revista Oiticica - A Pureza É um Mito

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O conhecimento da obra de Oiticica, estruturado a partir de um cânone internacionalista engajado em um processo de revisão geográfica desde fins da década de 1980, tem demonstrado uma enorme dependência de poderosas decisões curatoriais e de sua justificativa por escrito. Aqui ele apareceu de várias formas. A progressão formal de seus primeiros trabalhos (do Grupo Frente ao neoconcretismo) proporcionou uma lógica acessível que permite mapear sua obra e também encontrar o caminho percorrido por ela na arte brasileira do pós-guerra de modo geral – que pode, por sua vez, ser comparado e destacado de movimentos canônicos como o minimalismo. O imperativo ético de sua obra mais tardia conferiu-lhe um papel de influência na definição da natureza da arte brasileira e latino-americana desde a década de 1960 até os dias de hoje. Para a exposição Conceitualismo Global, de 1999, ele foi recrutado como um precedente contextual de práticas “conceitualistas” diferenciadas localmente. Sua obra também ampliou o discernimento crítico e o efeito político de exposições de especificidade não geográfica, notadamente a Documenta X (1997).

A receptividade póstuma da obra de Oiticica esteve, portanto, sujeita a diferentes agendas curatoriais e também a níveis variados de comprometimento. Esse modo de interpretação é articulado a partir da língua

inglesa e, consequentemente, restringido por ela. Paralelamente ao predomínio da tradicional exposição em museus, as diferenças linguísticas têm exercido, na mediação da receptividade de sua obra, um efeito limitante sobre a forma como ela é compreendida. Enquanto sua posição dentro da história revisada e ampliada da arte do século XX está garantida, encontra-se, ao mesmo tempo, encurralada pela natureza seletiva do material a partir do qual surgiram sucessivas articulações críticas. Dentro da parcimônia da receptividade internacional de Oiticica, retrospectivas abrangentes substituem a posição do arquivo como fonte básica. As duas principais retrospectivas, Hélio Oiticica (1992) e The Body of Colour [O corpo da cor] (2007), acabaram por colocar boa parte de sua obra e de seus escritos (traduzidos) em circulação, para permitir que interpretações em língua inglesa proliferassem e circulassem livremente. Contudo, esse processo continua a acontecer em boa medida isolado do desafio construtivo que poderia ser apresentado pelo engajamento com um corpo mais complexo de pesquisa em língua portuguesa. No entanto, sua obra ultrapassou os limites do catálogo de exposição como fonte de interpretação internacional definitiva; também foi aceito nos debates correntes com base em seu próprio engajamento teórico. O alto reconhe-

cimento pós-Documenta X de seu nome e de sua obra coincidiu com o ressurgimento do interesse pelo potencial social, ético e político da prática artística,sendo que a relevância de sua obra para certas vertentes

teóricas (notadamente a estética relacional de Bourriaud) tem sido óbvia demais para ser ignorada. Seus textos apareceram em antologias, incluindo Conceptual Art: A Critical Anthology (1999) e Re-writing Conceptual Art (2000), de Alexander Alberro; Conceptual Art (2002), de Peter Osborne; Art in Theory (2003), de Charles Harrison e Peter Wood; e Participation (2006), de Claire Bishop. Com isso, Oiticica tem sido acolhido não somente como artista plástico, mas também como pensador. A categorização de sua obra por diferentes áreas de interesse (fundamental para a genealogia do teórico-artista protoconceitualista latino-americano da arte contemporânea brasileira) pode driblar a reivindicação de posse por qualquer uma delas. Um risco da segunda onda de internacionalização de sua obra, porém, é que se pode presumir que ela já foi esgotada por esses múltiplos, porém mínimos, gestos de inclusão ou, ao contrário, que poderá ser finalmente concluída pela lógica enumerativa de um catálogo raisonné. Afora a conservação proporcionada por museus internacionais, a natureza de sua obra, como um programa em andamento, não empresta a si mesma esse modo modernista de esgotamento museográfico. Na verdade, exige a contribuição de múltiplos locais de enunciação. O período de exílio e deslocamento pós-1969 de Oiticica já colocou sua obra como propriedade de locais internacionais esparsos. Concentrarmo-nos no artista isoladamente, segundo a lógica interna da trajetória de um indivíduo, pode ocultar suas interferências preexistentes nas histórias cultural e social dos lugares nos quais viveu e trabalhou. Londres e Nova York, e, assim sendo, Europa e Estados Unidos, já estão implicados; aspectos de sua história revelam o passado de uma atuação internacional regular. 38


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