O leão filósofo, Serafim e outros bichos

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Era noite de lua. Bateu a saudade no coração dos animais – saudade da terra natal, das aventuras passadas. Com a saudade, veio a vontade de conversar. – Que bom se ficássemos todos juntos, para bater um papo ao luar! – pensou a girafa. Mas como, se estava cada bicho no seu canto? Ah! A Quinta da Boa Vista tem uma vista bem bonita, mas às vezes, à noite, aquele silêncio dá melancolia nos bichos do Jardim Zoológico. A girafa soltou um queixume fundo, fundo. O leão compreendeu o que se passava com ela. Pois se era o mesmo que se passava com ele! 7


– Quem me dera deitar na grama, de cara para o céu, e deixar a boca falar o que me anda aqui no peito! É verdade que tenho comigo a leoa e os leõezinhos, que me fazem muito boa companhia… Mas um bicho precisa conversar com os amigos, ouvir casos engraçados, ter suas distraçõezinhas. Senão a vida fica muito monótona. O leão continuou pensando; ele era o filósofo do Jardim. Durante muito tempo havia sido o rei dos animais. Até que um dia resolveu aposentar-se. Não tinha vocação para rei, concluíra. Agora era um bicho igual aos outros, e o seu trabalho era o mesmo das girafas, dos macacos, dos hipopótamos, enfim, de todos que moravam no Zoológico: divertir as crianças que lá iam aos sábados, domingos e feriados. Era um bicho vivido, o leão. Tinha visto muita coisa no mundo, no meio dos homens e no meio dos animais. E aquela vida calma, entre seus colegas de profissão, bem que ia com seu feitio, pensativo e caladão. Mas ora, por mais caladão e pensativo que alguém seja, é bom estar com os amigos e abrir o coração. O leão suspirou. E suspiro de leão não é feito o de gente, não. Ouve-se longe, longe… Dali a pouco foi um tal 8


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de suspirar – zebras, elefantes, camelos, toda a bicharada – que o vigia decidiu fazer uma ronda para ver que novidade era aquela. Todos ficaram quietinhos: não queriam complicação, e além disso achavam que homem não entende sofrimento de bicho. O vigia voltou para o seu posto. Lá encontrou o colega Raimundo, que àquela hora entrava de serviço. – Não sei o que deu neles hoje – comentou. – Só fazem suspirar e gemer. – É esta lua, que mexe com a gente. Até me deu uma saudade da minha terra, lá do meu Maranhão! Ainda conversaram um pouquinho e logo depois se despediram. Seu Raimundo, como quase sempre, ficou só, pois bastava um vigia noturno, os bichos eram de paz, nunca davam alteração. Sentou e pôs-se a ler um jornal à luz de uma lanterna. Fazia força para decifrar as letras que dançavam na sua frente, seus olhos estavam fecha-fechando… Um macaco logo entendeu a situação. Os companheiros estão tristes, precisam de uma diversãozinha, quem sabe de um bate-papo amigo, pensou. Ele não era bicho de melancolia, não ficava sonhando nem filosofando, era bicho de ação. Começou a 10


imaginar um plano. Arriscou um olho para o vigia que dormia sentado, ali bem junto à sua jaula. Sorriu, com orgulho de seu povo: – Ele sempre fica perto de nós, temos fama de terríveis! Esse macaco se chamava Serafim. Matutou e matutou. Como conseguir as chaves da jaula? Espichou o braço direito através das grades, tentando alcançar as chaves penduradas no cinto de seu Raimundo. Nada. Espichou o braço esquerdo. Em vão. E com o rabo? Era fino e comprido. Sim, comprido ele era, com jeito chegava a encostar no cinto de seu Raimundo, porém não fazia o que Serafim queria. Macaco ensinado é capaz de pegar as coisas com o rabo, ele não era bicho de circo, só trabalhava com as mãos. O rabo dava voltas e mais voltas no ar, mas tirar as chaves sem o menor barulhinho, lá isso não fazia. Serafim desanimou, mas só por um momento: – Bom, seu Raimundo está ali, eu estou aqui; mas entre nós dois, as grades. Como apanhar as chaves, eis a questão. E eu tenho que descobrir a solução. 11


Nisso Serafim olhou para o fundo mais escuro da jaula. Lá estava, solitário, o macaquinho Sabino. Sabino gostava da Teresa, mas Teresa não ligava para ele, só brincava com o Joaquim. Resultado: Sabino andava jururu, sempre metido pelos cantos. E estava magro, tão magro que seria até capaz de passar pelas grades. Seria?… – Ó Sabino, coragem, rapaz! – Ahn? – Você notou como os bichos hoje estão suspirando? Silêncio. Sabino estava longe, longe. – Responda, macaco de Deus! – De que é que você está falando? – Se não sabe, é porque, em vez de me ouvir, fica pensando na Teresa. Preste atenção: você reparou como os bichos hoje estão diferentes? Tudo triste, só gemido ou suspiro neste Jardim. – E daí? – E daí desconfio que estão loucos de vontade de conversar, quem sabe lá no gramado do Palácio… – Eu não estou com vontade de conversar. 12


– Mas bem que precisava, sabe? Olhe, você deve se divertir, em vez de viver aí parado, remexendo suas mágoas. – Eu quero é ficar quieto no meu canto. – É, você quer ficar quieto no seu canto, sem falar, sem comer, murchinho que nem pinto molhado. Desse jeito, você acaba mal. Acaba morrendo, e o que que adianta? A Teresa fica aí… Afinal de contas, macaca para você brincar é o que não falta neste mundo. Quer dizer, neste Jardim Zoológico. Quer dizer, nesta jaula. – Mas se é dela que eu gosto… – Está bom, mas agora deixe esse problema de lado e trate de me ajudar. – Você quer que eu faça o quê? Serafim segredou com Sabino. Depois, convocaram os companheiros de jaula para uma reunião. Se seu Raimundo estivesse acordado, veria dez macacos em círculo, os braços de um nos ombros de outro, a falar baixinho, baixinho. Uma hora os macacos se entusiasmaram tanto que não controlaram o cochicho. Se seu Raimundo estivesse acordado, ouviria as palavras: “magricela”, “mirrado”, “fininho”… 13


– Deve estar sonhando um sonho colorido – murmurou Sabino. – Parece que está sorrindo! – Companheiros, avante! – comandou Serafim. Sabino meteu a cabeça para fora das grades, deu um impulso no corpo, mas ficou preso na altura dos ombros, com as pernas balançando no ar… da jaula. Um dos macacos – dizem que foi o Joaquim – queria dar-lhe um pontapé, para ele cair de uma vez do outro lado. Serafim não deixou, sabia que assim os ombros não passavam de jeito nenhum e que o macaquinho ficaria machucado. Puxou Sabino para dentro. Sabino não dava mesmo para herói. Começou a choramingar: – Meus ombros estão do-en-do, estão ar-den-do, estão fer-ven-do… – Chega de tanto en-en-do! – ordenou-lhe Serafim. – Vá lá que você não seja o mocinho desta história. Mas não vai querer ser o bobalhão, vai? Sabino meteu-se em brios: – Oquei, chefe, pode dar as ordens. – Pendure-se nas grades. Bote a cabeça do lado de fora. Isso! 14


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O leão filósofo, Serafim e outros bichos

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Macaco esperto, pensou que pensou e deu um jeito de pegar as chaves no cinto de seu Raimundo, vigia noturno e dorminhoco. E lá foram os bichos todos se encontrar! Essa noite, e a seguinte, e a seguinte… Mas quando seu Raimundo não dormia, não tinha reunião. E eles resolveram que já era hora de pararem de se ver às escondidas…

MARLENE DE CASTRO CORREIA

À noite, depois que todos os visitantes já visitaram e só os vigias vigiam, os bichos do Zoológico suspiram. Suspiros de solidão e saudade, entende o leão. Precisamos é de uma distraçãozinha, identifica Serafim.

MARLENE DE CASTRO CORREIA

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11/02/10

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