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De onde vim, para onde vou: como tudo começou

Miss Biá, pioneira da arte drag queen no Brasil, é reverenciada por suas pupilas, Salete Campari e Márcia Pantera, enquanto o iluminador Claudio Gottardi relata como era a noite LGBTQIAP+ na São Paulo dos anos 1980

por Cristiane Batista

“Não tem ninguém antes de mim”, dizia Miss Biá, considerada a primeira drag queen brasileira e também a com mais tempo de carreira: foram 60 anos dedicados a essa arte. Desbravadora, Biá é referência pessoal e profissional para muitas, como para as artistas Salete Campari e Márcia Pantera, que a consideravam uma mãe e que narram aqui parte de um passado impossível de esquecer.

Mais do que isso: para Claudio Gottardi, iluminador dos clubes paulistanos Medieval, Corintho e Nostro Mondo nos anos 1980, conhecer esse capítulo da história também é uma oportunidade para as novas gerações, “para que entendam que, se hoje existe um pouco mais de liberdade, é porque antes vieram outras tantas brilhando e abrindoo caminho”.

Miss Biá, a rainha-mor

Miss Biá (1939-2020) nasceu Eduardo Albarella, em uma família de ascendência italiana no tradicional bairro do Brás, em São Paulo. Ganhou o apelido Biá na infância e não tinha vergonha do nome de batismo, embora ostentasse com orgulho a assinatura social que a tornou conhecida. “Acrescentando o Miss, é claro, porque eu sempre fui bonita e feminina”, dizia ela.

Sua estreia na carreira artística ocorreu em 1961, aos 22 anos, após assistir a um espetáculo de cabaré na Avenida Duque de Caxias, no Centro da capital paulista, e se apaixonar pelo trabalho de um estrangeiro que fazia o papel da cantora lírica peruana Yma Sumac. “Na época, usávamos o termo ‘transformista’. Eu me impressionei com a beleza e a perfeição da interpretação e decidi: ‘É o que eu quero fazer da vida’”, contava.

De dia, Biá se vestia com roupas masculinas para trabalhar como office boy. À noite, esperava a família dormir para se montar e sair para suas apresentações. Ela pegava emprestadas roupas e joias de amigas e ia aos teatros de variedade, frequentados majoritariamente por heterossexuais, onde realizava performances que tinham o glamour como destaque. Não demorou para Biá entrar de vez no métier, chegando a fazer até cinco shows em uma única noite.

Miss Biá resistiu aos anos duros da ditadura, época em que era obrigada a entrar e sair dos clubes vestida de homem, com a peruca na mão, para não correr o risco de ser presa por “prostituição e/ou vadiagem” – atividades então criminalizadas. A artista enfrentou a dor de perder amigos para a epidemia de HIV/ aids nos anos 1980 e 1990. Autodidata, desenvolveu os ofícios de maquiadora e estilista, com os quais embelezou mulheres da high society e celebridades como a apresentadora Hebe Camargo, com quem trabalhou por 20 anos nos bastidores e em frente às câmeras. Miss Biá chegou a interpretá-la nos quatro anos em que atuou como entrevistadora na boate Nostro Mondo.

Transitando com desenvoltura de boates glamourosas às da “boca do lixo”, Biá reinou absoluta numa época em que não havia sincronização labial (lip sync) – muito popular atualmente – e as artistas tinham de provar seu talento “no gogó”. “Hoje, qualquer uma acha que é drag. Tem de ter cultura, saber cantar e dançar para fazer um trabalho de qualidade e apresentar o melhor ao público”, disse ela em 2019 em uma entrevista ao colega Ikaro Kadoshi. Ao Museu da Diversidade Sexual, pouco antes de falecer em decorrência de complicações da covid-19, em 2020, Biá contemporizou: “Deus dá a cada uma um brilho”, seguido de seu indefectível bordão em tom agudíssimo, “Ihhhhhh! Tô louca!”.