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Para além do autor: Dias Gomes e seus personagens, por Aline Monteiro de Carvalho Silva

PARA ALÉM DO AUTOR: DIAS GOMES E SEUS PERSONAGENS

por Aline Monteiro de Carvalho Silva

Dias Gomes foi um dos mais celebrados autores de ficção brasileira do século passado, tendo escrito para o rádio, o teatro, o cinema e a televisão. Falar sobre o dramaturgo é também referir-se a suas obras icônicas e a um retrato, por vezes cômico, por vezes trágico, do Brasil. As produções culturais não podem ser dissociadas do contexto em que são criadas, pois são reflexo dessa realidade. Nas obras de Dias Gomes, as questões político-sociais e a realidade vivida aparecem de forma latente, numa mistura entre ficção e realidade.

O ápice de sua produção ocorreu entre as décadas de 1950 e 1990. Nesse período, seus textos chegaram aos palcos e às telas do país, colecionando sucessos e mantendo o seu olhar crítico sobre o seu tempo e os rumos da nação, o que servia de combustível para suas criações. Nas décadas de 1950 e 1960, despontou como autor de

teatro, levando ao público obras como "O pagador de promessas" (1959), "A invasão" (1960), "Odorico, o bem-amado ou os mistérios do amor e da morte" (1962) e "O Santo Inquérito" (1964). Em 1969, Dias Gomes fez sua transição de reconhecido autor de teatro para célebre novelista. Na Rede Globo, criou obras que marcaram a história da televisão, como "Bandeira 2" (1971/1972), "O bem-amado" (1973), "Saramandaia" (1976) e "Roque Santeiro" (1985/1986). Enquanto as telecomunicações expandiam, aumentando o número de televisores nos lares brasileiros, suas produções também alcançavam um público cada vez maior e suas personagens ganharam projeção nacional.

E como falar de Dias Gomes sem dar destaque aos seus personagens? Nas próximas páginas, alguns deles ganharão novamente voz, sendo apenas parte dos que marcaram a carreira do autor com seu gestual, seus bordões, suas falas e vestimentas, perpassando pela memória de quem os viu e sendo representativos para a história da ficção nacional. Como Zé do Burro, protagonista da peça "O pagador de promessas", criada em 1959 e responsável por projetar o nome do autor no teatro nacional. Em 1962, a obra foi adaptada para o cinema, recebendo fama internacional ao ganhar diversos prêmios e ser laureada com a Palma de Ouro do "Festival de Cannes". Em 1988, foi a vez de chegar às telas da tevê, como minissérie da Rede Globo.

A produção conta a história da promessa feita por Zé do Burro em prol da saúde de seu animal e todo o seu esforço para cumpri-la. O voto foi feito em um terreiro de sua cidade natal para Iansã, orixá ligada à natureza e aos fenômenos climáticos, que no sincretismo religioso está relacionada a Santa Barbara, a quem a promessa era dedicada. Se seu burro se recuperasse, sairia de lá carregando uma cruz de madeira para a igreja da santa em Salvador. Ao chegar, ele encontra a resistência do clérigo do local, que o proíbe de cumprir a promessa, dando-se aí o conflito da obra.

Zé do Burro é personagem representativo das classes populares, mais especificamente dos trabalhadores rurais. Suas falas mostram sua fé, a importância que seu burro Nicolau tinha como parte de sua lida e auxílio em seu sustento, valendo todo o esforço para a realização da promessa. O protagonista e a obra nos trazem um reflexo do que ocorria no interior do país nos anos 1950, de suas necessidades, das diferenças em relação à capital do estado. Aborda, de maneira direta, a intolerância religiosa através das negativas do padre em deixar que Zé do Burro cumpra seu voto, de forma que a história se torna trágica, distanciando padre e pagador de promessa, por meio do olhar hostil sobre a realidade do outro.

Outro exemplo é Branca Dias, personagem principal da peça "O Santo Inquérito", escrita em 1966, já durante os primeiros anos da ditadura militar. Baseado em uma história conhecida da Região Nordeste do país, Dias Gomes contou a saga da protagonista, que teve sua vida transformada após salvar da morte por afogamento o novo padre de sua vila. Depois do resgate, ao conviver com o clérigo, que começa a vê-la como uma ameaça, é acusada de ser pecadora ao partilhar seus pensamentos e sua forma de ver a vida. Branca foi condenada por heresias e pecados que não cometeu, falsas acusações sustentadas pela imagem criada pelos que a julgaram.

A história da protagonista debateu, através de metáforas, o contexto em que o país vivia sob o regime de exceção. Era uma crítica política do dramaturgo ao governo, ao assemelhar a Inquisição e seus processos à ditadura militar e a seu modo de agir; ao abordar a violência policial e a perseguição a inocentes, por meio de prisões injustas, invasões a residências e processos judiciais, além da comparação com o anticomunismo latente no país e no mundo naquele período.

Conhecido principalmente pela novela "O bem-amado", de 1973, Odorico Paraguaçu era o personagem principal da peça que leva seu nome, escrita em 1962. O enredo também se tornou série entre

1980 e 1984, que contava o que aconteceu após o final da telenovela. O texto da obra mostra a trajetória do protagonista, prefeito de Sucupira, que se parecia com tantas outras cidades do interior do país. O mote inicial de sua campanha era a construção de um cemitério na cidade. Eleito, ele passa o mandato tentando inaugurar a obra com o primeiro morador do campo-santo.

Odorico é o retrato da velha política do país. Através do recurso do realismo fantástico, Dias Gomes usou o personagem e sua história para mostrar a manutenção das práticas, principalmente no interior da nação, do coronelismo, ou seja, da existência de políticos que usavam o povo para conseguir benesses para si. Tratava de corrupção, desvio de verbas, da pobreza que assolava as classes mais pobres. Trazia para o horário nobre, de forma cômica e fantasiosa, a realidade brasileira que era camuflada pela propaganda política, pela censura e pelo “milagre econômico” da década de 1970.

Seus personagens retratavam o país e seu povo, eram uma crítica social e política que esteve presente em seus textos. Eram inspirados no que o dramaturgo via e percebia da sociedade, compondo um retrato do Brasil que era mostrado ao seu público, usando na ficção a realidade. Suas obras, escritas há 40, 50, 60 anos, continuam incomodamente atuais. Convivemos ainda com intolerância religiosa, como quando vemos terreiros sendo destruídos cotidianamente em várias partes do país, mesmo com uma Constituição laica. Vemos e vivemos a violência policial, principalmente nas comunidades, contra negros e pobres. O discurso anticomunista continua presente entre camadas da população e seus representantes na política. Escutamos todos os dias incontáveis denúncias de corrupção e mau uso do bem público em prol de interesses pessoais. Talvez Dias Gomes nunca tenha estado tão atual. Talvez pouco tenha mudado desde então.

O dramaturgo disse em uma entrevista que quem não é subversivo é acomodado, passa diante da vida sem viver. Seus textos não eram acomodados diante do contexto em que vivia. Se "quem não veio

ao mundo para incomodar não deveria ter nascido", Dias Gomes cumpriu seu papel da melhor maneira possível.

Aline Monteiro de Carvalho Silva é graduada e mestra em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Seus estudos no período foram dedicados à análise das obras ficcionais de Dias Gomes e de sua autobiografia. Foi bolsista do Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast) e leciona para turmas do Ensino Médio.

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