ENSINAR A ENSINAR

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Sumário

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SUMÁRIO Sobre os Autores ............................................................................................................ Apresentação ..................................................................................................................

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PARTE I

REFLEXÕES SOBRE DIDÁTICA .........................................................

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Capítulo 1 O Ensino: Objeto da Didática ................................................................. Amelia Domingues de Castro 1.1 Didática e Ensino ............................................................................................ 1.2 O Campo da Didática ..................................................................................... 1.3 Pesquisa sobre Ensino ....................................................................................

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Capítulo 2 Didática e Cultura: O Ensino Comprometido com o Social e a Contemporaneidade ................................................................................... Sonia Teresinha de Sousa Penin 2.1 Introdução ...................................................................................................... 2.1.1 História e contemporaneidade no ensino .................................................. 2.2 A Didática e a Escola: O Projeto Pedagógico ................................................ 2.2.1 A gestão da escola ..................................................................................... 2.3 A Didática e o Currículo: O Itinerário de Formação ...................................... 2.4 A Didática e a Aula: Os Tempos e os Espaços Redefinidos ........................... 2.5 Conclusão ....................................................................................................... Bibliografia............................................................................................................

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Capítulo 3 A Didática como Iniciação: Uma Alternativa no Processo de Formação de Professores ............................................................................. Denice Barbara Catani 3.1 A Didática, as Autobiografias ou as Histórias de Vida Escolar e a Educação de Professores ................................................................................................ Bibliografia............................................................................................................

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PARTE II A DIDÁTICA EM AÇÃO ........................................................................

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Capítulo 4 A Disciplina: Uma Questão Crucial na Didática .................................. Helena Coharik Chamlian 4.1 Introdução ...................................................................................................... 4.2 A Disciplina e a Atividade Intelectual ............................................................

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4.3 A Disciplina e a Formação do Caráter ........................................................... 4.4 A Disciplina e as Motivações Interiores ......................................................... 4.5 O que as Pesquisas têm Demonstrado ............................................................ 4.6 A Sala de Aula e as Regras para seu Funcionamento ..................................... 4.7 Considerações Finais ...................................................................................... Bibliografia ...........................................................................................................

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Capítulo 5 O Papel do Professor na Sociedade Digital ............................................ 95 Vani Moreira Kenski 5.1 O que é um Professor, Afinal? ........................................................................ 95 5.2 Funções Estruturais da Ação Docente ............................................................ 96 5.2.1 O professor, agente da memória ............................................................... 97 5.2.2 O professor, agente de valores da sociedade ............................................ 100 5.2.3 O professor, agente das inovações ........................................................... 103 Bibliografia .......................................................................................................... 106 Capítulo 6 O Saber e o Saber Fazer dos Professores .............................................. Anna Maria Pessoa de Carvalho e Daniel Gil Perez 6.1 Os Saberes Conceituais e Metodológicos da Área Específica ....................... 6.2 Saberes Integradores ...................................................................................... 6.3 Saberes Pedagógicos ...................................................................................... 6.4 Um Exemplo: Atividade onde Discutimos Ciência, Tecnologia e Sociedade em uma Aula sobre Telescópio e onde Apresentamos os Saberes do Professor e o seu Saber Fazer .......................................................................................... Referências Bibliográficas .................................................................................. Capítulo 7 Sala de Aula: Espaço de Construção do Conhecimento para o Aluno e de Pesquisa e Desenvolvimento Profissional para o Professor .................... Elsa Garrido 7.1 O que Diz a Pesquisa sobre a Sala de Aula enquanto Espaço de Aprendizagem e de Formação Intelectual do Aluno ........................................................ 7.1.1 O ensino e a aprendizagem segundo o modelo processo-produto ............ 7.1.2 A construção do conhecimento pelo aluno. O papel mediador do professor ................................................................................................... 7.1.3 As abordagens etnográficas ...................................................................... 7.2 A Análise da Sala de Aula e o Aperfeiçoamento Profissional do Professor – Formando o Professor Reflexivo/Investigativo ............................................... Bibliografia .......................................................................................................... Capítulo 8 A Atividade de Ensino como Ação Formadora ...................................... Manoel Oriosvaldo de Moura 8.1 Organização do Ensino ................................................................................... 8.2 A Didática e a Atenção Especial aos Múltiplos Fatores no Ensino de um Conteúdo .............................................................................................. 8.3 A Didática e a Educação Matemática ..............................................................

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Sumário

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8.4 A Identidade do Professor pelo que Ele Faz ................................................... 8.5 A Atividade Orientadora de Ensino................................................................. 8.5.1 Os sujeitos na atividade de ensino ............................................................ 8.5.2 O objeto da atividade ................................................................................ 8.5.3 As ações e operações na atividade ............................................................ 8.5.4 A aprendizagem como resultado da atividade ........................................... Bibliografia............................................................................................................ PARTE III

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A VERIFICAÇÃO DOS RESULTADOS ............................................ 163

Capítulo 9 As Relações Pessoais na Escola e a Avaliação ........................................ Myriam Krasilchik 9.1 Introdução ....................................................................................................... 9.2 O Aluno e a Avaliação ..................................................................................... 9.3 O Professor e a Avaliação ............................................................................... 9.4 Funções de Avaliação ...................................................................................... 9.5 Como Avaliar .................................................................................................. 9.6 Comunicação dos Resultados.......................................................................... 9.7 Como Aperfeiçoar a Avaliação........................................................................ Bibliografia............................................................................................................ Capítulo 10 Avaliação Escolar: Desafios e Perspectivas .......................................... Marli Eliza Dalmazo Afonso de André e Laurizete F. Passos 10.1 Diferentes Perspectivas de Análise da Avaliação .......................................... 10.1.1 O processo de conhecimento e a avaliação – o enfoque epistemológico ..................................................................................... 10.1.2 Avaliação, aprendizagem e investigação didática – o enfoque psicopedagógico .................................................................................. 10.1.3 Avaliação, escola e sociedade – o enfoque sociológico ...................... 10.2 A Cultura da Escola e a Nova Concepção de Avaliação na Lei de Diretrizes e Bases da Educação ................................................................ 10.3 O Projeto Pedagógico como Suporte para Novas Formas de Avaliação....... 10.4 Da “Cultura da Repetência” à Progressão Continuada ou Repetir é Diferente de Progredir ................................................................................ 10.5 Avaliação e Perda do Poder Docente ............................................................ 10.6 Instrumentos de Avaliação – O Melhor Instrumento: O Professor ............... Bibliografia ...........................................................................................................

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Apresentação

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SOBRE OS AUTORES

Amelia Domingues de Castro Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora Emérita da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e da Universidade Estadual de Campinas. Anna Maria Pessoa de Carvalho Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora Titular do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Daniel Gil Perez Doutor em Física pela Universitat de València, Espanha. Professor Catedrático (titular) de Didáctica de las Ciencias Sociales y Experimentales de la Universitat de València. Denice Barbara Catani Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora Associada (livre-docente) da Faculdade de Educação e chefe do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Universidade de São Paulo. Elsa Garrido Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora Associada do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Helena Coharik Chamlian Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.


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Laurizete Ferragut Passos Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora da Universidade Estadual Paulista, campus de Rio Claro. Manoel Oriosvaldo de Moura Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Associado do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Marli Eliza Dalmazo Afonso de André Doutora em Educação pela University of Illinois, EUA. Professora Titular da Faculdade de Educação da USP. Myriam Krasilchik Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora Titular do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada e diretora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Sonia Teresinha de Sousa Penin Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora titular do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada e vice-diretora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Vice-presidente do Conselho Estadual de Educação de São Paulo. Vani Moreira Kenski Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.


Apresentação

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APRESENTAÇÃO

Para quem lança um olhar sobre a Educação como uma realidade social e procura refletir a respeito de seus aspectos e rumos, o problema didático destaca-se das outras dimensões desse campo como sendo o mais real e concreto entre eles. Manifesta-se no plano da ação escolar de todos os dias e exige soluções imediatas. Abrange a face mais aparente da Educação, concentrando-se no ensino, tal como se revela na escola, nas interações entre professores e alunos e nas suas relações com a aprendizagem, contemplando tanto a materialidade das classes em seu aspecto espacial quanto a seqüência temporal do processo. Tal relevância, no entanto, não se explica apenas por constituir aspecto tão visível da Educação, mas porque sofre o reflexo dos valores, das normas e dos significados do contexto social no qual a escola está inserida. Esse é um dos motivos pelos quais há uma constante renovação de problemas didáticos, tanto aqueles que surgem como fatos novos decorrentes da evolução das sociedades, como os antigos, que adotam novos disfarces e não desaparecem. Estamos apresentando uma nova proposta didática. Será tão nova assim? Pois nela se encontrará um balanço entre a continuidade com outras iniciativas que estes autores já apresentaram, alguns desde há muito tempo, outros mais recentemente, e a irrupção de possibilidades atualmente discutidas e pesquisadas. É certo que problemas e soluções evoluem e que objetivos educacionais transformam-se. Entretanto, existem valores permanentes, normas que se apóiam na natureza mais profunda das relações pedagógicas em nossa cultura e em significados éticos que não se perdem no tempo. O novo e o antigo, o permanente e o atual ficam, pois, enlaçados numa relação de mútuo enriquecimento. Pensamos a Didática com apoio em paradigmas teóricos diversificados, entrevendo suas possibilidades de complementação ou mesmo de conflitos fecundos. Não houve preocupação em unificar pontos de vista ou pautar as contribuições a partir de uma só teoria. São olhares que se entrecruzam, mas que, apesar da variedade de abordagens, integram um propósito comum.


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Recorremos às diferentes ciências que têm influenciado os aspectos estruturais e funcionais da Didática nos últimos tempos, possibilitando a ampliação dos conhecimentos no seu campo. A Didática, graças à sua atração interdisciplinar, delas se aproxima para expandir e não para engessar seu campo de atividades. Neste, o progresso da pesquisa e da experimentação deve-se muito às alianças feitas com outros campos científicos. Procuramos, outrosim, acentuar a relação entre a ação didática e a reflexão, não consentindo em reduzi-la a uma tecnologia. O que há de novo nesse livro? Talvez uma necessidade de expandir limites, ignorar fronteiras, pesquisar relações, desatar alguns nós, para enfrentar situações que preocupam esse início de século. Às vezes, foi necessário abreviar problemas muito amplos e outras, usar lente de aumento para assegurar a visão clara de questões aparentemente reduzidas. Ignoramos deliberadamente certas ordenações tradicionais e não temos a ilusão de ter completado nossa busca: estamos conscientes de que deixamos um amplo território de pesquisas em aberto. Procuramos apresentar uma amostra significativa do que se fez nos últimos tempos, redefinindo ou contextualizando problemas, pesquisando soluções, refletindo sobre conceitos e áreas de atrito atuais. Interessa-nos sobretudo estabelecer um diálogo com professores, pesquisadores e futuros docentes. A eles pensamos oferecer uma didática em ação focalizada como um objeto de conhecimento que não deve ser entendido como desmontado ou fragmentado por sua divisão em capítulos, mas comparecendo por inteiro em cada um dos aspectos nos quais foi refletido. Esse trabalho está dividido em três partes principais, com o objetivo de destacar as afinidades entre os capítulos que as constituem. É assim que na primeira colocam-se em discussão uns tantos pressupostos sobre a Didática como campo de estudos e pesquisa e que na segunda procura-se focalizar “a ação didática”. Respondendo às críticas segundo as quais os processos de avaliação têm recebido menos atenção que os demais problemas didáticos, eles mereceram dois capítulos na terceira parte da obra. Segue-se uma breve descrição de cada um desses setores. A Parte I trata de aspectos da Didática que merecem reflexão, a partir de uma análise do seu objeto – o ensino – e de sua intenção de ensinar a ensinar. No Capítulo1, por sucessivas aproximações, procura-se elucidar o significado desse conceito e das realidades que recobre. A idéia central do Capítulo 2 é que a história do ensino contada pela Didática imbrica-se profundamente com os movimentos de transformação da cultura e da sociedade. No Capítulo 3, a Didática é vista como “iniciação” para o esclarecimento de questões de ensino, percorrendo-se o próprio ensino da Didática no Brasil. A Parte II – núcleo central do livro – apresenta a Didática em ação, numa abordagem múltipla. Inicia-se, no Capítulo 4, pelo exame da questão da disciplina na escola, analisada através de diferentes concepções e dos resultados de pesquisas. No Capítulo 5, o professor assume o primeiro plano, procurando-se discernir os vários


Apresentação

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papéis que dele são exigidos na “sociedade digital” contemporânea. O Capítulo 6 detém-se nos saberes, que devem constituir o cabedal dos docentes, insistindo no “saber fazer” específico a cada especialista, o que é demonstrado através de um exemplo no ensino de Ciências. As interações em sala de aula são trabalhadas no Capítulo 7, no qual o panorama das investigações sobre o tema favorece a compreensão dos modos de construção social do conhecimento. O Capítulo 8 desenvolve o conceito de atividade orientadora do ensino a partir dos pressupostos da Didática, versando sobre o ensino da matemática. A Parte III é dedicada ao discutido problema da verificação dos resultados do trabalho didático. O Capítulo 9 trata das relações pessoais envolvidas no processo, sugerindo suas possibilidades como processo de aperfeiçoamento da Educação. O Capítulo 10 examina as múltiplas funções da avaliação do rendimento escolar e seus diferentes aspectos diante da nova “cultura da avaliação” e da legislação vigente e encaminha a discussão para as questões práticas envolvidas. **************************** Para os trabalhos aqui reunidos, escolhemos como título aquele que identifica sua intenção comum: Ensinar a Ensinar. No entanto, sabemos a dificuldade de levar a bom termo esse propósito da Didática, sobretudo em nossos dias, quando nos deparamos com novas camadas de problemas sociais, políticos e culturais, que exigem a revisão das idéias tradicionais sobre o “poder” do ensino. Para levar avante essa discussão, procuramos respostas a algumas questões atuais que exigem exame crítico-reflexivo e estimulam o debate, sem perder de vista as condições da Escola Brasileira Fundamental e Média.


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PARTE I

REFLEXÕES SOBRE DIDÁTICA


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CAPÍTULO 1 O ENSINO: OBJETO DA DIDÁTICA Amelia Domingues de Castro

A EDUCAÇÃO PELA PEDRA João Cabral de Melo Neto

Uma educação pela pedra: por lições; para aprender da pedra, freqüentá-la; captar sua voz inenfática, impessoal (pela de dicção ela começa as aulas). A lição de moral, sua resistência fria ao que flui e a fluir, a ser maleada; a de poética, sua carnadura concreta; a de economia, seu adensar-se compacta: lições da pedra (de fora para dentro, cartilha muda), para quem soletrá-la. * Outra educação pela pedra: no Sertão (de dentro para fora, e pré-didática). No Sertão a pedra não sabe lecionar, e se lecionasse não ensinaria nada; lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma.

Ouvi, muitas vezes, perguntas parecidas com estas: Qual é o número do seu telefone? Quanto custa este livro? Para que serve este objeto? Como se chama esta flor? Onde fica a Rua Iperê? O que é isto? Para respondê-las, o interlocutor, por meio de palavras que podem ser acompanhadas por gestos, procura esclarecer uma


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dúvida, suprir alguma ignorância. Às vezes, uma palavra basta, um número ou uma cifra, outras vezes muitas frases, acompanhadas por gestos: um dedo apontando ou um aceno do braço mostrando uma direção. Outras interpelações podem ser feitas: Como se faz esse ponto de tricô? Como abrir um novo diretório no computador? Como dirigir esta moto? É provável que nesses casos as palavras sejam poucas e a gesticulação maior: quem responde poderá apenas indicar os movimentos a fazer, dizendo: “venha cá, faça como eu.” Pergunto se nestes casos haverá um processo de ensino e se houve aprendizagem. Com segurança, posso afirmar que houve um processo de comunicação. A oferta foi provocada, dirigida, pela necessidade de quem iniciou o diálogo e suponho que a resposta tenha constituído um esforço para a transmissão de conhecimentos ou habilidades a quem deles não dispunha. Numa antiga acepção, o termo ensinar era entendido como assinalar, mostrar, anunciar e convém ao tipo de diálogo descrito. Mas será esse o significado atual do verbo ensinar? Poderei referir-me a ensino quando nas conversas cotidianas há relatos de acontecimentos ou troca de informações? Ou quando a intercomunicação assume a forma de debate ou discussão, ora no nível mais elevado, incluindo argumentações e explicações, ora perdendo a objetividade? Não duvido que nestas e em outras ocasiões semelhantes, certas informações e mesmo conhecimentos organizados possam ser comunicados de uns para outros espontaneamente ou seguindo-se a perguntas. Dizendo ou mostrando, tenta-se transmitir certas mensagens. O processo de comunicação torna-se objeto de estudos há algumas décadas e os progressos havidos nos meios para sua efetivação tecnológica, vencendo distâncias planetárias, vieram acrescentar-lhe um problema de informática. Da imprensa ao rádio, à televisão e à computação em rede, dispõese hoje de meios para a difusão de todos os tipos de mensagens, ampliando-se as possibilidades do intercâmbio social. Ora, o processo de ensino poderia ser examinado apenas como especial modalidade do processo de comunicação e informação que tanto destaque vem tendo em nossos dias, não fossem certas peculiaridades relativas tanto a seus propósitos quanto a suas dificuldades específicas. Mais um exemplo pretende esclarecer meu ponto de vista. O mesmo instrumento – a televisão – pode servir para transmissão de um noticiário e de uma aula. Nesta última, as informações serão organizadas, sistematizadas, incluirão desenvolvimentos explicativos ou demonstrativos, reunidos com a finalidade expressa de ensinar, ou melhor, com a intenção de produzir aprendizagem. Entre os espectadores poderão estar aqueles que têm igualmente a intenção de aprender e que, por suas próprias condições de desenvolvimento e experiência, poderão conseguir realizá-la. Outros, por assisti-la sem aquele propósito ou sem as condições necessárias, não chegarão a esse final feliz. Por outro lado, informativos que não têm o objetivo explícito de ensinar (no sentido intencional acima referido) poderão ser captados por interessados em aprender, tornando-se exemplos didáticos, não obstante tivessem em vista apenas informar ou distrair. Esse qualificativo


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didático desde a Grécia antiga é usado com referência a obras ou situações destinadas a ensinar. O que variou, passados mais de dois mil anos que nos separam da antigüidade clássica, foi o conceito de ensino e não o intento que o dirige. A primeira peculiaridade do processo de ensinar, pois, seria sua intencionalidade, ou seja, pretender ajudar alguém a aprender. Não corresponde a uma certeza, mas a um esforço. E se refere sempre a quem recebe a comunicação didática. Numa relação interpessoal direta ou em procedimentos de transmissão à distância haverá, forçosamente, alguém a quem se quer ensinar alguma coisa. A essa altura, sinto-me obrigada a reconhecer que não sou capaz de distinguir, perfeitamente, os limites entre o que penso ter aprendido por mim mesma e o que aprendi por um esforço “ensinante” realizado por alguém. Como disse o poeta, existem situações pré-didáticas, “de dentro para fora”, nas quais se aprende, sem que ninguém tenha ensinado, por aquela espécie de impregnação à qual se refere com a nostalgia do sertão: “lá a pedra entranha a alma”. Sentimentos e convicções assim são adquiridos, “entranhando a alma”. Observo que as crianças descobrem, por si mesmas, graças à sua interação com o mundo físico e social, uma enorme quantidade de informações que vão se coordenando no decurso da construção de sua inteligência. Descobrem propriedades dos objetos e características do comportamento humano, inclusive do seu próprio. Têm concepções acerca da natureza e da vida que são sujeitas a modificações, sem que percam sua origem espontânea. Os adultos continuam tendo experiências em todas as áreas do saber, da afetividade, da moral ou da estética que não podem apontar como lhes tendo sido ensinadas, mas que, por vezes, entendem ter sido aprendidas (“aprendi por experiência própria”). O que se chama usualmente de autodidatismo reflete o caso no qual o sujeito organiza seu processo de aprendizagem. Por mais difícil que seja admitir que alguém ensine a si mesmo, devo reconhecer o fato de que nesse caso o duplo papel – de ensinante e de aprendiz – é exercido pela mesma pessoa, mudando-se a tônica do processo: quem quer aprender toma a iniciativa. Inventores e descobridores seriam, talvez, os mais altos referenciais do autodidatismo, sem que seja negado, no caso, o papel do ambiente com o qual interagem. Estou denominando “ensinante” aquele que assume, em alguma circunstância, a deliberação de ensinar, embora o modelo do executor dessa tarefa seja o professor, termo que assume conotação profissional. Esta categoria à qual me orgulho pertencer conhece certas decepções, pois tantas vezes, supondo ter ensinado, verifica-se que os alunos pouco ou nada aprenderam. O fato reforça a idéia de que a ação de ensinar é sobretudo uma intenção e indica que na maior parte das vezes há um longo caminho entre o propósito e sua realização. Para tanto, entram em cena procedimentos ditos didáticos, visando um encontro entre o ensinar e o aprender.


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É difícil destacar-se, na vida de cada pessoa, os momentos nos quais ela enfrenta situações didáticas, nas quais os responsáveis pelas crianças passam a elaborar modos de agir e falar especificamente destinados a facilitar-lhes o domínio de hábitos, habilidades e conhecimentos considerados importantes para o convívio social. Surgiria, assim, uma didática espontânea, anexada ao processo educacional a serviço do qual é exercida, de modo a tornar-se inseparável daquele. A deliberação de ensinar, nesse caso, é difusa ou mesmo pré-consciente e nem sempre emerge claramente como um evento específico, pois o ensino se dá, como entre os primitivos, por participação, por experiências compartilhadas ou por meio de atos que convidam à imitação. Essa didática espontânea é, por vezes, codificada pelas pessoas que cuidam de crianças, desenvolvendo-se uma lista de procedimentos “que dão certo” e de outros que “não funcionam”, quando se pretende ensinar a criança a fazer algo, a comportar-se de determinadas maneiras ou a adquirir certos conhecimentos. Seriam as sementes de uma didática entendida como arte de ensinar a serviço da Educação? Infelizmente, por vezes, esse processo desdobra-se numa cadeia de condicionamentos positivos ou negativos, atuando por meio de prêmios e castigos, sem relação com o que se pretende que a criança aprenda, redundando numa verdadeira patologia didática. A constituição de um corpo de conhecimentos sobre o ensino, que veio a denominar-se Didática, serviu para garantir sua eficiência. O verbo ensinar é transitivo e admite tanto complemento direto, respondendo à pergunta: “ensino o quê?”, quanto indireto, indicando “a quem” ensino. Ora, essa função de ensinar algo a alguém vai encontrar seu território preferencial na escola. Nesta, assume seu aspecto formal e as situações didáticas são organizadas, planejadas, deliberadas, escalonadas em etapas e subdivididas conforme as características dos produtos do ensino. Segundo o poeta, as lições de dicção, moral, poética e economia são “de fora para dentro”, em contraste com a educação “pela pedra”, que é de “dentro para fora”. Surgiria a Didática somente quando os signos, as coisas, os gestos não são absorvidos, não “entranham a alma”? Porém, de modo explícito ou implícito, o ideal de toda Didática sempre foi que o ensino produzisse uma transformação no aprendiz, que este, graças ao aprendido, se tornasse diferente, melhor, mais capaz, mais sábio. Os processos de ensino estão ligados à Educação. O ensino educativo proposto no passado permanece como o referencial da Didática. Se a realidade nos mostra que, dentro de grupos marginais, tanto informações quanto técnicas são comunicadas entre seus membros, será que poderemos identificar, entre eles, situações didáticas? Creio que somente uma extensão indevida do significado tanto de ensino quanto de didática poderia justificá-lo. A estreita relação entre os procedimentos de ensino que buscam eficiência com o processo de socialização do educando, o nível ético que permeia seus propósitos, o respeito à dignidade da pessoa humana não me permitem aceitar essa extensão semântica. Posso aceitar que, no caso proposto, sejam encontrados procedimentos de treinamento eficientes, ou que o grupo se tenha tornado especialista em comunicação, mas não contempla fenômenos de ensino que possam ser qualificados como didáticos. Um contexto


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plenamente didático pede transformação e aperfeiçoamento do educando, graças à mensagem da qual se apropriou e à comunicação que assimilou conscientemente e que será fator de seu desenvolvimento moral, intelectual ou físico, conforme o caso. Será recebida se tiver significação para o aprendiz e tanto mais construtiva para sua personalidade, quanto mais puder ampliar sua autonomia. Nessa difícil busca acerca do que significa a qualidade didática de algo – objeto, conversa, discurso, texto –, já foram distinguidos dois componentes que formam um só requisito: intenção educacional. Costuma-se associar ao conceito de ensino a idéia de instrução. Esta, às vezes, diz respeito ao processo de transmissão do saber, à tarefa de instruir; outras vezes, denomina seu resultado: fala-se, por exemplo, de homens instruídos, como de pessoas que adquiriram o saber, a cultura e de instrução como um procedimento, uma ação. Indica a aquisição de algum conteúdo cognitivo, mas o termo é usado também na expressão “instrução moral e cívica”, mais comprometida com a formação de atitudes e valores, sabendo-se que o mesmo radical aparece na palavra “instrutor” relacionada à aquisição de destrezas, hábitos ou habilidades. Como acontece com muitas outras palavras do vocabulário pedagógico, não tem um significado preciso, embora tenha tendência a priorizar a aquisição de determinadas informações ou saberes, e corresponde à necessidade que tem a humanidade de valorizar os tesouros culturais que coloca à disposição das novas gerações. Convém agora examinar as relações entre a Didática e o Conhecimento, tantas vezes indicado como resultado previsto da aprendizagem. Como no caso da instrução, o verbo correspondente – conhecer – é de uso comum, talvez banalizado. Pode ser usado apenas para indicar que a memória de alguém registrou uma informação (“eu já te conheço, fomos colegas” ou “conheço essa canção”). Seria, então, apenas um reconhecimento. Mas a fala de todos os dias registra também inflexões às vezes sarcásticas, apoiadas em reflexões críticas, que vão além do simples reconhecer (“eu te conheço muito bem” ou “conheço suas intenções”). No caso, porém, dos conhecimentos escolares, há uma ambigüidade, pois quando se diz que alguém conhece bem uma determinada disciplina ou ciência, isso pode significar tanto um reconhecer superficial, indicativo de informações memorizadas, quanto um conhecer racional, fruto de experiência e reflexão, envolvendo ampliação da capacidade de pensar daquele que o possui. A questão foi objeto, há algumas décadas, da atenção dos filósofos analistas que procederam ao exame crítico de conceitos básicos em Educação, tais como: o conhecimento, o ensino, a aprendizagem e outros com estes relacionados. De análises feitas a propósito das condições que identificam o conhecimento (como produto do ato de conhecer) resulta sua designação como um saber especial que agrega a condição de veracidade, a exigência racional e elementos de prova.1 1

Israel Sheffler. Bases y condiciones del conocimiento. Paidos, Buenos Aires, 1970. Para uma bibliografia comentada sobre análise de conceitos educacionais, veja: J. F. Soltis., An introduction to the analysis of educational concepts. Addison-Wesley, Mass. USA, 1968.


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Um passo decisivo para a compreensão do problema duplo do conhecimento – constituir um ato, uma ação, um processo e resultar numa conseqüência para o sujeito que conhece – é encontrado na extensa obra experimental e teórica de Jean Piaget e colaboradores. O construtivismo integral (epistemológico e psicológico) da última etapa de seus trabalhos, e que nesse texto só posso indicar como proposta de estudos, elucida a dupla face do conhecimento. Primeiro será um processo de construção e reconstrução do objeto do conhecimento devido às possibilidades e instrumentos intelectuais de que dispõe o sujeito. Mas designa, também, as próprias coordenações internas que se mobilizam para tornar possível o ato de conhecer e que, por esse intercâmbio com os desafios cognitivos que enfrenta, desenvolve, diferencia e integra seus diferentes aspectos.2 Confirma-se que o conhecimento escolar não se confunde com informações ou conteúdos programáticos, mas implica no próprio processo de sua construção pelos alunos. Essa conotação ultrapassa os limites do que se entende usualmente por instrução e releva do esforço intelectual para sua conquista, já que cada aquisição envolve o funcionamento da inteligência e, assim fazendo, a fortalece e a aperfeiçoa, ampliando suas possibilidades de conhecer. O conhecimento humano tem recebido novas abordagens. Problema tão antigo quanto a própria Filosofia, que tanto dele se ocupou, volta a ter lugar relevante no pensamento contemporâneo. Uma nova referência vem reunindo estudos sobre o tema, com características interdisciplinares: as ciências cognitivas. Englobando a inteligência humana e a inteligência artificial em seus aspectos filosóficos, científicos e técnicos, ampliam o problema da cognição. Muitos olhares voltam-se ao tema, que, recebendo contribuições desde a neurologia à cibernética, constitui um questionamento de seus aspectos conceituais e tecnológicos, para alguns pleno de promessas para o futuro próximo e para outros, inquietante.3 Entendendo-se conteúdos como aquisições por meio de aprendizagem, que no caso ideal deveriam tornar-se permanentes, observa-se que nem sempre esse resultado é alcançado. Será que nada resta na mente do aprendiz quando esquece o que aprendeu? A questão pede uma visão mais atenta do processo de aprendizagem, especialmente no que se refere às condições para aprender. É fácil reconhecer que estas ficam na dependência de muitos e variados fatores. Mas é também necessário admitir que a construção de “instrumentos intelectuais” que permitam aprender e expandir tais aquisições tornando-as elementos disponíveis para o pensamento e a ação do sujeito é a meta maior do ensino educativo. A escola espera que pelo menos

2

Jean Piaget . L’équilibration des structures cognitives. PUF, Paris, 1975.

3

Muitas são as obras sobre o assunto, desde a de Norbert Wiener, Cibernética e Sociedade, datada de 1954 (trad. Cultrix, SP, 1968) até a de Francisco J. Varella (Invitation aux sciences cognitives, Ed. Seuil, France, 1989), dentre outras mais recentes.


O Ensino: Objeto da Didática

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essas ferramentas, para continuar a aprender, permaneçam quando a memória não consegue reter boa parte do aprendido na escola. Ora, serão essas condições intelectuais “aprendidas” ou “ensinadas”, na acepção estrita desses termos, que constituirão aquisições do mesmo tipo que os dados e informações que colecionamos ao longo da vida? Processos mentais como aqueles que nos permitem realizar abstrações, lidar mentalmente com os fatos e suas interpretações, ligá-los ou distingui-los uns dos outros, formular hipóteses, chegar à solução de problemas novos, além de outras atividades mentais serão rigorosamente aprendidos? Ou seriam, porventura, poderes inatos, embora mal distribuídos entre os homens? A resposta oferecida pelas pesquisas piagetianas não se limita a um sim ou a um não. Há evidência de que resultam do exercício da inteligência desde os primórdios da vida do ser humano, em seu desejo de conhecer o mundo, desenvolvendo-se, pois, graças às atividades do sujeito em suas interações com o meio, por suas experiências, explorações, indagações, intercomunicações, enfim por todos os modos de relacionamento entre um indivíduo que cresce e os meios físico e social que o rodeiam. O que estou denominando de instrumentos intelectuais participa das aquisições autônomas do sujeito, embora possa desenvolver-se também no decurso de atividades de aprendizagem – eu diria, como subprodutos mais importantes do que o próprio aprender. Autônomas e não estritamente aprendidas o são, porque objeto de construções endógenas, internas de cada indivíduo. Quando as situações didáticas não dão espaço para que o sujeito construa sua inteligência, fixam-se no sentido mais restrito da atividade do ensino, ignorando seu potencial para desenvolver as condições de aprendizagens futuras. Estas condições têm dupla dimensão: sendo básicas para cada processo de aprendizagem, devem poder atuar sobre o futuro. Não basta reconhecer as dificuldades de aprendizagem de crianças e jovens que não atingiram os níveis esperados em determinadas atividades; é necessário que os ensinantes reconheçam como sua função elevar progressivamente esses níveis. Nessa perspectiva, o ensinar transforma-se em incentivar, instigar, provocar, talvez desafiar. Na verdade, ensinar algo é sempre desafiar o interlocutor a pensar sobre algo. Ora, toda a Didática apóia-se no conceito de ensino. É este que comanda o que se espera da ação de ensinar e a realidade da ação didática. Considerando que a expectativa e a ação didática encontram-se e às vezes se confrontam na realidade das classes, passo a examinar as relações entre a Didática como pesquisa e reflexão, e seu objeto, o Ensino.


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ara quem lança um olhar sobre a Educação como uma realidade social e procura refletir a respeito de seus aspectos e rumos, o problema didático destaca-se das outras dimensões desse campo como sendo o mais real e concreto entre eles. Manifesta-se no plano da ação escolar de todos os dias e exige soluções imediatas. Abrange a face mais aparente da Educação, concentrando-se no ensino, tal como se revela na escola, nas interações entre professores e alunos e nas suas relações com a aprendizagem, contemplando tanto a materialidade das classes em seu aspecto espacial quanto a seqüência temporal do processo. Tal relevância, no entanto, não se explica apenas por constituir aspecto tão visível da Educação, mas porque sofre o reflexo dos valores, normas e significados do contexto social no qual a escola está inserida. Pensamos a Didática com apoio em paradigmas teóricos diversificados; são olhares que se entrecruzam, mas que, apesar da variedade de abordagens, integram um propósito comum. Recorremos às diferentes ciências que têm influenciado os aspectos estruturais e funcionais da Didática nos últimos tempos, possibilitando a ampliação dos conhecimentos no seu campo. Procuramos acentuar a relação entre a ação didática e a reflexão, não consentindo em reduzi-la a uma tecnologia. Procuramos apresentar uma amostra significativa do que se fez nos últimos tempos, redefinindo ou contextualizando problemas, pesquisando soluções, refletindo sobre conceitos e áreas de atrito atuais. Interessa-nos sobretudo estabelecer um diálogo com professores, pesquisadores e futuros docentes. A eles pensamos oferecer uma didática em ação focalizada como um objeto de conhecimento que não deve ser entendido como desmontado ou fragmentado por sua divisão em capítulos, mas comparecendo por inteiro em cada um dos aspectos nos quais foi refletido.

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