente de uma igreja, onde ninguém sabe que ele está fazendo uma performance. Até se discute se realmente é uma performance ou não. As pessoas que passam pela rua veem ele como mendigo e não dão bola nenhuma. Ao mesmo tempo é um gesto tão mínimo que se dilui no cotidiano. Também tem essa questão e a crítica sobre ser muito comum uma pessoa dormindo e vivendo na rua, e isso foi feito através de um gesto tão simples. Eu vejo a performance entrando de sola nessas relações de crítica social, porém de uma forma muito sutil e delicada, que eu considero muito difícil de ser bem feito. Sair gritando pelado cheio de

246


sangue pra mim é quase o clichê do que seria performance hoje, isso não choca mais. Alguém querer falar de amor choca. L- Eu dei uma lida no seu livro 'A arte de não - interpretar como poesia corpórea do ator' e lembrei dessa dualidade entre interpretação e representação e a performance em meio a isso tudo... R- No início, quando o Luis Otavio fundou o Lume, ele fez essa separação de interpretação e representação; o que ele entendia por interpretação é o que chamamos hoje de representação, que é uma coisa que todos evitamos; e o que ele chamava de representação era para ele reapresentação, uma apresentação duas vezes. Isso causa um problema conceitual sério, porque hoje todo mundo está querendo fugir da representação. L- A reapresentação seria algo como tornar vivo novamente? R- Exatamente. A representação naquela época seria como você ter ações físicas numa presença específica e numa relação muito direta com o espectador, sem a mediação de um personagem ou espetáculo, parecido com o que a performance busca. A mediação sempre acontece, mas você tenta tirar o máximo de anteparos possíveis. Hoje eu falo mais sobre a relação de atuação, o performer atua no meio e reverbera. Quando você coloca uma cadeira no meio da cidade e chama as pessoas para falarem de amor, você cria um eco, uma fissura naquela plastificação daquele espaço. A performance cria fissuras. O Luis Otavio chamava de reapresentação tornar vivas essas fissuras. Ele foi infeliz porque usou a palavra que hoje temos como pejorativa. L- Você pode diferenciar ação de gesto? R- De acordo com o Grotowski, o gesto é algo que não tem nenhuma relação com o externo, você fuma um cigarro e faz isso mecanicamente, ou convida alguém pra dançar, e dança mecanicamente. O que transformaria isso numa ação? Você esta dançando e paquerando essa pessoa, o marido dela entra e você começa a agir em relação a algo externo. Você amplia a relação do seu corpo, do seu gesto. A ação abre uma relação externa a ela. O que acontece quando você abre a ação para uma ação externa é que se cria uma rede de ação. A sua ação está conectada com a ação da dança, conectada com o seu olhar, conectada com o olhar do marido. Toda essa rede de pequenos gestos e ações se chama ação física. Isso me interessa porque, diferentemente do gesto, que pode ser algo muito individual, que é solipsista, a ação sempre está vinculada a uma rede, a algo exterior a você, seja o espaço, o tempo, uma rede de pessoas, um objeto...a ação física tem receptividade, não é só jogar pra fora, tem de se reconhecer essa rede e agir com essa rede. A ação é aberta a uma rede de relações. Toda ação é relacional. E o gesto não. Por isso a ação física teatral só acontece no

247


teatro, o gesto pode se dar em qualquer lugar. Eu gosto que a performance fala bastante de ação, não espetáculo. A ação sempre reverbera, afeta e é afetada. Essa reverberação não deixa a ação ser simplesmente mecânica e repetitiva, se ela for mecânica não há espaço para abertura e se você estiver receptivo haverá micro mudanças, mesmo que seja uma ação codificada. Eu acho que basicamente é isso. L- Como você conceituaria espaço público? A partir disso, o que você colocaria dentro dessa categoria? R- Existe uma dicotomia que precisamos começar a repensar sobre o que é espaço público e o que é espaço privado. Minha questão é: podemos pensar o espaço público como o oposto do espaço privado, uma definição bastante medíocre, onde o espaço privado é a minha casa e o público é a rua. Até que ponto o seu próprio corpo não é um espaço público, por exemplo? Spinoza, por exemplo. Ele próprio é um conjunto de partes que nas suas relações compõem ele mesmo, a relação das suas partes compõe o que você é, pensando no seu corpo, por exemplo. Podemos ampliar ou diminuir esse espectro: o seu olho também é um conjunto de partes que nas suas relações compõem o seu olho e somente o seu olho, não o meu. Isso pode ser infinito pra cima, como uma relação social, que também é um conjunto de partes, que nas suas relações compõem essa relação em especial. Cada apresentação aqui é um conjunto de partes que nas suas relações compõem esse espetáculo e somente esse. E em outro dia vai ser outra coisa. Você então desloca a noção de que o corpo é uma forma privada para uma forma relacional. Eu só me defino por relações sociais, políticas e todas forças que me atravessam. A definição do que você é não passa só pelo privado. Passa por essas forças que te atravessam e redefinem o tempo todo. Pode-se então pensar no corpo como um espaço público. Você é um espaço público, aí dá pra sair dessa dicotomia de pensamento capitalista que divide o que é público e privado. Esse conjunto de redes extrapola sua vontade e seu desejo, que faz com que você queira se manter vivo nessa composição. Nosso corpo é uma composição, uma biopolítica. A biopolítica é a tentativa de controlar esse corpo para certas funções sociais a serviço de um poder estabelecido. Também existe uma biopotência, que é como esse corpo pode escapar disso e criar. A performance, o teatro, a dança, formas presenciais de arte, criam uma biopotência, onde o seu corpo nega essa dicotomia, você está trabalhando o espaço público de uma forma privada, por exemplo a Eleonora. Ela está falando de amor, que é privado, no espaço público. A performance tem no corpo uma grande potência de ação porque o próprio corpo é um espaço absolutamente privado e absolutamente público, porque é nele que incidem as forças. Antes de definir o que é público e privado eu diria que estamos no momento da crítica dessa visão simplista dicotômica. O André Carrera, por exemplo, trabalha

248


bastante em espaços públicos. A Marina Abramovic tinha uma performance onde ela ficava numa casa de vidro. L- Mas também estava dentro de uma galeria. Eu fico pensando nesse jogo de poderes e acho que isso tem a ver com público e privado. R- Por exemplo aqui fazemos um evento público no SESC, que é privado, então as coisas estão misturadas. Ao mesmo tempo criticamos dentro do espetáculo as noções de ator, de espetáculo, de personagem. Estamos fazendo isso dentro de uma instituição que está definindo as artes cênicas hoje. Ao mesmo tempo é isso que nos dá abertura pra criticar esse tipo de atitude, dentro do próprio. Como o Bauman falava do mundo líquido, onde as formas estão dentro do acontecimento, hoje estamos nesse acontecimento, onde temos que ter CNPJ, por exemplo. Então até que ponto podemos falar dessas relações de poder onde o espaço de criticá-las está no espaço que se abre nelas mesmo? Não tenho a solução e também não acho que o jeito é fazer teatro Brechtiano. Há um jeito sensível de fazer política, precisamos ter essa noção de rede e de resistência, a performance cria resistência. Tem um autor que fala que resistência é composição e exposição. Ou seja, você não vai contra algo, você compõe com esse algo. Ir contra algo de alguma forma também é legitimar esse algo. Como se compõe com isso? Não é roubar quando o outro rouba, é como você é afetado pelo seu entorno e como você cria fissura e linha de fuga pra sair disso. Mas você precisa compor com isso, você faz parte disso. Isso é dificílimo de fazer, é mais fácil ir contra. Mas o discurso do contra é vazio, você anda de carro, mora numa cidade grande, ganha dinheiro do estado pra fazer suas coisas. Vamos mudar esse discurso, acho que aí, sim, fica produtivo. E se você não expõe a composição também não adianta nada. Você compõe com a podridão e expõe essa podridão. Isso está num livro chamado 'Arte e Resistência', está no meu site. L- Pensando numa possível associação entre a sua ideia de performance e o que você conhece sobre o minimalismo, como você definiria ação simples? R- Simplicidade já é uma coisa extremamente complexa. Eu estou num projeto que chama memória e micro-percepção. Leibniz nos dá um exemplo: Quando você olha o mar, você ouve o barulho do mar e reconhece que aquilo é o barulho do mar, isso é uma macro-percepção formada por muitas micro-percepções: a água batendo na água, a água batendo na areia, vento batendo na areia, vento batendo na água, batendo na pedra, areia batendo no peixe, etc., o conjunto disso é o que você percebe, “ah, o barulho do mar”. Seria impossível decodificar todas essas pequenas percepções. E você não consegue pensar racionalmente sobre as pequenas percepções, mas elas te afetam. O mar te afeta, você percebe o mar de um jeito, mas ele te afeta de outro. Deleuze e José Gil, refletirão sobre isso posteriormente. O que

249


chamamos de ação, essa rede é composta não somente de macro-percepções, mas também por esses afetos de micro-percepção. Como a micro-percepção não é concebida conscientemente, só conseguimos conceber conscientemente a macro-percepção, aquela é sentida. Existe um nível de sensação, de uma invisibilidade, que mesmo no movimento mínimo pode afetar. Uma ação simples poderia criar essa rede de micro-afetos, de micro-percepções, de sensações. O público, o transeunte está percebendo o seu corpo parado ou fazendo mínimas ações ou ações simples, mas na verdade existe uma complexidade de micro-percepções, micro-relações e micro-afetos que está afetando-se e afetando e sendo afetado pelo espaço ao redor. Como o mar que você só ouve o barulho, mas você não vê toda a água, toda a areia, todos os peixes e todo o vento batendo ali. Eu acho que a arte está muito mais próxima dessa simplicidade micro-perceptiva do que de uma ação macro-perceptiva. Hoje se existe algum tipo de formalismo esquece-se das relações invisíveis e aposta-se só no macro no trabalho do ator, do performer. Uma ação simples teria uma macro-percepção simples, não efetivamente grandiosa, seria mais condensada, mas teria uma grande complexidade nessa camada de micro-percepções. L- E isso para o artista seria consciente ou inconsciente? R- Como as micro-percepções não são conscientes, o artista nunca vai ter controle total disso, mas ele vai poder criar um campo de jogo e de experimentação onde ele possa mergulhar e fazer com que esse campo aconteça, dentro do campo ele não tem controle consciente, ele pode criar condições para esse campo. Eu vejo que a performance trabalha com a criação bastante consciente de um campo. O campo em si não é consciente, porque o acontecimento vai, se faz naquele presente, isso não é conscientemente controlável.

250


DIA 2 – 24.08.12 L – Na entrevista anterior nós conversamos sobre performance, a diferença entre ação e gesto, falamos sobre espaço público, um conceito mais amplo do que a dicotomia público-privado, entender o corpo como espaço público, e terminamos falando sobre ação simples, que tem uma relação com seu projeto das micro-percepções. Como o simples se trata de uma rede complexa de micro-relações, micro-percepções e micro-afetos. O que me faz lembrar também do exemplo do mar (de Leibniz) que você deu, nossa apreensão do barulho do mar. E sobre a arte buscar essa “simplicidade”. R- Com nível de complexidade muito grande L- Em que esse invisível também faz parte. R– Invisível que não é metafísico, está nas relações, é imanente. É muito mais palpável, mas imperceptível, porque não se tem uma sensibilidade perceptiva disso, mas se pode ser afetado por. L– Como você definiria o mínimo gesto? R– Perguntas que pedem definições são difíceis porque você tem que circunscrever algo num contexto e reduzi-lo. Às vezes paradoxalmente uma coisa é algo e seu oposto ao mesmo tempo. Hoje penso muito mais em campos que se fundem. Eu nunca pensei em unidade mínima, é algo difícil de se pensar. O mínimo gesto no sentido de decupar o que seria o mínimo, o mínimo pensado enquanto unidade mínima, entramos numa questão ainda mais complexa. Quando você tem algo estruturado, a linguagem por exemplo. Aquilo te impõe uma estrutura que você tem que obedecer, não se pode comunicar sem isso. Se eu usasse um código que você não domina, não haveria comunicação. Se eu falasse russo, por exemplo, e você não. Qualquer tipo de estrutura tem estruturas macro e micro. Dentro da língua tem o fonema, que é a estrutura mínima que forma sílabas, palavras, frases, verbos, substantivos, também em padrões pré-estabelecidos. Para achar uma unidade mínima de algo é preciso uma estrutura racional, organizacional em que você consiga ir do mínimo ao máximo numa relação sequencial. Eu suponho que quando você fala mínimo gesto exista um gesto complexo, uma estrutura gestual, e seria algo como retirar o mínimo, a unidade mínima. O Richard Dawkins, da biologia, se aventurou a pensar a cultura. A unidade mínima da cultura, o gene cultural seria o meme, informação mínima passada de geração a geração, que deixaria a cultura de um povo. Pensando a vida como biologia, a unidade mínima seria o DNA, que se estrutura até formar um corpo humano singular ou corpo animal, etc. Em que daquele corpo singular, de uma organização complexa, de milhões de partes e suas relações determinando o que você é,

251


você pode reduzir ao gene. Eu retornaria a pergunta a você, perguntando qual é um gesto complexo, qual a estrutura gestual. Existe um grande problema quando pensamos no corpo ao se pensar estrutura mínima. Qual é a ação mínima que se pode fazer dentro de um espetáculo, dentro de uma ação física? Qual a estrutura mínima da ação física? Nós chegamos à conclusão que a estrutura mínima da ação física é a própria ação física como um todo, porque o todo da ação física é o mínimo dela para que exista não tem como decupar esse gesto, qual a unidade mínima desse gesto? Não dá pra pensar o corpo sem pensá-lo em fluxo. Não há lugar onde começa nem onde termina. Onde começou essa entrevista? Quando você me fez uma pergunta ou quando me ligou aquele dia? Podemos escolher, inclusive. O corpo não se reduz a uma organização racional, só no nível biológico, que é o gene. Você só pode reduzir se recortar, mas o corpo é um conjunto de relações biológicas, materiais e de forças históricas, sociais, culturais e relacionais. Como reduzir um gesto mínimo dessas relações todas? Falando de espetáculo, de performance, também não é possível reduzir isso, porque hoje também o teatro e performance contemporâneos querem entender o corpo com todas suas relações. Será que talvez o que você procura não tenha outro nome? Um gesto condensado, talvez. Um gesto que condense numa micro-ação um fluxo de tensão, de acontecimento. Nesse gesto não se ignora os fluxos, condensa-se. Pela lei física, quando se reduz o espaço, a matéria (o ar, as moléculas) se intensifica e gera energia, potência. Hoje eu gosto de trabalhar com isso, com gestos sutis, são poucas ações no espaço, de grande condensação. O Butoh é assim (veja a condensação de gestos e ações do Kazuo Ohno). Outro princípio é o da antropologia teatral: enquanto no cotidiano você tem o mínimo de esforço com o máximo de resultado, nas relações codificadas que a antropologia teatral coloca você tem o oposto, o máximo de esforço com o mínimo de resultado. Quando Stanislavsky fala de ação na inação, isso é uma condensação gestual, na ação. L – Acho que tem relação com o que eu penso. Uma sutileza. R – Isso amplia para que se possa perceber as micro-percepções. No fundo a tão buscada ampliação de consciência, através de drogas ou experiência mística, por exemplo, pode ser alcançada com esse gesto, que tem isso como consequência. Ele te proporciona uma “diminuição” de consciência no sentido de infra-consciência, você não perceberá o “todo”, mas os mínimos detalhes, percebe-se as relações sutis. L– Eu acho que era uma tentativa de ligação entre a linguagem da performance e o minimalismo das artes visuais. Um escultor pode reproduzir um homem inteiramente numa pedra e um outro trabalho pode ser uma pedra com três riscos e também fica claro a imagem de um homem.

252


R – Sim, até que ponto um quadro de um suprematista que é um quadrado não é uma condensação de formas e não uma unidade mínima retirada? Esses três riscos na pedra, são uma condensação de linhas, e não uma retirada de linhas e o esquecimento de todo o resto. Se eu tiro o sangue de você, aquilo é outra matéria, te pertence, mas não é mais você, está fora de você. Na condensação eu penso em como mostrar o sangue não retirando-o de você, condensando-o. Pra mim todo o movimento minimalista é isso, não a retirada de uma parte mínima de um todo complexo, mas a condensação de um todo complexo. Seria como condensar toda uma gestualidade num gesto só. Não é uma parte pelo todo, é o todo condensado. Uma música minimalista não repete um ponto até o limite, mas como se condensa naquele ponto, numa frase musical, toda uma musicalidade. Se você busca isso na sua performance é algo muito nobre, muito difícil. L – Voltando à sua pesquisa, você poderia falar sobre micro-ações e micro-percepções e como tem sido desenvolver esse termo na prática ao longo desses anos de Lume? R – Na verdade não existe um modelo prático, porque a micro-percepção não é um trabalho técnico racional, só consegue-se trabalhá-la pela experiência do fluxo. Então criamos espaços de experiência. Toda manhã há um espaço de experimentação no Lume para que você crie uma atmosfera de experimentação pra entrar num fluxo perceptivo. Eu trabalho bastante com paradoxo, de ação na inação. Por exemplo, um exercício que eu dou é você colocar uma música e dançar sem mexer o músculo. Como se dança sem se mover? Outro exercício de como condensar: você pula, pula, e vai pulando e condensando até não pular mais, você pula já parado (como é o pulo da musculatura interna). Ou: faça ações suaves e densas ao mesmo tempo durante uma hora. Você precisará achar um lugar para fazer isso de alguma forma , criar um caminho de busca. Eles são exercícios simples, mas vêm num bojo físico muito forte, há bastante preparação para ativar algumas relações musculares e relações com o ambiente, para que o corpo possa adquirir essa sensibilidade, esse fluxo relacional micro-perceptivo. Perceber, ser afetado e afetar o entorno, sem grandes ações no espaço, ou uma ação absolutamente internalizada. Isso não é novo. Ação na inação, Grotowski falava sobre condensação. Esse trabalho interno é uma questão micro-muscular, sutilmente muscular de conexão . Um pensamento corporal. L – O que seriam esses micro-ações? R – Não dá pra definir, é um fluxo de diferenciação que se dá numa relação muito sutil (espaço, tempo, outro). Quando se passa por isso é tão claro do que se trata porque é uma questão absolutamente vivencial. Só é possível entender a micro-ação, a micro-percepção, a relação de sutileza quando você mesmo entra no campo de experiência, e não estamos

253


falando de conhecimento científico, mas conhecimento que o corpo adquire, as fichas caem depois da experiência. É um pensamento que não é racional. Um pensamento do corpo. O corpo é mais composicional e relacional do que nossa síntese de consciência racional. Podemos falar sobre isso, estamos até usando palavras pra falar sobre, mas isso só faz sentido concreto no campo experiência. L – Mas não é aleatório, existem formas de ativar isso. R – Sim, isso são três formas que eu falei pra ativar isso, deve haver milhões. Citando algumas grandes: Stanislavsky, Grotowski, Artaud, Tchekov, todos trabalharam pra entender isso racionalmente, criaram sistemas, métodos, procedimentos, exercícios. Os orientais relacionam com a energia. É um lugar de trabalhar a concretude do invisível, do impalpável. L – E o que te impulsiona para isso? R – Eu penso que a presença do ator, organicidade do ator e até mesmo a vida do ator moram nesse lugar, por isso quero estar aí... Eu acredito que a grande potência que se pode ativar relacionalmente, esteticamente, poeticamente necessariamente passa pelo invisível. L – O mínimo gesto seria o micro-gesto? R – Sim, eu acho que é o gesto condensado. As palavras não importam desde que você explique o que quer dizer. Você pode usar a palavra que você quiser. As palavras estão dentro de um sistema organizacional que não dá conta de explicar racionalmente a experiência. A poesia se utiliza da estrutura para fugir dela mesma. Da mesma forma também temos um corpo biologicamente estruturado, e a grande pergunta das arte cênica presencial é saber como o corpo foge dele mesmo, dessas grandes estruturas biológicas, históricas, econômicas, sociais, emocionais, da sensibilidade. É muito fácil falar que o teatro trabalha com a sensibilidade, mas ela é construída, ela não está para além do constructo econômico, social, histórico. Você sente, se emociona desse jeito hoje porque existe uma construção de sensibilidade para que você se emocione assim. O teatro busca que a sensibilidade fuja da própria sensibilidade, busca montar outras formas sensibilidade, diferente dessa, construída para e em função de algo dado, de um poder estabelecido. Você precisa se sentir “assim” para consumir certas questões sensíveis. Hollywood trabalha “assim”, a novela trabalha “assim”. Como se pode construir outra sensibilidade? Na maioria das vezes não conseguimos. L – Também tem uma vontade minha de que a arte esteja mais presente na vida das pessoas. Como esse mínimo pode estar passeando mais por suas vidas e às vezes elas nem percebendo isso, mas está lá acontecendo. Em que medida você acredita que o mínimo ou o simples possam atravessar essa construção, essa complexidade, esse excesso posto pela vida urbana, pensando nos fluxos?

254


R – Macroscopicamente as questões estão dadas, é tudo uma construção. Você tem uma sensibilidade macroscopicamente construída. A camada de micro-percepções, de virtualidade, não está totalmente massificada, ela tem mais liberdade de se reconectar, de construir alguma outra forma diferente dessa. Eu imagino um constructo sensível como um grande quadrado que tem em volta muitas potências de micro-percepções soltas, elas são selvagens e se recombinam de formas que não estão dadas, elas têm mais possibilidade de conexão de relações. Nossa identidade não é unitária, ela se dá em relação. Às vezes esquecemos que nossas relações partem desse âmbito invisível, sutil de forças. Se lembrarmos disso podemos criar fissuras nessas grandes estruturas de pensamento e sensibilidade que nos formatam. Eu acredito muito nessas relações. É uma forma absolutamente política de resistência assumir o sutil, o delicado, o ínfimo, o virtual como algo que possa fissurar essas relações. L – Mas se isso ficasse instaurado, já não se torna o novo modelo? R – Sim, tudo é uma construção. A questão é não tornar isso um modelo. O que temos hoje é um modelo de sensibilidade, econômico e social. ‘Outras formas de sensibilidade’ não quer dizer que se vai trabalhar com outros modelos, quer dizer que se vai trabalhar com diferenças que em relação ao modelo não se transformam em modelo. Não proponho outra forma macroscópica de organização para que ganhe dessa que já é dominante, eu proponho uma resistência pequena das minorias para que essa grande estrutura se dilua e não vivamos mais por modelos, e sim por relações de minorias, onde as minorias todas possam conviver, criar suas próprias regras, resistências, e inclusive entender que não podem criar modelos de minoria mas estar sempre no fluxo de diferença. A arte não quer modelos, quer estar na diferença, na diluição de modelos. Por isso a palavra resistência não é resistência a um modelo, é resistência de sempre estar criando outras formas de sensibilidade. Não é ir contra, é compor com essas forças pra gerar uma relação potente de diferença. L – Isso me lembra do devir, sobre o qual você fala... R – O devir é basicamente um fluxo de diferenciação sem modelização. A questão não é criar outro modelo, não se deveria nunca mais criar modelos. Eu gosto de dar um exemplo, que é: há um modelo de gênero dominante, que é o heterossexual, branco, rico, de meia idade, ocidental. Qualquer coisa que saia disso tem que lutar para ter espaço. As mulheres, os homossexuais, os negros estão fora disso. Começa-se a criar lutas pra criar espaços em relação ao modelo: movimento dos gays, feministas, dos negros, etc. O movimento gay tem dentro dele gays femininos e gays masculinos. Se você é bissexual, já não está no modelo, então precisa criar mais outro modelo, se você é pansexual também, outro modelo. Ninguém destruiu o modelo-mor, só foram criados mais modelos ao redor, e para se enquadrar, você

255


precisa criar mais modelos ainda e escolher. Se você não se enquadra em nenhum é complicado, você encontra resistência por todos os lados. Esse lugar de posicionamento, muito vinculado a uma relação marxista, é difícil. E se eu quiser estar sempre nesse fluxo de diferença? E se eu quiser hoje ser gay, e depois ser hétero, e depois ser bi e depois virar padre? Pelo modelo estabelecido hoje eu seria louco, porque eu não posso ter esse fluxo. Se pensamos em multiplicidade, isso quer dizer uma liberdade absoluta de se estar em devir. L - Então não existiria ruptura? R– Sempre existe ruptura, pois tudo é constructo. O devir é uma ‘sempre ruptura’. Se você constrói uma forma de sensibilidade, já é preciso pressupor a ruptura do modelo de sensibilidade criado. Porém como algo positivo. A dialética a grosso modo é a negação do que acabou de ser construído. Isso é um cuidado para a não modelização, para a potencialização. L– Você conseguiria, a partir do título da minha pesquisa ‘A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto ou da ação simples’, estabelecer alguma relação ou entrecruzamento possível entre nossas pesquisas? E como a micro-percepção poderia auxiliar na construção de ações simples e mínimos gestos? R – O mínimo gesto e ação simples que você busca na sua pesquisa está nesse cabedal microperceptivo do qual falamos. Pensar no lugar público como o corpo, o lugar mais público que existe. Pensar o corpo para se potencializar e fugir dele mesmo, enquanto modelo de corpo nesse espaço público e nos espaços públicos. Conseguir isso através do mínimo gesto, de trabalhar nesses fluxos e correlações. Eu venho me perguntando isso desde a primeira pergunta, tentando relacionar o seu ‘mínimo gesto’ com tudo que eu faço. L – Como você acha que essa micro-percepção poderia auxiliar na criação de ações simples? R – Entrando nessas relações de experiência. Seria bom experimentar essas relações de sutileza, paradoxo, no seu próprio corpo, achar no seu corpo essa potência micro-perceptiva através dessas sutilezas, para que você possa verificar se isso pode te ajudar no que você está chamando de mínimo gesto. Ou seja, partir para a prática, mesmo. L – Em que medida a arte, que em sua raiz terminológica já denota artifício, necessita espetacularizar-se para dialogar, influir, tocar, trocar com o espaço público (e seus passantes e habitantes) que se julga atualmente espetacularizado? Você acredita nisso? Que possibilidades enxerga? R – A arte é um artifício, sim. O Guy Debord fala da espetacularização que é sedução ao modelo. A arte também é um constructo, porém de resistência a modelos. Não existe nenhuma pureza a ser buscada, ela busca outra forma de modelo como resistência ao modelo

256


dado, é um outro espetáculo, mas um espetáculo em resistência ao grande artifício. Ela não deixa de ser espetáculo. L – Para mim artifício passa a ideia de uma mentira. Uma dúvida que me aparece enquanto performer é a diferenciação que existe entre o que é real e virtual. No trecho ‘O virtual não se opõe ao real, mas somente ao atual. O virtual possui uma plena realidade enquanto virtual. Do virtual é preciso dizer exatamente o que Proust dizia dos estados de ressonância: reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos’ e como o Deleuze continua: ‘simbólicos sem serem fictícios’, isso me instiga e eu gostaria de entender melhor isso. Eu acredito que o que faço em performance é um trabalho que é simbólico porém não fictício. Queria saber de acordo com os seus conceitos se ele é real, virtual ou atual. R – O virtual não se opõe ao real. Tudo, tanto simbólico, quanto fictício, como virtual, como atual, tudo isso é real. O virtual é tudo o que conversamos sobre essa invisibilidade, essas micro-percepções, essas relações, o fora do modelo, as possibilidades de reconfiguração. O Deleuze fala que isso é real, não está em outro lugar, está junto ao modelo, está acontecendo. Então existe uma possibilidade de sair do modelo se atualizarmos o real de de uma outra forma. Então tudo o que você faz é real, você pode fazê-lo vinculado ao modelo ou buscar outras relações de construção criativa para uma outra coisa que entre em resistência ao modelo dado. Você está atualizando algo outro. Um espetáculo performativo é isso. Se você busca uma simbologia pelo gesto mínimo você está buscando no universo virtual uma atualização de algo que seja formalmente resistente ao modelo dado. L – O virtual que você fala é diferente do virtual que conhecemos. R – É. Não é o mundo virtual impalpável, esse virtual existe, precisa de atualização. O artista atualiza esses virtuais de modo que seja, uma arma contra o modelo estabelecido.

257


DIA 3 – 25.08.12 L – Ontem terminamos a conversa falando sobre real, virtual e atual. Acho que muitas pessoas se perguntam na performance o que é estar, ser, a questão da presença. Que limiar é esse que divide o teatro e a performance? R – No campo do virtual não vejo diferença entre eles, eu vejo no campo macroscópico estético, no campo dos procedimentos, até na relação com o público. Tanto teatro como performance precisam trabalhar no campo virtual, que é real mas precisa ser atualizado numa efetuação de resistência. Se o teatro usa procedimentos macroscópicos para se apresentar e se relacionar com o público e a performance usa outros, eles se encontram nessa camada virtual. Pensando o virtual como uma realidade não dada, imanente, que precisa ser efetuada. Uma certa realidade selvagem onde precisamos gerar dispositivos que sejam críticos, de fissura dos modelos estabelecidos, ou pelo menos de problematização. L – Você coloca a virtualidade como essencial na formação do corpo. R – O corpo é um duplo nessa questão. L – E a relação com a memória? R – A memória é virtual, toda ela está no seu presente, você não se lembra de tudo porque ela é virtual, você atualiza no corpo conforme a necessidade ou até involuntariamente. Um déja vu, por exemplo, é uma delas. A ‘Madeleine’ do Proust, por exemplo, naquele trecho em que a personagem toma um chá e come um bolinho, sente uma alegria extrema e se lembra da sua infância: ele não buscou aquilo. Foi fisicamente efetuado, 30 anos depois por causa do bolinho e do chá, uma memória foi atualizada. Nós pensamos memória como lembrança que se pode controlar. Não, a memória é em grande parte involuntária. L – Pensando na arte como um todo, a arte seria uma “troca” de experiência? Pensando nessa “troca” com o público, por exemplo. O “valor de troca” da arte é social ou econômico, qual a diferença entre “valor de uso” e “valor de troca”? R – Eu não vejo como nenhuma das duas coisas. Eu vejo seu valor como valor sensível. Também não é troca de experiências. Ela deve gerar um campo de experiências onde os encontros possam acontecer nesse lugar, e aí pode-se trocar afetos, percepções, sensibilidades. Há compartilhamento de sensibilidades, uma partilha de sensibilidades. É difícil falar da arte em geral. Algumas manifestações artísticas têm como objetivo – mais potente, a meu ver – esse compartilhamento de outras formas de ver, de tocar, de sentir o mundo. Claro que isso é transformado em valor de venda, como nosso espetáculo (Os Bem Intencionados) coloca. Todo mundo precisa de patrocínio, vender espetáculo, um SESC que compre...mas comprar o

258


quê? Justamente, a nossa crítica engloba tudo isso. O que está em questão é: essa obra de arte potencializa afetos, encontros? Pra mim só pode ser chamado arte se houver e se conseguir efetuar esse tipo de encontro aumentativo de potência. Eu não vejo como troca de experiência, não é a experiência do artista que está sendo trocada com o público, nem o contrário. Nesse campo você aumenta a potência criativa de todo mundo que está dentro. Lugar de criatividade. O público tem que criar junto com você. E também não vejo a arte só como lugar de crítica, esta vem no bojo dessa relação, é quase uma consequência natural. A partir da criação desse espaço você gera outras maneiras sensíveis de ver o mundo, e para isso precisase gerar uma resistência ao modelo estabelecido de sensibilidade. Então naturalmente a relação crítica vem, ela é consequência e não objetivo, apesar que sempre presente se a arte se efetua de fato. Qualquer compartilhar de sensibilidades hoje é um ato absolutamente de resistência política, mas a resistência política vem como consequência do partilhar a sensibilidade. L – Às vezes vemos trabalhos de artes visuais que classificamos como “pura forma”, algo que não nos toca de maneira nenhuma, então me pergunto onde está a crítica... R – Para mim, se eu faço arte consequentemente faço crítica, mas eu não busco a crítica na arte. Para mim o objetivo é compartilhar sensibilidades, para isso é preciso resistir a uma sensibilidade dada a priori, e isso é um ato político, um ato de resistência. Quando você conscientemente quer ser crítico, geralmente o espetáculo sai ruim. Você começa a adentrar as fórmulas de crítica, começa a contrapor um modelo a outro modelo. L – Porque dessa maneira se impede aquela multiplicidade da qual falávamos ontem. R – Exatamente. Modelo contra modelo cria outro modelo que vai se tornar hegemônico como esse. A revolução russa foi isso. Criou um modelo hegemônico em contrapartida a outro modelo. Até que ponto isso é interessante, eu me pergunto. Meyerhold foi assassinado pelo regime dito democrático. Até que ponto não temos que criticar todos os modelos? Se você faz arte você está fora de todos os modelos, compondo com todos eles. Hoje você só faz arte com patrocínio, Petrobras, SESC, universidade, e todos eles fazem parte dos modelos hegemônicos. Ou você compõe com isso, fissura isso, e através disso você faz, ou eu não sei como seria possível para fazer de outro jeito. Senão é só discurso, ideologia vazia. E concomitantemente consome-se Coca-Cola, em seu Volkswagen, vai à Blockbuster aluga um filme hollywoodiano, compra vinho de grandes potências europeias, numa taça Nadir Figueiredo. E assim o mundo caminha. L- Na conversa do bar.

259


R- Sobre quão nós devemos ser resistentes a tudo isso. A arte busca outra coisa, senão é muito hipócrita. L – E qual a importância do público no seu trabalho? R - O público é onde qualquer tipo de coisa que você queira fazer com arte se efetua. A obra artística de caráter presencial pra mim só se efetua com público. Ali a obra acontece, tudo antes foi uma preparação para aquele momento. O público é co-criador da obra e essa precisa dar espaço pra ele co-criar. Não acho que o palco italiano impeça isso, é outra coisa. Sempre há um caráter de jogo, o público cria com você. Se você entrar para mandar uma mensagem para o público ou se colocar num lugar superior, porque acha tem mais consciência politica, sensibilidade que eles, você está se colocando numa situação hierárquica superior ao público e não consegue estabelecer jogo. A potência criativa está em você e nele também. A arte hoje precisa acordar essa potência criativa do público. Isso está em falta. L – Eu já vi trabalhos de dança nos quais eu não sentia em nenhum momento que eu fazia parte daquilo, e mesmo em performance isso acontece. R – É, não tem a ver com teatro interativo. Qualquer Van Gogh está totalmente aberto pra você se fundir com ele, é poroso, é uma outra forma sensível de ver o mundo. O Kurosawa fez o ‘Sonhos’ não por acaso, porque a obra do Van Gogh gera outras criações, tanto num caráter de influenciar outra pessoa a fazer um filme tanto no momento efêmero em que você está em frente a um quadro dele. Tem coisas que ajudam, como quebrar o espaço, mas não há regras. Você pode ter um espetáculo absolutamente poroso num palco italiano e uma obra absolutamente fechada num espaço público. L – Você pode falar sobre entre-lugar? Eu li que você aproxima fronteira de não-lugar nos seus escritos. R – Para mim fronteira é um lugar de limite, não é um delineamento entre uma coisa e outra. Quando eu falo ‘a fronteira do teatro’, não é onde começa a dança, onde começa a performance, como se poderia dizer. Pra mim é o limite do teatro, até onde se pode ir. Além da fronteira não há mais nada a não ser mais fronteira. É um lugar que expande o espaço. Ontem falávamos do corpo e a virtualidade mora na fronteira, no limite. Como buscar esse limite? Cada grupo e artista tem suas especificidades para isso. Eu vejo o Tó forçando limites nos seus espetáculos, como gerar um monumento, um enquadramento, naquele espaço de limite. O rio Tietê, o rio odiado e amado, é um lugar de fronteira. Ele não faz separação entre municípios. Lá é um não-lugar, ninguém entra naquele rio. É um limite natureza-cidade, um limite vida-morte. É um lugar de paradoxo. Eu vejo muitos grupos buscando limites. Nós, nesse espetáculo, buscamos o limite de nossa própria historia. Tentamos jogar fora tudo o que

260


é conhecido. Não significa que estando nos limites você está seguro, lá é o lugar mais arriscado. Quando você assiste um musical da Broadway é o centro, entende? L – Não tem muitos riscos... R – Não tem nenhum risco. Você faz uma novela, não tem nenhum risco. Um filme hollywoodiano, se você seguir certos parâmetros não há risco nenhum. Quando você sai desses padrões está no lugar de fronteira. L – Isso me lembra do nômade, o ‘corpo nômade’. R – O nômade não está em lugar nenhum, não se fixa. Mas se fixa justamente no não-lugar, ele opera a raiz no movimento, no fluxo, o território é o próprio desterritório. Eu acho uma boa metáfora para os grupos de teatro, dança: como criar raízes em um ambiente movediço, perigoso. L – Eu trouxe alguns termos do André Carrera, como ‘arte de rua’, ‘arte na rua’ ou ‘arte de invasão’, que estão no artigo Teatro de Invasão: redefinindo a ordem da cidade, que são formas de entender os possíveis diálogos entre a arte a cidade. Como você vê atualmente o espaço público da arte no espaço público? R – Minha especialidade não é essa, mas tem um espetáculo que é a Parada de Rua, onde invadimos lojas e supermercados e fazemos uma bandinha, algo muito simples. A arte sempre ocupou o espaço da rua na verdade. A arte rupestre já fazia isso. Independente do nome que se dê, existe um procedimento que fala que teatro de rua e teatro na rua e invasão são coisas diferentes. Minha questão não é tentar entender cada procedimento nem delimitar espaços públicos ou privados. Seja o que for e onde for, quero saber se essa arte potencializa algo. Teatro de invasão significa que eu vou invadir um lugar e fazer teatro, mas o que me mais me interessa é saber se isso vai gerar algo. Minhas perguntas são outras. L – Talvez seja um preconceito ou uma constatação errônea achar que a arte está pouco presente na vida das pessoas, que teríamos que ir a lugares pra fruir essa criatividade. Por isso quero entender como essa arte ocorre no espaço público. R – A arte está ausente do grande público e eu concordo com isso, mas então o que queremos ao levar arte a essa população? Levar qualquer coisa? O que queremos? Levar uma banda mascarada para a favela? É isso? A minha questão, independente do nome, é com que qualidade vamos a esses espaços. Só um procedimento não justifica, não cria arte, se não for intensificação. Como fazer isso é outra questão. Para mim as perguntas são realmente outras. Eu não sei diferenciar esses procedimentos. Eu sei que se eu fosse fazer algo nesse sentido, eu teria todos os princípios sobre os quais estamos conversando.

261


L – Da forma como vivemos hoje, você acha que existe abertura para que a arte aconteça no espaço público? R – Eu acho que abertura, sim. Teoricamente o espaço público é aberto. Mas não depende somente de uma relação quantitativa, qualitativa também. Se cria um campo de experimentação ninguém se recusa a entrar nele. Ninguém se recusa a criar, existe uma pulsão de criação no ser humano, seu desejo é criar. Essa força do desejo foi desviada para outros fins. Então se a arte, seja qual for, cria esse campo, ninguém se recusa a entrar. L – Você tem algum comentário, quer complementar nossa conversa? R - Eu me fiz repetitivo justamente porque acredito nessa arte que trabalha com a realidade virtual, que é uma resistência em composição. L – Você disse que é importante pensar mais na busca do que no procedimento. R – Para mim a questão ética vem antes do procedimento, sempre veio. L – Você conseguiria identificar qual é essa busca no seu grupo ao longo dos anos? R – Para nós o que pulsa é como trazer o público para criar. E como criar uma resistência aos modelos estabelecidos e principalmente aos modelos que nós mesmos criamos para nós. Você cria a resistência, cria um fluxo que rebate essa resistência, mas logo isso se estratifica de novo e você tem que combater isso de novo. Depois de 27 anos de busca temos que brigar bastante com nós mesmos. L – Eu vejo a necessidade de muitos grupos de buscar uma identidade. R – Para nós é o contrário. L – É se reinventar. R – Nós fugimos disso, não queremos identidade nenhuma. As pessoas estranham muito esse espetáculo, dizem que voltamos pra trás. Nós queremos, a cada espetáculo, desfazer as nossas identidades. É justamente o contrario de ´qual é o seu posicionamento?´. Eu quero fugir de qualquer posicionamento, eu quero entrar nesse fluxo. Podem dizer que isso é antipolítico, porque a política está num momento líquido. Como buscar compor com essa liquidez toda e de certa forma encontrar outro campo de escoamento? Estamos tentando escoar pra alguns caminhos que acreditamos. A nossa posição é nômade, nem obedecemos a isso de não ter posição. Queremos nos recriar a cada momento, não achar que a resistência está nos microcoletivos. L – Eu anotei uma frase do projeto temático, que é: ‘No devir não há passado nem futuro, nem sequer presente, não há historia, trata-se antes no devir de involuir. Não é nem regredir nem progredir. Devir é tornar-se cada vez mais sóbrio. Cada vez mais simples. Tornar-se cada

262


vez mais deserto e assim mais povoado.’ Fiquei com isso na cabeça: ‘Tornar-se cada vez mais deserto e assim mais povoado.’

263


CRISTIANE ZUAN ESTEVES. Formada em Jornalismo e Diretora do grupo OPOVOEMPÉ de intervenção urbana e teatro. 23.11.2012 L– Primeiramente obrigada por me receber. Essa entrevista está sendo realizada sob amparo da FAPESP com a Cristiane, diretora do Povo em Pé, no dia 23 de novembro de 2012. Cristiane, eu queria te fazer umas perguntas. E sobre as minhas pesquisas, tenho tentado definir alguns termos com pessoas cujo trabalho eu considero que tem relação com o que estou pesquisando. Meu tema é “A performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto e da ação simples”. Vou te perguntar sobre esse tema e depois queria ouvir um pouco sobre a história do OPOVOEMPÉ. Eu estou investigando o uso do mínimo na performance através dessas ações simples em espaços públicos. Ações que em algum grau são quase invisíveis diante dos fluxos que vivemos. E estou tentando definir alguns termos através de embasamento teórico e pelas respostas dos meus entrevistados. Eu vou fazer perguntas que não estão num caminho linear. C – Eu também vou fazer digressões, porque vou fazer referências ao meu trabalho no OPOVOEMPÉ. L – Sim. E eu conheci o trabalho de vocês através de uns vídeos que o Luis Fernando, professor da USP, me mostrou, pois achou que tinha relação com meu trabalho. Primeiramente eu só conhecia as intervenções urbanas, e as ações com duração longa me chamaram muita atenção. Essa interferência no cotidiano e a reação das pessoas. Você pode esclarecer isso sobre ser um grupo de intervenção urbana que trabalha com teatro. E o que você entende como performance? C – É uma pergunta bem difícil. Eu não diria que fazemos performance como se entender performance como foi nomeada e delimitada por pesquisadores, pelo menos do Brasil. Eu tenho o Schechner como referência, que é um dos embasadores teóricos da pesquisa de partida da pesquisa do Povo em Pé, que é algo bastante amplo. A vida acontece em ações performativas, então olhando pelo viés da vida, das ações que podem ser performativas, esse lugar é bastante amplo. Por exemplo você pode ver um cobrador de ônibus fazendo uma ação que se repete vivamente, por exemplo. A questão da repetição também, já é outra discussão em performance. Essa pergunta é impossível de ser respondida, pois há muitos campos, na performance, performance brasileira, na prática teatral no geral, ou mesmo no OPOVOEMPÉ, onde há algo vivo, irrepetível, poroso. Tem uma confusão de nomeação da performance. Eu não sou teórica, então eu tiro essas conclusões da minha prática. Mas é uma possibilidade do

264


aqui e agora de viver e descobrir junto. Já estive em discussões onde diziam que o teatro não era performance. O teatro também é performance. Eu tenho um texto, mas se a interação acontece como momento presente e espaço real, se não estou representando, estou em ação, é um estado de performance. Eu não diria que fazemos performance nesse sentido, mas ao mesmo tempo a vida é performativa, estamos fazendo performance, fazendo ações. Esse aspecto performativo está presente em muitos campos da vida e da arte, das ações presentes e porosas. L – E você falou do cobrador de ônibus... C – Sim, ele age, responde...Eu trabalhei com o Stefan Kaegi, do Rimini Protokoll, era uma pesquisa com os policiais paulistanos, onde observávamos os movimentos de repetição deles. Eles têm protocolos de ação, que são elementos muito performativos. Nos treinos, nas exibições, no comportamento. É uma coisa que é ritualizada, espetacular em alguma instância. Não espetacular como ‘Sociedade do Espetáculo’. Talvez festivo, compartilhado, ou o visto, mesmo. Algo que não é realizado solitariamente. L – Mas que espetacular é esse? Como assim é diferente do espetáculo da ‘Sociedade do Espetáculo’? C – Quando eu menciono o ‘Sociedade do Espetáculo’ eu me refiro a uma industrialização disso. Para os policiais a função não é a exploração disso como algo para fora, ou para que pareça bem. É para identificação, organização, funções internas, como um ritual de índios, por exemplo. Uma rotina de ações, que não é necessariamente aquela nossa rotina mecanizada. No Guy Debord é outra coisa, é a midiatização, a apropriação pelo capitalismo. Eu vejo em vários grupos o rito de viver certos valores junto. L – E cada grupo tem seus símbolos, isso daria esse caráter espetacular? C – Sim, os valores que se agregam a cada coisa. Mas eu não defini performance e talvez não vou conseguir fazer isso. Já recebemos críticas dizendo que fazíamos performance, e isso era uma crítica negativa. Já fomos recusados em uma curadoria de teatro. A peça de ontem, inclusive, que tem uma dramaturgia muito clara, apesar de ter elementos performativos. Podemos pensar no estado performativo, como os teóricos delimitam, que é o estar, o agir. L – E essa diferença entre representar e agir? Como ocorre no trabalho de vocês? C – De alguma forma estamos agindo e representando, porque não somos cientistas, somos nós mesmas brincando. O jogo já é uma performance, o teatro é relação e jogo, é um lugar bem amplo.

265


L – Eu reflito muito sobre essa diferença, uma mulher varrendo, por exemplo, estaria em teatro ou performance ou teatro performativo ou etc? Em que medida é uma ação ou representação? C - Na peça de ontem havia mulheres varrendo as caixas de remédio. Isso é uma ação concreta, se elas não varrerem as caixas de remédio ficarão lá, portanto elas modificam o espaço com essa ação. Mas também há um limite sutil onde não acontece nada mas há ação, eu estou varrendo. E aí já abre um grande campo, que é...Eu fiz uma oficina com um discípulo do Stanislavsky, o Vassiliev, onde o grande nó era a tradução em português para ‘análise ativa’. Nos meus estudos de Stanislavsky eu traduzia como análise ativa, mesmo, e foi traduzido como ‘análise para ação’. Isso significa o ator se preparar para passar pelas ações na peça. Mas isso também é performativo. Então onde está a representação, se se passa por ações? Personagem e atuação mudam totalmente, então. Tem muitas nomenclaturas traduzidas errado, porque não temos ‘play’ em comum com outras línguas, que tem o significado de jogo, ação. Temos que usar performar, por exemplo, que é um estrangeirismo. Também é um problema etimológico. Eu tenho alguma resistência com a nomeação das coisas, porque eu sinto que damos prioridades a dar fronteiras e fechar do que entender as coisas. Acho que é mais delicado do que dizer ‘isso é teatro’ ou ‘isso não é teatro’. L – Você poderia diferenciar ação e gesto? C – Isso é interessante para mim, como atriz. No Viewpoints o gesto é nomeado como algo que tem início, meio e fim, você pode variar velocidade, repetir, pode ser um gesto expressivo, um gesto cotidiano, um gesto que revele classe social, saúde. Ele está na esfera do desenho do movimento. Eu posso passar a mão no cabelo com variação de amplitude, mas é o mesmo gesto. A ação é algo que modifica o espaço e a você mesmo. Quando vamos para a rua chamamos de ação coreográfica, não de performance. É coreográfica, mas causa alguma alteração. Tem um exemplo de ação que é um homem que chega na mesa, põe o revólver em cima e decide se vai se matar, acaba desistindo. Talvez nem todos tenham visto, mas o espaço foi modificado pelo fato. O gesto, a partir do viewpoints, é coreográfico e pode ser modificado. Dentro do gesto posso por uma outra ação. Não é intenção. Se você muda o contexto, ele vira outra ação, pois a modificação que ele causa em si mesmo, no outro e no espaço é outra. Mas o elemento coreográfico é o mesmo. A ação inclusive pode acontecer no campo do invisível, pode não ter gesto, se eu estiver modificando o espaço e me modificando. Eu posso estar fazendo muitos gestos e não estar em ação também, nada acontece, pois estou somente em repetição coreográfica. Entrando no seu campo do invisível, do pequeno. A ação às vezes está no invisível, na mobilização do centro de energia. Tem uma técnica do Suzuki

266


que você levanta e abaixa (mobilizando seu centro conectado com o espaço), e quando você faz não só coreograficamente, mas está agindo também, todo mundo que assiste ‘involuntariamente’ se suspende e abaixa junto com você. Você pode ver qual é minha ação? Parece que é subir e descer. Na verdade é suspender e baixar todo mundo. O gesto é dobrar a perna, baixar, esticar. Essa é a diferença entre gesto e ação. Eu mudo o outro e me modifico, não só realização coreográfica com início meio e fim. O Kazuo Ohno, por exemplo, erguia um paninho, uma ação poderosíssima, mas um gesto pequeno. L – Como você conceitua espaço público? Tem uma frase do arquiteto que foi parceiro da Lina Bo Bardi que dizia que o único espaço privado é o da mente. Às vezes nem o da mente, eu penso. Para ser muito pragmática eu definiria como o espaço que não está dentro da propriedade e que deve ser compartilhado, o lugar onde podem acontecer as relações humanas. A tendência hoje é privatizar os espaços públicos, restringir o acesso. Por isso temos tanto trânsito, o carro é um espaço privado no espaço público. Quando você está no celular também está no espaço privado dentro do espaço público. Essa fronteira está um pouco estranha. O ‘Máquina do Tempo’ fala bastante sobre não sabermos mais diferenciar isso. Eu creio que seja um lugar em transformação hoje. Colocar uma mensagem no Facebook é colocar algo no espaço público e isso tem uma repercussão. Falando então da pólis, é um espaço que todos deveriam poder compartilhar, que se constrói significado pela acumulação do uso. Ele é redeterminado o tempo inteiro, por isso é múltiplo, está vivo e poroso. Eu acho que é o lugar por excelência para que isso aconteça. É o junto. L – Você falou de cerceamento, como especificamente? C – O fato de todos terem um carro é uma grande privatização. E também a reserva do lado do Rio de Janeiro, um lugar muito lindo, o prefeito deixou um grande hotel internacional construir apartamentos de luxo de 2 milhões de dólares. Isso acontece por força do capital, do dinheiro que destrói coisas belas. Vivemos isso em várias instâncias. O fato de que a qualquer momento eu posso desconsiderar a presença do outro, como na internet. Prédios abandonados no centro de São Paulo, que o poder público não libera. Também existe o espaço público simbólico das mentes, da maneira de fruir as coisas. Pela sociedade de consumo que vivemos a nossa imaginação é colonizada por essas imagens de felicidade. Ter isso ou o corpo de um certo jeito como felicidade é a privatização do espaço íntimo. Seu espaço íntimo é apropriado e o de todo mundo, isso está acontecendo em esfera coletiva, em vez de o espaço ser construído coletivamente. Acho que as redes sociais quebram um pouco essa hegemonia.

267


L – Pensando numa possível associação entre performance e minimalismo, o que você entende por ação simples? C – Citando a Adélia Prado. A repórter perguntou para ela por que ela deixava o cabelo branco. Ela respondeu ‘porque acho bonito’. A repórter insistiu na palavra bonito. Mas a palavra bonito já diz o que é, já é suficiente, não precisa explicar. Se você ouvir de fato o que estou falando. E nós precisamos falar um milhão de coisas para ouvir uma, não conseguimos ser simples. A ação simples seria aquela que acredita no poder dela mesma de modificação. Não precisa criar penduricalhos. Ela em si já diz bastante, já será efetiva. L – Eu acho interessante ouvir cada um de vocês entrevistados porque me identifico com alguns pontos. Cada um desenvolverá por um prisma, um parâmetro, uma vertente, aquilo que entendo de maneira particular. Também vejo pontos de vista diferentes, então isso me agrega experiência. E como você definiria mínimo gesto? C – Eu nunca pensei sobre isso conscientemente. Mas há muito tempo eu escrevi um texto sobre o mínimo gesto que altera todo o espaço. Talvez eu teria que contrariar como defini gesto e ação anteriormente para você. O mínimo gesto aqui seria uma mínima ação, porque modificaria, teria ressonância no espaço. A mínima coisa possível e que ainda ressoe. L – Você conseguiria pensar na diferença entre mínimo gesto e gesto mínimo? C – Eu nunca elaborei sobre isso, gostaria de saber o que você quer dizer com isso. L – Quando você falou de ação e de gesto. O gesto pode ser expressivo, social, cotidiano, tem começo meio e fim, pode sofrer algumas alterações e ainda ser o mesmo gesto, mesmo percurso coreográfico. C – E também pode mudar de tamanho (amplitude do movimento) e ganha sentidos diferentes. L – Talvez um raciocínio a partir disso. C – O ‘mínimo gesto’ para que consigamos causar uma modificação. O ‘gesto mínimo’ parece o gesto reduzido que você realiza de uma maneira essencializada. Em termos de amplitude do movimento. Eu não tenho certeza. ‘O mínimo gesto capaz de’ criar algo, e o gesto mínimo, é o mesmo gesto numa mínima amplitude. L – Logo o ‘gesto mínimo’ talvez teria relação com amplitude. Se você coloca ‘o mínimo gesto capaz de’, talvez a amplitude dele não seja mínima. C – Sim, talvez o ‘mínimo gesto’ capaz de mudar o trânsito dessa cidade talvez seja um gesto gigantesco. O mínimo gesto capaz de mobilizar de fato o coração de alguém talvez seja enorme. O mínimo gesto capaz de parar a guerra em Israel, na Palestina é um gesto enorme. Um ‘gesto mínimo’ é um gesto que pode ser invisível.

268


L – Em que

medida você acredita que o mínimo e o simples podem atravessar a

complexidade, a extravagância e o excesso da vida urbana? C – Às vezes uma ação muito pequena tem capacidade de alterar o tempo, paralisa o fluxo cotidiano de percepção e pode alterar a cegueira pelo excesso de fluxos ou pelo fato de se considerar que os fluxos já são conhecidos. Se algo pequeno cria um evento, por menor que seja, e altera o fluxo existente, a percepção se altera, não se está mais no terreno do conhecido, a percepção é ampliada. Então você fica mais predisposto a estar vivo naquele espaço e a responder a ele de fato, não num espaço privado dentro do espaço público, mas de fato compartilhando aquele lugar. O bando de coisas e estímulos nos faz ficar meio cegos, não damos conta, e como parte da evolução precisamos canalizar o que lemos, o que vemos, o que ouvimos da realidade, fomos fechando. Senão ficamos loucos. Se formos sentir todas as vibrações dessa cidade a gente morre, se dissolve. Selecionamos o que vamos perceber. Mas se eu crio uma perturbação no que você está acostumado a perceber, isso criar uma perturbação nos sentidos. É interessante poder criar um outro estado de atenção. L – Você conseguiria estabelecer relação entre o meu trabalho e o de vocês a partir do título “A performance em espaços públicos através do mínimo gesto e da ação simples”? C – Eu penso que tem relação com a “Guerrilha Magnética”(projeto que fundou OPOVOEMPÉ). Foi quando voltei para o Brasil depois de um tempo fora. Em Nova York após treinar viewpoints eu observava: ‘a cidade está dançando’, as repetições, os fluxos, os pássaros, ‘isso é uma coreografia’. Parar, olhar a cidade ver que há uma dança do cotidiano acontecendo. Estudei em Paris, voltei e tive um choque aqui em São Paulo, porque antes estava vivendo situações muito mais “harmônicas” de cidade, menos caóticas. Aqui me veio esse nome de guerrilha. Chamei mais pessoas e foi o começo do OPOVOEMPÉ. Nós conseguimos um fomento para isso e pesquisamos durante dois anos intervenções urbanas a partir do conceito desenvolvido de Guerrilha Magnética. Guerrilha tinha relação com o Carlos Marighela, do ‘Manual do Guerrilheiro Urbano’: o guerrilheiro deve usar armas do cotidiano se misturar onde está, as ações devem ser explosivas e ele deve poder se dispersar rápido, etc. Eu peguei os itens e transformei em ação artística (roupas, ações, se valer do próprio cotidiano para criar sua ação artística). É uma subversão que acontece utilizando material que já está acessível. Tem esse viés do mínimo gesto, o que já está acontecendo que eu posso me apropriar e subverter. Magnética pelo poder de imantar o outro, uma atração voluntária e não imposta. Nós tomamos esse cuidado até hoje, para não expor os outros, as pessoas só vêm jogar quando querem jogar. Queremos criar uma ação que atraia. Tínhamos alguns passos para construir as ações da Guerrilha Magnética: Observação do ambiente

269


(como um guerrilheiro observa): os fluxos, acontecimentos, ações, quem são as pessoas, que trajetos têm. A partir daí que ações vamos eleger. Nós já fizemos várias ações em supermercados e nunca fomos descobertos. Eles viravam um espaço onde a rua poderia acontecer. Cria-se um evento e ele se dissolve. Observação dos fluxos e a mínima alteração. Nós fazíamos alterações mínimas que criavam um estranhamento na percepção do espaço (de sua função

ou uso). Acabamos revelando algo (um

comportamento, uma arquitetura) que já está lá e nossa percepção costumeiramente anulou. Criamos essa mínima alteração para modificar a percepção, para possibilitar a relação e em última instância o que pode acontecer é você liberar o espaço de jogo. Há um conceito do Schechner que diz que há um potencial de jogo latente, n’O Futuro do Ritual’, e às vezes você só precisa de uma ação para liberar isso. Uma das ações nossas (O que se viu, o que você vê) era usar uns jornais para compor no espaço. Muitas pessoas entravam e participavam conosco. Nessa época houve muito policial matando civis, e deitávamos com o jornal sobre nós na frente da cabine policial. Nasceu na esquina da Consolação com a Paulista, a mostra Verbo nos chamou e era uma ação coreográfica. L – A coreografia foi para o evento ou já tinha sido pensada? C – Não, tudo é uma estrutura improvisacional, levantamos um vocabulário. Nós temos um ponto inicial, por exemplo, revelar um viaduto em questão. Há sim um exercício de direção e composição, determinação de momentos e ações, um roteiro. Mas isso não quer dizer que as coisas não serão modificadas. Então tem programação e também a vida se encarrega de que aconteça de uma maneira única. Às vezes temos que mudar as direções, através das próprias ações em jogo, e para isso o treinamento e regras de improvisação, para podermos nos escutar, para que possamos ter uma ação bem estruturada. E nós aproveitamos bastante a técnica do Viewpoints para isso escuta e resposta. O que eu privilegio nela é a resposta. A ação do outro me coloca em movimento. Na Guerrilha a visão sobre a cidade vem do Milton Santos, o espaço que está sendo reconstruído pelos seus usos e apropriações. No Brasil temos realidades completamente diferentes e essa convivência potencializa a criação, a imprevisibilidade, uma nova leitura das coisas. Nós estudamos bastante teoria, não necessariamente seguimos os conceitos ao pé da letra. Estranhamento do Brecht, trânsito entre invisibilidade e evento, Augusto Boal, o potencial de liberação do jogo de cada espaço, Schechner. Um teórico catalão Jorens Barber, este fala da plurifocalidade, ele faz concertos com sinos de igreja. Ele cria uma partitura pela cidade inteira com os sinos tocando. Ele fala de dois tipos de espectador: o que acompanha a ação (fixo) e o peripatético (que se desloca). O peripatético no caso de nossa intervenção encontra um jornal, encontra outro e vai

270


desvendando e juntando os pontos. Acho isso interessante. Elaboramos três tipos de espectador a partir de modalidades de percepção: o que não vê o que está acontecendo (talvez essa pessoa tenha sido afetada e não percebeu), o que desconfia, estranha, não tem certeza se algo está acontecendo, mas entrou em outro estado, e o que percebe, identifica e pode vir a interagir com aquilo. Nós também temos outra intervenção (O que você não deixa para trás), que é de recolher depoimentos em trouxas, começa a ter perguntas, já vai se expandindo para um evento. Quando fazemos peças com dramaturgia específica, como o ‘Farol’, é diferente. A convenção do jogo já é dada para o espectador desde o início. É outro lugar que as ações criam, em se tratando das peças no espaço público. Tem dois tipos de espectadores, então, o que está dentro da ação e o que está fora vendo aquilo passar. Dramaturgicamente é menos poroso. Um dia estávamos na rua e veio na nossa direção uma procissão de candomblé. É a cidade viva. Você joga com ela, mas não nos modificou como provavelmente teria modificado numa ação da guerrilha magnética, mesmo assim continua sendo plurifocal, pois cada um se relaciona de maneira diferente com aquele mesmo material. No ‘Farol’ é uma atriz e dois espectadores por vez, então é mais camuflado no espaço público, causa estranhamento, mas é mais camuflado. No ‘Aqui dentro, aqui fora’ já é uma ação mais coletiva, todos, atores e público, de capa amarela. Acharam que éramos da fiscalização. Tem muitas maneiras de ler o que estávamos fazendo. E já tem um conceito que ouvi pelo BijaRi que é o conceito analisador. A mesma ação num lugar (ou em outro) revela o que já está acontecendo naquele espaço. Então quando passamos pela rua dos camelôs e as pessoas acharem que é o rapa, isso revela uma tensão, uma dinâmica que já existe lá. Tem uma ação da galinha do BijaRi, eles levam uma galinha e soltam a galinha no Largo de Pinheiros. Lá eles queriam pegar, comer. Tiveram que salvar a galinha. Até alimentaram a galinha. No shopping Iguatemi as pessoas ficaram horrorizadas, os seguranças não sabiam o que fazer. Uma pequena ação revela o que já está acontecendo. Também temos uma ação chamada ‘Fora de Chave’, fomos chamados por um festival na Croácia, com o tema ‘como nós lamentamos’. Instalamos portas brancas em toda a cidade onde se podia olhar pelo olho mágico e ver uma outra possibilidade, outras imagens, também tinha portas que caminhavam. Perto do rio que eles reclamavam, - que era lindo, no meio do mato, mas não era usado para nada - , colocamos uma foto da marginal Pinheiros, suja, engarrafada, e uma foto de pessoas se exercitando no parque, perto de um rio. Colocávamos duas possibilidades. Quando fomos para uma área de shopping center que localizava-se num antigo reduto comunista houve uma leitura mais política, já na praça central da cidade as pessoas achavam que éramos de alguma campanha publicitária, porque lá já virou um reduto comercial de produtos e serviços. Este

271


lugar que podia ser de cunho político, virou lugar de propaganda, a nossa ação foi recebida assim porque as pessoas só estão acostumadas a receber propaganda ali. E de repente daremse conta que não. A mesma ação dependendo do contexto em que se insere revela o que está latente ali. E quando fizemos essas portas aqui, foi na Paulista. Lá a interação é muito mais difícil, pois o movimento é mais em linha reta as pessoas estão indo almoçar(a arquitetura, o uso que se faz dos espaços, de onde vem para onde vão, tudo isso define a ação). Na Croácia as portas terminaram intactas. Aqui elas foram pichadas e escritas, sofreram muito mais ações. Foi muito mais eloquente o que se manifestou na porta. No Rio Pinheiros colocamos uma imagem de pessoas nadando, na Paulista um cinema ao ar livre, no outro ponto uma ciclovia. No largo Treze, em Santo Amaro, colocamos a foto de um mercado persa, porque lá é cheio de camelô, então em vez de expulsá-los a ideia seria agregá-los. Um dia me avisaram que levaram a porta de Santo Amaro, porque o rapa pensou que estavam vendendo as portas. Nós não tínhamos identificado a obra, não vemos sentido nisso, senão ninguém se relaciona com aquilo como coisa em si e sim diretamente como arte, me faz ficar menos atento, já categorizo, já atribuo sentido a priori e só vou me relacionar a partir daquele sentido. Se não sei o que é, eu me relaciono com aquilo e estarei vivo para dar todos os sentidos, compartilhar isso com outro, e isso começa a criar relações entre pessoas que normalmente não se relacionariam naquele espaço, as pessoas voltam a conviver. Abrir essa possibilidade de um mar de leituras, relações novas que acontecem entre as pessoas, não necessariamente com a gente, mas entre eles, vão tentar entender aquela realidade que não estão lendo, vão performar. O interessante é essa fabulação e estado de atenção de cada um, menos automático. L – E todas essas ações se referem à Guerrilha Magnética? C – As portas já eram outra coisa. Os da Guerrilha eram as do jornal, do supermercado, das trouxas, a lista onde as pessoas colocavam seus desejos no meio da feira. Depois começa a virar pesquisa de espetáculo, como o sofá que vai para a rua. Mulheres carregando um sofá. Mas em um momento nós paramos e sentamos, contamos histórias. Depois as ações se complexificaram. Sempre houve roteiro. Começamos a pensar suportes, começamos a ter resíduos em objetos. A própria peça vira uma síntese de espaço público, onde se acumulam vivências. Quando fazemos uma pergunta e recolhemos uma resposta na trouxa, por exemplo ‘o que você não deixa para trás’, todo mundo responde e em algum momento eles começam a discutir aquele assunto, você vai embora e deixa aquela discussão viva. Também tínhamos a lista do ‘o que você precisa?’ e tudo ia se acumulando na lista. As pessoas se relacionavam com as respostas dos outros. Nas portas perguntávamos sobre lamentações e esperanças. No

272


sofá as pessoas têm três minutos para contar histórias. No meio disso nós criávamos os títulos, com consentimento deles, títulos absurdos. Isso incentivava outros a contarem mais histórias, uma dramaturgia coletiva. Pensar o espaço público como possibilidade de intervenção de todo mundo. Nós condensamos esse imaginário coletivo. L – Algo que libere esse jogo. C – Ou transformar aquilo em algo material. L – E como foi o processo da intervenção para a peça? C – Depois de três anos fizemos uma peça com algumas estratégias de intervenção que usávamos na rua. Mas o que mais fizemos foi uma intervenção, a ‘Pausa para Respirar’. Conversar com você agora me faz pensar em algo. Nós recolhíamos depoimentos nas trouxas, nas portas com post-it, nas listas e começamos a usar as entrevistas das pessoas sobre o que estávamos trabalhando e devolvemos para o espaço público, que é o ‘Aqui agora...’. Eu crio essa trilha num trabalho longo de edição. Como por exemplo n’O Farol’, usamos só depoimentos de pessoas em movimento, em trânsito. Eu vejo isso muito relacionado com o espaço público simbólico e físico. L – Em que medida a arte – que em sua raiz terminológica denota artifício – necessita espetacularização para que a troca seja possível? C – Eu fiz um workshop com o Rogerio Lopes Cuenca, um espanhol, em que passamos por uma questão muito forte do que é arte pública e de como nós acabamos sendo apropriados também, nós criadores. Há artistas que fazem mega-esculturas impositivas amparadas pelo poder público, que acredita que isso deve ser espetacular. Isso cria o cartão postal, que faz essa cidade mais decodificável, que é algo que não acho interessante. Então esse lugar de poder público e marketing que se apropria da arte pública para vender seu peixe. A Virada Cultural, por exemplo. Todo mundo vai lá e suja a rua. E acabou. É um espetáculo. Às vezes o artista também cria algo nesse sentido e não percebe. O trabalho do Rogerio é muito invisível. Ele usa os signos da própria cidade e os embaralha. A pessoa não precisa saber se é de verdade ou de mentira, isso muda a percepção. Ele dissimula no âmbito da vida. Um trabalho dele era um evento como essas feiras mundiais, com painéis indicativos dos pavilhões, pavilhão da Palestina, por exemplo. Uma coisa muito política, o poder público não deixou ele executar no fim das contas. Eu creio que podemos criar ações que não são espetaculares e que criam mobilizações, experiências íntimas. O espetáculo é consumido e não fica, ele demanda mais e mais consumo. L – Mas hoje no teatro está muito difícil, também. Hoje esquece-se muito fácil das coisas.

273


C – Mas precisamos criar a experiência. Criar outros espaços, incluir o expectador na ação, como tentamos fazer. A grande dificuldade é convencer os atores a não fazer espetáculo. A ideia do teatro de que um faz e o outro vê é muito forte. Mas todos fazem juntos. O John Dewey, do ‘Arte como Experiência’ diz que a arte acontece no outro. Eu, público, crio aquilo como obra de arte. Você precisa diminuir seu ego para que o objetivo seja o encontro de fato. A arte como espelho, se dar e receber. Na intervenção da ‘Pausa para Respirar’ nós convidamos as pessoas para pisar na grama e ouvir seus corações. E lá eu não faço nada. Elas estão com elas mesmas. É um trabalho espiritual. L – A arte então visaria troca de experiência? O valor de troca da arte é social ou econômico? Qual é a diferença entre valor de troca e valor de uso? C – No mundo ideal o ato artístico deveria acontecer sem trocas econômicas e no âmbito do homem com o homem. Nosso trabalho no mercado jamais se sustentaria, teríamos que cobrar caro para sustentar contra-regra, é uma mobilização muito grande. A arte acontece na experiência do outro. O valor social dela é uma consequência, penso. Se a arte tenta somente ser social ela não chega no cerne, pois está muito mais próxima da filosofia, da religião. É no âmbito do inefável, do indizível. Então às vezes tem ações sociais que se valem de procedimentos artísticos, por exemplo trabalhar uma coisa educativa de arte com crianças, elas vão desenvolver um potencial artístico na relação com o mundo. Porém a arte tem esse poder também e não somente o trabalho social. É muito difícil fazer as coisas assim, você tem que fazer as pessoas se perguntarem e se colocarem em movimento. Já o âmbito econômico é onde precisamos ganhar dinheiro para sobreviver, comprar livros, pagar os outros. Mas nosso trabalho não visa isso, sempre fizemos com muito pouco dinheiro. Quando ganhamos o fomento isso significava muita responsabilidade mas também muita liberdade. Não precisávamos fazer um espetáculo que desse bilheteria. Eu sou a favor de que ações nãocomerciais sejam apoiadas pelo poder público. L – Qual a importância do público (caráter, pessoas em si, espaço) no seu trabalho? C – O público é elemento compositor da cena na pesquisa do OPOVOEMPÉ. O público compõe a cena espacialmente. Quando estamos na rua e eles saem conosco, não dá pra diferenciar quem é público e quem é autor. E o espaço físico público é onde acontecem nossos projetos. Nós temos vozes múltiplas dentro do trabalho, que são as pessoas e suas opiniões. É o espaço que vai sendo ressignificado, isso é a base de nosso trabalho. Todas as histórias são importantes. Um aprendizado que tiramos disso é como levar isso a um contexto teatral honesto. Nós temos uma personagem, por exemplo, que é um repórter ficcional que faz

274


parte do jogo e também nos faz atentar para a realidade. Nós pegamos e devolvemos. Eu penso que acordamos o olhar para o contexto em que estamos. L – Sobre os termos ‘arte de rua’, ‘arte na rua’ e arte de invasão como possibilidades entre arte e cidade, qual seria o espaço público da arte no espaço público? C – Como assim invasão? L – Aproveitar a arquitetura, por exemplo. Não necessariamente destruir coisas. C – Eu não me relaciono com ‘arte de invasão’ nem com ‘ocupação’. Eu vejo mais como uma liberação do espaço público. É recuperar a possibilidade se sentir esse espaço como público de fato. Liberá-lo do aspecto privado, das convenções sobre ele. L – E em que medida há essa possibilidade? C – Tem muitas pessoas criando esse espaço. O próprio carnaval é um momento de liberação desse espaço. Eu nunca estive no carnaval em Recife, e eu ouço as histórias e acho maravilhoso. Tem muita gente fazendo ações. E há pessoas que se identificam com serem artistas ou com um jeito de fazer ou outro. Quando fazemos as ações na rua eu sinto que eu não ensino nada, eu aprendo muito. O Milton Santos diz que o fato de haver tantas experiências diferentes dentro da cidade faz com que aquilo esteja em ebulição contínua. Apesar das regras, ainda mais aqui, onde todo mundo dá um jeito de fazer as coisas, aquelas pessoas na rua que manipulam bonequinhos. Claro que há o consumo nos invadindo, é impossível estar imune. Mas é possível comer pelas beiradas, o Rogerio, por exemplo. Ele evidencia essas ações pequenas que são incríveis e políticas. Enquanto formos humanos haverá espaço para fazer coisas. Talvez o espetáculo seja uma coisa mais difícil. O Ant Hampton fala do auto-teatro. É você que faz o teatro na rua. L – Mas vocês sempre foram amparados por órgãos? Vocês pedem autorização? Como é essa liberação burocrática? C – A única vez que pedimos autorização foi em uma mostra para o Sesc, porque as portas ficavam instaladas. A Guerrilha Magnética nunca teve disso, era em supermercados. L – E nunca teve esse problema de a arte habitar aquele lugar? C – Não. Porque as pessoas não percebiam. E nem podiam perceber. Quando acontecia isso nós dissolvíamos. Essa possibilidade é muito grande, de ter uma ação e ela se dissolver. L – Eu pergunto isso porque nas ações que faço sempre aparece alguma autoridade para controlar aquilo. E são coisas muito simples. Lembrei que eu estou fazendo uns experimentos que são dedicados somente à observação, então são dois estudantes com papel e caneta sentados, e isso desperta muita curiosidade.

275


C – Sim, porque é um lugar que não é para ser nada, e quando tem algo isso causa um estranhamento. Quando é um lugar só de movimentação e alguém para, há um estranhamento. Quando você sai do fluxo isso acontece. Ultimamente houve muita repressão sobre as pessoas não poderem intervir na rua. Esse programa ‘Cidade Limpa’, por exemplo, que parecia ótima a iniciativa de tirar cartazes, mas que era na verdade uma assepsia para a especulação imobiliária, isso também impediu os artistas de rua de se apresentarem. Cidade limpa para quem? Se tornou ‘cidade para ninguém’. É muito difícil achar um espaço, mas mesmo assim em uma cidade como a nossa ainda tem muita coisa acontecendo pelas ruas. L – Muita coisa pulsando. Nesses termos de não-lugar, mesmo. C – É. Nenhuma das nossas intervenções teve autorização. ’O Farol’ teve uma autorização da CPTM, mas também não precisaria. L – Mas também porque era uma ação mais silenciosa. C – Sim, mas é a estratégia que eu descobri pra poder fazer em qualquer lugar. L – Talvez isso tenha a ver com o espetacular. C – Sim. Eu sinto que eu não tenho direito de barrar ninguém. Por isso usamos a palavra imagético. Nas nossas ações também me preocupo em não barrar o fluxo, porque isso é fechar o espaço público. Eu também não quero ser barrada. Nós não paramos o trânsito. Por isso não uso os termos ‘ocupação’, porque a liberdade dos outros precisa ser garantida. L – O que você entende por entre-lugar? C – Eu poderia pensar em um lugar intermediário ao público e privado...Ou um lugar com outra função. Elaborando agora, todo lugar é um entre-lugar, um espaço entre. Acho que é eu está se relacionando com o mundo ao redor, então a ponte do entre está acontecendo o tempo todo, o lugar imantado, ele é as relações que existem, eu e essa planta que eu vejo, eu e essa cadeira. Existe uma consciência agindo e recebendo vibração, informação... A arte é um espaço entre, que às vezes contem tensão, ou é denso, ou é leve. Para mim o grande ensinamento do Lecoq, que eu estudei é esse entre. Não é a coisa em si, mas o movimento que acontece. O que mais me chateou quando voltei para o Brasil é que as pessoas estavam habitando espaços diferentes na cena, não havia um entre. E o espaço não estava acordado. O Jacques Lecoq tem esse exercício de aquecer o espaço, esse pensamento é muito diferente de aquecer o ator. L – Algumas coisas que observei do trabalho de vocês: a presença da repetição, a duração das ações e outras coisas que você poderia comentar sobre. C – Isso são dois aspectos do método do Viewpoints: ação e repetição. A repetição é a possibilidade de ter uma ação que é algo que se repete e que também pode se modificar. Eu

276


acho que nosso cotidiano é assim, sobretudo a repetição. Todos os dias eu me repito, posso estar mais ou menos cansada, mas algo se repete. E por isso esse elemento veio para nossa pesquisa, de nossa observação do cotidiano. a repetição também tem a ver com nossas possibilidades. Às vezes estamos presos em possibilidades únicas, e se estamos conscientes disso talvez possamos alterar isso. O próprio pensamento é um ato de repetição. Tudo tem repetição com um certo grau de diferença. A natureza se repete, nosso cotidiano se repete. Se não olharmos para isso não estamos nos olhando. Quando você faz algo diferente, isso é excepcional. A regra é a repetição. L – Mas você tem algum objetivo com isso na cena especificamente? C – Nós trabalhamos repetição com diferença. Eu penso que tem relação com a coralidade. É uma estratégia poética. Pensando no espetáculo do Sofá, tínhamos histórias muito similares mas com aspectos diferentes. É como a gente pode brincar com rimas, com a percussão da poesia. Pensando sobre ontem tínhamos 20 pessoas num espetáculo que geralmente tem 60 pessoas. Fazendo uma reflexão sobre ontem vocês, público, receberam muito mais repetições do que normalmente se receberia no espetáculo. Eu acho que foi um pouco diferente. É o nosso processo de criação, mesmo. Sobretudo essa peça. L – Mas eu acho que ‘A Festa’ também tem bastante repetição. C – É. É engraçado porque não foi o Viewpoints mais focado por nós. E a ação coral, também, que não acontece em sincronia. O fato de não haver um protagonismo também é um reflexo disso. Todos no mesmo enunciado mas com pequenas diferenças. L – Eu vejo isso em ação, ou em elementos, em palavras. C – Vários mundos, é isso? L – É uma ação que, sendo uma só, dá sensação de repetição justamente por se desdobrar. O giro, ou varrer, por exemplo. C - Nós pensamos pouco a duração. Eu acho que não é o elemento preponderante de nenhum dos espetáculos, a não ser no começo d’A Festa’, onde todos passam pela identificação dos números. Reclamaram disso, mas é como quando você vai numa repartição pública, isso dura muito. É parte da experiência durar mais do que é confortável. Tem um conceito do Jo-hakyu, que eu gosto muito. Quando a peça está fora do eixo ,ela está sem organicidade, sem joha-kyu, sem a duração própria de cada coisa. Como trabalhar duração e jo-ha-kyu. Mas não tem a intenção de não ser palatável... A coisa precisa acontecer no tempo que ela tem. É importante trabalhar com variação. Penso que cada apresentação nossa tem uma natureza. Isso também depende muito da conexão com a platéia. O ‘Aqui dentro’ dura 20 minutos. Não tem cadeira pra mudar, não tem público de interação. Tem essa questão do teatro que é a

277


modulação, de como estamos, se estamos cansados, que dá uma variação. E também tem uma margem, sabemos mais ou menos quanto as coisas duram. Tem dias que eu olho uma cena e acho que demorou demais. Mas o tempo da varrida é o tempo da varrida. Então ali temos uma desaceleração proposital da ação, e outras coisas tem a variação do dia. L – O diferencial do trabalho de vocês é que para mim de fato ele passa uma sensação forte de simplicidade, não foca em “O Espetacular”, apesar da complexidade do enredamento de ações, e me mostra que para se conectar com as pessoas é mais simples do que imaginamos, são essas tais ações simples, como chegar com um papel, desenhar no prato. E eu fico curioso sobre a autoria e o processo de roteirização. Na performance trata-se de programas, roteiros, já as peças de vocês obedecem uma estrutura de textos... C – Para a peça do sofá, por exemplo. Eu vi um panfleto de vendas de sofá e achei o título bom para uma peça. Então resolvi fazer baseado em um determinado conceito de causalidade perturbada. Pesquisamos todos isso. A partir disso todos recolheram histórias e eu encadeei um texto, depois de um processo longo de improvisação e levantamento de material. Tem ações que vêm dos atores e ações que saem do diretor. Aí, temos dois processos, um para a rua, outro para o teatro. Peguei um tema de uma fala da Maria Rita Kehl sobre as depressões como um processo coletivo, uma dissonância entre a velocidade da sociedade e a imagem da felicidade. Aí tinha o método. Era a mesma dramaturgia para os dois espaços. Então como diretora proponho composições com vários elementos para os atores. Eu coloco regras. No ‘Aqui dentro...’eu não fiz composição como atriz, achei melhor ficar de fora, porque não consigo julgar quando estou compondo junto. As composições trazem muitos materiais. Em uma delas o título era ‘Construir e destruir mundos’... L – Explique como é a estruturação das composições... C - Eu crio um título que tenha relação com o material que estamos lidando ou o que interessa naquele instante. Tivemos uma composição intitulada ‘tá tudo bem’. É mais ou menos uma técnica da Anne Bogart distorcida: tem que ter uma relação espacial, um trajeto, uma relação com o público. Eu invento as tarefas que naquele momento me parecem relevantes. É interessante como as atrizes lidam com isso. Às vezes lidam, às vezes não, às vezes fogem e mesmo assim continua bom. No processo d’A Festa’, apareceu muito material bonito, e depois temos que selecionar. No ‘A Máquina do Tempo’ tinha uma composição chamada ‘onde está o agora?’, e eu lembro que eu pus ‘agora’ em vários lugares. Abria portas, gavetas, encontrava ‘agora’ em tudo. Tinha outra proposição em que a Ana comia em cima de um relógio...Outro momento é quando eu fecho a concepção de um espetáculo, e a partir daí vem a dramaturgia. A concepção é que o público vai mudar as cadeiras, e aí experimentamos. Da

278


primeira vez que tentamos quase não tinha texto, aí eu fui propondo a dramaturgia. Até hoje foi assim, primeiro vem a experimentação. Fora ‘O Sofá’. A experimentação, as composições...E aí é um processo de depurar. Essa peça já teve muito mais coisas. A gente vai tirando. Depois vem o texto. Quando eu voltei das férias pensei nisso, que ‘A Máquina do Tempo’ seria em três partes. Que íamos trabalhar com a ideia que se sabia os dias de vida de casa um. Isso eu tirei de quando eu morei na França e era babysitter do filho do proprietário da minha casa. Um dia ele fez o cálculo de quantos dias eu tinha vivido, ele tinha aprendido na escola. E resolvi começar com isso. Paralelo a isso eu trouxe uma dramaturgia com 40 páginas. O objetivo é ir enxugando, é que fique simples. L – Você escreve o texto? C - Eu que escrevo o texto. Eu trabalho bastante com colagens, eu uso uma frase que é uma tradução de uma frase do ‘Mercador de Veneza’, é um processo a partir de algo. Mesmo que você veja o ‘Mercador de Veneza’, mudou muita coisa. A dramaturgia é usar essas coisas de modo que nos sirvam. L – Como você faz esse cálculo de texto com a ordem das ações? Como fica essa ligação? C – Tudo vai mudando conforme os ensaios. Tem algumas ações que aconteceram de um jeito durante uma composição e eu lembro de um elemento daquilo, como marcar a altura da pessoa na parede e coloco na cena. Os textos das atrizes também entram nisso, por exemplo a cena da Ana, que ela diz ‘quantos dias vive um coelho?’. Foi uma reposta que ela me deu durante uma composição. Aí também é tentativa e erro, levantamos a estrutura proposta. N’A Festa’ tínhamos a ação principal acontecendo e outras coisas acontecendo em volta. Isso deixa um espaço para o ator criar em cima do texto que o outro está falando. E todos fazem juntos. Eu nunca imponho minha vontade. Para elas é um pouco difícil. Por exemplo descobrimos que o meu texto não funcionava pra elas falando, então tivemos que mudar. Então vamos vendo, e se não funciona sai. Então acontece a dramaturgia e direção e proposição do ator muito junto. Eu sou bastante diretora, dou bastante feedback. Tem momentos que eu trago a concepção, tem momentos que eu trago a dramaturgia e a gente vai afinando. Eu acho que ‘A Festa’ é mais autoral das atrizes, no sentido que as ações foram propostas por elas, elas ficaram mais soltas. Mas também conforme acontece cai bastante coisa. Aí o outro processo é diferente: eu lanço a concepção, peço para todos entrevistarem muitas pessoas com relação a temas e me mandarem o material. Às vezes é bem fechado, ou até bem amplo. Tem até palestras que a gente ouviu que já entrou dentro disso. E aí eu fico no meu computador fazendo o texto, decidindo o que fica e o que não. E isso é sincronizado com o percurso, os tempos de andar, de se movimentar, de se mexer.

279


L – E a roteirização das intervenções de rua? É através de um programa? C – É um pouco isso, no sentido da exploração. Mas Mas tem muito conceito, é muito perto do conceito. No ‘Aqui Fora’, o conceito era ‘capas amarelas’. ‘O que vamos usar para conduzir o público? O caderninho.’ Eu controlo mais essa precisão. N’O Farol’ eu fiz uma leitura do Paul Virilio e eu queria um movimento de grande velocidade para baixa velocidade, e descobri a estação Presidente Altino, que é um estacionamento de trem. Eu queria que o farol saísse de um lugar de altíssima velocidade, onde há circulação de grana, para falar sobre isso, esses processos de velocidade. Se você tem dinheiro você viaja, senão fica 10 anos juntando dinheiro, quando muito. Então eu dei tarefas, como projetar no percurso, fazer gravações. Aí vêm ideias, também vêm ideias na véspera e aí ligamos pra produção e pedimos um monte de coisa. L – Como o Viewpoints entra nisso tudo? Com que tipo de tratamento? C – Acho que a maneira de olhar o treinamento. Eu estou fazendo uma matéria com o Tó (Antônio Araújo) e ele tinha conhecido a Anne Bogart. Perguntei como tinha sido e ele falava muito de arquitetura. Achei muito interessante porque era uma visão totalmente diferente da minha. Eu gosto do Viewpoints porque cada um se relaciona de um jeito com a técnica. Para mim o que é mais importante é o conceito da ‘resposta’. E esse método trabalha muito com espaço e tempo, que é algo inevitável em qualquer situação. Ele também se apoia muito na arquitetura, trabalha repetição, a duração. E nos ajuda a dialogar sobre coisas que funcionam e não funcionam. Sobre mudar tempos, ou decisões como repetir algo. Nos direciona. Eu também não sei dizer como as outras pessoas trabalham. L – Eu imagino como é a sala de ensaio de vocês...Vocês estão sem espaço físico? C – Só agora, porque acabou o fomento. Nosso ensaio começa com treinamento, exceto quando estamos em fases muito atarefadas. E depois começa o processo de composição, mostrar e dar feedback. L – É nesse momento que você lança mão do Viewpoints? C - Eu sempre incluo na composição elementos do Viewpoints, por exemplo ‘usem tempo’, ‘usem uma relação espacial x’. Mas não fico pensando com base do Viewpoints. As proposições vêm por inquietações. No período de composição também tem muita frustração, porque elas ficam semanas sem ressonância do material. Mas quando tem algo que vai servir para a peça, é unânime, todo mundo sabe. Nós não temos um texto de partida, temos um tema de partida, por isso ficamos algum tempo patinando. L – E a trajetória de vocês? Você chamou o pessoal para fazer a Guerrilha e depois?

280


C - O grupo tem 7 anos. A história é engraçada porque eu dava aula de Viewpoints. Eu fui mandar um projeto para a Cultura Inglesa e tinha que dar um nome para o grupo, que não existia. Abri um tarô e veio a carta do Povo em Pé, que são as árvores. E eram outras pessoas e outro projeto. Nasceu o nome ‘Povo em Pé’. Mandei para o edital. Logo depois eu tive a ideia da Guerrilha Magnética. Aí chamei várias pessoas, como a Graziela e a Ana, de outros contextos, e algumas pessoas para quem eu estava dando aula. E o primeiro projeto que mandamos pro fomento era pela cavalaria, nem éramos cooperativados. Tinha 4 meninos, depois ficaram dois, e aí umas meninas já não vieram. Durante um bom tempo ficamos em um formato que era... L – De 30 sobra um ou dois. C – Uns dez. Ficou quem tinha mais afinidade ou interesse. Quem me aguentou, também. A Julia ficou o tempo todo que estávamos na rua e saiu um pouco antes do processo do sofá. A Paulinha foi embora antes do sofá e depois voltou pra fazer o segundo fomento. Também tem momentos em que queremos outras pessoas junto, mas também tem um histórico de linguagem... L – Que já está se solidificando. C – É. L – Como eu conheci só com mulheres achei que era assim, mesmo. Na faculdade em um momento eu sempre estava trabalhando só com mulher. C – Ah, sim. É meio difícil, mesmo. L – Outra coisa que me intrigou foi que vi que estávamos usando os mesmos elementos, eu e vocês. C – Quais? L – Tem uma ação que faço com a mala. O Vanderson, ator da peça que estou dirigindo foi assistir o espetáculo com a mãe. Ele que veio me contar que tinha muito a ver com nosso processo. A mala, as portas... Eu já fiz um trabalho que era uma sequência de oito portas com a fechadura em tamanhos diferentes, que delimitava o olhar, por onde você olhava. Inclusive foi em períodos parecidos. C – É, estamos compartilhando mesmo o espaço público. L – O tempo também. Quando eu estava na Unicamp fiquei fazendo trabalhos em cima do tempo. Em um grupo pedi um exercício de pensamento em fluxo, não tínhamos nada que nos ligasse, mas das palavras-chave que colhi deles eu tirei o tempo. Isso resultou em uma intervenção que fizemos durante 3 dias, cada dia 3 horas. Na praça principal da universidade ficávamos andando em círculos ao redor do grande círculo. Cada um tinha uma motivação

281


acerca da discussão do tempo. Nos primeiros dez minutos a cada dia a proposta era esvaziar o pensamento, os três partiam juntos. O Felipe ficava circulando com a bicicleta por dentro do lago já sem água. A Bruna no meio e eu por fora. Parecia uma órbita de astros. Eu tinha que suscitar questões do tempo pelo viés da fé, ela, a partir de um texto que ela criou, sobre a formatação das ideias, e o Felipe discutia o tempo pelo viés da ciência. E eu lembro dessas pequenas coisas de vocês.

282


ANA LUIZA LEÃO. Dançarina, circense e atriz do grupo OPOVOEMPÉ de intervenção urbana e teatro. 24.11.12 L - Primeiramente obrigado por aceitar esse convite. Estou fazendo essa pesquisa com amparo da Fapesp, é uma pesquisa sobre performance com gestos simples em espaços públicos. Eu venho trabalhando com esse tema já há algum tempo e o Luiz Fernando Ramos, ao final do meu seminário, me mostrou um DVD com alguns trechos do trabalho de vocês. Eu conhecia o grupo até então como um grupo de intervenção urbana e me identifiquei com o trabalho e achei interessante. O primeiro trabalho foi o da ‘Máquina do Tempo. Vi ‘O Espelho, ‘A Festa’ e depois o ‘Aqui dentro aqui fora’. A - Você viu semelhança? Você viu só o espelho mas você consegue ver uma linha comum entre o que tem dentro e fora em relação ao mínimo olhar? L - Sim, vi. Principalmente o fato de os espetáculos serem como um encadeamento de ações simples. Mas não vou falar muito das minhas opiniões para que você coloque suas percepções primeiro. Sobre o mínimo, são ações que beiram a invisibilidade no dia-a-dia, e estou tentando definir os termos pelo que leio e baseado nessas entrevistas com artistas que considero que façam algo nesse sentido, para que eu possa alargar meu horizonte. L – O que você entende hoje por performance, a partir da sua experiência e bagagem? A – É uma pergunta em aberto, sendo refeita constantemente. Quando assisto Bob Wilson, vou ao teatro, etc, estou sempre me refazendo essa pergunta. Há um cerne que é um ‘aqui e agora’, que é algo transformador naquele instante para quem faz e para quem vê, para quem propõe e para quem se propõe a assistir; é muito verdadeiro. Todo mundo tem que sair transformado. Eu falo de sensações mais do que teoria. Às vezes eu assisto algo que não me toca – não que tudo tenha que tocar, claro. Há momentos comuns, há instantes que podem ser vividos em comum, há em encontro, como esse momento aqui agora. L – Algo vivo, transformador, presente, essa é sua ideia de performance? A – E também é muito autoral, se você se propõe a fazê-lo é um risco, sempre é muito relacionado com suas perguntas. Há uma inquietação que necessariamente tem que estar ali. Há uma urgência. Eu estendo isso para a vida também. E for a isso, há vários níveis de performance. A relação com a platéia no teatro, por exemplo, é uma delas, mas a performance é mais arriscada, um salto sem rede. L – Onde está esse risco e que risco é esse?

283


A – Não se sabe o que vai acontecer, qualquer tipo de previsão talvez possa aprisionar. Eu acho que cada encontro é muito único, independente da combinação. Eu nunca sei o que vai acontecer. Estamos aqui eu e você e isso gera algo. Se qualquer coisa muda, sua abertura, seu olhar, seu tom de voz, ou como eu recebo isso, já muda muita coisa. Abrir-se plenamente pra isso é muito arriscado, porque toda troca é inédita. Se eu tenho uma programação em relação ao espaço, é outra coisa. L – Você falou sobre uso dos espaços. Que ideia você tem de espaço público? A – Espaço público deve ser algo pelo qual você transita, algo acessível a todos, onde não exista maneiras diferentes de se entrar, e pode ter funções ou não. Há espaços com função de transporte ou consumo, por exemplo. Mas deve ser acessível. Nós trabalhamos com um ponto de subversão, então quando falo de espaços públicos…O lugar tem suas características espaciais e aí as pessoas ocupam esse lugar, isso é muito diferente, falar só do espaço e do espaço com as pessoas ocupando ele. E quando trabalhamos convidamos as pessoas a participarem e há um componente de subversão, uma subversão cuidadosa. Há lugares que te atraem e lugares que não. Às vezes me pedem para criar algo para um certo espaço, então eu me pergunto o que acontece ali, qual sua espacialidade, que tipo de lugar é aquele, que ritmo tem. Cada parte conversa com um certo tipo de ação, isso nasce a partir da observação. Também observo o fluxo natural dali, se as pessoas passam ou ficam, se podem sentar-se. O lugar pede coisas. Talvez as pessoas estejam adormecidas, então vou tomar medidas em relação a isso, entender o que está faltando, que vida não existe ali e pode ser levada até lá. Às vezes é algo mínimo, mesmo, no sentido de que já há algo ali e você só entra pra revelar uma pequena coisa, despertar a atenção para a aquilo. A nossa prática é assim. L - Sobre intervir em lugares, existe um conceito que é o não-lugar, eu queria provocar o seu pensamento para elaborar o que seria um entre-lugar. A – Eu tenho uma pesquisa que é anterior ao grupo, onde os encontros vão se dando por afinidades. Eu entrei no grupo porque encontrei ressonância com meus interesses. Eu chamaria esse lugar de não-lugar, não sei se é o mesmo conceito que você está usando. E entre-lugar seria o que permeia, entre nós tem uma substância que é o ar, é um ‘entre’ vivo, que nos afeta. Estou pensando em pessoas e em relações. É um lugar que existe permanentemente, e quanto mais consciente o ator, ou performer, estiver disso, mais ele se revela. Você tem um lugar com uma espacialidade, o entre está lá também. É importante revelar o entre, essa relação. As pessoas percebem quando fazemos isso quando nos apresentamos. Eu sinto que o entre está nessas conexões, coisas que se revelam. O entre é muito rico. Na minha percepção as coisas estão em contato.

284


L - De que maneira essa percepção está presente no cotidiano, além do plano artístico? Esse entre está vivo? A – Eu tenho impressão que as pessoas agradecem quando revelamos um entre vivo. O entre acordado é um momento raro. Penso que nosso cotidiano – a pressa, as frustrações, os objetivos - corta um pouco esse entre, separa as coisas. O entre não existe se eu não souber que ele existe. E existe quem viva assim, sem saber que o entre existe. Mas é muito melhor revelar e considerar o entre vivo, pelas qualidades das nossas relações. L - O que seria um entre-lugar físico? A – Eu associo e lembro de coisas com suas perguntas. a Lygia Clark, numa época da vida dela, resolveu parar tudo porque entrou em crise por seu trabalho não ser autoral, ela considerava que aquilo vinha de outras pessoas. Então ela fez um quadro cuja moldura era enorme. Aí ela já questiona o que é quadro e moldura e essa obra já é ligada à espacialidade do lugar, pois está relacionada à sala onde ficaria a obra, nos transporta para as linhas espaciais da arquitetura e você começa a pensar nas várias molduras que te cercam. Também penso em dois pontos. Nós fizemos uma intervenção na esquina da Av. Consolação com a Av. Paulista, que é um lugar de fluxo intenso. Nós brincamos um pouco com as linhas de pedestre, e as pessoas atravessavam e não faziam o caminho “oficial”. Ali já estava estabelecido uma nova necessidade antes de chegarmos, esse é um entre-lugar interessante. É uma ocupação entre dois pontos. Essas linhas da Lygia entre o quadro e a moldura são muito marcadas, tem um entre ali, no espaço. L - Você poderia diferenciar ação de gesto? A – Tomei água: isso foi uma ação. Isso já é um gesto (demonstra uma gestualidade com a mão). No olhar do Viewpoints tem o gesto cotidiano e o gesto expressivo. O primeiro pode ser coçar o nariz, mexer no cabelo. E às vezes está num lugar de gesto parasita, que você não percebe que está fazendo, tem um componente inconsciente. Ao pensar em gesto expressivo, talvez você não faria aquilo na fila do banco, é uma qualidade de comunicação de emoção, de sentimento. É uma expressão. É interessante pensar onde eles se cruzam, também. L – Como você definiria ação simples? A – Sempre precisamos olhar pra vida pra responder, no cotidiano, por exemplo. Ouvir. Ações geradas externamente e internamente, como corrigir sua coluna quando dói. Piscar os olhos, apoiar os braços, mexer o dedão. Pra mim é das coisas mais belas, que quando somadas viram música. Eu vejo música e dança em todas as ações cotidianas, ações simples. Algo me faz querer apoiar (os braços na mesa), algo me gera, não importa sua natureza (voluntário, involuntário). Algo cotidianamente presente. O corpo tem circulação,

285


não está parado, por mais imóvel que esteja, há muita ação acontecendo. Pode ser consciente ou inconsciente também. São níveis diferentes. Que atenção tem esse que faz. Se falamos em atores, já há um outro nível de consciência corporal, mas isso (esse não perceber as próprias ações)

também acontece. Já estamos falando também de comunicação. Daquilo que é

comunicado através do corpo. Posso enquanto atriz comunicar, ‘sem querer’, tensão porque estou tensa. Temos que cuidar da ‘neutralidade’, para em cena comunicarmos o que queremos expressar com a cena e não um eventual aprisionamento meu individual a questões fora daquele universo. Consciência e cuidado no que estamos comunicando. L – Como você definiria mínimo gesto? A – Tem uma pesquisa minha que não entrou na pesquisa do OPOVOEMPÉ. (Ela demonstra: passeia com os olhos de baixo para cima com leves piscadas e um suspiro quase imperceptível): Entende? Dentro está acontecendo muita coisa. Quando falamos do fluxo ele também está acontecendo dentro: eu procuro uma palavra, lembro de outra coisa, aquilo me gera algo, tenho uma intenção, mas não vou, tudo isso dentro, no fluxo. O cinema (obviamente por causa da câmera) fala demais disso, acho. Quando você vê gradações no olho (o dentro fervilhante, mas o fora muito sutil, como nós e nossos pensamentos e sentimentos no dia-a-dia). Falando de dentro do campo da anatomia emocional, por exemplo. O coração bate, independente de mim. Esse mínimo acontece de qualquer maneira. (Isso só a nível de corpo, se pensarmos na organização disso tudo no mundo, isso está). Eu vejo a mínima ação um pouco assim, nesse fluxo também mental, psíquico, de idas e vindas e hesitações. Na minha pesquisa trabalhos com sonoridades musicais, como me transformam, me alteram, mas é quase o mínimo possível, despertam o dentro, um gráfico de coisa acontecendo que são dentro de mim, não “preciso me expressar”. O mínimo está dentro. L – O que se manifesta desse dentro que você menciona? A – Em que âmbito você quer saber? L – O mínimo é emocional, é biológico, ou tem relação com algo? Com detalhe com o que não se vê? A – Sim, tem relação com detalhe, com algo que não é escancarado. Eu creio que o mínimo é visível e sensível. É perceptível. Acho que está ligado ao emocional, mas não somente. É só o tamanho de uma mesma coisa. No Viewpoints, quando falamos de resposta. Resposta espontânea ao estímulo que pode ser interno ou externo. Isso me transforma, no dentro. Quando se fala em minimalismo me vem a ideia de escala. Se alguém bate uma janela eu posso reagir de uma maneira grande, ou se alguém derruba uma colher eu posso reagir de uma maneira sutil.

286


L – O que seria o mínimo gesto no contexto performance-vida? Quando há ação há gesto e quando há gesto há ação? Ou há diferença entre mínimo gesto e gesto mínimo? A – Uma partitura corporal, por exemplo, pode ser executada em várias escalas. Eu acho que eu precisaria fazer as coisas pra entender essa diferença. Preciso olhar, fazer. Quando penso em ação penso em verbos. Há coisas que vêm da intenção, outras que não, da consciência, da escolha. Há gestualidades mínimas, as gentilezas, por exemplo, são mínimas e são uma oferta de algo. Ter abertura para escutar e se transformar também pode ser uma coisa mínima. Mas na verdade é o máximo. Estamos falando de fisicalidade. Quando nas minhas aulas usando viewpoints peço para os alunos correrem ou pularem, eles não conseguem se ater simplesmente àquilo. É incrível como é muito difícil fazer uma ação simples. Há uma necessidade de “preencher” (encher, demonstrar) que não se “contenta” com o simples. L – Essa obrigação de ser o melhor no nosso trabalho se revela como excesso e não funciona. A – Esse simples é muito difícil, é um grande trabalho. N‘O Ator Invisível’, do Yoshi Oida, por exemplo. Esses questionamentos, sobre como ficar limpo. Fazer um trabalho interior, as intenções, a necessidade de falar, se por vaidade ou por contribuir com o coletivo. Senão é muito fácil cair no lugar do que já funciona. Como se renovar, como se questionar o tempo todo. No ‘Cartas a um jovem poeta’, do Rilke, há uma passagem em que ele diz ao poeta que ele só será “bom poeta” se ele morrer, se ele adoecer por não estar fazendo aquele ofício. Outro dia também vi uma entrevista com a Fernanda Montenegro, e ela disse que diria para um ator que está começando: ‘Desista. Mas se você adoecer porque não está pisando no palco, aí não tem outro jeito’. Porque tem que fazer sentido pra você. O cerne é a relação. A Fernanda é viva demais, receptiva, arrisca e sabe seus limites. “Eu só não adoeci, porque no teatro eu pude ser”. L – Em que medida você acredita que o mínimo e o simples possam atravessar o excesso da vida urbana? A – Atravessam dependendo de onde eles partem, seu princípio. Daquele que faz (de onde parte?). Ação por ação não atravessa. Você pode ver. Para atravessar, tocar, conversar há de ter uma urgência. Quando há urgências as coisas acontecem. L- A questão, não é? O que te impulsiona àquela ação. A- Sim. Você pode atribuir a mesma gestualidade a várias pessoas, mas de repente uma chama atenção. Pois está viva com suas contradições e perguntas. L – Eu fico pensando sobre o que preenche a ação, então, se não basta ela para estabelecer o diálogo, pois o contrário disso, como conversamos é o ‘enfeitar’ a ação com excessos.

287


A – Eu acho que o cerne disso está na presença. Uma mínima ação presente diz muito. Fazer a ação integralmente, preenchendo cada instante da ação. Não cria-se um motivo, uma vontade e contra vontade , não é ‘intenção’, não é vazio, é vida, é presença, “aquis” (aquiaqui-aqui-aqui- lembra-me, a mim, Lucas, o presente contínuo de que falava Gertrude Stein, uma sucessão de agoras, ou a noção de devir, cada vez mais deserto e por isso cada vez mais povoado). Tem que se sentir onde se está, o pé no chão, a temperatura da mesa, o quadril onde está. L – Você conseguiria estabelecer alguma relação entre o meu trabalho e o de vocês a partir do título do meu trabalho ‘A performance no espaço público através da mínima ação e do gesto simples’? A – Sim. Nós entramos numa dança cotidiana nas intervenções, num supermercado, por exemplo. Lá já existem ações, e nós vamos entrar com mais ações. Chamamos isso de invisibilidade e evento. Enquanto eu estou dentro da ação de lá, eu estou invisível. Se eu causo um estranhamento ao abrir a geladeira, isso é um evento. Eu vejo essa relação. Pra revelar coisas você precisa estar em sintonia. Como é a dança que já existe, como as pessoas estão no ponto de ônibus? Isso mexe com coisas que estão adormecidas. E precisamos uns dos outros pra nos acordar. L – Em que medida a arte – cuja raiz terminológica contém artifício – precisa se espetacularizar para efetivar a troca? A – O que você chama de espetacularizar? L – O que você entende por isso? A – Isso pode acontecer de muitas maneiras, é uma coisa da linguagem. Um jeito é chamar atenção para, dar foco, revelar. Nós tínhamos um trabalho chamado ‘Isso não é um espetáculo’, e muitos trabalhos nossos vemos desse jeito, não como espetáculo. Um Bob Wilson, por exemplo, é abundante de recursos. Iluminação, cenário, atores, a qualidade da sonoridade, a maneira como é orquestrado é muito espetacular. Você também pode observar um espetáculo no cotidiano, por exemplo. Tem arquiteturas que revelam. L – Mas é espetacular? A – Eu me pergunto de onde vem essa palavra. L – Me remete à grandiosidade do Bob Wilson que você comentou, por exemplo. Mas eu me referia à sociedade do espetáculo, do Guy Debord. A – Quando fazemos um trabalho nós olhamos o cotidiano. O olhar é apreciar o que já é, então o espetacular depende do olhar. Outro dia eu olhei aqui do lado e parecia uma cena de Magritte. Não sinto que meu olhar construiu, e sim que recebeu. Creio que a apreciação tem

288


relação com nosso estado interno, com a consciência interna. É preciso ter escuta. Esse violoncelo, por exemplo, tem afinações diferentes, e ele tem essa microafinação. Às vezes propomos para as pessoas da rua pararem por um tempo, colocarem o pé na grama, ouvirem o próprio coração. Eu considero isso também uma microafinação. L – Quando você está propondo isso precisa ser algo espetacular? Não, é sempre muito simples. O espetacular até afasta. O encontro em si é espetacular. Tem a ver com respeito, com o tempo, esse encontro precisa ser verdadeiro. Pra mim isso já é um espetáculo. Às vezes o espetacular do Bob Wilson também pode comunicar. L – Pra mim o maior espetáculo do Bob Wilson está nas palmas, no sentido pejorativo. Quando eu assisti o ‘Aqui dentro aqui fora’, senti que vocês não fazem espetáculos para serem aplaudidos. Não por ter sido bom ou ruim ou por não saber que acabou. É como se você continuasse sentindo os efeitos, então não tem porque aplaudir. Os aplausos no Bob Wilson são um grande espetáculo social pra mim. E também lembro da competitividade que mencionei antes. Fico pensando em que medida a arte precisa de tanto dentro de uma cidade que já tem tanto para que algo aconteça. Talvez seja isso, o pé na grama. A arte visaria uma “troca” de experiência na sua opinião? E o “valor de troca” da arte é social ou econômico? e qual a diferença entre “valor de uso” e “valor de troca”? A – Eu tenho uma imagem aqui. Essa obra de arte gera algo para quem vê. A arte toca o ser objetivamente no profundo do ser, esse conceito é o da arte objetiva, do Peter Brook. E em que medida eu também não alimento isso, além disso me alimentar. Eu não saberia dizer em que proporção se dá a troca. E eu não vejo a arte financeiramente, isso é um jeito que ela está sendo trabalhada hoje. Há outros jeitos. Quando eu falo de moeda, por exemplo, que para mim é energia. E se você guarda o dinheiro a energia para de circular. O consumo está num lugar muito raso, a posse é excessivamente importante. Achei a definição de espetáculo aqui, é olhar atentamente. Você precisa de um tempo para se dedicar àquilo. Quando propomos o pé na grama, a pessoa sai diferente daquela experiência. E tem muitas pessoas que não dão abertura pra nós. L – Elas estão esperando o espetáculo social, talvez. Virou como o ‘compro ouro’ para as pessoas. A – É, e realmente eles não falam com o rapaz que compra ouro. Mas eu não saberia por onde pensar valor de uso e valor de troca. Por princípio a arte só existe se alguém olha. A troca existe, com tempos diferentes. Às vezes eu assisto uma peça que foi escrita há mil anos atrás. Também há a troca como energia. Dentro do tempo não há nada parado. A princípio a troca é social mas também se insere no econômico, é inerente. É social, é político e também é

289


necessariamente econômico. E dentro disso você vê os valores, que são questionáveis. Depende de como julgamos os valores hoje. É difícil porque penso em manifestações mais ancestrais, como dança, pintura, teatro. As pessoas precisam de coisas que as reflitam, que as façam questionar. Eu não conseguiria pensar num teatro comercial hoje. L – Qual a importância do público (caráter público, pessoas em si, espaço) no seu trabalho? A – Não haveria motivo para fazer se não fossem as pessoas, esse encontro. Hoje tem essa questão do acesso, o público não frui a rua, e aqui em São Paulo não tem mar, que é uma coisa gratuita à qual se pode ir. Em Berlim, por exemplo, tem muito mais acesso, tem monumentos que são históricos e têm muita vida no presente. Aquilo te transforma. Lá tem mais ambientes artísticos. Também tem essa questão das diferenças sociais, como alguém sem acesso pode apreender uma obra intelectual? Que tipo de arte se pode oferecer que seja acessível a todos níveis sociais? E também políticas públicas, dinheiro público. Nós estamos engatinhando muito ainda. A Denise Stoklos, por exemplo, deveria ter um apoio para fazer o que quisesse na hora que quisesse, mas a mulher está ralando, tentando edital. Isso não acontece em outros lugares. A Meg Stewart falou que o tipo de laboratório que ela faz só é possível porque ela tem uma infra-estrutura para isso, onde ela pode descobrir fazendo. Aqui precisamos explicar tudo no edital previamente. L – E há também o questionamento de por que a arte deveria ser merecedora desse espaço, se ela também batalha por um lugar de ofício como os outros. E também me pergunto por que a arte não faz parte da vida das pessoas. Isso estaria resolvido, porque estaríamos no mercado como qualquer outra profissão. Você está colocando que o poder público é bastante importante. A – Eu estava pensando no caso da Denise Stoklos. Fico pensando sobre o que deveria ser diferente. E ela é uma artista internacional. Eu penso sobre as instâncias de reconhecimento aqui no Brasil. L – Eu não paro de pensar na Petrobrás e como muitos grupos de teatro sobrevivem da Petrobrás. É exatamente isso: o desenvolvimento do Brasil com a força no Petróleo. E muita gente hoje trabalha com isso e tem um discurso oposto a esse. A – O SESC também, que é muito importante hoje. Eu vi espetáculos muito importantes pelo SESC. L – Eu acho mais difícil de analisar do que a Petrobrás. A – Sim, principalmente quando você está dentro. Para as produções de fora (internacionais) tem muita abundância de recursos e para as produções internamente tem muita restrição.

290


L – O Teatro Oficina foi pra Fortaleza, ganhando 627.000 reais para realizarem quatro dias de espetáculo e os grupos de lá mesmo não recebem apoio público. Este fato causou grandes manifestos. Qual o espaço público da arte no espaço público? A – Pensando em espaço público, as intervenções, é algo que já tem se tornado mais possível, já é uma categoria dentro dos editais, começa a ter um caráter. Eu sinto que às vezes essas ações públicas são excessivas ou descompensadas. A Virada Cultural, por exemplo, é mais pela quantidade do que pela qualidade, poderia ser programado de outro jeito, de uma maneira mais apreciativa, senão você entra num sistema de edição como o da televisão, cada frame tem menos de um segundo. É burocrático, falta cuidado, porque dinheiro tem. L – A arte já teria esse espaço público garantido, então? A – Tem, mas tem problemas enormes. Os músicos de rua batalhando, por exemplo. É muito desgastante. Mas pensando em público enquanto pessoas, elas são muito receptivas. Elas gostam e têm muito o que dizer. E dizem coisas lindas. O público é muito disponível. L – Eu acho que é porque muitos dos trabalhos de vocês lançam perguntas de maneira direta, verbal mesmo. A – É, mas o que fazemos não é verbal, o lugar que criamos, inclusive foge disso. Tem humor, tem ludicidade, tem risco, tem gente viva. Essa maneira de se relacionar me interessa. O verbal é só um canal nosso. Tem tipos de público diferentes, e esse comportamento também não está no verbal. L – Eu pensei se as pessoas realmente estão porosas para o que vai acontecer. A – Eu acho que porosidade sempre existe, depende de como você acessa. As pessoas estão sobrecarregadas. E aí as pessoas se protegem, é uma reação do organismo. É característico do nosso trabalho saber olhar para isso, entender como se relacionar com as pessoas. Às vezes chamam nosso trabalho de feminino, não sei direito sobre isso. Mas só nesse cuidado podemos abrir portas. Vamos achando pistas. L – Quando vimos a intervenção de vocês e vocês perguntam ‘Você já chegou ao fundo do poço?’, imagino que muitos dizem que sim, e meu amigo teve uma iniciativa de ir contra e responder ‘não’. A – Isso não tem problema, tem espaço para isso. L – Para você qual a importância da repetição? No seu trabalho ou no trabalho do grupo? A – Posso pensar no espetáculo que se repete e em repetição gestual dentro de um trabalho. Usamos muito essa palavra quando falamos de composição de cena. A repetição pode expandir a apreensão de alguma coisa. O sentido vai se transformando. E claro, existe a

291


pergunta: o que a repetição pode comunicar? Pode ser da palavra, da frase, da cena, do espetáculo inteiro. L – E qual seria o efeito disso? Vocês visam a expansão de uma compreensão? A – Sim. L – E também tem a duração dessas ações. Você acha que esse componente está no trabalho de vocês? Na minha visão parece um espetáculo de ações simples e eu gostaria de saber como vocês usam a duração? A – Ela também é um recurso. Ela é combinada com outros elementos, e o viewpoints nos dá base para isso. L – E como são os roteiros disso? A – Temos um roteiro com o tempo da duração, nossos objetivos. Temos uma duração que pode virar um evento se alguém estiver vendo. Às vezes a duração da veracidade, a duração do movimento. L – Mas há pré-determinação? A – Nós misturamos a base com alguns princípios de improviso. Nunca dá pra prever tudo. Um dia chegamos na praça e tinha uma banda militar tocando e manifestação, tudo junto. Mas temos uma previsão. L – Eu já ouvi uma coisa que era ‘andar’ e ‘andar’, que um era dança e outro, não. Eu vejo as pessoas na rua que não estão se propondo a dançar, mas estão criando um deslocamento que pode ser dança. Acho que tem a ver com a presença, que conversamos anteriormente. A – Sim, você pode estar ou mostrar que está, são coisas diferentes. Tem muito conceito, como fazer essa prática e teoria se combinarem? Tem que ver se isso se dá no contato com o ser humano. Tem os que não percebem o que estão fazendo, por exemplo o rapaz que trabalha no supermercado colocando as caixinhas de sabão em pó na prateleira repetidamente. É uma gestualidade. L – Quais são os métodos de criação que vocês usam? Como é esse trabalho com Viewpoints e os trabalhos com roteiros? Quando faço intervenções para minha pesquisa, de fato exploro uma ação ou um gesto só. Nas intervenções de vocês, o que me impressiona é a orquestração das várias ações simples. Para mim parece muito orgânico, não virtuoso. A – Temos três espetáculos. O espetáculo do sofá foi concebido para um palco italiano, diferente dos dois, ele é mais convencional e conseguimos fazer o circuito Sesi com ele. Lá temos partituras corporais declaradas, eu gosto dali, porque me provoca. Os outros são mais diluídos, é quase nada. No sofá é assim, tem repetições na frase, também. Tem marcações, por exemplo. Eu adoro ação física, lapidar partitura. Isso eu também chamo de entre, porque

292


revela, imagine três pessoas fazendo o mesmo gesto, é uma surpresa. Acho muito potente. Sobre os roteiros, não são um princípio, nós arrumamos depois, é o acabamento. A composição nos guia para as ações. Aí está a autoria, podemos fazer composições em grupo ou em dupla ou sozinhos. Pro aquecimento nós trabalhamos com Suzuki, Viewpoints para dar uma presença física e voz. O Viewpoints é uma técnica de improviso e composição, e essa é nossa base. Ele é uma linguagem traduzida para trabalhar nossa percepção, temos os mesmos termos e isso facilita o trabalho. O resto do processo criativo não tem como explicar, é um grande arsenal de propostas para ser enxugado. Também trazemos muitas coisas de fora, coisas que nos influenciam. L – Vocês têm palavras-chave? A - Relação com o público. Convite. Quem é o público? Se ele é ativo, como ele se comporta no espetáculo do sofá (9:50 Qualquer Sofá). L – Qual sua formação antes do OPOVOEMPÉ? A – Eu fiz Célia Helena e saí de lá com teatro infantil (Maria Borralheira) e adulto (tragédia grega). O primeiro no SESI, com carteira assinada e benefícios e o outro nós mesmos pagávamos para fazer. Eu tive as duas experiências. Hoje já é mais efêmero, no SESC a temporada é um mês e meio. Eu pude constatar esse mercado completamente desigual. Depois entrei no Nau de Ícaros, que trabalha com circo, teatro, dança, música, vídeo. Era outra coisa, muita virtuose, muita entrega, por isso também saí. É bom fazer algo bonito para os outros mas eu precisava falar, ouvir minha voz. Esteticamente era muito refinado e era muito sensual, era nossa comunicação. Depois eu estudei com o método Lee Strasberg, que é de memória afetiva. É trabalhar o que te afeta. Se eu estou em um barco com você em uma cena eu preencho o sentimento de como se eu estivesse no barco real em alto-mar. Tem exercícios de sabor, de cheiro, eu acho muito bom. Tem exercícios de relaxamento, atenção. Eles pedem para que você coloque limão puro na boca e sinta tudo que acontece. Esse método pode servir para qualquer pessoa. E depois você tenta fazer todas as reações sem o elemento. Isso me alimentou muito. Outras coisas aconteceram depois disso e eu comecei a ver música e dança em tudo. Li um conto, ‘Bliss’, da Katherine Mansfield, é muito cotidiano e muito refinado, e eu almejei aquela refinação. Depois eu fui fazer uma aula de Viewpoints na Casa das Caldeiras e achei um recurso. A qualidade de atenção, de ação, me deu base para fazer uma partitura cotidiana e precisa. Não dá para ser um ator sem consciência de si. Ao mesmo tempo não quero que vejam a matemática toda. Mandei um projeto agora para o Cultura Inglesa, e é um conto. É um trabalho delicado, preciso prestar atenção aos corpos, cada pessoa tem a consciência e o comportamento que teve a vida inteira. As pessoas já estão prontas. Eu

293


observo esse comportamento natural do dia-a-dia e quero entender como codificar isso. Minhas questões já começaram há 9 anos e depois disso conheci pessoas e começamos a fazer intervenções na rua. A qualidade de pesquisa era muito boa e o grupo do OPOVOEMPÉ foi se formando. Algumas pessoas saíram e outras entraram. L – E como foi o encontro com o LUME? A – Ambos estavam sedentos pelo novo e foi muito bom jogar com eles, porque nós temos nossos vícios, nós nos arejamos. O que eles nos ofereceram com as técnicas deles também foi muito fértil. Tivemos intensos encontros longos. Das 5 às 10 da manhã, era proposital para condicionar. O encontro final foi para amarrar o que íamos apresentar. Houve proposição dos dois lados separados, e no fim foi junto. Apresentamos isso no Rumos, que era um roteiro improvisado.

294


HELENA BASTOS. Professora Doutora de Dança Contemporânea do Departamento de Artes Cênicas-ECA-USP e atual chefe de departamento. Fundadora e integrante do grupo MUSICANOAR com pesquisa na sutileza dos movimentos, escuta corporal, corpo mídia, corpo e ambiente. 06.12.12 L- Como você sabe eu me propus a pesquisar o que seria o mínimo gesto e ação simples no espaço público, tentando entender no corpo como seria essa relação. O que estaria em jogo ao envolver performance, minimalismo e espaço público. Para tanto tenho conversado com alguns artistas do teatro, da intervenção urbana e da dança, esta representada por sua figura. H- Por incrível que pareça é um lugar que me interessa muito e isso eu venho desenvolvendo mais com os alunos do CAC (departamento de Artes Cênicas) L- No teatro mesmo. H- Pelas minhas inquietações. Converge com minha pesquisa. Mas a pesquisa do MUSICANOAR, meu grupo que vai fazer agora 20 anos, não está focada para isso. Porém nesse ambiente do MUSICANOAR, nesse lugar, de estar olhando para a cidade, eu gerei a última coreografia, Cadeira de Rosas. L- A qual inclusive na época em que eu assisti, também me chamou bastante atenção. H- Na verdade como ela é concebida? Pensando nessa contaminação: a cidade tem uma organização. Como eu trabalho com a ideia da teoria corpo-mídia em que o corpo é um ambiente que está sempre trocando informações com o espaço em que ele se insere, sendo totalmente co-dependente das relações que ele estabelece. Se este corpo está na cidade, como essa cidade interfere cognitivamente nesse corpo e também esse corpo vai interferir na paisagem dessa cidade (assemelha-se as noções de inscrição e escritura corporal no espaço). É nesse sentido que eu olho muito para a cidade. O Cadeira de Rosas foi esse olhar em que eu, a partir dessa percepção, levantei: Por que a questão das rodas (cenografia da peça que intermediava o deslocamento dos dançarinoscubos pretos de diferentes tamanhos com rodinhas)? Porque eu comecei a perceber que as pessoas hoje em dia, principalmente nos centros urbanos, mesmo quando há uma política de sustentabilidade, pensando por exemplo na bicicleta, as pessoas estão na grande maioria sobre rodas- é o ônibus-, esse direito de ir e vir,

de alguma forma já está implícito esse

deslocamento sobre rodas. Que em si já traz a ideia de velocidade, de determinados circuitos que se repetem. O que essa repetição produz no corpo? Com certeza mexe na sua rede neuronal. Olhando desse jeito me interessa.

295


Quando você fala desse movimento mais minimalista em nosso trabalho, penso que é interessante te dar uma devolutiva que isso é uma observação, uma percepção sua. Porque eu nunca penso nesse conceito de movimento minimalista. Mas, talvez, pelo modo como eu organizo o pensamento em dança, eu tenho uma recorrência em que começo a recortar a partir de uma ideia e como eu quero discutir essa ideia no corpo, eu já vou trazendo recortes. A minha tendência, não penso num conceito minimalista, mas o que eu vejo é que estruturas esse corpo vai descobrindo quando vou trazendo um campo de restrição. Talvez por isso é que você tenha esse olhar. O que ali eu estou pensando é nesse campo de restrição. E se eu posso restringir mais: uma questão no Cadeira de Rosas: já é uma restrição nos locomovermos basicamente em cima daqueles cubos de tamanhos diferentes. L-Aquilo é a regra que media H- Conforme fomos criando para eu me mexer eu comecei a usar os braços, é normal. O que fizemos? Tiramos os braços. Ficamos o tempo inteiro com os braços para trás e as mãos entrelaçadas. Ao mesmo tempo eu percebia nessa postura uma complexidade, que dependendo de como você olha pode parecer uma postura de poder, de autoridade, por exemplo a polícia com o braço para trás. L-Projeta o peito H- Há um quê de autoridade. Mas também dependendo dessa coluna, uma relação de submissão, de subalterno. É uma postura bem interessante. Não que eu percebi isso anteriormente, foi uma questão de restrição: tira isso, agora tira isso, tira isso. Como um corpo pode dançar tendo seu ambiente (restringido). Se ele anda, ele anda num cubo, que não é o mesmo por exemplo que um skate. E nem temos a ideia de ter um trabalho para uma linguagem de uma virtuosidade que as pessoas reconheçam, é uma virtuosidade que está num outro lugar. L- ela não necessariamente está exposta, tão visível. H- Como naquele ambiente tão árido, “cubos quadrados”, quem controla quem? Muitas vezes a gente perde o controle daqueles cubos. Nos ensaios caíamos muito, ríamos. Mesmo nos espetáculos muitas vezes queremos ir para um lugar e dependendo de como as rodinhas estão naquele dia elas não vão para aquele lugar, a gente ria. Os grande protagonistas de cadeira de rosas são os cubos. Eles foram pensados nessa relação dessa minha percepção com a cidade. Nós somos um articulador nessa cidade, mas essa cidade nos articula também. L- Nesse sentido quando você coloca essas restrições pensando na metáfora da relação entre corpo e cidade, em que você dá e recebe o tempo inteiro fica para mim este fato do ser humano estar sempre se adaptando, organizando o corpo para a situação.

296


H- Você agora falou algo que é fundamental, aí é o mote do nosso trabalho. Há pessoas que falam que é improvisação. Não que seja improvisação, mas lidamos com estados de improvisação, são determinadas instruções que a cada espetáculo, e até aí todo espetáculo é assim, mesmo o mais... L- Marcado. H- Sempre vai sofrer breves rumores de diferença no dia-a-dia porque as pessoas, o tempo (se está frio), se você está feliz se você está com preguiça, o trabalho, o espetáculo estará totalmente co-dependente dessas circunstâncias, só que no nosso caso essa escala é muito maior. São espetáculos de grande risco que a gente estabelece, porque vamos cada vez mais para questões muito simples, o que não quer dizer que é simplista. O simples contém as sínteses (esta frase encontra uma ponte com as crenças e buscas do movimento minimalista) e a síntese é extremamente complexa. O desafio é que se não estivermos com o corpo preparado com esse tipo de prontidão, de escuta, o trabalho vira uma bobagem. É um tipo de pensamento que exige desse bailarino, intérprete-criador, uma prontidão em relação aquilo que você se propõe e as condições que aquele ambiente se coloca naquele momento. O tempo inteiro somos obrigados a fazer escolhas. A cada vez que você vivencia aquele espetáculo é um grande evento para nossos corpos. Para ele manter esse frescor estético a gente realmente está fazendo escolhas naquele momento L- E coloca na estrutura regras que permitem esse grande acaso também, não é? H- O tempo inteiro estamos jogando com o acaso. Você por exemplo viu Cadeiras de Rosas. Em Vapor, não havia objeto nenhum, mas havia um risco muito grande em relação a mim, pois o trabalho todo discute controle em cima da manipulação da minha cabeça. Conforme o Raul (Rachou) me jogava eu nunca sabia exatamente aonde estaria esse jogo, como ele ia me jogar. Esse corpo tinha que responder porque senão eu podia quebrar meu pescoço. É uma relação como eu entendo também a vida. O tempo inteiro estamos fazendo escolhas, há horas que fazemos boas escolhas e há horas em que fazemos péssimas escolhas. O tempo inteiro você vai reconhecendo isso: “Nossa que legal!” E se você depois quiser repetir aquela situação você vai ver que não dá certo. Nem sempre aquilo que foi uma escolha maravilhosa hoje, se você tentar forçá-la no outro dia, a situação, a circunstância já é outra, e aí ela às vezes não vai caber ali. Fica muito claro quando essa coisa aparece mas chega de um jeito armado. Isso fica revelado no espetáculo. Assim também como quando há uma situação: “Nossa que ‘embananação’ eu fiz, o que eu vou fazer?” Mas isso para você. Para o observador... Eu sempre falo em aulas a questão dos “nós”, sempre acho que esses momentos que a princípio odiamos, que nos colocam numa

297


situação de “e agora?”. Quando você reconhece o que chamo de “vislumbre de uma paisagem”, é aquele momento em que você percebe que houve uma exatidão. E isso é incrível, mas ao mesmo tempo que você percebe, isso é muito rápido, já foi. É legal, os desafios serão outros, você fica querendo manter aquele vislumbre, mas isso fisicamente é impossível, pois se reconfigura constantemente. O interessante é pensar nessa atitude em relação à cena: um corpo que está sempre selecionando. L- Mas quando você fala dos “nós” que o observador vê de um jeito H-O interessante do “nó” que nós percebemos, que seria a ideia do “erro”, mas o “erro”, a pessoa que está implicada... na verdade o “erro” não é erro é um “problema”. O bailarino ou ator quando está nesse lugar, esse corpo se dilata, e o observador percebe o corpo pensar, isso é o mais incrível na cena. Você percebe, algo acontece, dá um “gap” na cena. Claro uma coisa são aqueles problemas L- Que eternamente não se resolvem H-Quando se perdeu mesmo. Embora o nosso trabalho tem sempre esse risco. Eu brinco até, às vezes tem dias que “a bruxa ganha”. Mas o “nó” é o momento em que você pode descobrir uma novidade. Foi colocado para você uma circunstância que provoca: “o que que eu faço?”. Essa dúvida. Eu sempre acho que a dúvida é o reino do artista. É nesse lugar da dúvida que está colocada a possibilidade de uma novidade. L-Aparecer. H- E aí você resolve essa novidade, no caso do pensamento como nós entendemos- é importante falar da minha parceria com Raul Rachou, nós estamos há 20 anos juntos, imagina a ideia de escuta que foi construída dessa relação, é diferente de trabalhar com alguém com quem eu comecei agora ou há dois anos. L-Bastante. H- Retomando para o seu trabalho quando você fala desse minimalismo eu até vou começar a pensar mais, porque você sem querer está me dando uma devolutiva, “poxa eu nunca tinha pensado desse jeito”, quem sabe assim por causa de você eu até vou prestar atenção nesse lugar que você coloca do minimalismo. Não necessariamente são pequenos gestos, mas são ações pontuais e repetitivas. Nesse sentido podemos dizer que há o minimalismo. L- Nessa tentativa de definir esses termos, você com essa compreensão da dança. H- No MUSICANOAR há convergências com questões que você está pensando. L- Ao entrevistar OPOVOEMPÉ, LUME, eu vi como é o entendimento deles a partir do teatro, do que seria ação e o que seria gesto. Você tendo esse background, essa formação da dança, pensando esse entrecruzamento entre performance e minimalismo, mas trazendo para o

298


seu universo da dança, o entendimento do corpo a partir dessa noção de dança. Como você definiria ou o que entende por ação simples? H- O modo como eu trabalho eu não faço distinção entre ação simples, ação, pré-ação. Ação para mim é qualquer ideia que surge nesse ambiente corpo, isso já é uma ação. Por que eu coloco que não há essa diferença? Inclusive o modo que eu trabalho, esse trânsito entre teoria e prática, por que que não há diferença? Porque são as mesmas cadeias sensório-motoras, aquilo que quando eu articulo, crio um pensamento, são as mesmas cadeias que me permitem criar uma queda em cena. Eu não faço essa distinção, não existe para mim ação simples. Préação ou ação simples, há uma série de estudiosos em teatro que trabalham desse jeito. Os pesquisadores em dança organizam teoricamente como eu estou falando para você. Agora eu, Helena Bastos, nessa relação prático-teórica eu não faço essa distinção por reconhecer que são as mesmas cadeias sensório-motoras que vão produzir um pensamento conceitual, ou um pensamento ao nível de o corpo produzir uma queda no espaço. Lógico que há um nível de descrição diferente. Eu organizo deste jeito. L- Mas de repente propondo uma diferenciação entre uma ação que você entende quando vê que seria complexa, se isso ajudar a pensar, ou simplesmente pensar num campo inteiro do que seria ação, e se há como delimitar esse termo, (ação simples). H-Penso que a complexidade já está. Se eu penso ação como mover com determinado propósito,

a complexidade já está nessa relação e no modo como eu elaboro essa

terminologia. O que eu vou poder mapear. No modo como eu crio e penso, eu não préplanejo. Eu lanço uma ideia, esta ideia já está totalmente contaminada de algumas questões conceituais, e com elas eu me lanço no espaço com alguns gatilhos. Eu estou fazendo um trabalho, novo, eu não tinha clareza, eu tinha alguns gatilhos no lançamento desse novo projeto criativo. Na hora que eu vou para a sala de ensaio movida por algumas perguntas, em que esse corpo começa a fazer algumas experiências, é nessa relação que eu vou construindo todo um sistema coreográfico. Nessa criação eu vou reconhecendo esses espaços na relação de determinadas circunstâncias que eu vou colocando para mim mesma. Não sei se consegui te responder, mas é bem diferente da metodologia do pessoal de teatro. L- E agora o outro termo que estou tentando cercear: como você definiria mínimo gesto? H- Eu acho que não definiria mínimo gesto, porque se eu estou colocando para você que não há distinção entre teoria e prática, também não haveria diferença para mim... não sei, eu não penso desse jeito, mínimo gesto... O que eu posso falar para você, que talvez eu pensasse... Aí depende, vai estar sempre dependendo da pergunta que eu coloco para mim mesma. Quando

299


você fala mínimo gesto, eu estou lembrando de alguns exercícios que já dei, talvez até por isso que você me pergunta. Penso em escalas maiores ou menores. Se faço assim com a mão (abre os dedos), isto em relação à mão é um gesto grande. Agora como com isso aqui (abre dedos e estende o movimento para o antebraço) eu posso ampliar esse gesto, é uma questão de escala. Eu até brinco com a “xerox”, “xerox ampliada” “xerox reduzida”. Talvez eu faria esse tipo de relação. Mas dar uma definição do que é um gesto mínimo L- Atentar para a diferença, se é possível pensar o que é mínimo gesto e gesto mínimo. Falando em mínimo gesto? H- Estarei chutando. Não acho que é legal. L- Tudo bem, me interessa essa construção de pensamento a partir de novas possibilidades de associação inclusive para você. H- O mínimo gesto eu vou pensar na batida, numa pulsação (Helena relacionou à menor unidade, como na música, a uma relação gramatical decodificada, silábica, de notação), mesmo uma pulsação pode ser uma pulsação estrondosa, depende da relação e da conexão que você quer. Se eu quero trabalhar, dependendo da pergunta que me lanço quando vou para uma sala de ensaio pesquisar, essas escalas, já traduzindo para mim, estas vão surgir na relação de determinadas perguntas que eu me coloco, na relação de uma experiência diferente que eu vou ter, então depois conseguirei responder. A princípio quando você me pergunta desse jeito, é muito impreciso, eu não consigo mapear isso no corpo. Uma questão mínima já me vem a pulsação. Mesmo assim a pulsação pode ser forte como um espasmo, ou às vezes eu brinco: “o fremir de uma borboleta”, que está ali, quase morta. Ou uma asa que, não é que voa, quase voa. Fico nesse “entre”. L- A arte para você pode ser entendida como uma “troca” de experiência? O “valor de troca” da arte é social ou econômico? Qual a diferença entre “valor de uso” e “valor de troca”? H- Aí você já está indo para uma linha de economia cultural, não é? Economia criativa. Eu reconheço a arte como produção de conhecimento, é como eu entendo. Hoje em dia, no contexto das políticas públicas, estamos começando a discutir, a arte tem determinadas particularidades. Penso que é importante esses editais de fomento, logicamente eles acabam dando visibilidade a determinados pensamentos e sobrevivência a determinados pensamentos criativos. Por outro lado começa a haver uma onda inversa desses grupos que acabam sendo fomentados, por exemplo, eu atualmente sou uma fomentada, digamos assim. De gerar também... Esse circuito vai se fortalecendo, você começa a ver que há um certo rodízio, uma hora você está dentro, outra hora você está fora. Os grupos começam a ficar reféns desses jogos do editais. Estão aparecendo outros tipos de problema, não estou falando que sou

300


contra as leis de incentivo, mas temos que pensar também esses outros lugares da arte. Há um grupo que estou fazendo assessoria em Ribeirão Preto e a princípio meu combinado com eles era de ir aos sábados. Ele ganharam proAc e, quando comecei, a diretora mudou para segunda-feira. Eu perguntei por que e ela alegou que era o dia de descanso deles. Tudo bem, também somos trabalhadores, mas essa relação na hora que entra conceitos de bens materiais... é um campo que precisamos discutir, porque eu vejo nesse momento muitas incoerências também. Vejo avanços, por exemplo, eu mesma não consigo produzir se não houver um respaldo econômico, mas sou de uma geração que vendia meu carro para pagar as coisas, a geração “quebra pedra”. Vejo pessoas saindo da universidade falando já da “minha pesquisa”. Agora depois de trinta anos que estou começando a entender a minha pesquisa. Sua geração, sinto que tem um discurso bastante potente, mas percebo também ser um discurso muito desencarnado. Uma coisa é o que você fala, tem aquela potência, mas eu quero perceber esta potência também no corpo. L- Você estava falando do gerar conhecimento também no fazer, não é? H- Senão vira retórica. Ou este grupo de Ribeirão é super legal e todos os bailarinos vieram de condições difíceis. Gerados desse âmbito do social, há um lugar muito precioso no trabalho que se está fazendo nessa companhia. Ao mesmo tempo me choco, pois pegam as leis trabalhistas, não sei se estou sendo incoerente, mas se você é um artista é um outro jeito que eu produzo, que eu penso a ideia de trabalho. Temo que garantir esse chão, mas não posso me colocar igual a um metalúrgico, e não estou fazendo uma questão de valoração. Mas a arte em si, se tem (deveria ter) algo de atravessamentos, rupturas, então (a partir do exposto) começa a ser uma arte muito conivente com as regras do sistema. L-Que para acontecer tem que ser sempre mediada por uma condição... H- É. L- Se não tiver fomento, “não rola”. H-Exatamente. Mas também tem uma série de questões que, por exemplo, eu até estou lendo uma tese. Dança é tida como o 4o lugar dentro das perspectivas de programas de cultura. Deixa eu até ver para não falar bobagem: “São poucos que sabem que se trata de um campo em expansão. No Brasil, teve no primeiro panorama estudado em 2006, quando o IBGE apurou que as famílias gastam 4,4% do seu orçamento em cultura”. Cultura é o 4o lugar L- É o quarto lugar dos gastos numa família? H- Isso. É um ambiente, e não sabemos disso...

301


L-Voce sabe quais os 1o ,2o 3o ? H- Olha: “Habitação, alimentação, e transporte” quer dizer a saúde vem depois da cultura. Isso é um dado do IBGE, está vendo? Já estamos em 2012, mas não é tão longe assim. A dança, se não me engano nessa questão da cultura, não sei se é a primeira...tenho que ler mais. L-Qual é essa tese? H- Da Dora Alice Leão “Uma fábrica de mentiras: A incomunicação da economia da dança”. Essas suas perguntas convergem bastante com as questões de sustentabilidade, de divulgação da cultura, de formação de público. Isso tudo gera um ambiente. Eu sinto que hoje as leis de incentivo acabam demarcando um panorama que vai mapear os que estão dentro. E os que estão fora? L-qual o entendimento que você tem de espaço público? O que você classificaria dentro dessa categoria? H- Espaço público é desde os lugares que circulamos, como a universidade por exemplo é um espaço público. Concorda? L- Sim. H-Desde aquilo que você compartilha uma circulação, das ruas à própria produção de conhecimento. Nesse sentido seria legal a gente pensar a arte como um espaço público. L- Olha, parecido com o que o Renato e a Cris colocaram. Eles devolveram ao corpo e ao pensamento esse lugar do espaço público. O corpo é um espaço público e quando você fala também a questão do pensamento e como o pensamento para você também não está ligado a um fazer que é mental, que o mental também está presente no movimentar-se. H- Não existe diferença entre a mente e o corpo, estão entrelaçados. Filósofos das ciências cognitivas Mark Johnson e

George Leicov, fazem uma descrição do corpo como se

houvessem cinco instâncias misturadas: Corpo biológico, fenomenológico, social, cultural e ecológico. Corpo ecológico é bem interessante para o seu trabalho: se você pensa o corpo como uma extensão do ambiente que habita. L- Nós falamos de mínimo gesto, ação simples, tentando ver que entendimento se tinha, espaço público, qual é o valor da arte, como poderíamos valorar a arte. Assim eu te pergunto, faço uma provocação à sua visão: Qual o espaço público da arte no espaço público? H- Eu penso que ainda tem muito a ser feito. Ou há um incentivo a grandes projetos que aí é arte e entretenimento, não tem problema, mesmo no entretenimento algo você está captando, não se há de ter preconceito. O problema é o modo como se manipula com essa arte. Deveria não sei como...

302


Eu participei bastante da criação do programa de fomento à dança. Quando recortamos que seria dança contemporânea foi uma estratégia de um pensamento de dança de alguns artistas que se percebem num determinado ambiente da dança. O modo que produzimos é diferente de um grupo que vai trabalhar com as tradições folclóricas, são gatilhos muito diferentes. Não estou falando que o folclore não tem o seu lugar, mas é complicado colocar todo mundo num mesmo ambiente. Têm estruturas e modus operandi diferentes. O que nos liga é o grande “guarda-chuva” da dança, mas sobre que dança estamos falando? Por que falei do programa de incentivo à dança? Porque conseguimos elaborar um perfil deste artista específico de dança, e acho que as políticas públicas devem estar pensando nessas diferentes formas de pensar e fazer arte. Houve até uma palestra da Diana Taylor no 2o congresso da ANDA. Ela citou um exemplo da UNESCO falando dos bens imateriais: as grutas de determinado lugar, as pinturas rupestres. Ela colocou: “E por exemplo a produção”, vou chutar, “de Marina Abramovic?” Isso também não seria um bem imaterial? Como você vai comparar? Num caso a construção ficou ali, como se você identificasse, há museus. Agora uma obra ao mesmo tempo que acontece se dissolve, que é a questão das artes cênicas, da performance, da dança, do teatro: “ Acabou? Acabou.”. Como olhar para isso? E que são pensamentos que precisam de recorrências para que as pessoas tenham acesso. Uma coisa é eu estar no show da Ivete Sangalo, ela tem o seu lugar. Outra coisa é eu estar num espetáculo de música contemporânea que eu ouvirei “tin, pon”. Haverão pessoas que vão odiar aquilo, mas são pensamentos que estão discutindo determinadas complexidades. Por isso que digo, a arte quando é produção de conhecimento, sempre falo do Jorge Albuquerque: “A arte é uma forma refinada de testar o tempo-espaço”. Se penso desse jeito esse “tin, pon, pun” da música contemporânea, eu vou precisar ouvir muitas vezes, para estar reconhecendo um discurso contemplado naquele ambiente. Quando começamos a colocar nessa relação de produto e de retorno é um outro canal. A arte começa a ser tratada como uma espécie de um produto que te dará não sei quanto de retorno. Você não tem. Não sei se é paradigma, ainda mais no pensamento contemporâneo. O show da Ivete Sangalo já tem um modelo Ivete, ou um espetáculo do Bolshoi, as pessoas quando compram um ingresso do Bolshoi sabem o que vão assistir, escolheram aquilo porque sabem que aquilo é daquele jeito. Agora uma dança como a minha quem vai comprar? Sempre poucas pessoas ou quem já conhece um pouco a sua trajetória. Acho que precisa estabelecer uma relação dessa complexidade, e nesse quesito as políticas públicas tendem a uniformizar, aí é dado um desafio.

303


L- porque aí essa questão da arte no espaço público acaba se limitando a alguns H- Sim, é. “Sobre que espaço público você está falando? Sobre que edital você está comentando?” Também tem isso. L- Em que medida você acredita que o mínimo e o simples possam atravessar a complexidade, a extravagância e o excesso da vida urbana? H- Bom se eu falo que eu trabalho com a ideia de restrição. E acho que é um certo ativismo, diferente da década de 70 (grandes guerras, grandes oposições) penso que agora...(entrevista interrompida pela entrada de um professor na sala). O mínimo e o simples já trazem em si uma complexidade. Eu acredito hoje em dia nas micropolíticas, pequenas ações. Como uma gota que fica pingando: “água mole em pedra dura tanto bate até que fura”. Eu acredito nessas micropolíticas, estratégias de aglutinação de redes entre um perfil de artistas. Bauman vai falar, deste tempo dissolvido, tempo líquido. Você criar estratégias com pessoas afins, ambientes afins. Por isso falo de micropolíticas, pequenas alianças, mas que essas alianças se perpetuem num tempo. Não acredito mais em “pá” na Dança! “Pá” no Teatro! Qual teatro? Qual dança? Que pessoas? Tem que fortalecer os campos afins, reconhecer. L- Terminarei com uma pergunta lá do começo: que diferença você faria entre ação e gesto? H- Nao faço diferença, depende da proposição que eu me coloco. Para mim gesto é ação e ação gera gesto. L- Mas houve uma mudança na construção: gesto é ação, ação gera gesto H- Sim. L- Aí dentro você não reconheceria uma pequena, uma sutil diferença? H- Mas é o que coloquei lá atrás também. Dependerá não só da pergunta, mas em que ambiente eu vou discutir essas questão: É no corpo? É dançando? Será na hora que eu começo a criar que vou conseguir identificar a natureza dessa ação: “Ah, ela surgiu como um gesto”, ou “ah ela surgiu como um grande movimento”. Ela é dependente da experiência que eu me coloco. L- Você responde pela experiência. H- Não só pela experiência, mas o que é que me move nessa experiência.

304


OTÁVIO OSCAR NUNES DO NASCIMENTO. Formado em direção teatral pela ECA-USP. Participou da pesquisa como observador crítico dos experimentos. 19.09.12 L – Qual sua experiência artística? O – Na minha cidade, que é Macapá, eu trabalhei com uma diretora formada no Rio, depois ela me estimulou a fazer o curso de artes cênicas, então eu fui para Curitiba, e lá eu trabalhei com o teatro do oprimido e teatro infantil, estudei Maria Clara Machado, depois fui para Belo Horizonte e fiz escola de teatro com o grupo Galpão, também fiz dança contemporânea, em São Paulo, onde estou, trabalhei com experimentos de direção no departamento de Artes Cênicas da USP e tenho dois grupos de teatro, um que trabalha mais com a linguagem de teatro performativo e outro atua mais no espaço urbano. L – E você também fez um projeto de iniciação científica, como se chama? O – Projeto 3x3 de (não entendi por causa deo vento) de teatro e performance. L – O que você desnvolveu nessa pesquisa? O – Ela misturava elementos de performance e intervenção urbana a textos teatrais. Nós os usávamos como base para ações no espaço urbano junto a elementos da performance, a ideia de ação e representação, de performatividade. Trabalhamos com Édipo Rei, do Sófocles, o Hamlet, do Shakespeare e As Três Irmãs, do Tchekov. L – Que ideia você tem de espaço público? O – Todos os espaços são públicos ou deveriam ser. É o avesso da casa, do privado, é o que o estado administra e não pertence ao indivíduo. Pertence aos cidadãos. Pode ter diversos usos e todos podem utilizá-lo, ao mesmo tempo também tem muitas regras. Eu imagino calçada, rua, praça, parque, via, e os fechados como galerias. Tudo que é administrado pelo poder público. Mas a USP é um espaço público que é fechado ao público. L – O que você entende por ação simples? O – Ação no sentido mais concreto, talvez. Algo minimalista, que recorta para acentuar algo. A ação complexa talvez seja extensa ou complexa em seus significados. A diferença entre a linha e o ponto. Também é possível fazer um ponto se desdobrar no espaço (pontual em sua execução, mas que abre campos de significação, uma única ação repetidas vezes). L – Como o quê, por exemplo? O – Caminhar, observar. Uma ação única repetidas vezes também. Artisticamente creio que caminhar também pode ser, dependendo da intenção. 305


L – O que daria esse grau artístico à ação? O – Tentar estetizar o cotidiano, como usar um discurso ou intervir em uma ação para que ganhe significado. Também pode estar no olhar de quem vê, um mendigo na rua fazendo uma coisa estranha pode ter um enquadramento artístico. Não é possível definir de antemão. Tem relação com o que é arte, também. A arte já está definida por especialistas. É uma rede muito imbricada, muitas pessoas assistem performance e julgam que aquilo não é arte. L – E o mínimo gesto? O – Depende o que você chama de gesto, também. Um aperto de mão, um aceno, sentar, fechar os olhos. O gesto geralmente busca remeter a outra coisa. É uma ação física feita com os músculos – mesmo que pequenos músculos – e pode significar muitas coisas. Dependendo do contexto esse significado pode mudar, como piscar um olho. E o mínimo pode ser o mínimo de esforço, o mínimo de significado. Pensando pela performance, seria um gesto que quer comunicar, porém usando recursos mínimos. Seria enxugar alguns aparatos, como figurino, maquiagem, história, narrativa, espetacularização, para fazer algo quase cotidiano, que flerta com a não-arte. Poderia ser se deitar na esquina, do jeito que estou agora. Acho que o mínimo gesto amplia a visão para as coisas que estão exteriores a ele. L – O que é performance para você? O – A performance surgiu como uma forma de fazer o terreno da arte ser mais movediço, pois na época as formas estavam muito cristalizadas. Talvez os performers surgiram antes da performance. Per-forma é atravessar a forma, é a ideia de uma forma em transformação. Para isso ela tenta problematizar os códigos aceitos, tirar as coisas do padrão. A convenção do espaço urbano é que ele seja de passagem, então a performance tenta subverter esse fluxo, romper esse convenção. A arte separada do cotidiano também é uma convenção, e a performance tenta juntar isso, a arte e a vida. Essa questão do limite físico, também, como se cortar, é o que subverte o padrão ético. Ou outras coisas como a ideia de que a obra é intocável, a performance tenta mexer com isso tudo. É uma arte rebelde. É a permuta da forma. L – Eu lembrei do que o Renato Ferracini falou sobre ir contra e a favor do fluxo. O – Sim, a sociedade humana tem tendência a se solidificar. Ao mesmo tempo temos uma tendência ao fluxo, à movimentação, e a performance enfatiza isso, podermos entrar em outras dinâmicas mentais. O artista que se propôs a passar um ano sem entrar embaixo de um teto, e sobreviveu. Temos muitas convenções, achando que precisamos de teto, comida,

306


conforto, e no fim tudo é mutável. Criamos uma visão muito mesquinha do que é ser humano, então iniciativas nesse sentido são sempre muito boas. Essas ações podem mostrar possibilidades de mudar o mundo e a si mesmo. L – O que é entre-lugar? O – A travessia, experiência, a passagem. A transformação, quando você vai de uma forma para outra. É difícil permanecer muito tempo neste lugar, mas ele acontece, quando as coisas não estão definidas. Ele existem todo dia, e também se manifesta hoje espacialmente. temos o lugar privado, que é confortável e onde você cria suas próprias regras, e a rua, onde você enfrenta riscos, lida com regras que não são as suas. É o lugar por onde você está de passagem, não se fixa. Eu vejo esses dois sentidos. L – A arte visa uma “troca” de experiência? O “valor de troca” da arte é social ou econômico? Qual a diferença entre “valor de uso” e “valor de troca”? O – A arte é como engenharia ou ciência, pode ser usada para diversos objetivos, como a bomba atômica, ela foi idealizada para outros fins que não o que vimos acontecer. Ela foi idealizada para criar energia. A arte também, pode ser altruísta, provocar, melhorar, por outro lado também pode ser usada para vender ideias, para fixar pontos de vista, e até mesmo para fazer as pessoas se acomodarem. Eu penso no teatro do Padre Anchieta, que era feito para catequizar os índios. L – O que seria da publicidade sem a arte? O – É. Só o ‘beba Coca-Cola’ não seria suficiente. A novela também, tem sua estética consolidada, e faz com que você esqueça a realidade ao seu redor. E a arte pode ter um valor de troca, pode ser usada para produzir, potencializar, e o valor de uso depende dos objetivos que se tem. Hoje está muito associado ao valor e econômico. Então se você não gera lucro com a arte, fica difícil fazer mais arte. Você é menos valorizado. Essa dimensão da arte provocadora, por contextos sociais, está em baixa. O sistema produtivo determina esse valor. Hoje a arte mais voltada para o lucro está mais triunfante. A arte consumível. Não se entende como experiência, sim como produto. E a mídia também constrói isso. A maioria dos performers do mundo são marginais, mas pensando-se na Marina Abramovic, o trabalho dela gera muito lucro, fala-se muito dela. Tem grande valor de troca. Para um museu isso é interessante, atrai mais pessoas. Mas para mim o maior potencial é o provocativo, mesmo. L – Qual o espaço público da arte no espaço público? O – Isto é engraçado, porque fala-se em arte de rua como se fosse estar na rua. Imagine um show do Michel Teló no centro de São Paulo e eu fazendo uma performance em que eu arranco meus fios de cabelo. Acho que as intenções são diferentes. Depende do conteúdo, não

307


é só fazer uma novela no espaço público, colocar uma questão privada no espaço público. Eu posso fazer uma performance no Viaduto do Chá, que discuta o uso do Viaduto do Chá, isso é uma questão que diz respeito a todos. A arte pública é relacional, depende de suas intenções, das relações em que se está inserido, das relações que se propõe. L – E há espaço para a arte nesse espaço público? O – Está muito difícil. Para tudo se precisa pedir autorização. Só se pode circular na rua, quando um artista tenta algo, isso já é barrado. Ou um camelô, por exemplo. Ou os artistas que passam o chapéu, são pessoas fazendo atividade econômica ilegal, porque não estão pagando imposto. L – E por que então a arte não pode circular economicamente, já que você disse que é como a engenharia? O – Porque ela precisa estar livre. Sempre se controlou a arte, na ditadura, por exemplo. Ela tem muita potência. Ela tem poder de questionar o status quo. Então quando ela busca o lucro você fica preso na necessidade do consumidor, para que ele compre. E aí você começa a reforçar discursos, e não questioná-los, para ter o maior alcance possível. E aí se perde esse poder. L – Mas para o estado quando a arte está no espaço público ela tem o mesmo valor econômico... O – Eu gosto de pensar na Comedia dell’Arte. Eles precisaram montar um empreendimento, porém o fizeram de maneira própria. Faziam espetáculos na rua. Tinha um grau de simplicidade, para que fosse acessível e ao mesmo tempo é muito rico e potente. Também tinha uma provocação com os poderosos da época. Afinal, também precisa-se sobreviver. A troca se dá pelo dinheiro, então precisa-se tirar dinheiro de algum lugar, seja através de editais públicos ou outros jeitos. L – E qual a importância do público no seu trabalho? O – Meu trabalho é sempre voltado para minhas questões e para o público, coisas que quero compartilhar, quero trocar. Também gosto de pensar sobre o que quero falar em consonância com o que acontece, questões que tenham a ver com o jeito que estamos vivendo coletivamente. Mesmo quando eu falo da minha intimidade, precisa ter uma ponte. Mesmo quando tem uma pessoa só falando, pode haver um diálogo. Depende da intenção, do modo. E pensar a intervenção no espaço público também é pensar os efeitos dessa arquitetura, por onde podemos transitar, que são as configurações de pensamento. O espaço é para ser ocupado. E o discurso estético tem grande potência de surpreender. L – Aos outros e a quem propõe, também.

308


O – Sim. E não é só o estado que censura, as pessoas também se reprimem ou te reprimem, não querem ouvir o que você quer dizer. São cristalizações que tentamos quebrar. Talvez possamos tocar alguém naquele momento ou aquilo nunca vai acontecer.

309


ENTREVISTA SOBRE PROCESSO DO EXPERIMENTO 3: INSTITUIÇÃO PÚBLICACEPEUSP. ESPETÁCULO MOACIR:FILHOS DA DOR COM PERFORMERS: TAIS FELICIA LUCIANO DE LUCENA, 23 anos. Formanda em Relações Públicas pela ECA-USP, atriz, não-dançarina. VANDERSON CRISTIANO SOUSA, 28 anos. Formado e mestrando em Biologia, formando em Ciências Sociais pela USP, não-dançarino. L - Qual a experiência artística de vocês? T – Comecei a fazer teatro aos 8 anos de idade. Eu dançava, fazia teatro, tocava flauta. Eram matérias da escola. Depois participei de algumas companhias amadores de teatro. E então entrei no curso profissionalizante de atores, onde tentei montar algumas companhias de teatro que não deram certo. Agora tenho uma companhia chamada Aliás. Eu trabalhei em uma companhia de circo com animação de festas, andando com perna de pau, fazendo maquiagem em crianças. L – E como se interessou por essas coisas? T – Não sei, na escola já fui estimulada, sempre estive em contato. Já fiz aula de desenho, pintura, curso de máscaras, argila, artesanato. V – Teatro eu só fiz na escola. Mas sempre fiz coisas em paralelo. Quando era criança eu escrevia bastante. Na escola tinha peças, também, eu escrevi alguns textos. Durante a faculdade eu fiz um trabalho de educação ambiental com crianças, fizemos muitos trabalhos artísticos, documentários. L – Eu tinha um professor de literatura no ensino médio que trazia o trabalho dele de clown para a sala de aula e era muito prazeroso estudar com ele. A arte conferia ao ensino outra forma de recepção. V – Eu escrevi o CicAtrizes. L – E o que o trouxe para esse processo, MoAciR: Filhos da Dor (espetáculo de dança-teatro aquático nas piscinas do CEPEUSP, Experimento 3 deste projeto de pesquisa)? T – Eu vim porque o encontrei aqui na faculdade e tive curiosidade e vontade de participar. V – Eu me interessei por causa do folheto. Tive vontade de fazer algo diferente. Eu gosto de entrar nesses fluxos de tentar algo diferente. E sempre estou em busca de conhecer novas pessoas, amizade principalmente. Por isso entro em muitos projetos.

310


L – Eu distribui esse folheto para achar pessoas que realmente se interessassem pelo projeto. Aqui no departamento há um desinteresse muito grande. E você, que não sabia nadar, se ofereceu para vir. O que te moveu? V – Eu não parei para pensar racionalmente, pois estou fazendo o projeto para o mestrado, inclusive. Mas mesmo quando você não pensa sobre já existe algo latente. Se acontece é porque tem um interesse. Eu fui fazer Ciências Sociais quando percebi que tinha essa vontade, apesar de estar em outro curso. T – Eu achei interessante por ser na piscina, achei que era um projeto diferente. Eu tinha acabado de me formar, então estava livre. Todo projeto te acrescenta coisas, e eu nunca tinha feito algo do tipo. E eu também estava cansada do teatro realista-naturalista. L – Que ideia vocês têm de espaço público e o que estaria dentro dessa categoria? T – Não é o contrário do privado. Seria o espaço de todos, mantido por todos juntos, ou pela ação de cada um. Onde há livre trânsito, livre acesso. V – Eu pensei que também pode ser o contrário, que é um espaço de ninguém, um lugar onde se pode fazer qualquer coisa, porque não é responsabilidade de ninguém. Mas eu vejo como espaço de todos, um lugar que todas pessoas possam usufruir. Tem espaços com mais limites e menos limites. O metrô é diferente da praia, por exemplo. L – E o que determinaria essas diferenças? V – O contrato social que é determinado pelo poder do estado. A USP também é um espaço público, apesar de que para entrar você precisa mostrar a sua identificação. Quando os homens primitivos estavam na natureza todo espaço era público, a partir dos clãs e a definição dos territórios começa a existir um conceito de espaço privado. T – Na Grécia o conceito de público e privado tinham conotações diferentes da que temos hoje. A ideia de que no privado a mulher era oprimida pelo homem e no público era o espaço de se discutir os assuntos. Hoje é o contrário você tem essa liberdade dentro de casa. V – Eu assisti uma peça que falava sobre os mendigos, e tinha uma cena de um homem se masturbando e isso chocou muito as pessoas, mas se fosse dentro de quatro paredes seria perfeitamente normal. L – Também tudo que está relacionado ao baixo ventre. A privada, por exemplo, tem que ser negado, escondido. E o que entre nesse conceito que vocês descreveram? T – Não sei direito, porque a USP, que é pública, por exemplo. Dentro dela tem algumas empresas privadas lucrando. V – É como um malabarista que vai para o espaço público ganhar seu dinheiro. T – Não, eu penso que é diferente. A relação de ocupação do espaço é outra.

311


V – E a praça Benedito Calixto, onde tem feira? T – Sim, todos estão usando para o seu bem próprio, eliminando a possibilidade de outras pessoas usarem. V – Mas você não acha que essa feira também é uma troca? As pessoas pagam taxa para vender seus produtos lá e as pessoas que compram também se beneficiam. Por dois dias elas podem usufruir o espaço de maneira diferente. L – O teatro, por exemplo. É público ou privado de acordo com o espaço? Se está no SESC ou na Praça Roosevelt? Ele deveria ser para todos. V – Quando é num lugar fechado não é público, há limitação de pessoas. Mesmo o espaço público tem limitação. L – Então são praças, avenidas, ruas, universidade? V – O CEPEUSP é público, mas só pode ser acessado a quem tem a identificação da USP. T – O ônibus circular também. V – Sim, tem um acesso restrito. L – Mas o contrato não é mediado pelo dinheiro. V – Não, é pelo mérito, mas é a mesma coisa. As pessoas confundem dinheiro e mérito, no ego. O dinheiro é o meio para o mérito. O CEPEUSP não é para as classes baixas, as pessoas que estudam na USP e as pessoas que trabalham aqui também, veja a concorrência dos concursos aqui. Quando a USP fala de comunidade interna e comunidade externa, isso já é uma distinção. L – E o que vocês entendem por ação simples? T – Ação conceitualmente simples, sem muito rebuscamento de significado, sem sub-texto. V – Vou usar o exemplo da dança: são as ações que compõem a dança, a estrutura elementar da dança (os “passos básicos”). No forró, por exemplo, é um passo para lá e um passo para cá. É um conceito da antropologia. Seria a forma elementar de uma ação maior. Eu li isso em um capítulo de um livro do Levi-Strauss, onde ele tentava explicar o que era a antropologia estrutural. Ele teve um insight quando viu as estruturas de uma flor. Ele também fala da linguística nesse texto. Na linguagem a estrutura elementar é o fonema. Na cultura é o mitema. L – Mas em ação simples dá para fazer essas gradações? V – Pegar um copo, por exemplo, é uma ação simples. E ainda posso dividi-la em mais ações. Mas não sei qual seria o mínimo ponto, talvez mexer um músculo só, mas acho que isso é impossível. L – E onde vocês identificam isso em nossa prática?

312


T – É que ação simples não é minimalista, estamos trabalhando com espaços grandes e ações grandes para preenchê-los. Quando corremos, talvez. V – E uma ação complexa? T – Não sei. L – Achei interessante você ter diferenciado simples de minimalista... T – Sim, porque pular do décimo andar é um passo para frente, que é simples. E é grande. Correr é simples, mas é grande. L – Você relaciona mínimo a uma certa amplitude no espaço? T – Sim. E tocar piano talvez não seja uma ação simples. (mas movimentos mínimos espacialmente). V – Imagine uma pessoa tocando repetidamente a mesma tecla do piano, isso é uma ação mínima ou simples? T – Sim. V – Mas a ação mínima é simples sempre? T – Não. V – Mas então dê um exemplo de ação mínima. T – Só de mínima? V – Sim, porque eu acho que mínima está dentro de simples. T – Então, tocar piano não é uma ação simples. L – A imobilidade? V – Ela envolve uma ação. T – Dentro da piscina não é tão simples. L – E fora? T – Fora, sim. Depende das condições externas, se estiver ventando, não. L – A imobilidade parece fazer a distinção, para mim ela é mínima mas não é simples. Alguém que trabalha como estátua viva. São micro-movimentos que para serem mantidos envolvem uma complexidade, variações que a olho nu são mínimas. V – Veja o exemplo do sorriso no contexto do nado sincronizado, elas estão sempre rindo, mas o todo exige um esforço tremendo para manter “aquele sorriso”. L- Complexidade na simplicidade. T – Eu vejo aquilo como algo extremamente doloroso, de permanecer de maneira rígida. L – Ou moldar o corpo. Toda dança que envolve uma técnica reeduca o corpo. A tendência do corpo é deixar a gravidade atuar. Essas bailarinas têm seus cem anos, foram reeducando o

313


corpo, os músculos, a postura. E o que vocês entendem por mínimo gesto ou gesto mínimo? Há diferença? V – O mínimo gesto seria o caminho mais curto, tem relação com amplitude, o foco é o mínimo. O gesto mínimo seria o gesto elementar para uma ação, a estrutura elementar, basal. Qual a estrutura elementar da água? Dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. Agora qual o mínimo átomo? O mínimo gesto, escolher dentre todos os gestos possíveis o mínimo possível. L – E o que seria um mínimo gesto? V – Para ir para nossa cena da Guerra, por exemplo, eu vou escolher dentre todos os gestos que tenho na cabeça o mais simples de todos, o mais elementar que possa representar guerra. De todos os gestos mais simples, os gestos mínimos que se possa representar guerra (marchaação simples, bater continência, posição de sentido), qual o mínimo gesto? Seria “o menor gesto possível para/de”, os mais condensados, menos complexos. L – Um você associou com símbolo, identificação, repertório, o gesto mínimo, e me remete à representação (o gesto mínimo que representa algo, como pode representar de maneira mínima algo – H2O, DNA). Quando na verdade estou sempre instigando vocês à ação, como o ritmo, o deslocamento, o desenho podem abrir para vários símbolos. Diferente daquele símbolo já codificado, diferente da estrutura elementar “universal” (B+A=BA). Como criar esses outros repertórios não codificados? (remete-me à reflexão a posteriori da realização da entrevista dos ideogramas de Grotowski ou Artaud citados por PAVIS, 2007, p.185). Como algo como “correr” não está necessariamente codificado a apenas um contexto (guerra, maratona, invasão, fuga... e é “correr”), diferente do gesto que você fez de bater continência, que É a guerra. Descodificar, como Artaud coloca: as mesmas palavras começarem a significar coisas diferentes que não o já entendido por elas. E o que é performance para vocês? T – Eu entendo como o que não é teatro nem dança. E que acontece preferencialmente fora de lugares fechados, onde muitas pessoas vejam. Alguém que aja fora do comum, de maneira diferente das pessoas em volta, com objetivo artístico ou não. Pode-se ser performático sem saber. Eu lembro de um vídeo onde duas pessoas correm e batem na parede e a parede vai se afastando. Geralmente tem pouca fala e mais ação, o foco é a ação. L – E sobre o nosso processo, qual a diferença em fazê-lo como cena ou como ação performática.

314


T – Em teatro eu penso mais em contexto, personagem. E na performance é a ação, só fazer. Eu busco não psicologizar muito, esvaziar. Sobre mudança corporal eu não sei se houve. A diferença para mim é mental, mesmo. V – Eu não pensei muito sobre isso, mas como algo que é feito para ser visto, tudo é performance, o teatro, a dança. E até momentos da sua vida em que você se apresenta para outros, como dançar em uma festa. Quando nos apresentávamos eu não estava com isso em foco, eu tinha a ação em foco. Por mais que teorizemos sobre, a ação é soberana. Eu considero que algumas cenas eram muito performáticas e outras não. L – É, tem cenas mais dotadas de subtexto, e é inexplicável, mesmo. Mas qual seria o limiar entre cena e ação performática? V – Depende do ponto de vista, dá para trocar os nomes se te convier, dependendo da sua intenção. O artista de rua para mim faz performances. Não é uma cena com enredo. A nossa cena da cadeira é uma cena, mas se fosse isolada poderia ser uma performance. Ela vira uma cena por causa do contexto todo. Para mim performance é uma coisa isolada. L – Então a sequência de movimentos que vocês fazem com a cadeira vista na rua seria uma performance? V – Sim, se apresentássemos no restaurante universitário, por exemplo. T – Descontextualizada. V – Isso. T – Quando as pessoas falam sobre fazer uma performance da Madonna. É uma coisa descontextualizada do show. L – E o que é entre-lugar? V – É mais psicológico do que físico. Eu pensei agora em uma pessoa que não tem condições de estudar na USP e vem visitar o campus. Ele está no entre-lugar, é um espaço fictício para ele. Na antropologia o ritual de passagem é um entre-lugar. Quando o adolescente está no ritual, ele não é mais criança, nem adulto. No contexto artístico eu não elaborei. Vejo dessas duas formas. L – No plano físico como seria? V – O exemplo mais próximo seria o primeiro. Ou os índios que são mendigos na Praça da Sé. T – Talvez seja a transformação do lugar, em teatro, por exemplo. O CEPEUSP se transformou por nossas ações. L – Sobre o exemplo do índio eu lembrei de algo como sobre habitar a incerteza. Para mim o entre-lugar são os lugares de passagem, que não podemos habitar.

315


T – Eu sei que isso pode ser chamado de não-lugar. V- Eu vi uma exposição com fotos de uma pessoa embaixo do viaduto, do lado de um orelhão. T – O não-lugar onde você não consegue construir memória. O McDonald’s. A sua casa é um lugar. Você primeiro cria o espaço quando cria a memória. L – E a arte visa troca de experiência? O valor de troca da arte é social ou econômico? E qual a diferença entre valor de uso e valor de troca? T – Tudo é uma troca, a arte visa a troca de experiência, sim. Isso constrói as pessoas e as pessoas constroem a arte. V – Se você faz uma peça, tem um valor de uso, pode ser o lazer. Para você, que trabalhou, é um valor de troca. Mas o público te dá de volta em troca? Uma platéia com cem ou com uma pessoa é a mesma coisa? T – Sim, o público responde, corresponde, dá calor. E é muito diferente a relação entre as duas platéias, até o calor muda. V – Se a peça só tem valor de uso para a platéia não há valor de troca. Se é indiferente para o artista. T – Acho difícil que não aconteça troca. A presença ou ausência das pessoas tem significado. V – No contexto de hoje sempre tem a troca cultural e econômica. Mesmo que não seja com o público, você precisa ganhar dinheiro. A economia é a base da execução. Realmente, quando as pessoas já visam o lucro desde o início, o valor é econômico. T – Se a pessoa só trabalha com isso ela precisa se preocupar com o dinheiro, claro. V – A peça ‘Trair e Coçar’, por exemplo. Não deixa de ser arte, mas eles visam a bilheteria. É diferente da cia de teatro que atua na zona leste. T – Mas também não é um problema querer crescer e ganhar dinheiro. V – Não é, mas é diferente. L – E a diferença entre valor de troca e de uso? V – Cada objeto tem valor de uso e o valor de troca é a relação entre todos os valores de uso. Um quadro do Picasso hoje, no começo talvez só tivesse valor de uso para quem conhecia e sabia sobre, e hoje tem um valor de troca altíssimo. T – O valor de uso talvez seja mais sobre o que a arte pode transformar na vida das pessoas, e isso se estabelece pela troca. V – Quando uma pessoa se dispõe a ficar duas horas vendo uma peça, é o valor de uso. T – Mas é inacessível para o público, porque não se sabe direito como se vai usar aquilo. V – Sim, como ler um livro, é um trabalho de decodificação.

316


L – E dentro do nosso contexto, apresentando o trabalho no CEPEUSP, qual é o espaço público da arte no espaço público? V – Por exemplo, há trabalhos que estão no espaço público e onde o artista acha que está dizendo algo mas as pessoas não têm background cultural para decodificar aquilo. E aí não há valor de uso. Não adianta só estar no espaço público, o trabalho não é público. L – Está no plano do entendimento ou da referência? V – É onde a arte realmente é pública. Não é necessariamente no espaço público. L – E esse espaço para que a arte habite existe? V – Se você colocar um monumento na rua, aquilo será necessariamente visto como arte? Se isso acontecer, será arte no espaço público. Talvez eu faça algo que não seja considerado arte pelos outros. Depende da motivação, cada artista tem uma relação específica com seu trabalho. L – Pensando em nosso caso, queremos intervir no CEPEUSP. Que espaço temos para isso? V – O CEPEUSP na verdade é um espaço restrito. L – E a sala de aula também não é? V – Depende da forma que o professor leva isso. L – Então eu penso sobre as diferentes regulamentações do espaço público. O CEPEUSP não é público, então? Há espaço para que a arte aconteça nesses lugares? T – No museu, não. É um lugar muito controlado. Acho que só conseguimos autorização para fazer as coisas no CEPEUSP porque somos alunos da graduação da USP. O museu também. Não tem acesso livre a todos. L – Eu gostaria que vocês falassem sobre a importância do público no nosso trabalho (caráter público, pessoas em si, espaço). V – Para mim, durante o processo, eu me senti de maneiras bem diferentes, variação de público, climas diferentes. Eu queria dar o melhor de mim porque eu percebi que as pessoas realmente tinham vindo. L – E isso fazia com que você buscasse o quê? V – Não sei, eu especulava sobre o que eles estavam pensando. L – E isso não lhe distancia do próprio fazer? V – Não, era mais uma conexão com o que eles estavam pensando sobre a peça, suas expectativas em relação à peça. Em nenhum momento eu fiz a peça sem vontade. L – E em relação ao espaço público, o espaço?

317


V – É, eles não sabiam onde ia acontecer a peça no espaço então não conseguiram se posicionar. É difícil as pessoas ficarem à vontade, eles estavam dependendo da gente. Pouquíssimos resolveram escolher o lugar que queriam ficar. L – E para você, Tais? T – O espaço público influencia na quantidade de pessoas que você espera ou o tipo de público. Funcionários entraram para assistir, pessoas com deficiência, pessoas que não assistem peças com frequência. No espaço público a coisa pode ser vista por qualquer tipo de pessoa. Imagine uma criança de 3 anos ou alguém que não fale nossa língua. Nossos ensaios, por exemplo, foram vistos por muitas pessoas, até mesmo do campo de futebol do clube. L – A nossa criação estava sempre exposta. T – Inclusive em relação às intempéries. Uma vez me abordaram, dizendo que já tinham me visto pulando da piscina no ensaio. L – E como isso afeta vocês? T – Eu sempre ensaiei em lugares fechados. E a estréia no nosso caso se configura de maneira diferente do comum, como mais um acontecimento, não como uma grande revelação. V – Em uma peça de teatro tradicional as pessoas já sabem da história e querem saber como será a configuração espacial e aqui conosco foi o contrário, todo mundo já conhecia essa configuração, e não conheciam ainda o enredo. T – Essa platéia já existia desde o começo. L – E qual a mudança no corpo de vocês enquanto estão fazendo as ações? T – É interessante se apropriar do espaço como se fosse nosso, quando a piscina estava fechada. Por outro lado quando ensaiávamos com o clube aberto eu tinha um pouco de vergonha, isso muda. Fui nadar na piscina esses dias e me senti muito familiar, meu corpo sabia onde estava cada coisa. Depois que a piscina abriu voltamos à posição de desconhecidos. L – Sim, tivemos que voltar a percorrer os espaços de maneira guiada novamente. E podemos fazer uma retrospectiva das nossas fases de trabalho? E também queria saber com que fases vocês se identificaram mais. V – No dia 17 de março, no primeiro mês, de conhecimento do espaço, eu não sabia como ia ser direito. Depois veio a fase de criação das respostas cênicas, aí foi a junção das respostas cênicas, onde fizemos juntos. E depois aconteceu a apresentação. T – No começo eu achava que conhecia o espaço, as pessoas, mas na verdade eu não conhecia. Depois comecei a me identificar mais, mas as dúvidas continuaram por muito

318


tempo, eu queria saber para onde iríamos, se teria fala, como seria. Depois as respostas cênicas, foi uma fase legal, já tinha um pouco do que ia ser. E já colocávamos objetos, roupas. Nesse momento eu já estava mais situada. E eu me sentia num treino esportivo, porque tinha uma questão com tempo muito forte, parecia um treinamento de atleta. Parecia uma disputa do tempo contra a arte. Então começamos a configurar a divulgação, trabalhar intensamente na produção, e chegou a fase de apresentar, onde você volta a respirar para poder fazer. L – Para mim essa questão do treino artístico foi interessante, algo que exigiu muito do nosso corpo e transformou bastante o corpo de vocês. Estar de fora observando esses tempos era algo bem intenso, também. Eu comecei a perceber como cada um se apropriava daquilo, como cada um elaborava sua técnica. É importante perceber como preencher as ações, porque também dá para fazer as coisas burocraticamente. O tempo também se alarga, dependendo disso. E a peça tem algo de tempo dilatado. Além de uma hora de espera para os ingressos. É o público se deparando com ele mesmo. V - Sim, depois de uma certa parte algumas pessoas iam embora. L – Meu amigo que assistiu teve a impressão que os atores corriam com a peça em vez de estarem inteiros na etapa em que estavam. O que diferencia as duas coisas? T – Nós estávamos em uma relação com o público, quando eles estavam em pé, para que eles não se sentassem. L – Eu gostaria que vocês falassem, do começo ao fim do processo, como foi se inscrever naquele espaço específico? V – Eu me distraía bastante com as pequenas perturbações ao nosso redor, sempre mantive um olhar periférico. Eu não conseguia me importar muito com a construção do espaço, eu não consegui desvinculá-lo do espaço público. L – E como isso se refletiu no seu corpo? V – Eu ficava um pouco travado. O que me ajudava era ficar com o olho fechado. L – Ao longo do tempo como isso mudou? V – Comecei a abrir mais os olhos. Deixou de ser uma questão. L – E a gente ficou bastante dentro e fora da água. T – Sim, e até o corpo se adaptar a isso levou um tempo. Conhecer o espaço corporalmente. Desviar de algo sem precisar olhar. No começo também era muito cansativo e depois isso foi mudando. V – A percepção do espaço também mudou. Depois eu conseguia me orientar sem os óculos. T – Eu acho que eu já tinha um pouco dessa percepção antes.

319


L – Sim, é mais uma questão de foco, não é mecânico. Fazer de um jeito que você continue conectado. E pensando na ação performática, é como não trapacear o corpo, e sim saber usar essa energia. Isso colabora para que não pareça que está corrido para o público. E sobre o silêncio, ação e observação, palavras que trabalhamos muito nesses meses, o que vocês retém delas? Que relevância elas tomaram dentro do trabalho? T- Para mim o trabalho do silêncio fez bastante diferença para mim. Durante uma época conseguimos esse silêncio. Como concentrar energia, como fazer silêncio. E a ação veio por causa do silêncio. Talvez ação e observação ganham mais significado depois do silêncio. De como a ação também está no verbo. V – Eu me apeguei mais à observação, que é o foco. Aí o silêncio é uma consequência disso e aí acontece a ação. E a observação é constante. E durante a apresentação ela é mais mental, sobre se o público fica ou vai embora, se está gostando. L – Você diria que o silêncio não existiu muitas vezes não existiu na apresentação internamente em vocês? Como se os fatores externos fizessem vocês perderem o foco? Para mim isso tem relação com experiência, com presença também. E isso está em perceber o que cabe e o que não ao momento. Talvez essa preocupação com o público tire seu silêncio. V – Mas internamente eu nunca me senti em silêncio. L – Às vezes tem uns mecanismos que podem resolver isso. Eu sinto que muitas descobertas durante o processo são pessoais.

320


PATRÍCIA MANCINI BISPO. Formanda em Artes Cênicas pela ECA-USP. Participou do processo de observação imersiva do Experimento 1. 08.09.12 L – Qual sua experiência com a arte? P – Eu comecei a fazer teatro realmente no CAC. Antes disso eu fazia parte de um grupo de teatro espírita, que eu considero mais doutrinação do que teatro. No CAC ganhei mais repertório. L – Não é doutrinação também? P – Sim, mas mais aberto. Mas no grupo espírita só víamos peças espíritas, é fechado. L – A partir da pesquisa ‘Performance em espaços públicos a partir do mínimo gesto e ações simples’, que ideia você tem de espaço público? P – É um espaço por onde qualquer pessoa possa passar e onde você não deve ser perturbado, a menos que danifique algo. Eu diria que são ruas, praças, parques, monumentos. Museu não. Ele é considerado um espaço público mas é cheio de regras que não te permitem muito. Uma performance sem avisar, por exemplo, não vai ser permitida. L – Eu também penso bastante sobre os limites do público. P – Uma vez na aula da Helena Bastos, no curso de graduação da USP, nós fomos para o MAC do campus da Cidade Universitária fazer um exercício que era reagir corporalmente à obras, e fomos um pouco tolhidos. Não é um espaço permissivo, por mais que estivéssemos estudando arte dentro de um museu, não é esse o jeito que se espera que se faça isso. L – Como você definiria ação simples? P – Sabendo um pouco sobre performance, eu diria que é algo que não é feito para chamar atenção. Longe de uma Abramovic com as facas, por exemplo. Algo que só pode ser visto com muita atenção, uma coisa que beira o cotidiano, como comer uma maçã. L – Por que essa ação da Abramovic não seria simples? P – Porque isso choca. Mesmo quando eu brinco de fazer algo do tipo, isso vai causar estranhamento. L – Comer uma maçã seria simples, e comer uma cebola? Ela tem um trabalho em que come uma cebola. P – Não sei se é uma ação tão extraordinária. Talvez porque o contexto fosse outro. L – Você então estabeleceu essa relação com o cotidiano ou algo que não cause impacto. O cotidiano não pode ser impactante?

321


P – Sim, pode. Se a ação for deslocada do contexto, por exemplo, um mendigo tomando banho na rua. Para ele aquilo é cotidiano, e isso choca as pessoas. L – O que você entende por mínimo gesto? P – Coisas menos expansivas e mais cotidianas, mais normais. L – Você conseguiria diferenciar ação simples e mínimo gesto? P – Acho que há uma diferença muito pequena. A ação simples deve ser uma ação cotidiana e o mínimo gesto, creio, tem mais relação com energia, amplitude. L – E performance? P – A primeira vez que tive contato com performance foi em uma matéria de Direção I no Departamento de Artes Cênicas da USP. Eu atuei e era uma cena do ‘Jardim das Cerejeiras’, do Tchekov. Quando tivemos o feedback, disseram que criamos muitas imagens e tinha algo de performático. Depois apresentamos a mesma cena em uma galeria como performance. Isso é muito interessante. Até então eu não sabia o que era performance. L – E como foi recebido na galeria? P – O público da galeria (Galeria do Meio) era do meio de artes visuais. As obras expostas lá dialogavam entre si e eles se conheciam e coincidentemente nosso trabalho, que era de fora, dialogava muito com os trabalhos de lá. A impressão que eu tenho é que já é muito tradicional performar em galeria. L – E como foi essa adaptação? P – Nós tínhamos signos muito fortes. O meu era um tecido vermelho, que eu usava de vários modos. Outro era a árvore, outro era o leite. Nós só adaptamos o tamanho para o espaço fechado. Enfim, quando um professor do departamento mostrou vários vídeos sobre performance eu me atualizei. L – E você chegou a alguma conclusão sobre o termo? P – Eu creio que seja bem pessoal. Eu vi uma performance que pegava a lista de telefone e ligava para vários amigos que já haviam morrido por AIDS. É uma ação muito simples que tinha muito sentido. O telefone chamando sem parar é uma coisa forte. Nesse sentido a vida dela também estava misturada com o trabalho. De qualquer modo você usa seu corpo, sua imagem, para expôr. L – E o que seria entre-lugar para você? P – Não sei. L – O que é lugar? P – Aqui é um lugar. Entre-lugar talvez seja um outro lugar. Por exemplo, uma peça com palco italiano, mas no momento da peça é outro lugar. Acho que um lugar que não é físico.

322


L – Por que não é físico? P – Ele depende de uma construção que não é física, uma ficção. L – E como se consegue isso? P – Através das ações, dos atores, da iluminação, da música, dos figurinos... L – Esse lugar não existe? P – Acho que é mais efêmero. Existe por um momento. L – E o que mais? P – Acho que é só. L – E você acha que a arte seria ou visaria uma troca de experiência? E o valor de troca dela é social ou econômico? P – Tem trabalhos que têm valor de troca muito mais econômico. L – Qual a diferença entre valor de uso e valor de troca? P – O valor de troca está mais ligado ao valor econômico e o valor de uso a outras questões, como o que se espera da arte, no sentido de que se possa apreender algo de um trabalho. Acho que a arte deveria estar dentro do valor de uso. Quando fazemos arte não é só pra nós mesmos e não necessariamente para vender. L – E você acha que a arte busca essa troca de alguma coisa? P – Depende de quem faz, mas no geral, sim. L – E pensando mais no campo da performance e a troca no lugar público, como você vê o espaço público da arte no espaço público? P – Nós temos museus e teatros públicos, e de vez em quando tem pessoas fazendo performances na rua, que é um espaço público, porém não sei exatamente quanto espaço a arte tem para isso. Mesmo na Av. Paulista a pessoa fica vulnerável a ser retirada de lá. Tem espaços públicos que são somente de passagem. L – Às vezes vemos pessoas permanecendo nos lugares de passagem. Eu queria lhe perguntar novamente sobre o entre-lugar, porque, se não é físico, ele pode ser destruído de outras formas, por exemplo isso que você disse sobre o incômodo das pessoas. P – Sim, eu estava em uma peça com o ‘Coletivo de Galochas’ na ocupação da Prestes Maia, eles falam sobre isso com uma poética pirata. Estamos sob proteção do VAI, que é uma lei de incentivo pública, e esse lugar está abandonado. Lá perto tem a cracolândia, tem muita gente usando drogas. Alguns moradores se incomodam. Já fomos expulsos por causa de horário, mas temos e não temos muita liberdade, por ser um espaço esquecido – dos males nós somos o menor para a polícia naquele lugar. L – E como você acha que a arte cabe nesses espaços?

323


P – Não sei até que ponto a arte dialoga com esses lugares. Você não sairia da sua casa para passear no meio da cracolândia à noite, então esse entre-lugar acontece lá. Quando acaba, vira cracolândia de novo. Nós criamos essa história dos piratas, mas não é nem a cracolândia nem a ilha dos piratas. L – E qual a importância do público no seu trabalho? P –Há quem diga que não, mas eu não vejo sentido fazer algo sem pensar no público, é um limiar entre terapia e arte. Se você faz é para alguém ver.

324


Enquetes realizadas com público do Experimento III: Instituição Pública-CEPEUSP Grupo (PRE)FORMA-SE

MoAciR: Filhos da Dor

Outubro 2012

Enquete sobre o espetáculo MoAciR: Filhos da Dor Nome: Rogério Dias de Andrade -Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?

Através de amiga, parente de integrante do grupo. -O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?

A proposta apresenta um potencial vasto e profícuo. -O que você achou do espetáculo?

A despeito das considerações elencadas na mensagem em cuja enquete foi anexada,

o

espetáculo: 

Demandou excessivo tempo, cansando os espectadores;

Embora saudável e pertinente, a proposta individualizante feita para cada espectador de sonhar à vontade, somada ao longo tempo da peça, e o espaço muito amplo (sem coxias e rotundas naturais), proporcionou inúmeros estímulos para dispersão, fazendo com que o espectador tivesse que se concentrar mais do que o necessário para participar do espetáculo, ou mesmo fazer valer essa mesma proposta. -O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?

Entendo como dança qualquer movimento combinado com algum ritmo. Nesse sentido, acredito que o espetáculo apresentou vários momentos com dança, dentro e fora d’água. -A condição climática foi um fator limitador da experiência?

Sim e não: sim, porque a baixa temperatura (poderia ser chuva forte, ou calor excessivo) atrapalhou todos os presentes; não, porque em tese, espetáculo desse tipo pressupõe fatores climáticos como parte integrante.

325


-De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais interessante(s) ?

Vi de vários ângulos, exceto no subsolo e de uma das laterais da piscina olímpica; tive uma leve preferência pela área onde se situava o chuveiro, cuja iluminação valorizava as performances. -Que imagens ficaram gravadas em sua memória discorra sobre sua experiência ?

Nenhuma em especial, infelizmente; a dispersão citada acima diluiu o impacto dramático do espetáculo. -Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?

Não. Fiquei até o final. -Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo?

Acredito que dar sugestões sem ter compreendido a essência do espetáculo seria um tanto leviano; contudo, me parece que, com duração menor, e com mais integrantes (para diminuir o intervalo entre uma performance e outra), proporcionando maior dinamismo, o espetáculo ficaria mais denso. Mas reconheço que essa observação pode não fazer qualquer sentido se a proposta era justamente se desenrolar dessa forma.

326


Nome: Karin Anselment

-Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?

Convite verbal de colega da USP

-O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?

Inovadora

-O que você achou do espetáculo?

Curioso; inédito

-O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?

Não chamou minha atenção; não lembro

-A condição climática foi um fator limitador da experiência?

O frio foi desagradável, mas não limitador

-De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais interessante(s) ?

Quando consegui abstrair, “viajei”

-Que imagens ficaram gravadas em sua memória discorra sobre sua experiência ?

As cenas junto a árvore

-Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?

Não

-Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo?

Como o espaço é grande as cenas são demoradas e correm o risco de ser monótonas tirando o efeito de magia.

327


Nome: Helaine Diogo -Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?

Em Fortaleza, por familiares. -O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?

Achei interessante o fato de os atores estarem na maioria do tempo dentro da piscina, se deslocando por cenários diversos. Nunca havia participado de algo sequer parecido. -O que você achou do espetáculo? Quais suas impressões, sensações despertadas? Pra você o espetáculo fala sobre o que ?

Eu gostei, porém achei muito abstrato. Saí sem saber do que tratava a peça. Em muitos momentos parecia tratar de chegadas e partidas... sofrimento, relações familiares, por falar de “mãe”, “pai”. Mas também podia se tratar da mãe terra, por que falou sobre o sofrimento dos índios arrancados de suas terras... Outra hora, parecia que podia estar tratando do desperdício de água... Não entendi o mel, as colmeias. Só no final, ouvi comentários que se tratava de uma peça envolvendo a história de Iracema dos lábios de mel. Fique confusa! -O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?

Dança, pra mim, é, sobretudo, expressão corporal. No espetáculo, de fato, as expressões corporais representaram a principal forma de comunicação dos atores com o público, contudo, não assisti ao espetáculo interpretando-o como uma “dança”. Não sei se isso se deu pelo fato de o som se dispersar com facilidade no ambiente ou pelo som não estar na qualidade/volume adequado ao espaço ou se foram as músicas selecionadas, não sei... -A condição climática foi um fator limitador da experiência?

Estava bastante frio, mas isso não influenciou nas minhas impressões. -De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais interessante(s) ?

Assisti sentada na borda das piscinas, me movimentando para mais próximo dos atores para conseguir compreender certas cenas.

328


-Que imagens ficaram gravadas em sua memória? Discorra sobre sua experiência.

As primeiras... os corredores estreitos e as pessoas caminhando no escuro sem saber o destino, com aquelas janelas que davam para os fundos das piscinas com objetos curiosos dentro. Achei linda a cena de entrada, os vestiários iluminados apenas por velas, com umas colmeias super criativas, e uma mulher nua, cena linda! Tive a sensação de que a peça trataria sobre um suspense...um crime, algo assim. -Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?

Não. Fiquei por estar curiosa por um final que tornasse mais claras as minhas impressões. -Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo? Fique a vontade para fazer outras considerações.

Poderia ser feito um roteiro que torne mais claro o contexto em se passa a história da peça e o tempo da peça poderia ser reduzido para tornar mais confortável ao público. Achei impressionante o condicionamento físico dos atores. Parabéns pela ousadia e pela criatividade!

329


Nome: Saulo Peixoto -Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?

Fortaleza, através de familiares. -O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido? Nunca participei de algo parecido, achei uma proposta interessante, que dando continuidade ao trabalho, sendo persistente, pode sim mais chegar longe. -O que você achou do espetáculo? Quais suas impressões, sensações despertadas? Pra você o espetáculo fala sobre o que ?

Eu achei o espetáculo bom, a idéia é ótima, mas precisa lapidar algumas coisas. Houve certos momentos que chamaram a atenção, no momento em que ela joga a mala, dá uma sensação de liberdade, ter o direito de errar; momento da árvore iluminada, traz paz; no momento em que começam a cantar até entrar na mala, isso para mim quis dizer assim “vem provar do que eu bebo”, ou “vem que quero te mostrar o meu caminho” ou “prova de tudo que eu te der”, “bebe dessa água meu filho”, mais ou menos isso, a passagem debaixo da piscina, devia ter mais suspense, acho que ficaria mais interessante. Entre outras cenas. -O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?

Pois é, a dança eu não entendi muito bem, para mim acho que é uma forma de se comunicar com a plateia, ou com o próprio tema da peça, por que até então aquelas danças tem que fazer algum sentido. -A condição climática foi um fator limitador da experiência?

Não, acho que pode atrapalhar mais os atores. -Que imagens ficaram gravadas em sua memória? Discorra sobre sua experiência.

O momento da corrida contra o tempo, um fator que pode ser trabalhado pra ficar bem na mente do espectador; os garrafões de água insinuando o gasto excessivo de água no mundo; e do canto até a mala. -Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?

Não, fiquei até o fim para ver o final, apesar de ter sido muito extensa.

330


-Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo? Fique a vontade para fazer outras considerações.

Olha, eu gostei muito do que eu vi, ouvi e senti, não estou aqui para criticar ninguém, houveram alguns pontos em que deixaram a desejar sim, mas isso não quer dizer que foi ruim, pelo contrário é um momento de observar e tentar buscar sempre o melhor. Uma delas foi o tempo de duração, muito longa, tem que ser uma coisa que não demore muito, que deixe gravado na mente das pessoas, quando se torna bastante demorado as pessoas “abusam” logo, porque cansa; duas cenas ao mesmo tempo, às vezes confunde; mais narração durante a peça acho que fica mais interessante; será que os performers poderiam fazer cenas de diálogos, falando partes do texto? No momento em que passa o espelho, nessa hora podia ter umas perguntas, tipo, “você deve estar se perguntando... por que tanta dor?” com voz de espanto, tipo assim. Não sei se faz parte da metodologia da peça, somente uma ideia. Gostei da cena dos garrafões de água, da corrida contra o tempo, no momento em que há uma música no fundo tipo de ação. Entre outras. Parabéns, sucesso e nunca desistir dos nosso sonhos!

331


Nome: Vinicius Antunes de Oliveira -Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?

Cartaz no CEPEUSP -O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?

Achei interessante. Nunca participei de algo parecido. -O que você achou do espetáculo? Quais suas impressões, sensações despertadas? Pra você o espetáculo fala sobre o que ?

Muito longo e repetitivo. Cenário e iluminação mexem com as sensações. -O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?

Movimento corporal como forma de expressão. -A condição climática foi um fator limitador da experiência?

Com certeza. -De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais interessante(s) ?

Três. Entre as piscinas, da plataforma de saltos e no subsolo, sendo o último o mais interessante. -Que imagens ficaram gravadas em sua memória? Discorra sobre sua experiência.

Do subsolo, com a iluminação externa da piscina, pude notar que as gotas de chuva ao caírem na superfície da piscina, propiciou uma imagem única. -Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?

Não. -Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo? Fique a vontade para fazer outras considerações.

Um espetáculo mais curto. Mais elementos para localizar o espectador na peça.

332


Nome: Luciana Valério -Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?

Meu marido esteve no clube e ficou sabendo pelos cartazes, aí eu fui com as crianças. -O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?

Achei legal, nunca havia participado de nada parecido, queria ter ficado até o final, mas meus filhos preferiram ir para casa. -O que você achou do espetáculo? Quais suas impressões, sensações despertadas? Pra você o espetáculo fala sobre o que ?

Achei que falava sobre as agressões ao meio ambiente, gostei de estar lá, estava achando interessante. -O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?

Faço ballet clássico desde criança, então entendo as diversas formas de dança, e entendi a proposta do espetáculo. -A condição climática foi um fator limitador da experiência?

Não, poderia ter sido, mas não estava chovendo e fazia uma noite de calor muito agradável. -De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais interessante(s) ?

Andei bastante, toda a volta da piscina. Adorei ir para a parte de baixo da piscina, foi muito legal. -Que imagens ficaram gravadas em sua memória? Discorra sobre sua experiência.

Várias... os “mergulhadores”, os saltos, os “brindes” dados pelos atores durante o espetáculo, os fogos, e as sensação de fazer parte do cenário. -Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?

Meus filhos ainda são pequenos, estavam com sono, e corriam atrás dos atores o tempo todo, eu achei que estavam atrapalhando, na verdade eles estavam se divertindo mais que qualquer um, mas não achei conveniente e após terem que ficar quietos, eles passaram a achar chato.

333


-Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo? Fique a vontade para fazer outras considerações.

Poderia ser um pouco mais ágil. Tive que deixar as garrafinhas lá, poderia ter sacolinhas para ficar mais fácil de carregar. Gostei das músicas eletrônicas, elas conferiam ritmo e sensações, portanto quando a música acabava e ficava silencioso, era ruim. Mas foi ótimo, espero ir ao próximo, dessa vez só com o meu marido.

334


Caro Lucas, Como vai? Puxa... Eu queria muito falar com vocês. Bom, vamos lá. Eu sou apaixonada por teatro. MUITO apaixonada. Gosto de teatro quando é bom e quando é ruim. Gosto de teatro. E a minha angústia, minha vontade de falar com vocês, foi porque...puxa, eu acho que vocês tinham tudo na mão para ir bem além, bem além do que foram. Em resumo, pois é, eu não gostei da apresentação. Quando vi, no Jornal da USP, a nota sobre o espetáculo, fiquei empolgada. Sou seguidora e muitíssimo fã do Teatro da Vertigem e gosto demais quando o espaço foge do convencional e me propõe exploração múltipla das sensações. Então, cheguei ao CEPÊ animada. Adorei a recepção, a entrega do convite na garrafa e o clima. Adorei a entrada pelo vestiário, a chegada ao complexo de piscinas, já estava pensando em quantos e quais amigos traria no domingo seguinte, mas, então, a coisa foi escorrendo pelo ralo. Para resumir, o espetáculo me desagradou pela falta de amarração. Calma, eu não sou cartesiana. Não queria nada com começo, meio e fim. Não, não é isso. Mas como sou jornalista, trabalho com textos. E vejo muito texto que é um amontoado de frases de efeito. Às vezes, uma frase de efeito pode, de fato, fazer efeito. Mas um texto que tem mil frases de efeito desconexas (acontece muito em poesia...) denuncia uma falta de cuidado ou até de profundidade. E Moacir foi assim. Tinha muitas ideias interessantes, mas todas pouco exploradas e desamarradas. Vou citar um exemplo: andar sob a piscina grande, logo no começo da peça, foi bem interessante. Mas, já aí, eu detectei o primeiro problema: levar o público por todo o caminho e fazê-lo voltar pelo mesmo caminho sem nenhuma novidade ou surpresa na volta. Ali, é o subsolo, o underground, o ponto enterrado, o mundo dos mortos...sei lá, tinha tudo para ser super bem trabalhado, com mais música, com mais clima e, sobretudo, já denunciando um propósito, uma atitude. Eu presenciei inúmeras pessoas verbalizando o que eu estava pensando: "Tá, mas é para voltar pelo mesmo lugar?". Gosto da ideia de que as pessoas explorem o espaço, mas era preciso, sim, conduzir um pouco o público. Eu, por exemplo, ficava correndo atrás dos atores para tentar ver expressões, movimentos, acompanhar de perto o que acontecia. No meio do espetáculo, me cansei do corre-corre e abandonei a atenção. Daí, fiquei olhando de longe e, não via mais nada. Vi que as pessoas ficavam conversando sobre outros assuntos totalmente alienados do espetáculo. A falta de condução impossibilitou o engajamento do público. A Iluminação também era ineficiente nesse sentido. A trilha sonora e a narração do texto também não me trouxeram a emoção prometida... E eu fiz uma coisa que nunca, nunca faço: fui embora antes do final. Eu fiquei cansada e um pouco desconsolada de ver uma chance de fazer algo incrível

335


desperdiçada. Não acho que todos os espetáculos devam ser como os do Teatro da Vertigem. Mas acredito que vocês poderiam pensar em: 1) conduzir um pouquinho mais o público tentando sinalizar com luz ou com alguma outra proposta os caminhos que deveriam ser percorridos. Assistiram Bom Retiro 958? É impressionante como eles conseguiram fazer uma condução perfeita. 2) regravar a narração da carta, colocando, dessa vez, um pouco mais de emoção sincera na voz e refazer a trilha sonora também com mais impacto 3) fazer um espetáculo mais enxuto e que potencialize os pontos fortes. O mergulho lá do último patamar é forte, merece ser inserido no contexto com mais pujança, tem que ter mais sentido neste mergulho. Tem que ser algo que esperemos e que duvidemos que possa acontecer. Na terceira vez que ela mergulhou, já ninguém estava prestando atenção... Enfim, eu só escrevo porque queria tanto, tanto ter levado muitos amigos para rever o espetáculo no dia seguinte e, no entanto, não pude (pois não recomendaria o espetáculo do jeito que ele está agora). Peço desculpas pelas críticas, não são malvadas e ficam só entre nós. Um grande abraço e, ainda que não tenha sido o espetáculo que eu esperava, parabéns pela iniciativa. Márcia Carini

336


Nome: Mauricio Azinari Casaroti -Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?

Jornal da USP -O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?

Muito interessante, exótica e inusitada. -O que você achou do espetáculo? Quais suas impressões, sensações despertadas? Pra você o espetáculo fala sobre o que ?

Gostei muito. Várias sensações de prazer, de estar naquele lugar, naquele horário, vendo a performance . -O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?

Movimento cíclico e rítmico. -A condição climática foi um fator limitador da experiência?

Não. -De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais interessante(s) ?

Vi o espetáculo em movimento, seguindo os atores. Uma pena que não estava com trajes de banho. Senão teria pulado na piscina também. Gostei mais quando estava atrás dos refletores de luz. Mas, acho que se tivesse entrado na piscina, esse seria o ponto que mais teria apreciado. -Que imagens ficaram gravadas em sua memória? Discorra sobre sua experiência.

Como já disse, várias imagens muito prazerosas e interessantes -Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?

Não. Mas teria que ter ido, pois tinha outro compromisso às 22:00h e não achei que o espetáculo iria demorar tanto. Poderia ter meia hora a menos. -Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo? Fique a vontade para fazer outras considerações.

Reduzir o tempo em meia hora e orientar o público que venha com traje de piscina, para quem quiser poder olhar o espetáculo de dentro dela também.

337


Nome: Marielle Martins Como você ficou sabendo do espetáculo (localidade e meio de comunicação)?

Através de cartaz fixado em um mural dos corredores do CRUSP. O que você achou da proposta? Já participou de algo parecido?

Não tinha participado, não. Lembrou teatro de rua, em que você tem um espaço livre para se movimentar. O que você achou do espetáculo? Quais suas impressões, sensações despertadas? Pra você o espetáculo fala sobre o que ?

O espetáculo foi longo, mas curioso. Algumas coisas ficaram repetitivas. No final eu me emocionei com o Vanderson girando o “espectro de guarda-chuva” e aquelas luzinhas piscando...ali achei bem representativo: o que o personagem fez a vida toda e a sua morte não foi algo corriqueiro...foi a morte de um sonhador...sei lá...a morte chega, mas os sonhos ficam. Acho que foi por isso que me emocionei. Sou bem sonhadora. O que você entende como dança? Como você percebe a dança presente no espetáculo?

A dança é expressão dos sentimentos e sensações através do corpo. Não entendi a música final (era da Kate Nash?) Achei linda, mas não entendi. Ah, a Thais é ótima e se expressa muito bem. Acho que foi só aí no final que percebi a dança. E talvez em alguns momentos na piscina, em que o Vanderson rodopiava... A condição climática foi um fator limitador da experiência?

Houve ameaça de chuva e boa parte do pessoal foi embora. Choveu um pouco e impediu que nos movimentasse para melhor visualizar os atores. De quantos pontos de vista você viu o espetáculo? Quais? Qual(is) achou mais interessante(s) ?

De pelo menos quatro. Acho que a melhor visualização é próximo à piscina funda do trampolim...

338


Que imagens ficaram gravadas em sua memória? Discorra sobre sua experiência.

Hmm...a cena em que eles saem da piscina (eles usam uma roupa de plástico com as bolinhas brancas de oxigênio) e parecem morrer aos poucos à beira da piscina, buscando os últimos folêgos....foi marcante! E a parte que eles cantam é muito bonito...mani, mani, yaracê....algo assim. Ah, também gostei do clima de mistério na entrada, onde recebi a garrafinha! Bem legal! Você foi embora antes do fim do espetáculo? Por que razões?

Não!!! Fiquei até o final! Quais suas sugestões para melhoria do espetáculo? Fique a vontade para fazer outras considerações.

Diminuir as cenas repetitivas... Acrescentar mais sons ao espetáculo...sons emotivos, fortes... AHHHH!!! IMPORTANTE: FALTOU UMA VELA EM UM DEGRAU DO CORREDOR LÁ EMBAIXO... PERIGOSO! Parabéns a todos pela dedicação e trabalho!!! E boa sorte em Fortaleza! A partir do feedback colhido através das enquetes sobre o espetáculo MoAciR: Filhos da Dor podemos perceber uma variedade infinda de percepções e nos surpreender com a possibilidade de leituras para um mesmo signo ou ação propostos, inclusive expandir nossa propriocepção acerca de nossos gestos e seu impacto na troca com o outro. É nítida e predominante a devolutiva acerca da extensa duração do espetáculo, dos problemas técnicos por falta de aparatos adequados e da fragmentação da narrativa. Vemos bastante pertinência nas observações, o que nos faz pensar que o “problema” não estaria na duração do espetáculo, mas na força da realização de determinados mínimos gestos e ações simples (ainda mal explorados ou que carecem de mais precisão no desenho que o corpo circunscreve), e no encadeamento de ações no tempo e no espaço, pois muitas delas, pela rapidez da transição entre uma ação e outra ou pela distância, não permitiam serem experienciadas pelo público. A fragmentação da narrativa sem dúvida é um recurso proposital contando inclusive com a simultaneidade de ações ora corais, ora justapostas, provocando o poder de escolha do público participante, e com um excesso de estímulos sonoros e visuais díspares que se diluem na paisagem, também com o intuito de provocar sensorialmente o poder de escolha de cada um sobre o que focar/lembrar. Este experimento teve bastante relevância investigativa para podermos clarear e adaptar nossas escolhas estéticas ao explorar o mínimo gesto e a ação simples em espaços

339


públicos sob condições de dilatação extra-cotidiana do tempo, de olhares acostumados a fluxos acelerados, espetacularizados e de constante substituição de “imagens e sensações fortes”, por conseguinte de dispersão das ações e atenções na paisagem, reafirmar escolhas radicais que não necessariamente agradam ou atingem a maioria, e rever certos quesitos estruturais técnicos e de edição que carecem de mais experiência e refinamento do olhar por parte da direção, que só a frequente relação teórico-prática com materiais de investigação pode trazer.

340


Registros Fotográficos dos três experimentos principais da pesquisa (seguem registros em vídeo do experimento I e II e entrevista sobre o experimento III): Experimento I: Via Ir e vir pelo direito inalienável de parar Silêncio ensurdecedor - Buzina até gastar/para gastar a buzina Perfomer: Lucas Paz Duração: um dia (2h) Lugar: Túnel Papa João Paulo II

341


342


343


344


345


346


347


348


349


350


351


352


353


Experimento II: Patrimônio Público Tapete Vermelho-Patrimônio de Poucos Performers: João Alfredo Godry (1o dia), Lucas Paz (2o dia) Duração: dois dias (1o: 1h/ 2o: 3:30h) Lugar: Theatro Mvnicipal

354


355


356


357


358


359


360


361


362


363


364


365


“Onde um pisa outros usam como cobertor” “E nesse prédio onde o ingresso custa 100 reais” “Uma coisa jogada no chão significa o que? O desprezo do teatro”

366


367


368


369


370


371


Experimento III: Instituição Pública MoAciR: Filhos da Dor Performers: Lucas Paz, Maira Mesquita, Thais Lucena, Vanderson de Sousa Direção: Lucas Paz Iluminadores: Julia Freitas, Maria Druck, Martin Muller, Rodrigo Inamos, Thamara Uehara Sonoplasta: Lucas Paz Salva-Vidas: Ismael Barbosa, Victor Miggliati Orientação: Antônio Araújo, Helena Bastos Direção do CEPEUSP: José Farah Duração: oito meses Lugar: CEPEUSP O.

372


373


374


375


376


377


Pr贸logo

378


379


380


381


382


Amor

383


384


385


386


387


388


Doenรงa

389


390


Guerra

391


392


393


Água

394


395


396


397


398


399


400


Abandono

401


402


403


404


405


406


407


408


409


410


Água-viva-índio-urbano

411


412


413


414


415


416


417


418


419


Moral

420


421


422


423


424


Conceituação de Ação e Gesto por Pavis em Dicionário de Teatro (Selecionamos os trechos mais relevantes para nosso processo de definição de termos): PAVIS, 2007, p.2-7

AÇÃO: 1. Níveis de formalização da Ação a. Visível e invisível Sequência de acontecimentos cênicos essencialmente produzidos em função do comportamento (das personagens) Conjunto de processos de transformações visíveis (em cena) b. Definição tradicional “Sequência de atos e fatos que constituem o assunto de uma obra” c. Definição semiológica Determinação do sujeito e do objeto da ação. A ação se produz desde que um dos actantes tome a iniciativa de uma mudança de posição dentro da configuração actancial, alterando assim o equilíbrio das forcas do drama. A ação é portanto o elemento transformador e dinâmico que permite passar lógica e temporalmente de uma para outra situação. Ela é a sequência lógico-temporal das diferentes situações. 2. Modelo actancial, ação e intriga A ação pode ser resumida num código geral e abstrato. Um pequeno número de sequências narrativas fundamentais. Ação esquemática espécie de essência ou fórmula concentrada da ação (se aplicaria bem à noção de ação e programa de ação para nossas performances Ação que assume uma duração ou ação encarnada no nível da existência: a ação esboça acontecimentos e situações, a partir do momento que ela começa a se alongar, põe em movimento um jogo de imagens que já conta uma história e que por aí se coloca no nível da existência. (se aplicaria devidamente para noção de ação para o Experimento III MoAciR: Filhos da Dor).

425


3.Ação das Personagens Ação-caracteres (a ação para nós estaria envolvida numa tríade: ação-caráter-função) a. Concepção existencial A ação vem primeiro. As personagens não agem para imitar os caracteres, mas recebem seus caracteres por acréscimo e em razão de suas ações. A ação é considerada como o motor da fábula, definindo-se as personagens somente por tabela. A analise da narrativa ou do drama esforça-se para distinguir esferas de ações, sequencias mínimas de atos, actantes que se definem por seu lugar no modelo actancial. Caracteres [...] só julgar estes com base em suas ações concretas. Sartre: “uma peça é lançar pessoas numa empreitada; não há necessidade de delimitar muito exatamente que posição, que situação ode assumir cada personagem, em função das causas e contradições anteriores que a produziram com relação a ação principal. b. Concepção essencialista O homem por sua essência e não por suas ações. tudo se passa como se sua ação fosse a consequência e a exteriorização de sua vontade e de seu caráter. 4. Dinâmica da Ação A ação está ligada, pelo menos para o teatro dramático, ao surgimento e à resolução das contradições e conflitos entre as personagens e entre uma personagem e uma situação. É o desequilíbrio de um conflito que força as personagens a agirem para resolver a contradição; porém sua ação (sua reação) trará outros conflitos e contradições. Esta dinâmica incessante cria o movimento da peça. 5. Ação e Discurso O teatro se torna um local de simulação onde o espectador é encarregado, por uma convenção tácita com o autor e ator, de imaginar os atos performáticos num palco que não o da realidade. p. 139- Ação e mobilidade do signo teatral A ação é a vetorização da encenação, a maneira de combinar os motivos e os materiais do espetáculo.

426


6. Elementos Constitutivos da Ação “O agente, sua intenção, o ato ou o tipo de ato, a modalidade da ação (a maneira e os meios), a disposição temporal, espacial e circunstancial) e a finalidade”. Estes elementos definem qualquer tipo de ação consciente e não acidental. Identificando estes elementos precisar-se-á a natureza e a função da ação no teatro 7. Formas de Ação b. Ação representada/ação contada a ação é dada diretamente a ver ou é transmitida num texto. 8. A Ação Teatral numa Teoria da Linguagem e da Ação Humana b. vínculo da ação da fábula e da ação falada das personagens Substituir toda ação visível por uma história de sua enunciação ou de sua dificuldade em se comunicar.

AÇÕES Ao contrário das ações teatrais, simbólicas e representadas do comportamento humano, as ações de artistas de performance ou de body art, como as de Otto MÜHL ou de Hermann NITSCH, do grupo Fura dels Baus ou do circo Archaos são ações literais, reais, muitas vezes violentas, rituais e catárticas: elas dizem respeito à pessoa do ator e recusam a simulação da mimese teatral. As ações ao recusarem a teatralidade e o signo, estão em busca de um modelo ritual da ação eficaz, da intensidade, visando extrair do corpo do performer, e depois, do espectador, um campo de energias e de intensidade, uma vibração e um abalo físicos próximos daqueles que exigia Artaud ao reivindicar uma “cultura em ação que se torna em nós como que um novo órgão, uma espécie de segunda respiração”.

ACONTECIMENTO A representação teatral considerada não no aspecto ficcional de sua fábula, mas em sua realidade de prática artística que dá origem a uma troca entre ator e espectador. [...]constituir uma presença humana entregue ao olhar do público. Relação viva entre ator e espectador é que constitui a base da troca.

427


O teatro é um ato realizado aqui e agora no organismo dos atores, diante de outros homens. [...]estabelecimento desta relação com o acontecimento: [...]distante da significação de uma mensagem puramente linguística do que o está da significação de um acontecimento. [...]o espetáculo depende também a todo instante da intervenção externa de um acontecimento: rompimento do jogo, parada da representação, efeito imprevisto, ceticismo do espectador, etc. [...] a conscientização da realidade de um acontecimento vivido pelo público. A ideia de ficção fazendo esquecer a comunicação do acontecimento torna-se então estranha para eles (certos encenadores): “a ilusão que procuraremos criar não terá por objeto a maior ou menor verossimilhança da ação mas a forca comunicativa e a realidade desta ação. Uma experiência que não reproduz nada de anterior. Algumas formas atuais de teatro (o happening, a festa popular, o teatro invisível de BOAL, 1977) a performance buscam a versão mais pura da realidade ligada ao acontecimento: o espetáculo inventa a si mesmo negando todo projeto e toda simbólica. PAVIS, 2007, p. 184-187

GESTO Movimento corporal, na maior parte dos casos voluntário e controlado pelo ator, produzido com vista a uma significação mais ou menos dependente do texto dito, ou completamente autônomo. 1. Estatuto do Gesto Teatral a. O gesto como expressão Cada época tem uma concepção original estilo da representação. Concepção clássica: meio de expressão(...) exteriorização de um conteúdo psíquico interior e anterior (emoção, reação, significação) que o corpo tem por missão comunicar ao outro. [...]movimento exterior do corpo e do rosto [...]expressões do sentimento [...]expressão [...]parte principal da arte [...]corpo expressar seus estados anímicos

428


[...]equivalentes entre sentimentos e sua visualização gestual. Elemento intermediário entre interioridade(consciência) e exterioridade (ser físico). Visão clássica do gesto na vida como no teatro signos exteriores e visíveis de nosso corpo, pelos quais se conhece as manifestações interiores de nossa alma. Mudanças visíveis por si mesmas; meios que indicam as operações interiores da alma b. O gesto como produção [...]gestualidade do ator (ao menos numa forma experimental de interpretação e de improvisação) como produtora de signo (Ver diferença entre ação e gesto em entrevista de Renato Ferracini) Grotowski recusa-se a separar pensamento e atividade corporal, intenção e realização, ideia e ilustração. Produção-decifração de ideogramas: “novos ideogramas devem ser constantemente pesquisados e sua composição parecerá imediata e espontânea. O ponto de partida dessas formas gestuais é a estimulação e a descoberta em si mesmo de reações humanas primitivas. O resultado final disso é uma forma viva que possui sua própria lógica”(Grotowski) [...]fonte e finalidade do trabalho do ator. Impossível descrevê-lo em termos de sentimento ou mesmo de posições-poses (Meierhold) significativas. Hieróglifo= Signo icônico, tanto objeto simbolizado como o símbolo. “O teatro deveria utilizar somente os movimentos que são imediatamente decifráveis, todo o resto é supérfluo”(Meierhold) c. O gesto como imagem interna do corpo ou como sistema exterior Dificuldades[...]determinar fonte produtiva e sua descrição adequada. A descrição obriga a formalizar algumas posições-chave do gesto; logo a decompô-lo em momentos estáticos e a reduzi-lo

a

algumas

oposições

(tensão/relaxamento,

rapidez/lentidão,

ritmo

entrecortado/fluidez, etc.) 2. Rumo a uma Tipologia e a um Código Gestual a. Tipologia Nenhuma tipologia é satisfatória -gestos inatos, ligados a uma atitude corporal ou a um movimento. -gestos estéticos, trabalhados para produzir uma obra de arte (dança, pantomima, teatro).

429


-gestos convencionais que expressam uma mensagem compreendida pelo emissor e pelo receptor. gesto imitativo [...]realista [...]estilização e caracterização são inevitáveis e condicionam esse efeito da realidade gestual. [...]gesto pode ao contrário recusar a imitação, a repetição e a racionalização discursiva. Hieróglifo a ser decifrado “o ator, diz Grotowski, não deve mais usar seu organismo para ilustrar um movimento da alma; ele deve realizar esse movimento com seu organismo” [...] ideogramas corporais, segundo Artaud “uma nova linguagem física à base de signos e não mais de palavras” [...]tudo assume valor de signo e os gestos, qualquer que sejam a categoria a que pertençam entram na categoria estética b. Código gestual -tensão do gesto/relaxamento *concentração física e temporal de vários gestos (ideogramas Meierhold) -percepção da finalidade e da orientação da sequência gestual *processo estético de estilização, ampliação, depuração, distanciamento do gesto. -estabelecimento da ligação entre o gesto e a palavra (acompanhamento, complementaridade, substituição) 3. Problemas de uma Formalização dos Gestos [...]difícil um decupagem em unidades gestuais. A ausência de movimento não é critério suficiente para delimitar o início ou o fim do gesto. Toda descrição verbal do gesto do ator perde muito das qualidades específicas dos movimentos e das atitudes; [...]decupa o corpo de conformidade com unidades semânticas linguísticas quando se deveria exatamente estudar o corpo segundo suas próprias unidades ou leis- se é que existem

GESTUAL Maneira de se mexer especifica de um ator, de uma personagem ou de um estilo de representar, uma formalização e uma caracterização

GESTUALIDADE Designar as propriedades específicas do gesto.

430


Um sistema de maneiras de ser corporais, o gesto se refere a uma ação corporal singular.

GESTUS Maneira característica de usar o corpo, tomando já a conotação social de atitude para com o outro. 2. Gestus Brechtiano O gestus se compõe de um simples movimento de uma pessoa diante de outra, de uma forma social ou corporativamente particular de se comportar. O gestus fundamental da peça é o tipo de relação fundamental que rege os comportamentos sociais (servilismo, igualdade, violência, astúcia). O gestus se situa entre a ação e o caráter: enquanto ação ele mostra a personagem engajada numa práxis social; enquanto caráter, representa o conjunto de traços próprios a um individuo. É sensível ao mesmo tempo, comportamento corporal do ator em seu discurso: um texto, uma música, podem ser gestuais se apresentam um ritmo apropriado ao sentido do que ele está falando. [...]gestualidade teatral como hieróglifo do corpo humano e do corpo social.

431


Artigos referenciais Artigos que embasaram nossa compreensão teórica sobre patrimônio público, privatização, consumo e espetacularização

Arquitetura, Patrimônio e Museologia Cêça Guimaraens Arquiteta, Doutora em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), Professora Associada UFRJ – FAU / PROARQ, Pesquisadora do CNPq

Resumo Em face à crescente patrimonialização de todo o existente e à consequente musealização do espaço urbano, a função social e a hermenêutica da arquitetura dos edifícios de museus adquirem importância singular. No artigo observa-se inicialmente que a arquitetura e a museologia são campos disciplinares e de ação social que visam a proteção e a promoção das expressões patrimoniais das sociedades humanas. Dessa perspectiva, busca-se abordar a associação entre arquitetura, patrimônio e museologia com vistas a ampliar as discussões acerca dos fundamentos dos registros historiográficos e arquitetônicos dos museus, considerando que nestes registros estão constituídas as formas integradoras daqueles campos. Essa intenção do trabalho justifica-se na medida em que, no Brasil, a arquitetura da maioria dos edifícios onde estão instalados os principais museus é representativa de momentos conformadores do patrimônio nacional. Portanto, ainda considera-se que, em decorrência desse fato, expografias urbanas simbólicas e historicamente significativas encontram-se configuradas em quase todas as cidades do país. Com base no trabalho analítico de textos sobre essa temática verifica-se que as grandes inflexões formais que ocorreram no tipo arquitetônico “museu” aconteceram no início do século XX e foram provocadas por meio do embate e da consecução de objetivos que foram comuns e integraram a arquitetura e a museologia. Nesse sentido, o artigo trata dos registros de ideias e recomendações preservacionistas, buscando observar as bases históricas e políticas desses objetivos comuns. Destaca-se, então, que as ideias contidas em disposições de organismos internacionais configuraram-se em documentos básicos, nos quais foram anunciadas tanto a inovação conceitual dos objetos patrimoniais quanto a revolução

432


programática das instituições museais e o consequente reconhecimento dos novos lugares de memória urbanos.

Palavras chaves: arquitetura de museus, patrimônio urbano, cidades.

Contexto e conceitos Respeitadas as características genéticas singulares, a consolidação da Arquitetura e da Museologia na condição de campos disciplinares ocorreu de modo simultâneo a partir de meados do século XVIII. Porém, desde o início do século XX, as disposições sobre a preservação e a guarda de objetos patrimonializáveis e musealizáveis ―cuja quantidade cresce de modo irreversível em natureza e volume, o que torna inadministrável esta proliferação―, passaram a exigir a realização de ações diálogicas em níveis interdisciplinares. Assim, a necessidade de conservar o patrimônio62 de todos e ampliar o sentido informacional e comunicacional das instituições de cultura produziu influências transdisciplinares recíprocas no sentido da contextualização conceitual dos objetos e lugares patrimoniais. Dentre essas influências, destaca-se o reconhecimento das contradições ideológicas dos processos de musealização, aí incluindo a discussão sobre as formas de renovação urbanística e de promoção do patrimônio musealizado. Os setores de educação patrimonial e turismo tornaram-se, em consequência, parceiros insubstituíveis dos museus para a utilização estratégica da cultura no sentido do desenvolvimento. E, embora muitas vezes espetacularizadas e danosas, pois excessivamente superficiais e pouco ou nada educativas, as atividades museológicas passaram a ser fatores de desenvolvimento e geração de riqueza para os habitantes de regiões e áreas em processo de degradação e arruinamento. Desse modo, a arquitetura das instituições museais, quando observada tanto do ponto de vista do edifício quanto da cidade, anunciou as mudanças políticas e sociais no século XX, pois, tais equipamentos estabeleceram-se no domínio da comunicação de massas, hoje irreversivelmente mundializada. No entanto, os museus ainda continuam sendo identificados na condição de instituições “duras”, ou seja, portadoras de menor flexibilidade programática e, consequentemente, pouco ou nada inclusivas socialmente.

62

Grifos nossos

433


SANTOS (2007) propõe um processo de reflexão no qual considera o museu “um fenômeno social, um espaço relacional e, como tal, resultado da ação de muitos sujeitos sociais, que estão no interior da instituição e fora dela, e o constroem e reconstroem, a cada dia.” 1 Na sequência desta afirmação, a mesma autora comenta as dificuldades que temos em perceber e transformar as nossas paradigmáticas visões de mundo, destacando que “os museus talvez sejam uma das instituições mais resistentes, no sentido de rever teorias, de enfrentar o novo e provocar rupturas”.2 Na perspectiva de que as teorias e os sistemas formais arquitetônicos e urbanísticos recentes também expressaram, simultânea e coletivamente, tanto os desejos de mudança quanto de permanência das estruturas conservadoras das sociedades humanas, os temas tratados neste artigo se referem às maneiras com as quais a arquitetura envolveu a preservação do patrimônio das cidades à museologia. Para discorrer sobre tal articulação considera-se que as categorias de análise dessas disciplinas, nas quais se configuram os estudos e a prática do campo da ação social, são complementares. E denota-se ainda que a compreensão dos sentidos e da harmonia dos lugares requer o estudo das ideias e dos ideais das sociedades. Neste sentido, observo inicialmente que a ordem e a proporção são leis da harmonia que fundamentam a criação arquitetônica e também a aferição dos valores sociais, determinantes da historicidade das culturas e identidades. Pois, nas formas físicas, a essas leis e valores estariam agregadas, de modo interativo, ideologias excludentes e inclusivas. Entretanto, a arquitetura é um ato criativo cuja finalidade seria, em essência e por princípio, a radical renovação do espaço físico existente, observadas ou não as estruturas preexistentes. E a museologia é uma disciplina em aberto, fundamentando-se em releituras constantes da história e da memória das ações humanas. A museologia, diferentemente da arquitetura, estaria direcionada à produção, reprodução e institucionalização de progressivas apropriações e representações sociais das coisas do mundo estabelecido. Assim, tanto em termos de ação efetiva quanto de

SANTOS, Maria Célia T. Moura. “Os museus e seus públicos invisíveis”, texto apresentado no I Encontro Nacional de Rede de Educadores de Museus e Centros Culturais, realizado no Rio de Janeiro, na Casa de Rui Barbosa, em 17 e 18 de setembro de 2007, p. 2. 1

2

Idem, p.2

434


elaboração teórica, ambas as disciplinas atuam com base no reconhecimento da importância da dimensão física na constituição do espaço social. Do ponto de vista de tais assertivas decorreria a distinção entre os sentidos de museificar e musealizar, pois, quando a necessidade de dar sentido à forma nova ― e a preservação de patrimônios é problema aí incluído ―, os valores de dinamicidade e de ancianidade das ações e dos objetos são matéria a ser observada de maneira imprescindível. Então, no sentido restrito, museificar seria um termo que sugere paralisia e inércia, ou seja, resistência negativa. E musealizar, em sentido amplo, seria o processo de elaborar e abrir possibilidades para conhecer e reconhecer os atos lembrados e esquecidos.

A musealização do espaço urbano Cristina Bruno, citando Waldísia Rússio Guarnieri, entende que musealização pressupõe ou implica em preservar. Essa autora também considera que a preservação é uma ação museológica que aproxima objetos e homens e, assim, revitaliza o fato cultural. Portanto, C. Bruno afirmou que: “a preservação proporciona a construção de uma memória que permite o reconhecimento de características próprias, ou seja, a identificação. E a identidade cultural é algo extremamente ligado à autodefinição, à soberania, ao fortalecimento de uma consciência histórica”.3 Assim, a historicidade seria um atributo da memória em processo; e a história poderia ser o modo de limitar ou acirrar tal processo. Museificar seria “fazer” a história. Então, por outro prisma, musealizar seria garantir a historicidade das coisas e dos lugares. E identificar, portanto, significaria reconhecer as diferenças de modo afirmativo e positivo do que está estabelecido historicamente. De outro lado, em termos etimológicos e políticos, harmonia significa ajuste e beleza, o que pressupõe reconhecimento e pacto. Admite-se, entretanto, que o reconhecimento das diferenças sugere a primeira acepção do que é moderno, ou seja, do que possui historicidade. Em tal acepção, o que é antigo é o que teria história; e o que é moderno seria o que é dinâmico, radical e originalmente novo.

3

BRUNO, C. in http://tercud.ulusofona.pt/publicacoes/1997/BrunoC_Text.pdf Acessado em 22 de julho de 2010.

435


No entanto, ainda há que lembrar e preservar o fato de serem muitas e de ordem variada as naturezas das preexistências. Por isso, para a arquitetura da atualidade, a articulação das preexistências e o reconhecimento do modo mútuo com que essas preexistências apoiam e influenciam, tanto os próprios sentidos quanto os significados das construções novas, são inevitáveis e quase impositivos. O trabalho analítico em que se busca associar os sentidos de harmonia à musealização do espaço urbano poderia ser restringido à dimensão física e à escala urbana e edilícia dos lugares e paisagens. Do ponto de vista do fazer arquitetônico na atualidade, essas categorias enquadram as formas concretas de uso do edifício, do entorno imediato e da cidade preexistentes. Os elementos formais do espaço social são os fatores que melhor contribuem para a formação e percepção das ideias e das ações de natureza pública, dado serem os aspectos mais apreendidos visual, direta e imageticamente, sendo, portanto, os mais musealizáveis. Nesta perspectiva, interessa aqui demonstrar algumas das maneiras sob as quais a arquitetura e o urbanismo do século XX musealizaram ou, segundo alguns críticos, sugeriram a museificação do espaço urbano. No final do século XIX, apesar dos ímpetos saneadores, foi patente a tendência de preservação das malhas urbanas representativas dos tempos passados. Tal inclinação deveu-se não apenas às resistências conservadoras à industrialização crescente e aos movimentos progressistas, mas, também, à expansão e difusão da história da arte, da arqueologia e da etnografia. John Ruskin e William Morris, socialistas e preocupados com os aspectos econômico-sociais da industrialização em face do declínio das manufaturas, e considerados entre os mais importantes pais fundadores das teorias do restauro, são também referenciados na condição de serem os primeiros a promover, não só a proteção dos monumentos isolados, mas a manutenção de bairros e cidades antigas da Europa e do Oriente Médio. (CHOAY, 2001: 141-142) Os compromissos socialistas desses influentes personagens, os quais não eram arquitetos, mas pleiteavam as reformas sociais e apoiavam o sindicalismo,

podem ser

encontrados no diagrama da cidade-jardim de Ebenezer Howard, de 1898. Ao associar de maneira equilibrada a industrialização à atividade agrária, a cidade de Ebenezer Howard teria entre 30 e 50 mil habitantes, e seria o lugar ideal para a

436


implementação das políticas sociais em que se combinariam a dispersão urbana, o ruralismo de colonos e a descentralização governamental. (FRAMPTON: 1994, 47) Porém, é a haussmanização de Paris, que poderia ser considerada uma operação excepcional em que o entendimento da história e os conflitos resultantes deste conduziram a museificação e a musealização do espaço urbano. Observa-se, inicialmente, que as críticas e contradições que a destruição da malha urbana medieval da cidade-luz provocou eram refutadas por Haussmann (1809-1891) com a seguinte afirmação: “Mas, boa gente.(…), cite pelo menos um monumento antigo digno de interesse, um edifício precioso para a arte, curioso por suas lembranças, que minha administração tenha destruído, ou de o maior valor e que ela se tenha ocupado senão para desobstruir e dar-lhe a mais bela perspectiva possível”. (HAUSSMAN, apud CHOAY, 2001:175) A expografia urbanística de que Haussmann se valia para consolidar e defender suas ideias era decorrente da visão pinturesca e estética da cidade. Tal ótica, marcadamente arraigada ao longo dos tempos, estabelecia mise-en-scènes singulares, as quais sempre valorizariam o “novo” em oposição ao antigo, e, ousemos dizer, vice-versa. No século XX, tal atitude serviu de álibi a inúmeras radicalizações e operações “bota-abaixo” em muitas cidades do Ocidente. Os planos urbanísticos de Francisco Pereira Passos, Sabóia Ribeiro, Alfred Agache e Afonso Eduardo Reidy são referências especiais desses propósitos idealizados para a antiga capital brasileira, o Rio de Janeiro. A separação das funções na cidade foi uma das mais fortes características das formas urbanas inovadoras e da configuração das morfologias arquitetônicas originais no período entre 1920 e 1960. Para os arquitetos representantes da modernidade expressa no século XIX e do Movimento Moderno do início do século XX, o contexto físico racionalista e funcional possibilitaria a separação dos fluxos de veículos e de pedestres, o uso livre do solo e as relações permeáveis entre o exterior e o interior das edificações. No entanto, a integração com a natureza física e a constituição da nova sociedade urbana também foram os objetivos que fundamentaram os projetos e as teses do urbanismo moderno. Assim, a cidade ideal, ou a segunda natureza, seria o lugar da síntese das artes e o universo das máquinas onde os homens e as coisas novas e incansavelmente originais estariam harmonizados, pois eram impensados e daí excluídos os conflitos e as restrições à mobilidade física e social e ao convívio comunitário.

437


Em tais espaços de “futuros”, as relações tridimensionais expressivas do conceito e do respeito moderno estabeleciam-se declaradamente face aos desejos de arte e história, os quais adquiriam a condição de patrimônios dos grupos sociais historicamente hegemônicos. As referências morfológicas e éticas primordiais e representativas das teses utópicas do Movimento Moderno são a espiral, o esquema do museu do crescimento ilimitado, e a proposta para a cidade mundial idealizados por Le Corbusier. O pavilhão de Barcelona e a Galeria Nacional em Berlim de Mies Van der Rohe, ao lado do Kimbelll Art Museum de Louis Kahn, também são edifícios em que os esquemas formais, as referências e os significados clássicos aderem, de maneira integradora os elementos clássicos aos modernos. Denota-se, portanto, que as coisas do passado estavam contidas de maneira constante nas propostas modernistas. Tais esquemas ocorriam na perspectiva de futuro, pois a representação da ideia de passado em espaços novos imprimia originalidade e garantia a perenidade da ética modernista. Em tal sentido, ao incluir o passado no princípio da “realidade” e da contemporaneidade, a arquitetura moderna, racional, abstrata e neutra por excelência, parecia articular os substratos, estruturas e significados essenciais da natureza dos lugares de memória. Assim, a tendência modernista que associava o uso das formas geométricas puras e atemporais à ambiência existente, geraria tipologias ajustáveis ao “espírito” local. (MONTANER: 2008, 116). E, nessa atitude, estariam latentes as virtudes e os desejos de harmonia social.

A ideia de museu contemporâneo e o campo patrimonial A espetacularização do espaço urbano por meio da promoção da morfologia singular dos edifícios de museus é outro foco representativo das idéias que articulam museologia, patrimônio e arquitetura, pois o principal papel dessas instituições de cultura seria “acirrar” a relação entre história e cidadania, revelando, idealmente, a excelência pedagógica dos lugares originais e a condição de espaço museológico das cidades no cotidiano dos cidadãos. Desse ponto de vista, a requalificação efetiva de áreas centrais das cidades resultaria de ações que devolveriam aos habitantes e aos usuários o sentido de urbanidade e historicidade. Para compreender tal “fenômeno”, recorro a F. Choay, autora que, em A alegoria do patrimônio (2001), analisa as diferentes formas de tratamento aos monumentos e malhas urbanas das cidades antigas, com base nas teses que constituiram o urbanismo moderno.

438


Choay afirma que a noção do patrimônio urbano foi gerada na “contramão” dos processos de modernização das cidades (2001:180). E, segundo essa autora, as idéias e as contradições dos processos de destruição das cidades pré-industriais e da configuração funcionalista do urbanismo moderno, a partir de 1860 e até meados do século XX, resultaram da “batalha” entre história e historicidade. Ou, em outras palavras, entre a inércia e o dinamismo. Em tal contexto de ações reflexivas e práticas, surgiram as figuras de cidade denominadas por Choay “memorial, histórica e historial”, as quais são representativas das ideias de John Ruskin, William Morris, Camilo Sitte, Violet-le-Duc e Gustavo Giovannoni, inquestionáveis “pais fundadores” das teorias do patrimônio urbano moderno. Para esses personagens, ajustadas ou negadas as escalas físicas do edifício, da cidade e do território, e revistos os equívocos de interpretação, a conservação das estruturas tradicionais e modestas, a permanência da beleza urbana concebida pelos mestres antigos, e a função hermenêutica do uso dos diferentes tipos arquitetônicos e sistemas espaciais antecedentes seriam fatos indutores da harmonia formal nas metropóles contemporâneas. A verificação de tais conjunções pode ser comprovada na contribuição das teorias urbanísticas de Gustavo Giovannoni (1873-1943) à Carta de Atenas de 1931 e na participação dele no desenvolvimento, na consolidação das formas de definição, na atribuição de valor de uso museológico aos conjuntos urbanos antigos. A figura da cidade histórica ou museal era representada na cidade antiga entendida na condição de ”objeto raro, frágil, precioso para a arte e para a história e que, como as obras conservadas nos museus, deve ser colocada fora do circuito da vida.” (CHOAY: 191). Segundo Choay, a cidade museal foi renegada pelos CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna), pois o Plano Voisin, idealizado por Le Corbusier para Paris em 1925, dissolveria, à maneira de Haussmann, a malha urbana dos velhos bairros, aumentando consideravelmente o gabarito dos edifícios e conservando apenas alguns monumentos. Entretanto, a manutenção da Notre Dame, do Arco do Triunfo e da Torre Eiffel no Plano Voisin, seria uma espécie de “inventário que já anunciava a concepção midiática dos monumentos antigos”. (CHOAY: 194) Assim seria a cidade museal o “lugar” da museificação, este ato hoje impensável? As formas de representação da cidade museal no Rio de Janeiro encontram-se nas propostas de Afonso Eduardo Reidy, o qual reproduziu as ideias haussmanianas e corbusianas, recriando, com base no Plano Agache, a urbanização dos morros de Santo Antônio e do Castelo. Em 1942, Reidy apropriou-se de recomendações morfológicas de

439


Agache e Sabóia Ribeiro, mantendo, em seus planos para a renovação do centro do Rio, as estruturas coloniais (o convento de Santo Antonio e o Aqueduto dos Arcos), e as ambiências neoclássicas do Passeio Público e da Santa Casa de Misericórdia. Entretanto, tais monumentos seriam emoldurados pelas novas construções, dentre as quais ele incluiu a réplica do Museu do Conhecimento Ilimitado. A importância do edifício do “museu” no espaço urbano modernista foi reconhecida por Le Corbusier quando utilizou o modelo de museu do crescimento ilimitado no projeto do novo cuore de Saint Dié. Provavelmente, esse plano serviu de inspiração direta para o projeto do morro de Santo Antônio, no qual o arquiteto carioca Afonso Eduardo Reidy reproduziu o desenho do museu corbusiano. Nas propostas para a cidade universitária da Universidade do Brasil elaboradas por Le Corbusier e pela equipe liderada por Lucio Costa, a morfologia e a situação dos edifícios dos museus universitários conferiam a esses edifícios referências monumentais modernas, diferenciando-os de outras construções do conjunto. Os projetos de arquitetura de museus de arte moderna e contemporânea também poderiam ser observados na condição de exemplos expressivos das intenções modernistas de agregação da arte nas cidades e da consequente popularização das experiências artísticas. Afonso Eduardo Reidy, Lina Bo Bardi e Acácio Gil Borsói, arquitetos autores de estruturas museais modernas, configuraram em seus desenhos as proposições da época voltadas à democratização dos acessos de todos aos lugares das cidades. Para harmonizar os edifícios com a natureza dos lugares, esses arquitetos utilizaram os pilotis e, assim, deixaram livre o pavimento térreo de suas construções. As fachadas envidraçadas, típicas dos princípios corbusianos, foram ações afirmativas de inclusão social constantes nos edifícios do Museu de Arte Moderna do Rio e o Museu de Arte de São Paulo, lado a lado com outros MAMs, incluindo o Museu de Arte Moderna do Recife. As conexões entre “popular” e “moderno” também representariam outras possibilidades de observar a correspondência entre a função social da arte e os programas de museus de arte moderna. E, apesar de haver poucas referências à aceitação da arte popular e da arte primitiva em museus de arte, tais articulações ocorreram por meio da exibição de obras dos artistas naïfs, das crianças e dos pacientes psiquiátricos. Essa categoria especial de criadores da “arte virgem”, conforme classificava o crítico Mário Pedrosa, participou de exposições no MAM-SP e no MASP no final da década de 1940 valorizando extremamente a arte popular e os artesãos.

440


Os documentos patrimoniais na década de 1930 A historicidade das estruturas urbanas pré-industriais foI reconhecida desde meados do século XIX e, na perspectiva da permanência das preexistências de tal tipo, a cidade histórica foi progressivamente melhor compreendida. Assim, o respeito às relações entre os edifícios e o ambiente fundamentaria a consideração das camadas históricas das cidades e o reconhecimento dos valores das preexistências, as quais eram vistas na condição de espaço público, ou seja, a todos pertencentes. No movimento moderno, as intenções de criar sistemas racionais contextualizados, conciliando as expressões culturais estabelecidas das comunidades e os novos lugares então criados, estão registradas em Cartas e Declarações elaboradas em reuniões de organismos internacionais A respeito desses textos que, até hoje, orientam internacionalmente as políticas e diretrizes de proteção patrimonial, Judite Primo comenta que: “Todos esses documentos seguem uma linha de preocupação e atuação que nos levam a perceber o patrimônio nas suas relações com o meio em que se insere, na sua dinâmica social e no seu papel como elemento simbólico. É ainda importante ressaltar que essas preocupações também nos fazem refletir sobre o papel do patrimônio no contexto museal e museológico e serviu de influência para que os profissionais da museologia pudessem também formular documentos de base para fundamentar a ação museal.” 4 A primeira resolução internacional em que se tratou de monumentos históricos no século XX, a Carta de Atenas, foi elaborada na reunião da Sociedade das Nações realizada em 1931 e as atas foram publicadas em 1933. Nessa Carta, as recomendações para a utilização dos monumentos visavam assegurar o uso perene dos monumentos, desde que fosse respeitado o “caráter histórico ou artístico dos mesmos.” (CARTAS, 2004: 13) Na medida em que são observadas as intenções e diretrizes modernistas inaugurais, elaboradas em reuniões de arquitetos e especialistas em conservação patrimonial na terceira década do século XX, verifica-se que o princípio da coletividade seria o fundamento e o sentido da função social das ações de proteção dos lugares e das coisas. Tal princípio seria o sentido fundamental e preponderante da ação patrimonial, tanto no que se referisse às construções novas quanto às intervenções em espaços públicos do “passado”.

4 PRIMO,

J. “Documentos básicos em Museologia”. In CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA. 2007, p. 124. 441


Dados o destaque e a atenção à relação entre os monumentos do passado e a cidade moderna, o primeiro documento de Atenas também ressaltava, na mesma medida, o direito de propriedade e a função social do património. Segundo observações de historiadores, essas recomendações explicitavam de forma inovadora que os monumentos pertenciam à “coletividade” e que, portanto, essa coletividade, ou grupo, tem o dever de compartilhar a responsabilidade de preservá-los. Então, ao ser constatada a tendência em que era consagrado “um certo direito da coletividade em relação à propriedade privada”, no texto, uma certa “conciliação” das diferenças entre os direitos público e privado preconizava que as leis fossem “adaptadas às circunstâncias locais e à opinião pública, de modo que se encontre a menor oposição possível, tendo em conta os sacrifícios a que estão sujeitos os proprietários em benefício do interesse geral.” (CARTAS, 2004: 14). O sentido da musealização do espaço urbano pode também ser observado na Carta de Atenas, quando aí foi afirmado o respeito ao “caráter e à fisonomia das cidades, sobretudo nas vizinhanças dos monumentos antigos, cuja proximidade deve ser objeto de cuidados especiais.” (CARTAS: 2004, 14) A noção de ambiência, dessa maneira, também estaria contida nas referências à preservação das “perspectivas pitorescas” e ao uso de “vegetação conveniente ao caráter antigo dos monumentos”, expressando ainda a ideia de expografia urbana. O papel da educação e as ações de cooperação das comunidades dos estados, por meio do Pacto da Sociedade das Nações, também foram temas tratados nessa conferência. Os presentes à reunião estavam “profundamente” certos de que os “sentimentos” de “respeito e de interesse dos próprios povos” pela proteção dos “testemunhos de toda a a civilização” seriam cultivados e ampliados por meio das ações do poder público e dos educadores. (CARTAS: 2004, 17) A segunda Carta de Atenas, a do Congresso Internacional de Arquitetura Moderna (CIAM) de 1933, é um texto em que a cidade e a região tornam-se o foco de análises conjunturais de ordem conceitual e prática no sentido do projeto e da gestão. Portanto, é um documento seminal para a teoria e a prática do planejamento urbano moderno. A liberdade e a vida em que seriam “conciliados os dois princípios contraditórios que regem a personalidade humana: o individual e o coletivo” foram valores associados aos aspectos econômicos e políticos e às características biológicas e psicológicas que os grupos e as sociedades urbanas tinham em comum.

442


O espaço físico e o espaço social, ou seja, os contextos geográfico, político e econômico eram vistos de modo complexo e entendidos na condição de modeladores das atitudes mentais; da mesma forma, os “empreendimentos” seriam diferentes em virtude dos modos de ver e da razão de viver das “raças”. Assim, até nas características das cidades de “formato incerto”, “a proporção a hierarquia e a conveniência” foram vistas na condição de regras humanas em que se denotava “civilização” e “bem-estar”. (CARTAS :2004, 25) Ao relacionar as mudanças e o dinamismo das cidades, a Carta de 1933 registra que: “A História está inscrita no traçado e na arquitetura das cidades. Aquilo que deles subsiste forma o fio condutor que, juntamente com os textos e documentos gráficos, permite a representação das imagens sucessivas do passado” (...) “À medida que o tempo passa, os valores indubitavelmente se inscrevem no patrimônio de um grupo, seja ele cidade, país ou humanidade; a vetustez, não obstante, atinge um dia todo o conjunto de construções ou de caminhos. A morte atinge tanto as obras quanto os seres. Quem fará a discriminação entre aquilo que deve subsistir e aquilo que deve desaparecer? O espírito da cidade formou-se no decorrer dos anos; simples construções adquiriram um valor eterno, na medida em que simbolizam a alma coletiva ...” (CARTAS: 2004, 25-26) Ao constatar as condições injustas dos ambientes onde eram construídas as habitações modestas, os quais se diferenciam dos lugares em que eram localizadas as ricas, os arquitetos do CIAM de 1933 afirmaram: “É preciso tornar acessível para todos, por meio de legislação implacável, uma certa qualidade de bem-estar, independentemente de qualquer questão de dinheiro. É preciso impedir, para sempre, por uma rigorosa regulamentação urbana, que famílias inteiras sejam privadas de luz, de ar e de espaço.” (CARTAS: 2004, 30) As recomendações também tratavam das instituições coletivas que eram consideradas prolongamentos da habitação, pois deveriam estar localizadas nas proximidades dos setores de moradia. Dentre essas, estariam as “escolas, as quais se somarão organizações intelectuais e esportivas destinadas a proporcionar aso adolescentes a possibilidade de trabalhos ou de jogos adequados à satisfação das aspirações

próprias dessa idade; (...)

(CARTAS: 2004, 31) Assim, a preocupação com essas construções de uso comunitário, incluía os “centros de entretenimento intelectual”, pois estes deveriam fazer parte dos planos de renovação das cidades e dos setores habitacionais.

443


A densidade, resolvida com os arranha-céus, e a qualidade da legislação urbanística associavam os programas de cultura, entretenimento e lazer ao estatuto do uso dos espaços abertos públicos. Desse modo, os espetáculos, concertos e teatros ao ar livre, configurariam ”(...) destinação fecunda das horas livres (a qual) forjará uma saúde e um coração para os habitantes das cidades.” (CARTAS:2004, 42) Dentre as atividades de trabalho estava incluído o artesanato, o qual deveria ser praticado nos pontos mais densos. E, segundo a Carta de Atenas, embora considerado diferente da indústria, o artesanato, “emana diretamente do potencial acumulado nos centros urbanos. O artesanato de livros, joalheria, costura ou moda encontra na concentração intelectual da cidade a excitação criadora que lhe é necessária.” (CARTAS: 2004, 46) A seção da Carta de Atenas destinada à avaliação do contexto e às soluções para a conservação e demolição do patrimônio histórico das cidades reafirma e amplia as recomendações citadas, na medida em que registra o compartilhamento das responsabilidades e sugere soluções conciliatórias para edifícios e conjuntos monumentais. “Um culto estrito do passado não pode levar a desconhecer as regras de justiça social” (CARTAS: 2004, 53) foi a declaração-chave em que os autores desse documento buscaram expressar de modo claro as preocupações com “a miséria, a promiscuidade e a doença” instaladas em bairros antigos. Nesse sentido, as mudanças e as renovações nas cidades deveriam abranger desde desvios e deslocamentos da circulação até transposições de monumentos, pois o objetivo seria conservar apenas os elementos essenciais. No entanto, os componentes do CIAM de Atenas, também afirmam que: “em nenhum caso, o culto do pitoresco e da história deve ter primazia sobre a salubridade da moradia da qual dependem tão estreitamente o bem-estar e a saúde moral do indivíduo”. (CARTAS: 2004, 53) No Brasil, as ações de preservação do Iphan seguiram essa variada e ambígua trilha traçada para integrar modernidade e preservação progressista. Dentre os exemplos mais representativos de tal sentido encontram-se a transposição do pórtico da antiga Academia Imperial de Belas Artes para o Jardim Botânico e a construção da sede provisória da prefeitura de Salvador. Em muitos casos assemelhados e baseados em intenções modernizantes do século XX, estão as “superfícies verdes” que criaram as grandes perspectivas e os grandes vazios urbanos que resultaram da demolição de cortiços existentes no entorno de monumentos históricos.

444


O largo da Lapa, no Rio de Janeiro é outro exemplo da museografia urbana que utiliza as recomendações de Atenas no centro histórico para criar, na década de 1970, cenário monumental e espetacular. Em Atenas, também a cópia e o pastiche foram condenados, pois “as antigas condições de trabalho não poderiam ser reconstituídas e a aplicação da técnica moderna em um ideal ultrapassado sempre leva a um simulacro desprovido de qualquer vida.” (CARTAS: 2004, 54) Assim, o movimento e o estilo neocolonial foram rechaçados em reunião de nível internacional. Porém, registre-se aqui o fato de que tal recomendação não foi seguida pelos preservacionistas norte-americanos na reconstituição de Williamsburg e na construção do Cloister em Nova York. Embora observada pelos principais arquitetos da geração modernista brasileira, essa disposição não evitou a continuidade do uso de adornos daquele estilo nas construções das principais cidades do país, e algumas proposições de tendência historicista da arquitetura pósmoderna também utilizaram as formas decorativas difundidas no movimento neocolonial. Nas Conclusões de Atenas, foi possível verificar que, em trinta e três cidades estava ilustrada “a história da raça branca sob os mais diversos climas e latitudes” (...) “o crescimento incessante dos interesses privados” e o “maquinismo” seriam os responsáveis pela “desordem instituída (...) em uma situação que comportava até então uma relativa harmonia; e também a ausência de qualquer esforço de adaptação”. (CARTAS:2004, 55) A desumanidade das aglomerações urbanas, a falta de controle e o sofrimento dos indivíduos e grupos desapareceriam com o urbanismo moderno, o qual faria da cidade uma unidade funcional harmoniosa e utópica, onde seriam asseguradas “a liberdade individual e o benefício da ação coletiva”. (CARTAS:2004, 56-57) O sentido da coletividade e as ações especulativas são referenciadas ao longo da Carta; e as contradições e a subordinação do direito privado ao interesse coletivo foram matérias também tratadas nos últimos itens das Conclusões. Dessa perspectiva afirmava-se que: “O direto individual não tem relação com o vulgar interesse privado. Este, que satisfaz a uma minoria, condenando o resto da massa social a uma vida medíocre, merece severas restrições.” (CARTAS: 2004, 64-65). Conclusão A década de 1930 também possui marco documental importante para a Museologia, pois as reflexões sobre as maneiras de articular a missão e o programa dos museus ainda são

445


discutidas; e as disposições sobre as mudanças do espaço físico que ocorreram nesta época também são, até hoje, reproduzidas em projetos de arquitetura. Os temas de projeto de arquitetura foram tratados no Congresso Internacional de 1934 realizado em Madrid pelo Office Internacional de Musée e ali foram estabelecidos e evidenciados os padrões para a criação de espaços expositivos apropriados à correta funcionalidade dos museus. Nesse sentido, transcrevemos as afirmações de SALCEDO,5 nas quais estão registrados parâmetros arquitetônicos: “A forma das salas deve ser retangular, de dimensão variável, de acordo com a proposta expositiva, bem como facilitar o acesso fácil e independente; a iluminação deve ser do alto, por janelas que também possam dosar a incidência luminosa e a temperatura; A distribuição dos espaços é resultante da circulação, e deve ser organizada de tal forma que se possa escolher o que se deseja sem interrupções de outros espaços; A circulação deve permitir o acesso livre às salas e, caso haja outros andares, deve-se ter uma única escada como acesso principal, mas se deve prever outra para serviços, elevador e um plano na entrada principal que indique ao visitante o sentido e, ainda, o fácil acesso entre salas e o local de armazenamento das obras; A iluminação ideal será obtida por meio de um sistema difuso, realizado pelas janelas altas, visto que a iluminação zenital, além de ofuscar a visão do observador, cria zonas de sombra, iluminando mais o piso do que as paredes; já se prevê que a iluminação artificial será a melhor para o futuro; O modo de construção dependerá das necessidades técnicas, materiais e econômicas; A implantação deve ser equivalente à de teatros e igrejas, o museu deve estar cercado de jardins, facilitando os acessos, evitando o som da cidade, garantindo segurança por meio do distanciamento da vizinhança e possibilitando seu crescimento futuro.” Verifica-se nessas considerações que a arquitetura do museu deveria considerar o local e as possibilidades de soluções expositivas flexíveis e acessíveis, determinando-as com base em intenções que eram, ao mesmo tempo, nitidamente modernistas e preservacionistas. Tais intenções progressistas e contextualistas também podem ser observadas em uma das disposições sobre as exposições, na qual registrou-se que “a exposição das obras deve ser didática, sistemática, limitada quanto ao número de peças em razão da decoração existente na sala ou do excesso decorativo que possa resultar.” (SALCEDO: 2008, 258) 5

DEL CASTILLO, S. Salcedo. Cenário da arquitetura da arte. São Paulo: Martins, 2008, p.258.

446


Portanto, os diagramas arquitetônicos dos novos museus e as soluções de adequação dos edifícios existentes, dos quais resultariam os volumes e as formas originais de organização espacial dos museus modernos e contemporâneos estavam objetivamente sugeridos.

Referências bibliográficas BRUNO, C.. In http://tercud.ulusofona.pt/publicacoes/1997/BrunoC_Text.pdf Acessado em 22 de julho de 2010. CARTAS patrimoniais. CURY, I. (org). Brasília: IPHAN, 2004. CHOAY, F. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Martins Fontes, 2001. DEL CASTILLO, S. Salcedo. Cenário da arquitetura da arte. São Paulo: Martins, 2008. GUIMARAENS, C. “Entrevista”. Mais Passeio, agosto de 2003. MONTANER, J. M.. Sistemas arquitectónicos contemporâneos. Madrid: Edtorial Gustavo Gili, 2008. PRIMO, J. “Documenos básicos em Museologia”. In CADERNOS DE SOCIOMUSEOLOGIA. Lisboa: ULHT, 2007. SANTOS, Maria Célia T. Moura. “Os museus e seus públicos invisíveis”. In I Encontro Nacional de Rede de Educadores de Museus e Centros Culturais. Rio de Janeiro, Fundação Casa de Rui Barbosa, 2007.

447


Intervenção urbana no centro histórico da cidade de São Paulo: atores sociais envolvidos Dulce Maria Tourinho Baptista Pontifícia Universidade Católica de São Paulo dulcebaptista@uol.com.br O estudo aqui apresentado reflete questões enfrentadas por São Paulo no trato para com o seu patrimônio histórico na área central, buscando diagnosticar os agentes envolvidos na produção e gestão dos projetos de intervenção. As ações e relações sociais na cidade retratam convivências, tanto harmoniosas como conflituosas, representadas pelas motivações dos diversos atores sociais na correlação de forças aí estabelecida. A área central da cidade é um cenário que acolhe atores e identidades onde, cotidianamente, emergem conflitos múltiplos, decorrentes do confronto de uma população heterogênea que usa a cidade como espaço de sobrevivência, de sociabilidade, de trabalho, de especulação e ganhos de capital, entre outros usos e apropriações. Os projetos que aí se desencadeiam são diversos, desde os meios básicos para trabalhar, sobreviver, viver e lutar, até as estratégias para lucrar e enriquecer. Desse modo, busca-se refletir como os atores sociais envolvidos nesse contexto interagem com a cidade, com o seu patrimônio, com as ações de intervenção e aí correlacionam forças em busca de espaço, voltado ou não, para construção da dignidade humana. O presente texto está fundamentado nos conceitos de ator social1, hegemonia, sociedade civil e política2. A leitura da atuação desses atores sociais nos projetos de intervenção urbana considera, tanto a perspectiva da lógica do poder da sociedade política, como o poder das organizações da sociedade civil no enfrentamento ou coalizão ao poder dominante. Sabe-se que os diversificados atores sociais se engajam de diferentes formas na formulação, implementação e controle, dos projetos de intervenção urbana que podem se 1

Conceitua-se ator - da sociedade civil e política - quem representa um papel dentro de um enredo, em uma trama de relações sociais. Representa um grupo, uma classe, um país, uma idéia, uma reivindicação, um projeto, uma promessa, um interesse ou uma denúncia. O conceito de ator não se limita a pessoas ou grupos sociais. Instituições podem ser atores sociais: sindicatos, partidos políticos, associações de base, entidades assistenciais e articuladoras, etc. (Souza, 1999). 2 Os conceitos de hegemonia, sociedade política e civil são apreendidos na perspectiva gramsciana em que a sociedade política – aparelhos militares, estatais e burocráticos de dominação e coerção- e a sociedade civil – aparelhos privados de uma classe ou um bloco de classes envolvendo igreja, partido, organizações diversas lutam pela hegemonia e pela direção política ou moral (Gramsci, 1991).

448


constituir em coerção ou hegemonia. O trabalho desenvolvido é resultante de pesquisa, cuja metodologia envolveu apropriação e análise de dados dos projetos de intervenção em desencadeamento no centro, levantamento de bibliografia referente às políticas de intervenção no patrimônio cultural das cidades e do estudo de campo. Este último incluiu a realização de 60 entrevistas com moradores, trabalhadores e usuários do centro, realizadas no primeiro semestre de 2010, com o intuito de obter a percepção dos atores quanto ao processo de renovação do centro. A análise partiu do pressuposto que os projetos interventivos deveriam atuar além da dimensão material do patrimônio edificado, ou seja, privilegiando a necessária inclusão dos usos sociais da cidade, na perspectiva da dimensão intangível dos modos de vida cotidianos, das práticas e direitos costumeiros, das expressões de singularidade cultural, da preservação da história e da memória como patrimônio vivo - com uso e apropriação cotidiana (Bauman, 2009; Arantes,1984; Lefebvre, 2008; Fortuna, 2002). O patrimônio imaterial está inserido no material e, muitas vezes, os projetos não consideram essa dimensão e excluem atores sociais, principalmente os menos favorecidos que ficam sem acesso aos novos usos da cidade. A conservação do patrimônio público e a possibilidade de vivenciá-lo democraticamente criam vínculos de pertencimento dos atores com a cidade, além de gerar ganhos na qualidade de vida dos sujeitos que se sentem estimulados a preservar o meio ambiente em que vivem, quando criam uma identidade com o lugar. Busca-se refletir sobre as intervenções – com ênfase na última década – que permitem compreender esse universo, parte de um todo, com o olhar voltado para os atores sociais que contracenam nesse contexto. As reflexões estão fundamentadas nos princípios do urbanismo na apreensão do contexto visto enquanto totalidade, englobando as políticas públicas voltadas para o patrimônio cultural coletivo urbano e os direitos de participação e cidadania dos atores aí envolvidos. Essa é uma questão substantiva na proposição de ações voltadas à conservação do patrimônio cultural, para além dos critérios adotados que se referem à dimensão material do patrimônio edificado com políticas de preservação alicerçadas na invenção dos atrativos e oferta da cultura como segmento de mercado, conforme constata Fortuna (1999, p.44): “O passado e os lugares das nossas cidades tornaram-se mercadorias e exaltação do seu consumo”. O recorte empírico desse ensaio está então na cidade de São Paulo, cenário cosmopolita de uma cidade potencialmente global com 11.244.369 habitantes (IBGE 2010).

449


Sua área central histórica sofre intervenção de Projetos Urbanos envolvendo uma diversidade de atores estatais e societários em nível local, nacional e transnacional, assim como atores multilaterais – Nações Unidas, BID e Banco Mundial. Trata-se de um espaço heterogêneo que convive com a diversidade, a insegurança e a exclusão social. Aí estão evidenciadas as contradições de um mundo globalizado que conquista tecnologias, desenvolve meios de comunicação de ponta em nível galopante, mas caminha paradoxalmente na direção de produzir, no mesmo ritmo, uma população miserável e excedente que não tem acesso aos modos de vida preconizados pelo capitalismo. Etnografia do Centro e Seus Atores Sociais O Centro de São Paulo é apreendido e vivido de diferentes formas, a saber: como lócus da escrita histórica da cidade, de grandes concentrações urbanas, de reivindicações político sindicais, ecológicas, de direitos humanos, culturais e religiosas, mas também como estigma, espaço degradado, mal cuidado, poluído, sujo, violento, com edifícios abandonados, invadidos, moradia dos sem teto, etc. Da representação simbólica desse lugar emerge a marca do centro da cidade. Aí está representado o seu passado bandeirante cujas expedições saiam do Pátio do Colégio deixando as mulheres chorosas, lamento esse que ainda é sentido no local por muito dos seus moradores. A sua riqueza, na fase áurea do café, está demonstrada na grandiosidade das suas edificações do século XIX cujas fachadas revelam a escrita da sua história e da sua cultura. Hoje, percebe-se, nas pessoas que aí circulam, uma população de “paulistanos” provenientes dos mais distintos estados do Brasil e países do mundo, com diversas etnias representadas como os “nordestinos paulistanos” ou estrangeiros- bolivianos, coreanos, angolanos, chineses, japoneses, italianos, dentre outros. Nesse espaço de alteridade estão os trabalhadores que nele transitam a pé, de ônibus, carro ou metrô; são os ambulantes, camelôs, engraxates, compradores de ouro, jóias e outras mercadorias; são os vendedores de atestados e documentos, trabalhadores informais, catadores de material reciclável, homens sandwiche, moradores de rua; são os folheteiros propagandeando os mais diferentes serviços e produtos. O centro também abriga os ciganos lendo a mão dos transeuntes, os indígenas vendendo o seu artesanato, as prostitutas e travestis dançando na Praça da Sé às onze horas da manhã ao som das músicas tocadas no local ou passeando no Parque da Luz; aí estão os traficantes, viciados, alcoolizados, juntamente com os artistas, músicos, sejam eles repentistas, emboladores, sertanistas, roqueiros, mágicos. Conforme destacado, são muitos os protagonistas que se reúnem, trabalham, moram, circulam, desfrutam, estudam, distraem-se, compram e

450


consomem nesse espaço, símbolo de São Paulo como, por exemplo, na Praça da Sé – local de manifestações populares históricas, marco zero da cidade-, na XV de Novembro e Direita com “seus” ambulantes atraindo os compradores ou, ainda, no Vale do Anhangabaú com cartomantes prevendo o futuro, caracterizando o centro de São Paulo como um espaço de grande diversidade social, política, econômica, étnica e cultural. Saindo do vivenciar da rua e indo mais para o mundo político aí está a sede da Prefeitura e muitas das suas Secretarias, o poder legislativo municipal – potencial espaço de debate de interesses grupos e classes sociais da cidade. Na esfera jurídica estão localizadas as Secretarias da Justiça, municipal e estadual, juntamente com o Fórum, Palácio da Justiça, Tribunal de Alçada Cível, cartórios, etc., movimentando os seus trabalhadores, desde os juízes, promotores, advogados, procuradores, cartorários, oficiais de justiça, até os estudantes estagiários de Direito, muitos carregando processos e fazendo funcionar toda a burocracia jurídica da sociedade. O mundo financeiro dos banqueiros, acionistas empresários também está presente, principalmente na rua Boa Vista, onde se localizam edifícios sede de tradicionais e hoje multinacionais Instituições, além da Bolsa de Valores, Bolsa de Mercadorias / BMF e do mercado imobiliário com os seus profissionais transitando, como corretores, construtores e clientes das imobiliárias. Somam-se a esse universo as manifestações religiosas com pregadores de várias seitas discursando em nome de Deus. Há a presença de patrimônios religiosos como a Catedral da Sé, Igreja e Mosteiro São Bento, Igreja de Santo Antônio, São Francisco cada uma delas arregimentando os seus fiéis. Junto à capela do Pátio do Colégio está o Museu Anchieta que abriga um acervo dos primórdios da cidade. Destacam-se ainda outros patrimônios da cidade como o Teatro Municipal, a casa da Marquesa de Santos, o Edifício Martinelli, o Centro Cultural Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal, o edifício Banespa, o prédio do antigo Mappin, a Estação da Luz, Pinacoteca do Estado, Estação Júlio Prestes, Museu de Arte Sacra, Mosteiro da Luz, entre outros. Os serviços aí prestados são muitos. Na área de alimentação, o local concentra estabelecimentos de vários padrões e nacionalidades, funcionando à la carte, ao quilo, selfservice, como bares, botecos, pequenas lanchonetes, barracas de côco e pastel, trailers de cachorro-quente, vendedores ambulantes, etc. Além desses, destaca-se o Mercado Municipal que passou por intervenção e hoje é local de concentração tanto de turistas, como de moradores da cidade que aí vão desfrutar da oferta de frutas, verduras, carnes, frios, culinárias, iguarias e do famoso sandwiche de mortadela – marca do lugar. Culturalmente o centro vivencia anualmente a Virada Cultural - evento que mobiliza

451


turistas, a cidade e os seus atores, além de ser o cenário de intervenções urbanas que instrumentaliza a cultura na implementação dos seus projetos de requalificação, principalmente na região da Luz. Desse cotidiano vivido emerge a diversidade cultural paulistana. Entende-se cultura como cotidiano vivido onde estão presentes as manifestações artístico-culturais, os modos de vida e as marcas que essas pessoas deixam no espaço, no processo de produção e reprodução da vida. A diversidade histórica, étnica, cultural, patrimonial presente no centro deveria interagir com as propostas de requalificação a serem intermediadas pelos atores. Entretanto, dentre as medidas propostas hoje, pelos projetos interventivos para o centro, percebe-se a falta da participação mais efetiva dos atores representativos da sociedade civil. A participação no planejamento e operacionalização de políticas pode ajudar tanto a democratizar e racionalizar o Estado como a dar voz política aos grupos politicamente marginalizados. Considerados os aspectos até aqui abordados, a proposta de um planejamento participativo sobre os destinos do local seria o caminho mais viável para a sua requalificação por meio de ações decorrentes da interlocução dos atores envolvidos. Percursionando na história das Intervenções do Centro O núcleo histórico originário do centro da cidade de São Paulo surgiu no período colonial. Esta parte da cidade corresponde ao período que vai de 1554 a 1822, equivalente ao espaço visto como “Centro Velho” - Sé. A partir do século XIX o centro foi se expandindo para o que é hoje o distrito da República e Bom Retiro, área intitulada de “Centro Novo”. Essa região vem sendo, no decorrer da história, objeto de ações públicas decorrentes do desenvolvimento da cidade, entretanto, na transição do século XIX para XX, um novo cenário urbano de inspiração européia, incorpora a modernização da época e traz transformações com os edifícios monumentais das primeiras décadas do século XX, reconstruindo a cidade colonial. Mais tarde, novas propostas de renovação urbana chegam ao Brasil a partir dos anos 1970, a exemplo de outras cidades como Boston, Barcelona, Paris, Londres, Buenos Aires, Quito que vêm passando por polêmicos processos de requalificação. O centro histórico de São Paulo, dentro desses parâmetros, passa a ter ações mais consistentes de intervenção urbana a partir de 1990 quando a cidade emerge como cidade potencialmente global. Apropria-se do seu patrimônio cultural como aspecto diferencial, identitário e competitivo, por meio do processo de “requalificação3”. 3

Termo polêmico visto também como “revitalização”, ”qualificação”, “intervenção”, “renovação”, “reabilitação”, sob diferentes perspectivas.

452


Registra-se que as intervenções de requalificação acontecem concomitantemente ao declínio do centro; a sua degradação se inicia a partir de 1930 com a valorização de outras áreas da cidade, acompanhada da migração de expoentes da economia do café para a Avenida Paulista. No entanto, a sua paisagem só apresenta sinais de deterioração no decorrer dos anos da década de1960. No Brasil já havia nesta ocasião uma política voltada para a preservação do patrimônio, tendo como marco o surgimento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1937, com objetivo de conservação dos centros históricos, por meio do tombamento, instrumento jurídico aplicado para impedir a destruição dos bens culturais e acervos museológicos do patrimônio. No estado de São Paulo, só em 1967 surge o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT) que também vai atuar nessa direção. Na cidade de São Paulo, a partir da década de 1970, desencadeia-se política urbana com a criação em 1971 da Empresa Municipal de Urbanização – EMURB- que passa a assumir os projetos urbanísticos idealizados com propostas de recuperação do centro. Com a aprovação da Lei de Zoneamento em 1972, criam-se zonas especiais com legislação disciplinadora para o uso, ocupação e reurbanização do solo que planeja o espaço urbano do centro controlando o patrimônio edificado. Inovações urbanas acontecem ainda nessa década, como o Metrô, Renovação Urbana na Luz, Plano de Revitalização no centro da cidade de São Paulo – edifício Martinelli, calçadões, estações metrô Sé, República, São Bento, Viaduto do Chá e Boa Vista, Pateo do Colégio, Parque D. Pedro e a Escola Caetano de Campos. Na década 1980 desencadeiam-se processos de intervenção na Vila Itororó, estabelece-se a Lei de Transferência de Potencial Construtivo e Operações Interligadas, o Projeto Luz Cultural (1985), Praça da Cultura, Usina da Luz - iniciativas essas que estimularam o turismo e a visitação à área central. Implementa-se em 1985 o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico Cultural e Ambiental da cidade de São Paulo – CONPRESP – Órgão municipal responsável pelo patrimônio local. No Brasil, além do IPHAN, a proteção do patrimônio passa também a ser prevista na Constituição Federal de 1988, nos artigos 215 e 216, que amplia a idéia de patrimônio cultural brasileiro com o reconhecimento de bens culturais materiais e imateriais, estabelecendo a apropriação e preservação desses bens, por meio do registro e do inventário. Criam-se mecanismos institucionais para a participação do cidadão, com a ampliação da institucionalização democrática e de canais de participação direta nas políticas públicas e na regulação da ação governamental.

453


Entretanto, no centro, apesar do desencadeamento das ações interventivas a deterioração continua, com empreendimentos privados abandonando o local. Como enfrentamento cria-se em 1991 a Associação Viva o Centro, Sociedade Pró-Revalorização do Centro de São Paulo (AVC), iniciativa da sociedade civil com bases nitidamente empresariais voltadas para os interesses do capital privado, que mobiliza parcerias com o objetivo primordial de “reverter situações de declínio, de abandono, de ameaça para a área urbana onde estão instaladas as entidades que compõem a Organização”. Dela participam proprietários urbanos de setores da economia - serviços, comércio e indústria -, instituições financeiras privadas e públicas voltadas para revalorização do centro. Atua por meio de Conselhos Municipais Paritários, Conselho Superior de Orientação das Ações Locais, Ação Integrada Centro Legal, Aliança pelo Centro Histórico (08/2009) – projeto em parceria que cria zeladores urbanos no Triângulo Histórico com objetivo de tornar o centro modelo em “limpeza pública, atendimento social, segurança e manutenção para atrair público para o seu comércio, serviços e equipamentos culturais”. O centro passa a ser objeto de intervenção sob amplas dimensões, ou seja, o Palácio das Indústrias vai sediar o governo municipal, a Sé passa por processo de intervenção, assim como Arouche, Bexiga. Implantam-se as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS - e criase a Operação Urbana Anhangabaú, a política de restauração do patrimônio histórico - cuja atuação privilegiou o Teatro Municipal, o solar da Marquesa, Casa das Retortas, Correios, dentre outros -, Operação Urbana Centro, Lei de Fachadas, além de acontecer reforma nos cortiços. Em 1993 é criado o Programa de Requalificação Urbana e Funcional do Centro, o Procentro, nesta sua primeira fase com comissão composta por representantes das secretarias municipais e outras organizações da sociedade civil, com o objetivo de implementar estratégias para a recuperação do centro. As ações interventivas utilizam leis de incentivo à cultura e desenvolvem parcerias entre iniciativa privada e administração pública com práticas de recuperação e restauro de monumentos. Alguns patrimônios significativos do centro como o Mercado Municipal, a Estação Júlio Prestes com a Sala São Paulo (1999), a reforma da Pinacoteca do Estado (2004), Estação da Luz com o Museu da Língua Portuguesa (2006) são privilegiados e passam por intervenção com reforma e/ou a diversificação de uso nas suas edificações. Em 1995 é lançado o Programa Monumenta, Programa de Preservação do Patrimônio Histórico Urbano mantido por associação entre o Ministério da Cultura, a

454


UNESCO, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o IPHAN e a EMURB que objetiva financiar ações de preservação e conservação do patrimônio histórico tombado na Luz, por esse espaço reunir significativo acervo. O Programa é iniciado em 2002 e segue a lógica da aplicação de recursos em áreas decadentes, tornando-as atrativas para o turismo e novos investimentos, dentro dos princípios “pós-modernos” constatados por Harvey (1992) nos projetos de renovação urbana, adequados ao capitalismo de acumulação flexível em que há a “busca de soluções pontuais e locais, pretensamente “personalizadas”, ecléticas e diversificadas, abrindo mão de soluções abrangentes – típicas do ideário modernista”. Na perspectiva mencionada acontece a intervenção em 26 imóveis objetos do Programa como a Chaminé da Luz (2002), o Museu de Arte Sacra, Estação da Luz, dentre outros. Apesar das ações de requalificação, a degradação do espaço central continua a se acentuar. Registra-se no centro 39.289 unidades habitacionais sem uso (ONU, 2004) ou seja, cerca de 299 prédios fechados à espera de valorização imobiliária, limitando a população mais pobre de morar neste espaço consolidado da cidade, tendo que ir para áreas da cidade com mais baixa qualidade de vida, gastando tempo e dinheiro para vir trabalhar no centro4. Continua também a migração de grupos de alta renda para outras regiões da cidade criando-se novas centralidades em São Paulo, não só na direção do centro para a Paulista, mas para Faria Lima e Berrini. Neste período é promulgado o Estatuto da Cidade – lei Federal 10257 de 2001 estabelecendo o desencadear do Plano Diretor Participativo que, juntamente com a Constituição Federal de 1988, dão o marco jurídico que permite exigir o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana para a efetivação da democratização da gestão da cidade. Participação dos Atores Sociais nos Projetos de Intervenção Concomitante aos Projetos Interventivos desencadeados em nível estatal no âmbito da sociedade política, outros atores da sociedade civil envolvidos com o centro também se mobilizam. Criam em 2000 o Fórum do Centro Vivo para refletir, fortalecer, articular e lutar pelos direitos humanos no centro. Lançam o “Manifesto por um Centro Vivo: o centro da reforma urbana” (2004). Desencadeia-se o Programa “Ação Centro” e “Morar no Centro” (2001-2004) que planejava o enfrentamento à questão da habitação popular e do esvaziamento populacional do centro, por 4

O centro é uma área consolidada devido os investimentos públicos e privados e concentração de postos de trabalho (718 empregos para cada 1000 hab). Apesar de ser área consolidada, conta com expressivo número (20%) de imóveis e domicílios vazios. Apresenta um crescimento populacional negativo em 1991/2000 (26,04%), ao mesmo tempo em que se dá o adensamento das áreas da periferia da cidade.

455


meio da implementação de moradia para famílias de baixa renda, objetivando levar população para o centro, área consolidada com infra estrutura urbana e oferta de empregos. Previa projetos de bolsa aluguel (chegando a atender a 2039 famílias em 2004) com locação social via recursos alocados do BID para o Projeto de Reabilitação em áreas centrais, a exemplo da França, Bélgica e Itália. Este projeto hoje está em extinção. Ações participativas e inclusivas, a exemplo da “Oficina Boracéia”, foram prioridade até 2004, quando a nova gestão municipal passa a caminhar em outra direção privilegiando outros atores sociais. O Decreto n. 45.832/2005 retira da sociedade civil a coordenação executiva do Procentro (existente antes no “Ação Centro”) e cria o Gcentro - grupo executivo exclusivamente governamental para operacionalizar os Projetos de Intervenção, onde a sociedade civil deixa de ser ator planejador das intervenções no centro. A operacionalização das ações interventivas do Pro Centro e do Projeto Nova Luz vai ser coordenada pela EMURB, em parceria com Órgãos estaduais, federais e internacionais, seguindo modelo que prioriza os atores sociais mais favorecidos. Esse direcionamento está documentado na fala de urbanista responsável pelo Projeto Nova Luz, quando questionado sobre a participação dos atores sociais do centro no planejamento do Projeto. Diz5: ”... a população vai ser chamada em uma próxima etapa quando formos operacionalizar...” Mudam-se então os princípios norteadores da intervenção na área central existentes na gestão 2001-2004 com a “Ação Centro” e “Morar no Centro” e a gestão (20052010) re-estabelece o Procentro mudando os seus princípios norteadores, a exemplo do Decreto 45.832/2005 mencionado que retira a participação da sociedade civil da coordenação executiva e dissolve o Fórum de Desenvolvimento do Centro, implementado nos moldes da Agencia de Desenvolvimento do ABC. Constatam-se ações da Prefeitura impulsionando investimentos privados na perspectiva da matriz higienista que prioriza a preservação do patrimônio cultural material na perspectiva da monumentalização e museificação, aliada a instalação de zeladoria, câmeras, ação policialesca de vigilância e controle do patrimônio material. Escasseiam-se os investimentos em assistência, educação, habitação e segurança. As ações da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar são a de atores executores da política interventiva, repressora dos movimentos sociais com ações de “rapa” junto aos ambulantes, operacionalizadora de reintegração de posse nos prédios invadidos, controladora dos catadores de material reciclável·, omitindo-se da responsabilidade da função pública,

5

Depoimento feito por ocasião da realização de wokshop na PUC/SP em out de 2009.

456


educativa e de proteção aos atores sociais mais vulneráveis. No entanto, apesar das ações desenvolvidas nessa direção não se tem garantido melhoramento no centro, já que os projetos que surgem – a exemplo da “Nova Luz” cuja diretriz busca transformar esse espaço em um pólo tecnológico e cultural – não considera os modos de vida aí existente. Desse modo, os hábitos, experiências e conhecimentos da população, ou seja, a dimensão participativa que propicia o entendimento dos aspectos subjetivos da interação dos atores com o ambiente e que dá significado ao patrimônio cultural por meio dos usos que se faz da cidade, não são considerados. Muitos dos entrevistados dizem não se apropriar do patrimônio local. Vêem-se como pertencentes à outra classe social sem direito a usufruir do local, a exemplo da Sala São Paulo que, conforme explicitado por moradores da Luz, é um espaço usado pelos de fora, isolado por cordão nos eventos e outras celebrações onde os moradores, não podem nem chegar perto. Em relação à ação pública higienizadora na área da Cracolândia - Luz, um ator social, técnico da Secretaria da Saúde, coloca que as blitz realizadas não vão levar a nada pois não se age em saúde pública junto aos drogados com ação policialesca de espetacularização do problema. O planejamento e participação de diferentes atores sociais no Projeto não é pressuposto para a intervenção, conforme explicitado na fala do agente de saúde. As intervenções nesse nível, quando não são direcionadas ao engajamento dos atores envolvidos, pouco contribui para o enfrentamento à problemática social no espaço público urbano. Com o mesmo teor estão as ações voltadas para habitação. Presenciam-se, cotidianamente, reintegrações de posse de prédios invadidos pelos sem teto. Um repórter diz: “Ver senhoras e crianças levando bomba da polícia num prédio escuro é bárbaro e assustador”. Por outro lado o poder público pouco faz a mediação com propostas de negociação junto aos atores sociais do Movimento dos sem Teto e os proprietários. Os imóveis vazios no centro, assim como o déficit habitacional, são significativos. Entretanto os Projetos de Intervenção para recuperação do centro priorizam o patrimônio histórico, sem perceber que o esvaziamento traz insegurança à vida no centro, pois viabiliza pontos de tráfico e prostituição além de limitar o acesso à moradia, em uma região consolidada que necessita ser habitada, conforme preconiza o Plano Diretor da cidade. Um projeto de intervenção deveria se preocupar também com a falta de habitação para famílias de baixa renda, com a economia popular e com as questões sociais para que essa requalificação seja adequada. Nesse sentido, Proença Leite (2009) adverte acerca das políticas

457


urbanas de patrimonialização e contrarevanchismos, pela não incorporação de políticas sociais e habitacionais nos projetos de “revitalização” que convertem os processos e intervenções patrimoniais em realidade alegórica, buscando reverter processos de declínio das cidades. É imprescindível incluir o social nos Projetos de Intervenção para que os patrimônios culturais possam conviver com os atores que se relacionam nesse espaço, evitando a sua expulsão, para que a requalificação não venha seguida da crescente deterioração, a exemplo do que vem ocorrendo em cidades históricas que passaram por processos de revitalização com esse teor. Entretanto é na direção da coerção sem hegemonia que Projetos, como o Nova Luz, caminham. A Prefeitura vai conceder benefícios fiscais para atrair empresas e prevê a demolição de 30% da região da Cracolândia – três quadras inteiras da rua Santa Ifigênia (principal pólo de comércio de produtos eletrônicos de São Paulo) e duas quadras da Avenida Rio Branco. Só serão mantidos os imóveis tombados pelo patrimônio histórico ou os julgados de ocupação adequada. O projeto urbanístico para nova área vai ser entregue a uma empresa em troca da revenda dos imóveis com lucro no bairro revitalizado. Os atores sociais do local criticam e reagem6. Inserida nesse contexto, existe no centro de São Paulo o movimentar-se da organização da sociedade civil que busca participar da gestão da cidade por meio da sua inserção nos seus projetos interventivos. Há movimentos sociais urbanos, organizações de base, entidades de educação e cultura, universidades, diretórios acadêmicos, grêmios estudantis, coletivos de artes, teatro, mídia independente, ONGs em defesa dos direitos Humanos- Travessia, CARE Brasil, Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, Polis - Instituto de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Públicas - que buscam atuação no planejamento e controle social de políticas públicas. São cerca de 70 organizações articuladas da sociedade civil que denunciam e endossam o Dossiê Centro Vivo (2006). São os movimentos populares de mulheres e moradia, a ação das Pastorais da criança, do cárcere, dos sem teto, com o apoio da Igreja, os inúmeros sindicatos – bancários, professores, comerciários, e outros. Estão também presentes Conselhos diversos como o Municipal de Turismo (Programa Bem Receber), Habitação, Educação, etc. e muitas ONGs. Os parceiros da AVC, como a OAB, IE, IAB, também lutam e pressionam em prol dos seus interesses privados no local.

6

Os atores lojistas da Santa Ifigênia movem-se com a mediação do Ministério Público, Ação Civil Pública contra o Projeto Nova Luz no que diz respeito à demolição prevista e outras diretrizes do Projeto que não os inclui.

458


Percebe-se que os atores organizados por categorias na área central de São Paulo atuam, em momentos oportunos, por meio de práticas diversas em que, algumas delas, tem por forma um “ato e maneira de aproveitar a ocasião” como um enfrentamento que resiste de forma latente, com pouca visibilidade, utilizando “as táticas, a arte do fraco” na invenção do cotidiano (Certeau, 1996). Entretanto, na atual conjuntura prevalecem os atores em consonância com os seus interesses privados, ou seja, os com projetos que higienizam o centro e promovem a expulsão dos menos favorecidos como a população empobrecida, os moradores de rua, ambulantes e camelôs, considerados como os que desvalorizam e enfeiam o centro. Câmeras, vigilância, ação policialesca, higienização tornam-se prioridade. O papel do poder público legislativo, executivo e judiciário é visível na intermediação de conflitos fundiários viabilizadores de despejos forçados e reintegração de posses violentas. Criam-se Projetos para os sem-teto voltarem à origem, além do fechamento e descentralização dos albergues priorizando ações que desencadeiam a regeneração urbana dentro de um contexto de modernização e higienização, onde o discurso e a prática estão voltados para a gentrification e o empreendedorismo, a exemplo do Projeto Nova Luz. Frente à realidade diagnosticada a utopia está expressa na necessidade emergente de políticas públicas contínuas e permanentes que trabalhem na direção de diminuir a desigualdade histórica e estrutural da sociedade expressa nos centros das cidades, dialogando com os atores sociais organizados da sociedade civil. Ações nessa direção caminhariam para o direito à cidade e a apropriação da cidade como obra, na perspectiva de Lefebvre (2008, p.113) onde “apenas grupos, classes ou frações de classes sociais capazes de iniciativas revolucionárias podem se encarregar e levar até a sua plena realização, soluções para os problemas urbanos; com essas forças sociais e políticas a cidade renovada se tornará obra”. Considerações Finais O contexto dos projetos de intervenção no centro da cidade de São Paulo foi visto na totalidade das relações sociais, onde se procurou decifrar a sua lógica juntamente com a ação dos seus protagonistas. Os atores sociais envolvidos em suas múltiplas ramificações, no Estado em seus diferentes níveis organizacionais, na sociedade civil nas suas diversas categorias, evidenciam as políticas e a correlação de forças entre os segmentos. São forças que agem com diversificadas motivações, manifestações culturais, sociais, políticas e econômicas, interferindo na identidade do lugar, no processo de pertencimento e usufruto da cidade.

459


Uma cidade democrática é uma cidade inclusiva que utiliza a diversidade como recurso. O desenvolvimento urbano é adequado quando garante aos seus atores espaços públicos participativos e instrumentos para entender, apreender e comunicar a própria cultura e se construir livremente na cidade. Os atores sociais se formam a partir do conjunto dos repertórios culturais que se constituem na origem, na história de pertencimento à cidade e que permitem reconhecer sua vinculação a um determinado grupo, identificando-se com eles. Assim sendo, o patrimônio cultural constitui a riqueza acumulada pelas gerações passadas, a ser valorizado no presente, para elaborar formas sustentáveis de desenvolvimento. Os Projetos de Intervenção em curso não apresentam a preocupação com a construção histórica, com a inclusão de atores sociais e políticos na vida cotidiana da cidade, com a participação e ocupação do público, com a operacionalização de uma cultura voltada a captar o campo de signos e símbolos, práticas e valores produzidos na cidade. Ao contrário, os diferentes atores sociais do centro pouco participem do planejamento e da gestão do lugar como verdadeiros sujeitos. Não estão presentes no planejamento, não contracenam na correlação de forças e no jogo político. A inexistência de espaços de fato, pois de direito já existem, para a participação e cogestão, no sentido de integrar as forças locais, principalmente aquelas ignoradas pela sociedade política e mal vistas pelo setor privado do mercado, coloca em risco a construção de uma cidade democrática. Nesse sentido, pensar na participação e engajamento dos atores sociais no planejamento do lugar é buscar garantir que o espaço expresse o seu sentido e consiga gerenciar o desenvolvimento local. A memória social da coletividade e de suas experiências sociais deve ser considerada, para que o patrimônio do centro não se torne “não-lugares” (Augé, 1994), lugares desprovidos de identidade, destinados somente à passagem, contemplação ou ao consumo. Percebe-se que a forma como se busca planejar o destino do centro de São Paulo, principalmente no que se refere ao Projeto Nova Luz, envolve atores não relacionados à identidade do lugar, criminaliza as formas de resistência popular, desconsidera as demandas do local, desencadeando ações como a de demolição dos prédios, remoção de atores e dissolução da memória local. Os pressupostos que regem os projetos optam pelo paradigma de revitalização com um centro limpo, asséptico, para poucos, com a expulsão dos mais pobres, favorecendo os investimentos privados e adensamento planejado com ganhos para os segmentos imobiliários e do capital, aumentando a segregação social e periferização na cidade. Constata-se, no final da última década, o retrocesso na democratização do centro de São Paulo, enquanto acesso e uso de atores junto aos espaços públicos que passam a ter uso

460


restrito e privatizado, privilegiando a recuperação e requalificação de bens isolados, tornandoos ilhas que reforçam a fragmentação do espaço. Apreende-se que estas intervenções visam atender prioritariamente o mercado, dentro da nova conformação econômica da globalização, onde o patrimônio cultural passa a ser concebido como atrativo e mercadoria. REFERÊNCIAS ARANTES, Antonio Augusto. Sobre inventários e outros instrumentos de salvaguarda do patrimônio cultural intangível: ensaio de antropologia pública. Rio de Janeiro: Anuário Antropológico, 2009. AUGÉ. M. Não Lugares - introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994. BAUMAN, Z. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro, Zahar, 2009. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano – artes do fazer. Rio de Janeiro: Vozes, 1996. FORUM CENTRO VIVO. Dossiê do Fórum Centro Vivo, 2005 – 2006. Violações dos direitos humanos no centro de São Paulo: propostas e reivindicações para políticas públicas. 2006. FORTUNA, Carlos. Identidades, percursos, paisagens culturais- estudos sociológicos de cultura urbana. Oieiras, Portugal: Celta editora, 1999. FORTUNA, Carlos. SILVA, A. A cidade do lado da cultura: espacialidades culturais e modalidades de intermediação cultural. In: SOUZA SANTOS, B. A globalização e as Ciências Sociais. São Paulo: Cortez, 2002. FRUGOLI Jr., H. Centralidade em São Paulo: trajetórias, conflitos e negociações na metrópole. São Paulo: Cortez, Edusp, 2000. GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. HARVEY, D. Condição pós- moderna. 4.ed. São Paulo: Loyola, 1994. MAGNANI, J. Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia na metrópole. In: MAGNANI, J. e TORRES, L. Na metrópole- textos de antropologia urbana. São Paulo: EDUSP, 1996. LEFEBVRE, H. O direito à cidade. 5.ed. São Paulo: Centauro, 2008. LEITE, Rogério Proença. Políticas urbanas de patrimonialização e contrarevanchismo: o Recife antigo e a zona histórica da cidade do Porto. In: Cadernos Metrópole., no 21. São Paulo: EDUC, 2009. KOTHARI, Million. Relatório ONU. Maio de 2004 SOUZA, Herbert. Como se faz análise de conjuntura. Petrópolis: Vozes, 1999.

461


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.