revista Oiticica - A Pureza É um Mito

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Há três situações nitidamente distintas no filme. Cada uma constitui uma parte com unidade de espaço e ação dos personagens. Para cada bloco de ação mudam não apenas os personagens presentes, mas o estatuto da ação e os parâmetros da mise-em-scène. Estamos sempre em Manhattan, a céu aberto, nas ruas de Wall Street. A dupla latina Dias & Montez, o Artista e a Travesti, personagens do último bloco, não aparecem antes. O mesmo acontece com o Cavalheiro latino do primeiro bloco, que não ressurge. Cristiny, ao contrário, domina o primeiro e o segundo bloco, ausentando-se do último, deixando-o para os artistas latinos. São todos tipos curiosos, dominam a cena. Curiosos não por manifestarem alguma curiosidade com o entorno, com o qual não interagem; imbuídos de sua mínima atividade, parecem nada buscar do convívio dos poucos circunstantes e de seus eventuais afazeres. A exceção fica por conta da postura de Agrippina no segundo bloco, solitária e sempre altiva, que perambula por uma larga esquina, num ir e vir ligeiramente sôfrego, sugerindo ao vento alguma disponibilidade. O tom das três cenas modula-se diferentemente. O primeiro parece apresentar-nos os personagens tanto quanto a arquitetura vertical de Manhattan. Eles se erguem de dentro de um automóvel, o condutor abre a porta com solenidade e acompanhará Agrippina, que antes vem alinhar-se aos arranha-céus, percorridos de modo comparável pelo uso de movimentos panorâmicos verticais da câmera com enquadramentos relativamente fechados, em distinção algo totêmica dos corpos. Esse enxergar por verticais de corpo e edifício vai estabelecendo uma matriz de visibilidade importante ao longo do primeiro bloco, não indiferente para a apreciação dos blocos seguintes. Uma primeira consequência desse olhar talvez seja certa distinção mais isolada dos personagens, que resistiria também no decorrer dos blocos restantes. Há nessa sugestiva matriz um componente típico de Nova York. Os primeiros movimentos verticais do filme alternam-se entre Agrippina, arranha-céus e uma igreja neogótica, massa escura integrada arquetipicamente à massa de concreto nova-iorquina. Essa simbiose de torres modernas com a celeste vocação vertical da torre gótica pontuada na paisagem urbana como ruínas deixadas no chão, sementes caducas de um porvir herético, é um topos que se dissemina em imaginário mais amplo, originado em Nova York, perpassando mesmo o cinema. Esse topos metaneogótico de Manhattan é retomado na paisagem de Metropolis (1926), de Fritz Lang, que concebeu sua ficção impressionado por visita a NY. Nos caminhos verticais do olhar desenha-se o skyline abismal da cidade, cujas ruas se demarcam por vertiginosas nesgas de céu que, como estalagmites luminosas, pendem pontiagudas para o chão. Irmanada ao abismo luminoso surge Agrippina ereta, quase estática, percorrida pela câmera como um recorte de forma humana que responde aos recortes e contrarrecortes do monumento que parece integrar – a Wall Street que percorrerá entre abismada e impávida, hierática. Compenetrada de alguma transcendência, move-se como entidade solene e majestática, conduzindo-se por escadarias. Em lugar de palácios romanos, edificações bancárias assemelhadas. A força gráfica da cenografia emprestada pelas fachadas neoclássicas é construída pela câmera de Oiticica, que percorre conjunções de arquitraves e capitéis, suas severas vibrações no paralelismo horizontal dos degraus, conjugados às ranhuras verticais no fuste das colunas. Seus enquadramentos nos conduzem o olhar pela força das estruturas tectônicas afirmativas de uma ordem ancestral reativada. Como corpos sem vida, Agrippina e seu condutor figuram algo que aquele espaço público dominado por Bolsas de Valores parece secretamente almejar – como se tais corpos fossem mesmo as almas inusitadas, porém legítimas, deste mundo pétreo. 21


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