Catálogo 24º AmadoraBD 2013

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24º AMADORA BD 2013 Cenários

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G  © André Diniz, Morro da Favela, 2012

bairros que em Portugal se apelidariam de “problemáticos”, “marginais”, ou pelas “favelas”, que ganham nessas mesmas palavras um imediato peso moral e político que parece impedir uma maior e mais íntima aproximação, devido à familiaridade ilusória que essas palavras criam em relação à sua realidade. E a aproximação é a de que vive aí gente (aliás, em Morro da Favela isso é explicitamente dito por Hora, que quer “mostrar pra todo mundo que aqui também tem vida!”) Se o conceito de Marc Augé dos “não-lugares” é imperativo para compreender um certo grau de desumanização, de evacuação do sinal do vivido de determinadas paragens semi-urbanas, o seu emprego impensado pode levar precisamente à ocultação das experiências e vivências que de facto ocorrem no seu interior, e as histórias destes autores recolocam o ónus nessas vidas (reais, fictícias, absurdas, etc.). Um outro conceito quiçá produtivo seria o da “cidade superexposta” de Paul Virilio (e em quase todos os artistas existe sempre uma exploração das mediações tecnológicas permitidas sobre o espaço urbano, seja através da fotografia, da televisão, dos meios de comunicação digitais, da paradoxal solidão que o seu uso também implica, etc.), que seria curiosa de verificar neste meio (BD/HQ), a um só tempo tecnologia “velha” (desenhos sobre papel, impresso) e de circulação digital (venda online, blogs, etc.). O poder, segundo Foucault (História da Sexualidade, vol. 1, A vontade de saber), é caracterizado sobretudo pela forma como ele administra a vida, e a sociedade capitalista em que vivemos vai controlando cada vez mais as dimensões da vida: não só os corpos são cada vez mais regimentados pelas suas inscrições de sexo, orientação sexual, etnia, classe, idade, nível cultural, saúde e deficiência, padrões de beleza, como controláveis pelos sistemas de habitação, alimentação, saúde, etc., criando como que “corredores” específicos do espaço social da existência humana. Há cada vez menos espaços fora desse regime, e é nesses recantos que se instalam as vozes dissonantes que se expressam através de canais diferentes, ou convencionais (como a banda desenhada) mas de um modo diferente. E as escolhas das liberdades podem passar por actos de estranha violência auto-exercida: as personagens de Sica devêm objectos e espaços, a droga tomada pelas de Franz atingem um nível algo distinto de existência, as de Kitagawa e de Gerlach abandonam-se a actos de violência melodramática, as de Diniz procuram espaços alternativos de percurso ou de relacionamento diferente com os poderes instituídos nos locais (polícia versus traficantes). Mesmo a ambiguidade em D’Salete, essa espécie de inércia ou entediamento nocturno que as enclausura, pode ser visto como forma (micro) de resistência às expectativas criadas pela disciplina e pela tecnologia política do sistema.


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