Catálogo 24º AmadoraBD 2013

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L  © SOARES, David, 2003, A Última Grande Sala de Cinema, Lisboa, Circulo de Abuso

Prémio Nacional 2012

David Soares

pectro de estilos, mas que nesse projecto se confinou a uma prestação quase chã e directa, Serpa traz um território totalmente diferente. Nítido em termos de figuração, radioso em termos cromáticos, com uma abordagem algo ingénua no que diz respeito ao estilo gráfico, é como que um veículo cristalino no qual escoa o terrível e incandescente líquido de Soares. Se a composição das páginas é sempre significativa, onde o balanço entre páginas mais regradas por vinhetas “retóricas” e outras que respiram toda a paisagem, onde certas sequências se concentram num pequeno mas decisivo gesto e outras se espraiam em longos momentos controlados (o monólogo do Dragão Castrador), e sem qualquer detrimento para com o artista, isso deve-se aos minuciosos e detalhados planos de Soares. Cultor, como se sabe, do full script, isto é, argumentos nos quais não apenas se apresenta a ideia da diegese, mas os pormenores dos gestos e fácies das personagens, onde cada estrutura típica da banda desenhada, sobretudo a composição, é tão-somente uma outra ferramenta de escrita, David Soares fornece, por assim dizer, os artistas com quem colabora, de um mundo já composto, de uma ideia formada, que apenas necessita de um corpo, de uma matéria cumprida. O que em nada derime o papel do artista, e os contornos nos quais ele ou ela terão liberdade para incutir a sua própria expressividade. Como é recorrente em Soares, os animais totémicos e psicopompos têm o seu lugar preponderante – neste caso um panda e o dragão ctónico – como pedras de toque para a transformação que ocupa o centro das narrativas. Através das lições dialogais, ou das acções mágicas, elas abrem o campo para um sentido de justiça mais elevado, mesmo acima da justiça dos homens, que sofrem tantas vezes a hubris de se julgarem ainda o paradigma de toda a medida. Soares, porém, contribui de uma maneira muito particular para a subjectivação política dos seus protagonistas. Como já havíamos escrito, estes animais erguem como que um reflexo negro: “é como se o rosto das personagens humanas pudesse fazer contraponto ao dessas criaturas, se bem que o delas seja muito maior, não apenas em escala como na própria natureza, como se fossem apenas a parte visível, sensível, perceptível, de algo muito mais além”. E se as criaturas representam a catábase, o ritual de confronto, a sombra de sangue, isso pode levar muitas à morte das personagens. Mas acima de tudo, enquanto acto de escrita, magia fundadora, leva a de uma consciência nova, muitas vezes a do próprio leitor.

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