Trecho: "Veludo"

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Pronto, chegou o momento de agir. Agora à noite o ar está cheio de promessas. Me sinto emocionado como um principiante em seu primeiro golpe. Dentro das luvas, minhas mãos transpiram. Aliás, é sempre assim. Mal entro no apartamento, compreendo de imediato, pelos ruídos que vêm da cozi-

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nha, que a dona da casa está ali. Fazendo o jantar. Foi ela quem me trouxe aqui. Encontrei-a hoje de manhã, na saída do teatro. Estava rodeada por um grupo de amigas. Ria. Falava de crianças, de receitas. Ao cumprimentá-la, chamaram-na pelo nome: Corinne. Sei o que ela faz: é bailarina.

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A poeira do palco deixa sobre a pele um cheiro que eu reconheceria em qualquer lugar. Refletores, música, o ar deslocado por um passo de dança… Tudo isso me agrada, mas não é por amor à arte que estou aqui. Segui Corinne porque ela deixa um rastro inequívoco de casa feliz. Uma casa feliz é uma casa acolhedora. Mal pulei a janela, atingiu-me o aroma do óleo de nogueira com que ela lustra os móveis, o da lavanda nas gavetas de roupas íntimas, o do álcool que, diluído em água, ela usa para lavar o assoalho. Acima de tudo, paira o odor benévolo e doméstico da madeira, aquele que eu mais gosto de sentir pelos aposentos, embora não seja isso o que estou buscando agora. Uma casa feliz é uma casa vivida. Gosto de captar, antes que alguém os apague, os rastros que nos ambientes domésticos desaparecem

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depressa… Corinne começou a trabalhar na cozinha, deixando atrás de si o aroma de borra de café, o cheiro negro e pesado da tinta de impressão, o eflúvio de suas sapatilhas estivais, ainda quase novas. Se não fosse por essas notas tão humanas, eu poderia imaginar estar no museu do Louvre, a tal ponto o odor de quadros e estátuas impregna a casa. As tintas a óleo levam séculos para secar, e seu perfume, que não se extingue nunca, é um dos meus preferidos. Se um dia abandonasse minha carreira, eu poderia me candidatar a especialista na datação de obras de arte. Nesta casa, por exemplo, distingo os óleos mais antigos – secos, quase desbotados – daqueles dos quadros de arte moderna, pastosos e vitais. Na penumbra do corredor, os bustos, as estátuas inquietantes exalam o aroma calcinado do mármore sob o sol. O mármore não esquece a luz que bate sobre as pedreiras, como sobre uma ferida aberta. Mas hoje o meu interesse não está aqui, e vou em frente.

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Esta noite, Corinne me leva longe: um perfume de especiarias invade a casa. Entre os ingredientes do jantar distingo a canela, de aroma doce e infantil, o gengibre fresco e pungente, e tamb茅m a pontinha amarga e um pouco hostil do coentro e do cominho. Acima de todos predomina o perfume do curry, ex贸tico e ao mesmo tempo cotidiano.

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As crianças, porém, não gostam muito. Preferem viajar com a imaginação, mais do que com a cozinha exótica. Mal tocam na carne de vaca à tailandesa. Terminado o arroz, o mais velho pede: “Papai, conta uma história?” “Sim, Claude, por favor!”, intervém Corinne. E Claude começa.

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“Era uma vez o pirata Tremain. O pirata mais esperto do mundo. Incansável, ele percorria os sete mares com seu veleiro veloz e assaltava todos os galeões espanhóis que cruzassem seu caminho. Os galeões eram sua especialidade, porque na época, entre todos os navios, eram os mais ricos, os mais lentos e os mais indefesos. Tremain saqueou galeões sem lhes dar trégua, até o dia em que o último foi desmantelado, no porto de Palos. Então decidiu que a hora de se aposentar havia chegado também para ele. Por outro lado, ainda se sentia jovem, e possuía várias dúzias de baús lotados de ouro, prata e pedras preciosas. O ex-pirata desfrutaria seu merecido repouso em plena abastança. Mas Tremain era um sujeito generoso, sobretudo com as mulheres. Sempre que se apaixonava, cobria sua amada com pérolas e diamantes. Julgava ter o suficiente para poder trocar de namorada dezenas de vezes, até encontrar a mulher certa: uma para cada baú. Infelizmente, havia errado os cálculos no caso de Amalia Benicio y Gasset. Amalia era uma bailarina de flamenco, que se transferira de Granada, sua cidade natal, para Londres, junto com os pais e onze irmãos. Na Espanha, passavam fome: Francisco, o pai de Amalia, era toureiro, mas não conseguia ter sucesso porque em sua profissão havia muita concorrência. Um dia, alguém lhe disse que

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na capital inglesa poderia refazer a vida como acendedor de lampiões, uma atividade que naquele momento parecia ter grande procura. Então, abandonou seu ofício sangrento e seu país, e foi para Londres. Na verdade, o salário de acendedor de lampiões era insuficiente para alimentar aquela família andaluza tão grande, e Amalia, para esquecer as mordidas da fome, muitas vezes ia dançar as danças de sua terra em plena rua, diante da porta de casa, porque dentro não havia espaço suficiente. Até que um belo dia, Mr. Philip Dwells, o diretor do Regency Theatre, ao passar ali para comprar rapé, reparou na jovem. Então a contratou e fez dela uma estrela de primeira grandeza. Como eu dizia, Tremain fazia loucuras por ela, e deu-lhe todas as esmeraldas, rubis e diamantes que guardava em seus baús. Amalia não era apaixonada por ele, mas aceitava os presentes para não ser indelicada. Depois os distribuía entre a camareira, a zeladora, o limpador de chaminés… Um dia, descobriu uma associação espanhola que dava assistência aos ex-marinheiros de galeão caídos em desgraça, e começou a enviar aqueles tesouros para sua terra natal. Terminadas as joias, Tremain passou às sedas e aos brocados, aos tapetes persas, às maiólicas renascentistas… Numa palavra, arruinou-se. Enquanto isso, Amalia havia decidido se casar. Em meio a muitos apaixonados, entre os quais ministros, príncipes e notários, escolheu… Adivinhem quem? Gaston Moitessier, um jovem pobretão: poeta, de olhos celestes. Foi morar em Paris e tornou-se a senhora Moitessier. Corinne, a mãe de vocês, é tetraneta dela.”

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