Catálogo 24º AmadoraBD 2013

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Prémio Nacional 2012

H

David Soares

de transmorfia desses mesmos territórios. Por isso, se encontramos em termos cromáticos uma maior aproximação ao negro do distante e frio Plutão, não nos podemos esquecer que sob esse domínio se encontra igualmente a sombra propícia da transformação, da sapiência dos mortos, da fertilidade do solo: etimologicamente, Plouton significa “riquezas” e provavelmente associa-se ao verbo indo-europeu “fluir” e, portanto, “transbordar”. Uma riqueza espiritual que apenas se atinge através de um ritual de passagem, ablução cruel e sanguínea, filtro ígneo. Não abandoneis a esperança, vós que entrais nos seus livros, pois emergireis iluminados. Por um sol negro, baudelairiano, lautréamontiano, mas iluminado. Já em 2002 escrevíamos (na flirt nº 26) sobre o trabalho de Soares como atingindo um estádio “capaz de atingir uma narrativa pensada como um todo, sem quebras de ritmo, de uma verosimilhança perfeita dentro dos seus universos diegéticos, e de um texto de BD coeso, denso e claro”. Os anos que se seguiriam, e que poderiam ser entendidos como divididos entre a entrada pelo mundo da literatura (ainda que tivesse escrito contos, a série de romances pela Saída de Emergência consolidariam a sua presença num círculo particular) e um regresso à banda desenhada (através dos reptos de Mário Freitas, da Kingpin Comics, para um conjunto de colaborações), apenas viriam confirmar, ainda que com pequenas inflexões específicas a cada título, essa noção geral. A escrita de Soares não se compraz num mergulho obsceno na violência orgiástica e abandonada do gore pós-gótico (um estilo co-optado pela cultura capitalista), na pornografia da literatura macabra, nas ortodoxias do terror. Como o Marquês de Sade, os projectos de David Soares são transgressivos não por contarem com eventos violentos, personagens infractoras da moralidade, ou criaturas ou esferas de uma fantasia indizível, mas antes por abrirem caminho a uma compreensão e exploração da psique humana, sobretudo dos mais recônditos e absconsos segredos e caprichos que jamais seriam confessos à luz do dia. Contra as ideias morais e nobres dos heróis, fantasias maiores e cegas à realidade humana – “se eu estivesse naquela situação, salvaria as pessoas”, “não colaboraria com os esbirros”, “lutaria pelos direitos do homem” –, Soares ergue o espelho mais verdadeiro, a de que, dadas as circunstâncias certas, seríamos nós os esbirros, afundaríamos nós a lâmina.

F  © Primeira planificação de o pEQUENO dEUS cEGO, de David Soares G  © SOARES, David e SERPA, Pedro, 2012, O Pequeno Deus Cego, p.5, Lisboa, Kingpin Books H  © SOARES, David e SERPA, Pedro, 2012, O Pequeno Deus Cego, p.43, Lisboa, Kingpin Books

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