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REVALORIZAÇÃO DO TRABALHO MANUAL NO CHILE - UMA ANÁLISE ATRAVÉS DA PERSPECTIVA PÓS-MATERIALISTA

Conceição e Souza, Carolina; carolsouzaa@gmail.com O’Brien, Beatriz ; bestrizobrien99@gmail.com; Fashion Revolution Chile / Cooperativa de Trabajo Costureras a toda Máquina.

Resumo: Este texto é uma reflexão sobre a revalorização dos saberes manuais artesanais no Chile contemporâneo: após processos massivos industriais de apagamento da cultura ancestral, a Pós-modernidade traz consigo processos culturais onde passado e presente conseguem conversar entre si, especialmente no campo da Moda.

Palavras-chave: artesanato; industrialização, consumo, pós-materialismo.

A corrida desenvolvimentista industrial impactou de forma especial as colônias espanholas sul-americanas: a transformação e apagamento dos saberes ancestrais manuais por uma produção impessoal e massiva. Após um longo período de esquecimento, surge com a Pós-modernidade impulsos de retomada das tradições e revalorização do local. Este ensaio é uma reflexão sobre como esse fenômeno ocorreu no campo da Moda, onde seus valores perpassaram todos os sistemas de produção e é refletido nas produções materiais e culturais do Chile contemporâneo.

AS MANUALIDADES E DESENVOLVIMENTO INDUSTRIAL NA AMÉRICA HISPÂNICA COLONIAL

As sociedades tradicionais pré-industriais baseavam sua economia na natureza e na produção manual. Esse sistema de trabalho e produção manteve-se por séculos e cobria necessidades humanas básicas (alimentação, vestimenta, moradia). O trabalho artesanal servia como o espaço protagonista do trabalho tradicional baseado na habilidade humana de transformar elementos da terra em objetos para o consumo material. Na América Hispânica colonial, o trabalho artesanal harmonizava práticas importadas da Europa com os saberes indígenas ancestrais (FERREIRA, 1971).

O espírito do artesanato relaciona-se com o fazer das coisas pelo simples prazer de fazê-las bem. O trabalho artesanal define-se por um alto compromisso com o esforço realizado. Fazer algo bem, ainda que não obtenha uma recompensa direta disso, é o autêntico espírito do artesanato.

O desenvolvimento industrial marca uma nova era na América Hispânica. O processo de modernização considera incompatível a incorporação de práticas ancestrais às novas fábricas de caráter dinâmico, massivo e serial. No Chile de 1855, na zona central do país, contabilizavam-se cerca de 80.000 artesãs, cifra que diminui a 13.300 em 1875 e a 4.431 em 1895 (MATRIZ MODA, 2016). Em termos culturais, os valores artesanais representam tradição e costume, enquanto os valores modernos estão definidos por uma racionalidade científica secularizada. A centralidade da figura do artesão como produtor de cultura material na sociedade é substituída por uma nova classe social, a do operário industrial. As vozes das oficinas, dos teares, das ferramentas que acompanharam gerações começam a ser silenciadas.

As profundas mudanças sociais legitimam-se nas três esferas: econômica, política e sociocultural. Esse processo acontece de forma paralela em toda a região. Iniciado o século XX, grande parte da população chilena é urbana e participa do processo produtivo. A estimativa de vida aumenta, a mortalidade infantil cai e as doenças erradicam-se quase por completo.

O novo sistema produz prosperidade e traz segurança à população. Emerge a classe média, uma nova classe social em constante expansão, consideravelmente mais letrada, capacitada e especializada que as gerações anteriores. A vida privatiza-se em todas as esferas. A família é a instituição íntima da modernidade, sua unidade fundamental de reprodução social. Por fora dela, dilui-se a ideia de comunidade - a centralidade do antigo trabalho manual como organização da racionalidade de coesão social cede espaço a era da individualidade.

Em termos materiais, ampliam-se exponencialmente as possibilidades de bem-estar social. Entramos na era do consumo, nossas vidas são invadidos por novos objetos em série, que prometem entretenimento infinito em telas tecnicolor. O consumo como atividade inseparável da vida humana rapidamente atravessa a fronteira entre as necessidades, convertendo-se num hiperconsumo de caráter narcisista. O homem e mulher modernos, encantados pelas luzes do desejo infinito, entram na dinâmica irracional de comprar e descartar cada novo produto que o mercado apresenta.

Aqui assinalamos que as Ciências Sociais (em especial a investigação em torno da modernização e pós-modernização do sociólogo norte-americano Ronald Inglehart [1997], o qual realizou pesquisas de caráter transgeracional e longitudinal) conclui que, uma vez que as sociedades chegam a certo nível de desenvolvimento e suas necessidades de sobrevivência estão asseguradas, não seguem seu desenvolvimento. Além disso, o resto do consumo é apenas a satisfação infinita de ambições efêmeras e instáveis que não melhoram as condições de vida nem fazem as pessoas mais felizes.

A lógica capitalista-mercantilista, de produção e consumo em excesso, teve duas principais consequências negativas e altamente expansivas: a exploração devastadora dos recursos naturais e a marginalização de uma grande parte da população das camadas mais baixas, que ficaram de fora do processo. Em segundo plano podemos mencionar que a expansão de uma cultura global eliminou as identidades locais. Esse fenômeno é especialmente visível na América Hispânica, onde as reivindicações indígenas atualmente não conseguem ser conciliadas pelo Estado, resultando numa situação de fragilidade das minorias nativas.

AS TRANSFORMAÇÕES PÓS-MATERIALISTAS

Ao final do século XX a humanidade entra em uma segunda fase de modernização (para alguns autores, Pós-Modernismo; para outros, Modernidade Tardia). Mantém as características anteriores, como a individualização e secularização, mas contém mudanças culturais surpreendentes. Em uma época de economias e culturas mundializadas, emerge o indivíduo pós-moderno. Filho e neto das gerações do modernismo industrial, criado em uma sociedade de abundância e com altos níveis educacionais, expressa uma lógica de desgaste de uma racionalidade baseada na quantidade acima da qualidade. Esse fenômeno cultural chamado pós-materialismo representa uma mudança nas prioridades da vida. As tendências pós-materialistas simbolizam uma transformação mais ampla que apenas a mudança de valores: alguns fatores sociais perdem importância frente a outros.

O indivíduo pós-moderno/pós-materialista é mais tolerante e empático frente a diversidade. Existe um amplo consenso em democratizar todos os direitos individuais. Os indivíduos continuam sendo políticos, mas a capacidade coesa dos grandes meta-relatos ideológicos e partidos políticos decai. Na era pós-moderna, as manifestações sociais de caráter político intitulam-se como ativismo, e se luta dentro do sistema para torná-lo mais humano e amável. Os indivíduos unem-se a diversas causas, como o feminismo e o meio-ambiente, em torno da denúncia e junto a outros indivíduos de afinidade discursiva e ideológica. A cultura pós-materialista revaloriza as práticas do passado, próprias das sociedades tradicionais. O trabalho manual representa uma resistência à mudança, uma nova lógica frente a racionalidade capitalista de constante mudança e transformação. Podemos entrever um ressurgimento da organização comunitária da era pré-industrial. Os indivíduos pós-materialistas de gerações mais jovens, educados em universidades e apropriados de saberes teóricos altamente especializados, começam a trabalhar junto a artesãos baseados em seus saberes através da experiência, em conjunto, criam novos fazeres.

REVALORIZAÇÕES CONTEMPORÂNEAS

O caso da moda independente da América Hispânica reflete claramente esta tendência. Os designers nacionais inovam ao resgatar modos de produção tradicionais junto a saberes tecnológicos-acadêmicos. Este é um fenômeno único: não é completamente tradicional nem inovação pura, mas uma tentativa valente e de boa fé de combinar o melhor dos dois mundos. Ademais, marca um retorno a uma cultura material local fortemente vinculada à identidade histórica. Materiais locais nobres voltam a ser usados no desenho de roupa dos designers nacionais, como por exemplo a alpaca e algodão no Peru, e a lã de ovelha no Chile. Ressurgem técnicas ancestrais, como o tear indígena e o bordado, no México e centro-América. Ganha força uma nova lógica de valorização do tempo de produção. Esse efeito é indissociável da suavização dos costumes, do sentimento crescente de respeito e tolerância.

A pesquisa “Diagnóstico económico de la moda de autor en Chile: resultados y desafíos (MATRIZ MODA, 2017) revelou que 84% dos designers chilenos utilizam técnicas artesanais ou resgate de técnicas e 51,6% usam tecidos nacionais. Isso é reflexo de uma mudança das práticas de produção para um ritmo mais slow, onde a moda é apenas uma parte desta mudança cultural geral.

O trabalho do artesão, sua arte como racionalidade ficaram de fora do processo de industrialização. Sem dúvida estamos frente a um novo período que, como toda grande mudança cultural, já se encontra instalado e não vai desaparecer. Os processos sociais não se inibem uns aos outros, transformam-se e combinam-se: os processos industriais seguirão existindo junto aos saberes tradicionais revalorizados com novas particularidades. O século 21 oferece-nos a oportunidade de aprender com o passado, de buscar uma vida com mais respeito aos demais e ao meio-ambiente, um estilo de vida mais simples e significativo. Uma cultura material que prioriza a qualidade frente a qualidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERREIRA, Oliveiros S. Nossa América: IndoAmérica. São Paulo: Pioneira Editora, USP, 1971.

INGLEHART, R. Modernization and Postmodernization. Princeton: Princeton Editorial Press, 1997.

MATRIZ MODA. Diagnóstico económico de la moda de autor em Chile – resultados e desafios. Santiago: Modus Observatorio Sistema de Moda UDP, 2016.