Catálogo 24º AmadoraBD 2013

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24º AMADORA BD 2013 Cenários

Ora se a cidade é um espaço público, e o exercício da política implica a participação nesse espaço (a sua própria constituição), a sua ocupação física faz todo o sentido, é mesmo uma das actividades democráticas que faz sentido neste momento de crise do sistema político, precisamente democrático. “Crise” deve ser entendida aqui no seu pleno sentido etimológico de “separar”, “julgar”, “decidir”, do grego krinein, e é curioso notar como a sua adopção latina viria a associá-la, através do verbo cernere, cretus, a “crime”. De facto, uma das vitórias do sistema tardo-capitalista, neo-liberal, em vigor, é ter eliminado a ideia de que uma consciência ideológica (de classe, de estação social, etc.) é necessária: isto é, apresentando-se a si mesmos como soluções tecnocratas, “objectivas”, “necessárias”, “inevitáveis”, mancham duplamente: por um lado, qualquer resposta alternativa será entendida enquanto irrealista e impensada, por outro, elas próprias apresentam-se como se não fizessem parte de um mecanismo ele-mesmo ideológico. A narrativa dominante é de facto a do “fim da história” de Fukuyama, a do triunfo global e total do capitalismo mundial e da democracia liberal global. Em “In What Time do we Live?”, Jacques Rancière explica como este novo regime cria um tempo de impossibilidades: há coisas que já não se podem fazer, ideias nas quais não se podem acreditar, futuros que não se podem imaginar. E todos aqueles movimentos como os de São Paulo fazem titubear essa ideia. Melhores analistas, politólogos e sociólogos saberão indicar e explorar as virtudes e vícios destas novas comunidades de manifestações difusas, constituídas por pessoas das mais diversas inscrições ideológicas e sociais. Não basta dizer que são “pseudo-revoluções”, ou que são “amorfas”, é preciso compreender o que é que essas novas configurações permitem. Reivindicações compostas de linhas centrífugas que recordam o Maio de 1968 (“sejamos realistas: exijamos o impossível”), e que deixam os agentes normalizados do(s) poder(es) perplexos e balbuciantes. E essas configurações encontram nalgum trabalho de banda desenhada (BD), ou histórias em quadrinhos (HQ), ecos não apenas temáticos, mas formais e expressivos.

A banda desenhada enquanto representação do político. O envolvimento da arte na luta política nada tem de novo, mas há que fazer uma destrinça entre aquele tipo de discursos que se envolvem nos formatos ideológicos mais banais, ou até mesmo nas regras de salão a que todos se per-

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